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Blind James Manson - by Douglas Gordon, 2002
Quando estou a sós em meu quarto, costumo aplicar sobre
o meu olho direito uma
venda preta do tipo usado por piratas. Embora não pareça, sou na verdade quase
cego desse olho. Quase, mas não totalmente. Por conseguinte, se tento ver com
ambos os olhos, surgem-me dois mundos perfeitamente sobrepostos: um,
luminoso e nítido, e outro, sombrio e indistinto. Eis por que, andando por vias
perfeitamente pavimentadas, sou às vezes assaltado por súbita sensação de perigo
e insegurança que me prega ao chão, assim como a um rato que acabou de sair
do esgoto; em outras, sou capaz de detectar sombras de cansaço e infortúnio nas
feições alegres de um amigo e arruinar nosso diálogo até então fácil e
inconsequente com o veneno de meu aflito tartamudear. Creio, porém, que me
habituarei à situação com o tempo. Caso isso não aconteça, pretendo usar o
tapa-olho
preto não só em meu quarto, como também na rua e na presença de
amigos. Estranhos poderão até achar que me dedico a um tipo de brincadeira
antiquada e voltar-se com sorriso compassivo, mas já passei da idade de me
incomodar com picuinhas.
Pretendo agora contar-lhes como foi a experiência de ganhar meu próprio
dinheiro pela primeira vez, e se lhes falei antes do meu pobre olho direito é
porque, no instante em que o feri num acidente violento, lembrei-me, de maneira
súbita e totalmente desprovida de lógica, dessa experiência acontecida há dez
anos. E, lembrando, libertei-me do ódio ardente que me dominava por completo
naquele momento. Quanto ao acidente, pretendo falar-lhes disso por último.
Dez anos atrás eu possuía visão vinte em ambos os olhos. Agora, um deles
está arruinado. O tempo passou, o tempo fez de trampolim o olho ferido por uma
pedrada e saltou. Na época em que conheci esse homem, um louco sentimental,
eu ainda via o tempo por um prisma infantil. Nunca até então experimentara a
sensação brutal de ter um tempo a me contemplar pelas costas e outro tempo a
me tocaiar mais adiante.
Dez anos atrás eu tinha dezoito anos, um metro e setenta de altura e pesava
cinquenta quilos. Acabara de entrar na faculdade e procurava um biscate.
***
Recém-ingressado na faculdade, eu ainda não me havia inscrito no centro
mediador de empregos para estudantes, de modo que bati à porta de conhecidos
em busca de trabalhos temporários. E assim, apresentado por meu tio, cheguei a
certo banqueiro que me indicou o emprego. O referido banqueiro me perguntou:
— Você já assistiu ao filme Harvey?
— Assisti — respondi, tentando trazer aos lábios um sorriso de devoção que
contivesse a dose certa de reserva, como convém a qualquer indivíduo em vias
de obter seu primeiro emprego. O filme tinha James Stewart no papel do homem
que vive na companhia de um coelho imaginário do tamanho de um urso. Quase
morri de tanto rir ao assistir a ele.
— Pois ultimamente meu filho anda desse mesmo jeito, assombrado por
um monstro. Até largou o emprego e se enclausurou em casa. Eu gostaria que
ele saísse um pouco, mas alguém teria de acompanhá-lo. Você faria isso para
mim? — indagou o banqueiro sem me devolver o sorriso.
***
Quando me apresentei ao compositor na semana seguinte, ele fixou em
mim os olhos castanho-escuros encovados e me atordoou ao comentar em tom
desprovido de censura:
— Soube que andou emboscando a enfermeira para perguntar a respeito
do meu visitante que desce do céu. Como você leva a sério o seu trabalho!
Nesse dia, tomamos o trem e viajamos cerca de trinta minutos na direção
oposta, rumo aos arrabaldes, para visitar um parque de diversões montado à
margem do rio Tama. Lá chegando, nós dois andamos nos mais variados tipos de
brinquedo. Para minha sorte, no momento em que o bebê do tamanho de um
canguru desceu do céu para perto de D, ele andava sozinho numa roda-gigante.
Preso a uma estrutura gigantesca semelhante a um catavento, o assento de
madeira em forma de barco afastava-se lentamente do chão e ganhava o céu.
Sentado num banco em terra firme, eu via o meu patrão voltado para o lado e
conversando com o interlocutor imaginário lá no alto. D me fez correr diversas
vezes à bilheteria para renovar os tíquetes da roda-gigante e só se apeou quando
o
ente que o visitava retornou ao céu.
***
— Neste momento, eu mesmo não estou vivendo, ao menos de modo
consciente, dentro do tempo presente. Você conhece as regras das viagens ao
passado realizadas em máquinas do tempo? Um indivíduo que viajou para um
mundo que existiu há dez mil anos, por exemplo, não pode fazer nesse mundo
nada que deixe rastros. Caso faça, provocará distorções, ainda que mínimas, na
história mundial dos últimos dez mil anos, pois ele não existiu realmente
naquele
tempo. E como eu já não vivo no tempo presente, não posso fazer nada que deixe
rastros da minha passagem por ele.
— E por que o senhor deixou de viver no tempo presente? — perguntei.
No mesmo instante meu patrão fechou-se em si e, transformado em dura
bola de golfe impenetrável, ignorou-me. Arrependi-me em seguida da minha
indiscrição. Eu fora levado a ultrapassar os limites convencionais e a fazer
esse
tipo de pergunta porque o problema que afetava D despertara em mim um
interesse exagerado. A enfermeira tinha razão: eu não devia tomar conhecimento
dos seus problemas, ou simplesmente manter-me indiferente. Naquele instante,
decidi que não me meteria mais, ao menos voluntariamente, nos assuntos
particulares de meu patrão.
A nova linha de conduta mostrou-se um sucesso nas diversas vezes em que
andei por Tóquio em companhia do compositor. Mas apesar da minha decisão de
não me meter mais nos assuntos de meu patrão, ocasiões havia em que,
inversamente, seus assuntos se precipitavam ao meu encontro. Certo dia, meu
patrão me forneceu um endereço ainda desconhecido para mim, e para lá nos
dirigimos de táxi. O endereço era o de um apartamento luxuoso, com estrutura
de hotel, situado para os lados de Daikan-y ama. Lá chegando, meu patrão me
mandou pegar o elevador e subir sozinho para apanhar um pacote cuja entrega
havia sido combinada previamente. Ele mesmo ficou à espera numa cafeteria do
andar térreo. A pessoa encarregada de me entregar o referido pacote morava
sozinha no apartamento e era a mulher de quem D havia se divorciado.
***
Afinal, ela acabou me perguntando:
— D ainda vê o espectro?
— Sim, senhora. Diz que é um bebê do tamanho de um canguru, usa
roupinha branca de algodão e se chama Aghwii. Foi o que a enfermeira me
contou. Normalmente, ele flutua no espaço e desce de vez em quando para ficar
perto do senhor D — respondi entusiasmado à primeira questão sobre um assunto
de meu conhecimento.
— Ah..., Aghwii. É o fantasma do nosso bebê morto, não é? Sabe por que
ele se chama Aghwii? Porque a única coisa que esse bebê disse nos poucos dias
que viveu foi: aghwii. A própria ideia de dar esse nome, Aghwii, ao espectro do
bebê que o atormenta, mostra como D é complacente consigo mesmo, não acha?
— disse a mulher, com um sorriso frio oculto na voz. Da sua boca, chegou-me
um odor acre e desagradável.
— Nosso bebê nasceu com uma protuberância enorme na área posterior
do crânio, grande a ponto de parecer que tinha duas cabeças, sabe? E o médico
diagnosticou erroneamente uma hérnia cerebral. Ao saber disso, D conversou
com esse médico e matou o bebê para proteger-nos, a ele e a mim, dessa terrível
infelicidade. Creio que, por mais que o bebê chorasse, eles só lhe deram água
com açúcar. Acho que D agiu com extremo egoísmo, pois o matou apenas por
não querer assumir a criação de um ente com funções compatíveis às de um
vegetal (a previsão foi do médico). Contudo, durante a necropsia, descobriram
que a protuberância era apenas um abscesso benigno, sabe? O choque foi tão
violento que D começou a ter essas visões. A noção do próprio egoísmo tornou-se
insuportável para ele. E do mesmo jeito que ele a princípio negou ao bebê o
direito de viver, passou depois a negar categoricamente a si próprio o mesmo
direito. Mas não se suicidou. Apenas fugiu da realidade e abrigou-se num mundo
imaginário. Mas ainda que fuja da realidade, ele não será nunca capaz de limpar
o sangue dessa mão que matou o bebê, não é mesmo? E por isso, eu digo: andar
por aí com as mãos sujas de sangue a chamar o espectro de “Aghwii” é ser
complacente demais consigo mesmo.
***
E então, chegou o último dia da minha relação com D. Era véspera de
Natal. Lembro-me disso muito bem, porque D me deu um relógio e se escusou
por estar me entregando o presente um dia antes da data certa. Além disso,
nevou durante cerca de trinta minutos no começo daquela tarde. Eu e o meu
patrão tínhamos ido a Ginza, mas, como o tráfego já andava intenso, resolvemos
sair daquela área e ir ao porto de Tóquio. D queria ver o cargueiro chileno que
devia ter aportado naquele dia. Imaginei o espetáculo da neve acumulando-se
sobre o navio e também me entusiasmei. Resolvemos então ir andando de Ginza
rumo ao porto. No momento em que passávamos diante do teatro Kabukiza, D
ergueu o olhar para o céu escuro e sujo que prenunciava nova nevasca. Nesse
momento, Aghwii desceu para o lado dele e eu, como sempre, caminhei a alguns
passos de distância de meu patrão e de seu espectro. Logo, tínhamos de
atravessar um amplo cruzamento. Mas o sinal mudou no instante em que D,
acompanhado de seu espectro, pôs o pé para fora da calçada. D parou.
Caminhões abarrotados com encomendas de final de ano passaram a toda a
velocidade como uma manada de elefantes. Foi nesse exato instante que D, com
um grito repentino, saltou diante dos caminhões com as duas mãos estendidas,
como se pretendesse acudir alguém, e foi instantaneamente jogado longe. Eu
apenas fiquei olhando, aturdido.
— Foi suicídio! Ele se matou! — disse um desconhecido ao meu lado, com
voz trêmula.
Eu, porém, não tive tempo de ficar cogitando se tinha ou não sido suicídio.
***
E então, nesta primavera, eu passava por uma rua quando, subitamente e
sem motivo algum, fui atacado a pedradas por um bando de crianças
espavoridas. Não sei o que as assustou daquele jeito, mas o fato é que uma pedra
do tamanho de um punho, lançada por uma das crianças que o medo tornara
extremamente agressiva, acertou-me o olho direito. Com o impacto, dei com um
joelho em terra e senti o peso de um naco de carne na mão que levei ao olho
ferido. Com o olho são, vi que gotas de sangue caíam sobre o asfalto e, como
ímãs, atraíam a poeira próxima. Nesse exato instante, senti às minhas costas
certa presença saudosa e enternecedora do tamanho de um canguru alçar voo
rumo ao céu de tocante pureza azulada, onde ainda demoravam os rigores do
inverno. Adeus, Aghwii!, gritei em meu íntimo, surpreendendo-me a mim
mesmo. Dei-me conta então de que o ódio por meus pequenos e apavorados
algozes se dissipava e que, no decorrer destes últimos dez anos, o tempo se
encarregara de encher meu céu de inúmeras coisas de brancura ebúrnea, nem
todas a brilhar candidamente. Ao ser ferido pelas crianças e pagar um tributo
realmente gratuito, eu conquistara, ainda que por um momento fugaz, a
capacidade de sentir junto a mim um ser descido do meu céu.
FIM
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Sobre o autor:
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Kenzaburo Oe nasceu num povoado da ilha de Shikoku, no Japão, em 1935.
Descendente de uma linhagem de samurais, até os dezoito anos quase não saiu de
seu vale ancestral, onde se acostumou a ouvir as lendas e os mitos contados
pelas
anciãs. Após realizar sua primeira viagem à capital do país, em 1957, ingressou
no departamento de literatura francesa da Universidade de Tóquio, onde teve
contato com as obras de suas referências literárias principais: Rabelais,
Balzac, Sartre, Poe, Dante e Blake. Ainda estudante, estreou na ficção com um conto que
lhe rendeu o cobiçado prêmio Akutagawa. Em 1963, o nascimento de seu
primeiro filho com uma grave deficiência deflagrou uma crise encenada no
romance 'Uma questão pessoal', publicado no ano seguinte. A enfermidade do
filho é um motivo recorrente em sua obra, que compreende inúmeros contos,
escritos políticos e um ensaio famoso sobre Hiroshima. Um dos romancistas mais
populares do Japão, recebeu o prêmio Tanizaki em 1967 e o prêmio Nobel de
literatura em 1994, ocasião em que a Academia Sueca destacou a força poética
de seu mundo imaginário, onde “mito e vida convergem sob a forma de um
panorama desconcertante da condição humana atual”.
“Aghwii, O Monstro Celeste” é o décimo conto da coletânea «14 Contos de
Kenzaburo Oe». Nele, um rapaz de 28 anos e com um olho deficiente relata o primeiro trabalho que teve na vida. Há dez anos, quando ainda cursava Literatura Francesa na universidade, ele foi assistente de um compositor com problemas emocionais.
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«Aghwii, o monstro celeste»
[excerto]
in '14 Contos de Kenzaburo Oe'
Seleção e tradução: Leiko Gotoda
Companhia das Letras
fonte do texto: http://lelivros.site
[14.Nov.2016]
Publicado por
MJA
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