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João da Câmara
O Mendigo Cego - James Flewitt Mullock
Noite de Natal.
Terminára a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degráos em ruina da larga
escadaria.
A noite era cheia de estrellas, luzes d'altar immenso sob o immenso docel de velludo azul. O céo muito frio parecia rir-se, a piscar os olhinhos alegres.
Ainda nos eccos da alta abobada em berço resoavam os ultimos cheios do orgam do convento. Pela porta aberta de par em par, onde a multidão se acotovelava á sahida,
vinha de dentro da egreja um perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada.
O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de zig-zagues
rutilos as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa Familia e na colxa de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus dôrmia.
Tocavam sinos,
e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da noite fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. A larga frontaria da egreja,
comida pelo tempo, abafada n'um velho tapete de musgo, sobresahia no céo em mancha muito negra, d'onde jorravam feixes luminosos, ondas de harmonias, luz e canticos de
triumpho.
Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão.
Iam fechar-se as portas. Sahiam os ultimos devotos.
O cego era um velho corcovado,
tremulo, com a face cheia de rugas crusadas, como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz voltava-os para o céo, meneando a cabeça constantemente, como se
procurasse... o quê? E sorria. Dava a mão ao petizinho e descia os degraos tacteando-os com o pé.
— Ainda mais um, avô... E outro... E outro.
Fechou-se a
egreja. O candeeiro da esquina mal alumiava o adro.
E o cego sorria e afagava a mão do pequeno.
O povo espalhou-se pela ruas. Eram como estilhaços de alegria
por toda a cidade.
Vinha a gente descendo pelos beccos angulosos, pelas travessas em declive rapido. E parecia que todos levavam n'alma um pedaço de luz d'aquella
noite em Belem cantada nos evangelhos, da alegria d'aquella musica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o côro entoou o Gloria in excelsis! Todos falavam,
todos riam, muitos cantavam. Era a ceia prompta em casa, era o dia seguinte todo elle inteirinho de descanço!
Noite de Natal! Noite de Natal!
E eu fui por ali
abaixo tambem, atraz do cego.
O pequenito teria oito annos. Loiro. D'olhos azues. Olhava para as estrellas a rirem lá em cima.
Os olhos tinham a côr do céo, e
o que n'elles brilhava tanto podia ser o reflexo das estrellas como a luz placida da sua almasinha.
Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. Á voz tremula
do velho replicava compassadamente o pequenino. E o que elle dizia com a sua vozita infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô ainda como um
cantico, como se um anjo d'aquelles, que haviam aos pastores annunciado a vinda do Senhor, houvesse ficado na terra; porque o cego continuava sorrindo, e, a descer
pelos beccos escuros e tortuosos, afagando a mão do netinho, fitava os olhos condemnados ás trevas lá em cima, lá muito em cima, d'onde vinha aquella luz toda, que
alegrava os olhos da criança.
Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, palavras soltas, por onde, mais ou menos, reconstituia a
conversação.
Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam fome. A mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas
vezes, gulosamente:
— A canja.
E o pequeno:
— Degráo, avôsinho.
E o cego, muito attento, vagarosamente, tacteava o degráo com o pé, afagando a mão
do neto, cantarolando.
Pelos beccos, pelas travessas, sob os arcos dos pateos irregulares, cheios de sombras, disseminara-se a gente. Iamos agora sós, nós
trez, n'aquelle caminho.
Ouviam-se ainda passos ao longe, eccos de vozes, uma ou outra guitarra em lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando
em quando, um bater de palmas ao guarda nocturno, passos correndo, um tinir de chaves. Um gallo cantou n'uma trapeira.
— É tarde, disse o velho.
Caminhavam
mais depressa agora.
E eu ia andando atraz d'elles, sem saber bem porquê, atrahido talvez pela doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por
ver tanta alegria onde tanta miseria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dôr devia de suppôr-se.
Passei-lhes adeante. Esperei junto de um candeeiro. Queria
ver-lhes ainda uma vez os rostos.
O cego continuava a olhar para o céo, meneando a cabeça. O pequenito ao lado, agora que na rua tinham acabado os tropeços,
olhava para onde olhava o cego.
A cabelleira loira, toda em anneis, não lhe cabia dentro do chapéo e cahia-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces, pelas
costas.Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir!
Deixei-os passar adeante.
A rua alargava-se entre casarias irregulares.
Caminhavam mais á vontade agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição.
Faziam ecco no silencio da noite os nossos passos sobre a calçada, na rua
deserta.
Pararam. O velho bateu cinco argoladas á porta de uma casa esguia, com grades de madeira nas janellas cheias de vasos. Passados poucos segundos, ouviu-se a
pancada violenta do trinco puxado com força desde lá de cima.
O cego e o pequeno desappareceram na escuridão da escada. A porta bateu com estrondo.
Ouvi
ainda o velho cantarolando, emquanto subia. Pouco a pouco a voz sumiu-se. Encostei o ouvido á fechadura: uma bulha de passos apagando-se, mais e mais, a cada volta da
escada; uma voz muito alegre — devia de ser a da mãe do pequeno recebendo-os — palavras que não percebi... E fechou-se lá em cima uma porta.
*
Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquella casa.
Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez
as cordas da minh'alma vibrassem ainda em unisono com os cantos d'aquellas vozes tão devotas, singelamente entoados por detraz das grades do côro, hymnos muito simples ao
Deus Menino nascido.
No céo de immaculada pureza as estrellas vibravam raios de luz intensissima. Fazia frio.
E eu quedava-me a olhar para aquella casa,
tão pobresinha, tão velha, tão escura, tão cheia de flores d'alto a baixo!
Uma janella no telhado illuminou-se.
Começava a ceia do velho. Eu reconstituia o
grupo dos trez: a mesa encostada á parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os perfumes da sopa, a terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno defronte do
avô, e a mulher a sorrir-lhes, ouvindo-lhes as historias, o throno, o presepio, a missa, o canto das freiras, a vinda por ali abaixo a horas mortas, a minha perseguição.
E o pae do pequeno? Ah! sim, esse tambem lá estava... Pois quem trabalha para sustentar a alegria n'aquellas almas?... Santa familia!
Que deliciosa ceia! Que paz
tranquilla! Que boa noite de Natal!
Tanto falava o cego na canja, rua fóra, pela mão do pequeno! Quem não tem olhos, tem melhor paladar.
E o pequeno como
devora! É que é tarde e não costuma estar de véla áquellas horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe começam a fechar.
E o pae e a mãe a rirem,
contentes de os verem assim!
Que boa noite de Natal!
Fitára os olhos na janella, não sabia d'ali apartal-os. Tambem eu agora olhava para cima, como ainda
agora o pequeno para as estrellas, o cego não sei para onde.
Porque olhava o cego para o céo?
Tornou o gallo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como
quem já adivinha a madrugada.
Ha quanto tempo estava eu ali? Porque olhava para aquella trapeira?
Encaminhei-me vagarosamente para casa.
Havia tantas
estrellas no céo! Como era linda a noite de Natal! Como tinha razão o pequenito dos cabellos loiros de olhar para as estrellas! Que quantidade de luz! Tantas! Tantas!...
Talvez o pequeno se lhe mettesse em cabeça de contal-as! Houve uma, quando vinhamos pela travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito longo... Era
como a estrella dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do pequenito! E o cego sorrindo ao pé d'elle, com os olhos tenebrosos postos no céo! Porque? É que se lhe
voltavam para lá os olhos d'alma, é que na alma tinha elle mais luz do que o pequeno nos olhos.
E vejo-os ainda a descerem pelos beccos, o velho meneando a cabeça,
o pequenito a dar-lhe a mão? Degráo, avôsinho? ambos com os olhos no céo, a estrella a correr...
Que lindas estrellas vê o cego!
FIM
D. João da Câmara (1852-1908)
é um dos maiores dramaturgos portugueses: as suas obras ficarão no nosso teatro porque são profundamente
humanas. E ele não dispõe de grandes efeitos: a sua arte não arrasta pelo tablado mantos de púrpura; pelo contrário, quase sempre traz um vestido tão coçado que se lhe vê
- a alma imortal. Porque os farrapos desfazem-se, leva-os o vento: a alma não; essa é eterna.
E dia a dia este grande escritor avança no caminho da Verdade: os tipos dos seus dramas, à medida que descem na escala social, enchem-se de grandeza. A piedade
transborda-lhe da alma e ilumina-lhe todas as figuras.
Poucas peças modernas resistirão ao tempo: mais alguns anos e serão velharias de museu. Diversa será, porém, a sorte de Os Velhos (1893), da Triste Viuvinha (1897), da
Meia-Noite (1909) e da Rosa Enjeitada (1901), que é um dos mais belos dramas que eu tenho visto na minha vida.
É que D. João da Câmara é um poeta e os poetas adivinham: sabem onde se encontra a verdade e vão descobri-la através de todas as máscaras. Às vezes sofrem. Melhor: tinta
espalhada sem dor, só tinta fica. - por Raul Brandão
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AS ESTRELLAS DO CEGO (1900)
in CONTOS por João da Câmara
Livraria Editora,
Lisboa[EBook #31905 - Abril 2010]
produzido por Pedro Saborano
in http://www.gutenberg.net
(O texto aqui transcrito, é uma cópia integral e inalterada do livro impresso em 1900.)
[12.Dez.2012]
Publicado por
MJA
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