|
Modelo, em bronze, da Catedral de
São Pedro em Worms, Alemanha. As miniaturas de monumentos ajudam as pessoas com deficiência visual a explorar a
sua arquitetura.
Cego tem foto? Tem. Ao menos eu tenho. E nem estou me referindo aos
porta-retratos que habitavam meu quarto, por ideia da minha mãe, para quem eu
sempre digo, “porta-retrato em quarto de cego é como CD em quarto de surdo, só
serve para ocupar espaço e acumular poeira”. É por isso que as minhas fotos são um pouco mais acessíveis, diferentes, táteis.
Embora sim, também acumulem poeira.
O fascínio por miniaturas de monumentos turísticos começou na minha viagem à
Europa, quando eu esquiei. Desde pequeno, era vidrado pelo mundo, por diferentes
povos e países, tanto que, para além de presumir saber todas as capitais das
nações aos 8 anos, minhas diversões eram gravar em fita cassete documentários
geográficos na TV e pedir para meus pais lerem para mim enciclopédias sobre
viagens, povos e países distantes.
Assim, vocês podem imaginar meu delírio quando comecei a ter oportunidades de
viajar para fora do país. Só que, passada a primeira euforia, fui logo
apresentado à dura realidade. Por mais que eu tentasse disfarçar, logo ficou
claro que o turismo é umaatividade basicamente visual.
É que, quando você não enxerga, passear pelas igrejas ou por castelos parece
muito igual, porque o que os diferenciam são os detalhes arquitetônicos, as
formas das torres, a disposição das colunas, todos detalhes que são
essencialmente visuais e que nem a melhor descrição torna completamente
acessível aos cegos.
Ou pelo menos eram. As miniaturas que coleciono não foram concebidas para o
deficiente visual (são encontradas em muitas lojas de suvenir), mas caíram como
uma luva para quem, assim como eu, quer guardar recordações palpáveis das
viagens. São o que eu chamo de fotos, bem mais caras que as que os videntes
costumam tirar, mas creio que para nós são ainda mais fascinantes e especiais
porque nos possibilitam tocar o mundo por nós mesmos. Afinal, se com a audição
nós nos orientamos, é com o tato que enxergamos.
Castelos, palácios, igrejas, anfiteatros, catedrais, mesquitas, faróis, edi
cios, monumentos históricos, estátuas, praças, pontes, torres, teatros, casas
típicas, paisagens, estádios de futebol, meios de transporte locais e até mesmo
um mapa... Cada vez que eu toco uma das minhas miniaturas, eu sou imediatamente
transportado para aquele lugar, mesmo que eu nunca tenha estado nele antes.
Foi mais ou menos isso o que aconteceu quando eu toquei pela primeira vez a
Torre Eiffel, presente de um amigo. E eu, que imaginava que torres eram todas
torres (pensando naquela do jogo de xadrez), me surpreendi ao poder ver a sua
forma, apoiada nas quatro patas. E foi então que eu entendi porque ela é um
grande símbolo para os franceses.
Tudo começou em Bruxelas. Estando com o amigo Gabriel, diante de um espetáculo
de luz no histórico prédio da prefeitura da cidade, ele se esforçava por me
descrever o que acontecia, até que teve a ideia de me mostrar, numa lojinha de
souvenir ali perto, a miniatura do prédio. E assim ele me explicou como o jogo
de luz era feito. No entanto, a primeira miniatura adquirida, quando as ideias
de uma coleção eram ainda pálidas e obscuras, veio mais ou menos um mês depois,
em Budapeste. Por sugestão da mulher do albergue, fui com a Thaís ao mercado da
cidade, onde adquiri o Bastião dos Pescadores, uma miniatura que nem dá ideia
exata de como é o lugar de verdade, mas que acabou ficando na minha história
como o ponto de partida.
Essa foi a primeira de mais de 600 fotos. É que os amigos, familiares e
conhecidos começaram a participar da brincadeira, de modo que o que a princípio
era um pequeno apanhado dos lugares por mim visitados, terminou transformando
minha casa em um apertado museu com 607 pedacinhos de 278 cidades de 80 países
de cinco continentes, até agora.
Muitos desses lugares eu nem sequer conheço, assim como algumas das pessoas que
me presentearam com as miniaturas. Por exemplo, na primeira vez em que falei da
minha coleção em um programa de televisão, recebi um e-mail de um colecionador
do Mato Grosso do Sul com quem troquei algumas peças.
Todavia, um terço das fotos fui eu mesmo quem tirei... Ops, comprei. A história
é sempre a mesma.
Só chegar numa cidade nova e, mesmo antes de visitar os pontos turísticos, lá
estou eu na lojinha de souvenirs mais próxima buscando por miniaturas. A
recompensa é poder visitar um lugar tendo em mãos a sua réplica em escala e
então entender exatamente onde se está. Às vezes faltam ofertas e nesse caso é
necessário caminhar e perguntar muito, mas em outras vezes (o que é tão
angustiante quanto) as opções são inúmeras.
Foi o que aconteceu em Istambul, onde, no Gran Bazar, em meio a tudo o que se
possa imaginar, havia o que eu chamo de fartura de miniaturas. Foi preciso
negociar muito para levar todas as que encontrei a um preço acessível. E foi
assim que tive minha primeira mesquita e depois a segunda, a terceira.... A
ponto de elas quase parecerem todas iguais.
Ali os vendedores não fixam o preço; a gente chega a um acordo, em que às vezes
se tem a sensação de ganhar, outras de perder. No final, levava uma mala com 14
novas fotos, sem saber como transportaria tantas torres pontudas para o Brasil
sem despedaçá-las no caminho. E ainda tive a impressão de que deixei algumas
oportunidades de compra para trás.
Outras, contudo, foram quase que literalmente paridas. Na cidade de Sinaia (uma
espécie de Petrópolis na Romênia), quando finalmente achamos a miniatura do
castelo Peles, a grande atração turística do lugar, surpresa... Ela vinha dentro
de um globo de vidro.
Eu disse à vendedora que só compraria se ela pudesse resgatar o pequeno castelo
de seu invólucro de inacessibilidade. Por sorte, a senhora, que havia uma vez
quebrado acidentalmente aquele suporte e portanto sabia que era possível salvar
apenas a miniatura, acedeu ao pedido. Mas daí a tornar as palavras em ação,
foram dez minutos de marteladas convictas e precisas, porque só interessava
quebrar o vidro e não o monumento em si.
Foi quase como um parto. E a placenta do pequeno castelo, a cola que a prendia
ao suporte, por mais esforços que eu tenha feito para removê-la, está aí até
hoje, cheirando mal que só ela, aparecendo como prova inequívoca da verdade do
que conto.
Claro que esse vício por miniaturas também me traria desvantagens. Muito além do
malabarismo na hora de encontrar espaço na mala e no móvel que, embora projetado
para este fim já começa a dar sinais de superlotação, na última viagem, o zíper
das minhas duas malas foi arrombado, tanto da que tinha cadeado quanto da outra
que não tinha.
E, pela ausência de objetos furtados e pela perfeita ordem com que chegaram em
casa (exceção feita, lógico, aos dois zíperes), eu só concebo que tenha sido as
autoridades brasileiras atrás de explosivos. Claro que o arrombamento de malas
alheias não se justifica (e não me venham com história de que é procedimento),
mas não deve ser comum ver no raio X mais de 60 pequenos monumentos, de todas as
formas, tamanhos e materiais. Acho que muitos de nós desconfiaríamos da carga.
Ninguém se torna colecionador do dia para a noite. Na verdade, nos primeiros
anos, eu só tinha as miniaturas que eu conseguia comprar nos lugares onde eu ia
e aquelas presenteadas por amigos que viajavam e me traziam as fotos táteis em
forma de lembrança. Como as pessoas viajam mais ou menos para os mesmos lugares,
ao fim de 5 anos eu tinha uns 4 La Bombonera, 5 Torres de Pisa, 4 Torres
Eiffel...
Em resumo, tinha mais de duzentas peças, mas de apenas uns vinte
países, porque muitas delas eram repetidas. Foi então que encontrei no Mercado
Livre um cara de São Paulo que vendia peças que eu não tinha. Enviei um e-mail e
logo me tornei seu cliente. Nos enviamos vários e-mails e logo nos tornamos
amigos, a ponto de ele, em suas longas viagens, encontrar espaço na mochila para
me trazer inúmeras peças me cobrando por elas apenas o preço de custo. Foi
através dele que a minha coleção cresceu; basta dizer que mais da metade dos 80
países que hoje constam no meu acervo vieram por ele, não apenas das suas
inúmeras e exóticas viagens, mas por meio de seus diversos fornecedores ao redor
do mundo. De amigos, passamos a sócios, quando ele me incentivou a vender minhas
peças repetidas, de modo que eu pudesse pagar por novas peças, porque esse
negócio de miniaturas é uma diversão bem cara. Nos vimos apenas três vezes na
vida, a última delas em março do ano passado, quando por ocasião de minha estada
em São Paulo, decidi do nada passar um final de semana em sua casa. Eu não podia
imaginar que, meses depois, no dia em que completava 47 anos, o Ricardo nos
deixava.
É a ele que dedico esse texto, bem como a minha coleção.
O que fazer com tantas miniaturas? Sonho um dia em poder disponibilizar esse
material para que outras pessoas com deficiência visual possam ter acesso à
coleção, já que, quando a gente acha por aí parques de miniaturas, dentro ou
fora do Brasil, eles sempre partem da premissa de que é proibido tocar, como se
olhar só valesse se for com o olho. E aqueles, que como eu enxergam com as mãos,
só podem mesmo chupar os dedos, diante de vidros e proibições.
ϟ
in
Histórias de cego
Marcos Lima
Rio de Janeiro
Oficina Raquel, 2020.
28.Mai.2023
Publicado por
MJA
|