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- excerto -
Jordi Gual - A portrait of his blind daughter Natasha
Pela janela aberta entrava o som de uma nascente que
irrompia das rochas, formava um pequeno regato e desaparecia no interior da terra um pouco mais longe.
Patrícia tinha as mãos espalmadas no peitoril onde o
vento deixara algumas pétalas de lilases. O jardim
estendia-se à sua frente, denso e enfeitiçado, depois os
campos cobertos de urze ... A aldeia não ficava muito longe, o campanário da igreja via-se dali; o sino tocava às
oito da manhã, e era doce acordar com ele, ouvir Tom a assobiar no duche, ruídos
indistintos no andar de baixo,
onde Rose preparava o pequeno-almoço.
Nos dias em que ia trabalhar, Tom levava-a no automóvel até a cidade. Quando ele não vinha dormir a casa, o que
era relativamente raro, ia à aldeia (era bom caminhar bem
cedo pela estrada entre os campos, o cheiro da terra, da vegetação), tomava um café numa pastelaria e apanhava o
comboio que parava no apeadeiro por cinco minutos.
Procurara na livraria alguma literatura sobre mitos e
folclore irlandês (Yeats fora uma fonte inesperada). Conhecia agora as histórias
dos que são levados "para longe", para o interior das montanhas, dos poços, dos
lagos
no fundo dos quais dobram sinos, sabia que aqueles sobre quem se compõe uma
canção não vivem muito e que
todos os lugares (e pessoas) belos são assombrados.
Lia aqueles livros no restaurante, na livraria quando
não havia clientes, ou em casa, num recanto do jardim de
que gostava muito, onde os lilases e outras trepadeiras
formavam uma gruta (uma capela?) entre as árvores.
Ninguém a perturbava, embora por vezes avistasse Emily
num dos seus passeios solitários, ou o jardineiro ocupado não muito longe.
Porque também ficava muito tempo em casa. Nos primeiros dias não forçou a proximidade de Emily, limitou-se a observá-la. Não
demorou a perceber que a miúda
sabia que era bonita, escovava o cabelo à frente do espelho, conhecia os seus vestidos pelo tacto, vestidos de cores claras que alguém escolhera por ela. O seu quarto tinha paredes brancas, cortinas e colcha azuis, sobre a cómoda havia inúmeras pedras e conchas, uma jarra com
flores do campo e um solitário frasco de perfume.
Emily passara directamente do mundo dos contos de fadas para a escuridão e isso tomara-a numa pessoa ainda
mais especial. Tinha uma maturidade que vinha dos livros
em braille espalhados pelos quartos, do facto de ter sido
durante muitos anos a dona da casa (a casa com a qual tinha uma intimidade enorme, orientava-se com relativo à
vontade entre os seus pontos de referência, as plantas de
interior suspensas nos corredores, os sinos de vento que
tocavam quando se abria uma porta ou uma janela, ou
quando ela passava e os roçava com as mãos esguias).
FIM
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Ana Teresa Pereira nasceu em
1958 no Funchal, onde vive. Publicou o primeiro livro em 1989,
Matar a Imagem, com o qual ganhou o Prémio Caminho
Policial. Desde então que tem vindo a publicar regularmente. Em 2005, a obra
Se nos encontrarmos de novo foi galardoada com o
prémio literário atribuído pelo P.E.N. Clube português na categoria Ficção, e,
em 2006, venceu o Prémio Literário Edmundo Bettencourt, instituído pela Câmara
Municipal do Funchal, com a obra A Neve. O mesmo
prémio, voltou a receber em 2010 com A Outra. Em
2007, a obra 'A Neve' voltou a ser distinguida com o Prémio Máxima de
Literatura. Recebeu ainda, em 2012, o Grande Prémio de Romance e Novela da
Associação Portuguesa de Escritores com a obra O Lago.
| BookOffice
«Nos últimos dezoito anos, Ana Teresa Pereira construiu uma das obras mais
coerentes e sólidas da ficção nacional. De facto, sem que quase déssemos por
isso, os mais de vinte romances que publicou, oscilando entre os fairy tales, o
fantástico, o policial e o western, não necessariamente por esta ordem, fizeram
do seu nome uma referência incontornável.» | Eduardo Pitta, Público.
excerto de
Até que a morte nos separe
Ana Teresa Pereira
Relógio d'Água Editores, 2000
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