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 Sobre a Deficiência Visual

 

A Vida de Quem Não Vê

José Espínola Veiga

1946

O cesteiro cego com o primeiro filho - Michael Halliday, 1858
O cesteiro cego com o primeiro filho - Michael Halliday, 1858


        índice

  1. Prefácio
  2. Explicação do autor
  3. Berço nas trevas
  4. Os primeiros passos
  5. O meu caso
  6. Primeira infância
  7. Primeiros conceitos do desconhecido
  8. Deserdado da escola
  9. Idade escolar
  10. Minha primeira escola
  11. A vida nos internatos
  1. Reminiscências esparsas
  2. Minha adolescência
  3. Falsos conceitos sobre os cegos
  4. Dos meus quinze aos dezoito anos
  5. Como os cegos amam
  6. A luta pela vida
  7. No mundo dos cegos brasileiros
  8. Continuando a minha luta
  9. Os cegos na vida prática
  10. Um pouco do meu diário
  11. Atividades de um cego
  12. Vidas edificantes

Prefácio

Aos 37 anos, o professor Espínola Veiga, abalizado técnico em assuntos ligados aos cegos e à cegueira, deliberou publicar, em forma de confissões e reminiscências, o livro "A vida de quem não vê".

Seu livro baseia-se em experiências próprias ou alheias. São confissões pessoais e narrativas do acontecido com outros cegos da intimidade do autor. Serve a escopo educativo. Espinola Veiga o diz rasgadamente: "Escrevo norteado pela ideia de bem definir o que é um cego, para torná-lo mais compreendido e melhorar a sorte dos que hão de vir depois de mim, malgrado meu".

O livro patenteia o fundamental dessa exata conceituação. O A. profliga mitos e preconceitos. Contradiz a ideia corrente que transforma o cego em criatura extraordinária, que excede na bondade ou inteligência. Nem perdoa aos que na melhor das intenções freqüentemente, consideram um incapaz ou um "bicho ruim", partindo deliberada ou despercebidamente, da preponderância que assume a visão na fixação dos conceitos, como na direção da conduta. A Espinola Veiga importa, acima de tudo, a verdade, por mais que doa. A pena da cegueira está menos na carência da visão que nas suas conseqüências, fruto da incompreensão por parte do vidente. "Para levar a felicidade à vida de que não vê, escreve "precisamos começar por interpretar as atitudes e os verdadeiros estados da alma determinados pela cegueira".

Para inculcar essas noções exatas, Espinola Veiga poderia ter escrito um ensaio de psicologia aplicada. Preferiu, porém, comunicar, com fidelidade, as reminiscências do que tem acontecido e os fatos relativos à vida de outros cegos. A agudeza da observação psicológica reponta com o valioso documentário.

Para confessar-se, sem rebuços, teve de afrontar o "ridículo e o menosprezo". Sem dúvida, é preciso muita coragem para escrever um livro assim. Mas a sinceridade comunica-lhe o calor e a palpitação da humanidade. O impressionante efeito estético do autor não é procurado, nem dirigido. Eis o segredo de sua força.

Verdadeiramente, o que move o A. é o espírito público, na sua mais elevada manifestação ― o desejo de ser útil aos outros -. Reiteradamente o acentua para não deixar dúvidas a respeito. Em certo ponto assevera: "Estou convencido de que a fidelidade do meu depoimento dependerá uma melhor compreensão da situação de quem não vê e, por conseguinte, um pouco mais de felicidade para os cegos da minha terra". Não parece pretensiosa, como acredita o A , a sua fé inabalável. Tal há de ser o fruto do livro. Lançado por um editor prestigioso e capaz, alcançará, com toda a certeza, a repercussão merecida.

O livro não é uma preceptiva pedagógica. O educador, porém, reponta nas devidas oportunidades. Espinola Veiga indica, com justificado amargor, os erros da educação ministrada aos cegos. Para isso, serve-se de tristes exemplos reais, franjados de incisivo comentário. O grande mal, parece, é o regime de internato. Conhecem-se os seus malefícios, nos casos comuns. Recrudescem, no referente ao cego. Segrega aqueles que já se sentem isolados pela própria condição de cegueira. "No internato estava fora da sociedade; dentro dela, achava-me isolado". É a confissão do A. Precisam ser postas em prática quanto antes as idéias do antigo técnico de educação do Instituto "Benjamim Constant". À sua competência e experiência se deve a orientação que o governo ultimamente imprimiu ao ensino desse educandário de cegos. Para exemplificar o alcance dessas lúcidas idéias, que o ª desenvolveu em outras oportunidades, basta anotar a necessidade de orientar adequadamente as famílias de cegos, como transparece desses conselhos práticos.

"Fazer o filho tatear tudo quanto possível e falar-lhe muito do que vê, para estimular-lhe o cérebro, parece-me a primeira regra prática para qualquer mãe de cegos".

O autor leva-nos ao mistério da Vida de quem não vê. Afugenta idéias errôneas, sem deixar de explicá-las. Tal o caso da balela de que o cego conhece, pelo tato, as cores dos objetos e o valor das cédulas. Delimita, com exatidão, as deficiências reais e as imaginárias quanto aos conceitos sobre o mundo interior. Não perdoa nenhuma ilusão. Pode assim prevalecer-se da própria autoridade para afirmar: "Onde o tato pode chegar direito, apanha mais elementos que a vista para a formação do conceito".

Explica-se. Na rapidez do olhar, basta a visão sumária dos aspectos. O comum das pessoas contenta-se em olhar, não lhes importa ver, nem é preciso. A inspeção do tato, na minudente análise necessária à composição laboriosa, pode alcançar elementos que escapam à vista. Todavia, a superioridade relativa é meramente circunstancial. A natureza custa-lhe acomodar-se à condição da cegueira. Ainda mais doloroso para o cego é o adaptar-se a este mundo, naturalmente organizado para os que podem ver.

"O dito Deus tira os dentes e alarga a goela", adverte Espinola Veiga, não tem aplicação ao cego. A goela se alarga "a força de engolir os bocados duros que a privação da vista lhe oferece constantemente. Ou alarga ou o espírito se definha de fome ― fome de sensações, de alegrias, de amor, de vida..." O memoralista descortina à sensibilidade do leitor as vicissitudes dessa dificultosa adaptação.

As reminiscências alcançam os primeiros tempos da infância. Vemos nessa parte, em passagens de comover, a ternura da mãe do menino cego, e também como a sua intuição educativa soube formar o futuro homem de rara têmpera. Mas além da reação dos pais, mostra o A. o seu próprio comportamento, quando adquiriu evidência do seu mal. E esclarece:

"Tenho consciência de nunca ter sofrido, em criança, por não poder ver". Desde então, o que lhe dói não é a cegueira diretamente, mas o sentir-se diferente dos outros, e a comum falta de tato dos que aludiam a cada passo à enfermidade. Desde cedo aborrece ao cego o tratamento especial, inspirado na piedade. Veja-se a recordação de uma surra por certa travessura em comum com o irmão, notadamente o comentário que suscitou: "Mãos abençoadas que faziam assim desabrochar em mim o senso da responsabilidade, no mesmo pé de igualdade dos meus irmãos de vista."

Vem depois o internato. Bem elucidativa a impressão de sentir-se à vontade, entre os seus, experimentada pelo aluno novato, que logo se acostuma ao colégio. Ainda bem que a pontualidade das saídas para casa atenuou a perniciosa tendência para a segregação em grupos apertados, desde cedo, agravando-se assim a condição do marginal, a que o cego dificilmente se esquiva.

O drama da adolescência, vivamente apresentado torna-se ainda mais intenso na sua complexidade: "O cego tem sempre uma vida de fantasia mais intensa que a de outras pessoas em igualdade de condições".

Com isso a adolescência se prolonga, permanece o exagerado gosto para o devaneio, principalmente nas pessoas de rica sensibilidade, como o nosso autor. Interessantíssimas as observações sobre as conseqüências dessa propensão para o sonho. Verdadeiramente patético, por outro lado, o que experimenta o rapazinho de rara inteligência, ávido de aprender, diante do livro, escrito no sistema comum. "Passei então a afirmar que seria muito feliz, que não me importaria com a cegueira se meus olhos se iluminassem diante das páginas dos livros que eu desejasse ler. "Nem deixa o autor de mostrar as dificuldades com que se atirou, conscientemente, à luta para fazer amigos, para se infiltrar na sociedade das pessoas de vista, referta de hostilidade, principalmente no acolhimento piedoso."

Ressaltam entre as passagens mais sugestivas, a percuciente análise da produção poética de cegos, o valor estético e social da voz, as idéias sobre a cegueira arquivadas na linguagem, tudo no tom do livro, cativante como o melhor romance.

O capítulo sobre o amor é dos melhores. Mostra o pendor dos cegos para sentimentos platônicos, menos em razão de particularidades psicológicas do que em conseqüência da educação de que são vítimas, tantas vezes. Aí se contam casos surpreendentes, não isentos de comicidade, como o de um noivo branco, que só no dia do casamento ficou sabendo que ia unir-se a uma pessoa de cor.

Ninguém pensa, também, nos pequeninos problemas que a vida prática oferece a quem não enxerga direito. Deles fala Espinola Veiga com espírito de humor, o que aumenta ainda mais o encanto de seu livro. São coisas da vida. Há imensas fadigas ignoradas, mas também há triunfos reconfortantes.

O livro termina com uma série de "Vidas edificantes". São retratos morais de cegos que alcançaram vitória na luta da vida vencendo a si e aos outros.

O drama do cego todo se resume nessa confissão: "Faço sempre por onde ser, quanto possível, menos diferente dos outros, menos por vaidade que por obter que me compreendam, esquecendo-se do que me falta em comum com outros homens". Daí procede, parece, a constante preocupação de que os videntes nunca deixam de ter em mente a circunstância de tratarem com um cego. Há nisso certo exagero. É preciso considerar que também o cego nutre preconceitos acerca do que dele pensam as pessoas de vista. No livro de E. Veiga as conseqüências desse estado de espírito manifestam-se em atribuir, às vezes, caráter específico a impressões tanto de cegos como de videntes.

De outra parte a vigilante autocrítica mantém sempre tenso o espírito de luta. No encarniçado esforço por superar a rêmora, o cego bem dotado acaba por dar mais do que fora justo exigir. Bem o exemplifica o caso de Espinola Veiga. Eis o seu lema:" Fazei-me por mim mesmo, sem pesar a ninguém, pensando, trabalhando, agindo, como toda gente, sem me valer da cegueira para encostar-me à tutela alheia." Assim resume a sua movimentada existência:

"Já dirigi um açougue e já lancei três atividades novas no Brasil; dirijo colégio e já trabalhei no D.A.S.P.; já acumulei e perdi muito dinheiro, já criei galinhas e já trabalhei para jornais; já estive em posição de relevo e já fui absolvido de processo em que me quiseram envolver."

Escrevendo esse livro pensa o A. haver sufocado recalques e complexos de inferioridade. Exibe-os corajosamente: o da cegueira, o das marcas de varíola, o da origem humilde. Confessando-os, deve sentir-se aliviado. No entanto, a confissão não tem apenas o efeito catártico. Pode proporcionar o encontro da verdadeira vocação, porque certamente Espinola da Veiga há de sentir-se escritor. Eis, em suma, a explicação do livro. Espinola Veiga é uma alma solitária, que sentiu a imperiosa necessidade de expandir os seus próprios recursos, a sua própria riqueza. e serviu-se do meio adequado ― a expressão literária. Daí esse grande livro, que há de constituir autêntico acontecimento literário, pela novidade do assunto, pela adequada realização, pela variedade dos temas e das sugestões, pela patética beleza que vibra em suas páginas.
Aires da Mata Machado Filho
Belo Horizonte.


Explicação do autor

Este livro não é relatório de milagres, nem apelo ao sentimentalismo, nem estudo sistemático. É todo ele vazado nas minhas experiências de cego desde os dois anos de idade, e na intimidade que desfruto no meio dos que não vêm.

Fugi ao estudo sistemático e às doutrinas de assunto, evitando, propositadamente, pautar-me pelas obras obre Psicologia de cegos, para poder confessar-me ao leitor sem peias. Achar-me-ão ridículo e rude nalguns pontos, menos moral em outros, não importa: Meu escopo foi dizer a verdade sobre os cegos e a cegueira, num relato desassombrado sobre o que eu e os outros cegos sentimos, gozamos e sofremos por sermos cegos. Não hesitei por isso em mostrar-me ao público tal qual sou como cego, ora mesquinho, ora elevado, mais aquilo do que isso, já que o meu barro não é dos melhores.

Desde já, previno ao leitor de que aqui não há nada de especialmente dito para agradar-lhe, fora da verdade. Nada de cego de "Alma pura, porque não vê as desgraças do mundo", nada de "Tristeza da escuridão eterna". Se é isso que o leitor procura, feche o livro.

Com as minhas experiências e os relatos dos outros cegos, apresento aqui a criança, a mulher e o homem sem vista, sofrendo, gozando, vivendo, enfim, a sua verdadeira vida, mal conhecida de toda gente. Busquei apontar as grandes alegrias e os dramas íntimos da vida de quem não vê. Mostro ao vivo, causas de tortura e razões de prazer dos cegos. Procurei responder, com lealdade, às interrogações correntes sobre os cegos e a cegueira.

Doutores a analfabetos fazem-nos essas interrogações a cada passo. Nossas respostas costumam ser evasivas, vaidosas ou desconcertantes; leais, quase nunca. Os nossos recalques não nos permitem dá-las de improviso com acerto. Escrevi o livro, principalmente para responder a elas com probidade.

No silêncio dos meus cantinhos de trabalho, arranquei de dentro de mim tudo o que sei e sinto por ser cego. Tenho consciência de haver logrado sufocar todos os meus recalques e complexos de inferioridade, para dizer a verdade nua e crua. Nisso, somente, está o pequenino valor desse trabalho.

Todo o livro ficou assim perpassado da minha vida. Como não bastou só ela, ― pequena demais para o programa em mira ― depus também sobre o que sei da vida de outros cegos. Não devo saber pouco, porque estou perto deles pela identidade da privação e a constância do contato. Falando aos companheiros de sorte, os cegos não têm recalques: Falam do defeito, referem seus êxitos e insucessos, expandindo abertamente a alma sem melindres. Por isso, ninguém melhor que um cego para sondar a alma de quem não vê, o que me acresce a obrigação de ser exato.

O certo é que a vida de quem não vê precisa ser compreendida à luz dos fatos, sejam quais forem, para que, de futuro, venham a ter mais felicidades aqueles em quem recai a desdita de não ver. Com essa convicção, afrontei o ridículo e o menosprezo, e mergulhei bem no fundo de mim mesmo, trazendo, lá de dentro, as minhas lembranças e as minhas impressões de cego, fossem elas lama ou areia clara, carvão ou diamante.

Nos altos e baixos de minha vida, nos obscuros setores de minhas atividades, não posso deixar de ter acumulado idéias e colhido experiências que me habilitem a escrever este livro, em que pese a escassez de meu saber. Já dirigi um açougue e já lancei três atividades novas no Brasil; dirijo colégio e já trabalhei para o D. A. S. P.; já acumulei e já perdi muito dinheiro; já criei galinhas e já trabalhei para jornais; já estive em posição de relevo e já fui absolvido de processo em que me quiseram envolver.

Nessa minha eterna luta contra a obscuridade a que o destino me condenou, no instante amargo em que a varíola me crestou os olhos, tenho assim multiplicado as minhas atividades e, consequentemente, os meus contatos sociais e as minhas experiências neste mundo.

Daí o ânimo para escrever o livro.

Minha gratidão perene a Antenor Nascentes e Aires da Mata Machado filho ― preclaros mestres ― pelo generoso estímulo que me deram para escrever; e a Eva Serra ― colaboradora inteligente ― pela luz dos olhos que me cedeu para a feitura material do livro.


Berço nas trevas

Cegueira de nascença ― Limitação dos movimentos e da alegria ― Início da acomodação -Tristeza da mãe ― A experiência do chocalho ― Reconhecimento pela voz ― Início da diferenciação social.

"Cegos de nascença". É assim que os "cegos do berço" geralmente são chamados. Mas não: Poucos são os que nascem realmente cegos. A maioria deles tem os olhos perfeitamente sãos ao desabrochar da corola inviolável onde foram gerados. No curto percurso que fazem daí até a luz do sol, é que certos gérmens lhes invadem os olhos, num cruel assalto ao mais precioso de todos os seus sentidos.

Nascer sem vista, ou perdê-la nos primeiros dias de vida, parece ser a mesma cousa para a futura formação mental do indivíduo.

O berço nas trevas desde logo cerceia as primeiras experiências da existência na vida da criancinha. Para ela, o mundo limita-se ao próprio espaço que ela ocupa. É preciso esperar o desenvolvimento do ouvido, para ela começar a aperceber-se de que há qualquer cousa além desse espaço. Como o ouvido não se inicia logo, ela perde de saída, um tempo precioso na sua formação. Os movimentos, tão necessários à evolução do pequenino ser, sofrem, por seu turno, numa grande limitação. Parece que a luz é que mais concorre para excitá-los. As mães sabem, de experiência, que pendurar papéis de cores vivas sobre os berços dos bebês é o bastante para que eles comecem a bater com as perninhas, em sinal de alegria. Como obter esses movimentos da criancinha cega? E, pior que isso, talvez, como dar-lhe essa alegria?...

Felizmente, a natureza é, de todos, a de maior capacidade de adaptação. Assim como vive sob todos os climas desse mundo, assim o homem se acomoda a qualquer circunstância que a vida lhe ofereça. Nisso reside, aliás, o eixo da explicação da vida de quem não vê. Suprima-se a um cão de vista, o ouvido e o olfato, e ele morrerá por certo. Sem a vista, sem o ouvido e sem o olfato, viveu Laura Bridgman, logrando assimilar uma boa parcela de conhecimentos.

Num berço onde falta a luz, o movimento escasseia. Não vendo as coisas que a rodeiam, a criancinha não estende as mãos para apanhá-las. A mãe não lhe mostra nada, porque sabe que é inútil. Não lhe chega os objetos, para vê-la estender a mãozinha. Não enfeita o berço, porque o filhinho não bate com os pés e nem sacode as mãos ante os estímulos da cor. Pobre mãe... Pouco lhe fala mesmo, para fugir à tristeza de ver que ele não volve para ela os olhos. Assim, o cego de nascença vive quase petrificado nos cinco primeiros meses. Aí uma das razões da falta de plasticidade nos gestos, nos movimentos e no andar de muitos cegos.

Só do quinto mês em diante, começa a criancinha associar suas experiências auditivas com as sensomotoras. Só daí por diante, começa a estender as mãos na direção de onde lhe parece vir o som. Mas, como é vagaroso esse desabrochar dos movimentos! Precipitá-lo, seria aplicação de princípios de Psicologia especializada desconhecidos do comum das mães.

Embora, lenta, e talvez, penosamente, o cego de berço vai-se acomodando ao mundo tirando dele os elementos acessíveis aos sentidos que lhe restam. Tomemos, para análise, o mais comum dos brinquedos de berço: ― o chocalho. Enquanto que a criança normal se interessa primeiro pela cor, depois pelo ruído e, até certo ponto, pela forma, a cega só se aproveita do ruído.

Aos primeiros movimentos com o brinquedo, a criança é tentada a prosseguir, pela variedade de reflexos que os coloridos lhe levam aos olhos, pelo ruído que lhe toca os ouvidos, e pela forma que lhe afeta a retina. "É tentada" e prossegue nos movimentos que lhe enriquecem a experiência e lhe adestram as mãos. A cega só tem o estímulo do ruído. Prosseguirá com o mesmo afã da outra? Claro que não. Em igualdade de condições, perderá o interesse pela experiência bem antes da outra. Perderá sim: Seu estímulo é muito menor, bem menor.

Para aumentar o seu interesse pelo brinquedo, e, em conseqüência enriquecer suas experiências, teremos de tresdobrar artificialmente o estímulo, sacudindo o chocalho muito e muito mais vezes do que fazemos para a criança normal. Só então obteremos que a criança se dedique a sacudir o chocalho com os resultados sabidos para a sua educação.

A lição que tiramos do chocalho vai ser a linha mestra de toda a educação dos cegos. Para infundir numa criança cega o interesse que lhe plasma a educação o corpo e o espírito, temos que proporcionar-lhe muito mais dosagem de estímulo que às outras.

Cumpre promover em maior quantidade e melhor qualidade, estímulos aos sentidos que lhe restam, de modo que se compensem os que as suas companheiras normais recebem ordinariamente, do mundo exterior. É justamente nessa promoção abundante de estímulos artificiais que assenta toda a base da educação de quem não vê. Chegaremos lá, no capítulo adequado. Por ora, voltemos ao nosso nascido cego.

Isolado da amplidão e da alegria das cores, o pequerrucho cego prossegue na sua adaptação ao mundo.

Aos poucos, vai estendendo as mãozinhas e agarra-se ao que o rodeia, na conquista da sua primeira noção de espaço. De há muito, a criancinha da sua idade entrou nessa noção pelos olhos; ela, porém, tudo faz com muito atraso. Continua a mover-se. Como ninguém lhe promove a percepção das coisas, faz as suas descobertas ao acaso: ouvindo sempre a mesma voz, quando se aleita ao seio materno, acaba por identificar aquela voz com a satisfação do seu instinto primacial ― a nutrição.

Daí o reconhecer a mãe quando fala. A meiguice do riso e a doçura do olhar não cairão nessa alminha destinada a ficar na orfandade de tanta coisa bela desse mundo! ...Só a voz... Mas a natureza humana é prodigiosa na sua força de adaptação: só a voz, mas a criancinha fará dela a sua ligação com o mundo que a rodeia. Antes de seis meses conhecerá a mãe por ela, e, aos dez, o pai. É o depoimento de todas as mães de recém-nascidos cegos...

Os atos instintivos e as expressões espontâneas ― sucção, mastigação, riso e choro ― aparecem normalmente na nossa criancinha. As diferenciações virão mais tarde. Ela é igual às outras na sucção do seio, mas vai diferir na sucção do canudo de refresco quando homem.

Mastiga bem no berço, mas talvez chame a atenção dos outros, ao comer em banquetes. No colo da mãe, ri como os outros bebês, mas não se rirá como as companheiras na idade escolar.

Esses atos e expressões entram a diferenciar-se com as influências do meio social. E tais influências fazem-se sentir nas crianças antes mesmo do primeiro ano de vida.

É nessa altura que as criancinhas entram na fase de imitação, quase inacessível às que não vêm. À mãe do cego, é vedada a alegria de ver o dedinho do filho apontando o objeto desejado, nem a mãozinha idolatrada lhe acenando adeus. Não: O filho não lhe imitará as mímicas ― esse grande motivo de prazer no lar ― primeira ginástica dos futuros gestos, da expressão do rosto, enfim, do aspecto externo de sua personalidade.

O filho de sua amiga, da mesma idade do seu, já faz tantas gracinhas, e o dela não!... A mãe sofre; e o coração de mãe adivinha: Aí começa realmente o maior dos tormentos de seu filho pela vida afora; a diferenciação dos outros, pela impossibilidade de aprender a imitá-los, através dos olhos.

A isso voltaremos de outras vezes, que essa é uma das tônicas do nosso estudo.

A observação nos mostra que os cegos aprendem a andar na mesma idade dos outros. Andará toda a vida diferente dos outros, mas anda desde cedo.

Mesmo que se desembarace, que logre locomover-se só, sem guia e sem bengala, terá contra si o ser reconhecido como cego, ao longe, pelo andar. É duro, mas é assim.


Os primeiros passos

Ampliação do mundo ― Mundo mesquinho ― Cérebro estiolado ― Primeiras reações ― Minha lembrança mais antiga.

Contra o que fora de esperar, a criança começa a andar no mesmo tempo que as outras. Essa é a primeira demonstração palpável de sua adaptação às suas condições. Que a vista faz falta ao equilíbrio do andar, penso, não deve restar dúvida; mas ao chegar à idade de caminhar, a nossa criança não sente mais essa carência, tão adiantada vai já a sua acomodação.

Os primeiros passos alargam-lhe o mundo. Com as mãozinhas ela vai pela primeira vez encontrar os móveis, as paredes e os objetos há meses observados, se não lhe faltasse a vista. Móveis pela metade, paredes só por baixo, objetos poucos e em poucas faces. Mundo limitado, idéias deficientes, arriscando a conduzir a conceitos falsos. Mundo precário e mesquinho, ainda mais amesquinhado pela pobre mãe aterrorizada com a ideia do filho machucar-se. "Tira a mão, meu filho; não mexe aí, isso faz dodói". Na idade em que os meninos vêm os pássaros, olham as flores, apontam a luz e procuram os aviões no céu, o cego, constrangido, mal toca com as mãos os primeiros 80 cm de altura de sua casa.

Enquanto o cérebro dos outros de contínuo se povoa de imagens, o dele se estiola na aridez que o há de atormentar por toda a vida. Fustigado interiormente pela necessidade de estímulos ele não se deixa paralisar: Move-se continuamente no seu mundo estreito, em busca de novas sensações. Tudo apalpa, tudo pega, tudo aperta, tudo bate, tudo força no desejo insuportável de encontrar novas imagens. Suas mãos entram a ser o "instrumento d'alma" por excelência, como já dizia Aristóteles. Ele é incontido, irrequieto, não raro chamado "mexilhão", "buliçoso". Mas, pouquíssimas vezes o ambiente facilita-lhe o desenvolvimento dessas atividades indagadoras. As arrumações da casa, os receios da mãe, a compaixão do que o cercam, manietam-no desde logo. Assim cerceado, deve sofrer. Não esqueçamos que sua natureza tem as mesmas necessidades das outras, pelo menos, enquanto não se acomoda.

As acomodações custam sacrifícios. Esta especialmente, ― a privação da liberdade de movimentos, tão apreciada de todas as crianças, quanto lhe custará? Custe o que custar, ele tem de sofrê-lo; é o meio que lhe impõe. Não há resistir. Por mais irrequieto que seja acabará por ficar sentadinho a um canto, batendo numa latinha, ou cousa que o valha.

Essa estreiteza de mundo, essa falta de variedade nos brinquedos, essa repetição contínua das mesmas atividades, acaba por criar no cego o defeito mental que o acompanhará pela vida toda. Refiro-me à permanência de uma só ideia no consciente, numa fixação incomoda, num remoer sem vantagens para o raciocínio, numa predominância sobre outras que ficam sem análise, em detrimento de novos conceitos. Aquela mesmice dos excitantes, parece que afaz o cérebro dos cegos ao jogo fixo de uma só ideia.

Mesmo os mais evoluídos se ressentem disso. Têm a mulher amada mais presente na memória, do que se tivesse vista; mas também têm desafetos e desejos concentrados e permanentes. Deixemos esse comportamento mental para ser escalpelizado mais adiante, quando estivermos com o cego adulto.

Contudo o cérebro tem necessidade de novos estímulos, a herança psicológica como que indica a existência de coisas variadas, que ele busca sem saber.

Picada por esta necessidade de excitantes esse fator hereditário, a criança reagirá sempre contra a coação de seus movimentos. Quando seja muito forte e dotada de extraordinário poder de vontade, achará na compulsão do meio, uma brecha para escapar-se. Sairá desse círculo de ferro, a explorar o ambiente fora dele. Mesmo esta, porém, sairá contundida. Tais e tantas foram as restrições e as negativas que recebeu, que da luta para vencê-las saiu acabrunhada. Os outros por lá ficaram, apáticos, estarrecidos, á espera de que uma mudança de vida pouco provável os venha arrancar àquela imobilidade tão comum aos cegos.

Os mais audaciosos, serão mais tarde, as exceções, os "Cegos extraordinários, mas serão sempre nervosos e alguns tanto psicatênicos pelo esforço empregado em sobrepujar o seu defeito e a incompreensão dos outros. Para logo se vai compreendendo que o cego sofre, não tanto pela cegueira, como pelos prejuízos que os outros têm a seu respeito.

"Olha lá, filhinho". É a mãezinha com o nenê no colo, dando-lhe a primeira lição da natureza. ― "Olha lá a lua!"... O filhinho olha, daqui há pouco está apontando e depois dizendo também "l-u-a". Vem o beijo da mãe radiante. O nosso nenê, nada... Nem a doce imagem luminosa, nem o aprendizado da palavra nova, nem o beijo carinhoso da mãe satisfeita. Talvez que diante da lua a mãe o beije e acarinhe, mas com beijos trespassados de amargura e carinhos de piedade pela situação do filho.

Quem nos vem lendo até aqui há de achar que pintamos por demais dorida essa primeira infância. Mas não: da tristeza desse quadro, dão testemunho as minhas primeiras reminiscências da cegueira. Aos 20 meses, contraí a varíola que me levou a vista. Da violência da enfermidade dão prova as marcas abundantes e fundas que me estigmatizam por toda a vida. Talvez a doença me houvesse raspado da memória alguma recordação aí acumulada. O certo é que não tenho nem mais vaga reminiscência de antes da moléstia. Arremexendo bem nos restos de lembranças da minha primeira idade, lá vou surpreender no fundo, remota mas bem nítida, a que me parece ser a mais antiga: minha mãe, comigo ao colo, fazia-me apalpar no alto uns canos, espécies de condutos, que deviam ser os condutores de gás acetileno com que iluminava a casa. A pouca luz que tenho nos meus olhos, quase nunca está ligada às minhas recordações. Desta feita porém, um lusco-fusco que apavorava era o traço dominante. Eu devia estar tendo a primeira sensação de cegueira. A semi-escuridão deve ter aderido à lembrança pelo contraste com a situação anterior. Apalpar parecia-me também coisa estranha. As imagens táteis estão quase apagadas.

Tão persistente porém como a escuridão, é a voz de minha mãe que chorava. Não sei o que me dizia, mas sei que chorava. No quadro não há o menor vislumbre de minha tristeza pela perda da visão.


O meu caso

Origens ― Nascimento ― Pobreza ― Causas de êxito ― Causas de Insucesso.

Como tenho que pôr no livro muito de minha experiência, pareceu-me bem dar logo a conhecer ao leitor, os traços largos da minha vida humilde. Assim poderá ele melhor situar as minhas experiências e aquilatar dos meus depoimentos.

Ia o meu ser no quinto mês de gestação, quando minha mãe perdeu abrutamente a primeira filha. Aquela que elaborava o meu ser no âmago do seu, vira morrer em três dias, estrangulada pelo crupe, a sua primeira e única filha. A filha única, a "filhinha", como lhe chamavam, a alegria da casa, foi brutalmente arrancada à pobreza dos fundos de açougue, onde o casal punha toda a sua vida após o trabalho. Era a perda irreparável, o martírio de ficarem os pais acorrentados à mesma casa lancinados pela lembrança dos primeiros passinhos, do primeiro balbuciar da filha...

Esse fato não pode deixar de ter influenciado fundo a minha personalidade. Foi nesse lar vazio, nesse ambiente de dor, que a parteira Dolores me exibiu à luz do sol. "Dolores"... Nunca vi profissional com melhor nome: Que fazia ela senão assistir dores?

Vim gordo, e gordo me fui criando: onze quilos e muitas gramas com oito. Meus pais davam-me carinhos redobrados: os meus e os da morta. Por não me deixarem dar dois arranhõezinhos num braço, contraí varíola e perdi a vista com dois anos.

Era a condenação para trabalhar em dobro e dar a metade; o eterno suplício de querer e não poder, de sentir a vida e não poder vivê-la em sua plenitude, de ter bem no espírito o que os gestos não exprimem. De ver o esforço do cérebro inutilizado na incapacidade física.

Nos primeiros passos de cego não tive ambiente que remediasse a minha privação. O excessivo zelo que não consentiu na minha vacina, certo manietou-me as primeiras tentativas de adaptação à nova vida. O "coitadinho" deve ter sido o adubo de todas as minhas más tendências. O "pobrezinho", a teia que inutilizava todos os meus movimentos de conquista do mundo onde vivia. Assim deve ter sido meu primeiro ano de cegueira.

Meu pai, açoriano atirado à lavoura aos oito anos, fugido para o Brasil com dezessete, empregado nas docas entre escravos, depois vaqueiro, depois açougueiro, só aos trinta anos, quando casado, aprendeu a ler, por conta própria. Minha mãe, filha de um imigrante português, abandonara a escola primária na cartilha. Que podiam saber de educação estas santas almas? Era banho, comida, beijos, vara e correia. "Coitadinho de meu filho". "Deixa comer o pequeno"..."Só se perdem as varadas que caem no chão"... "De pequenino é que se torce o pepino". "De pequeno vereis o boi que tereis". Eis a filosofia da educação que me coube por meus pais.

Nos fundos do açougue, sem irmão mais velho, privado do convívio das outras crianças, tão pobres tive os primeiros anos, que pouquíssimas lembranças me ficaram deles.

Quando fiz cinco anos, comecei a abrir minha estrada na vida. Puseram-me na escola. Estrada tortuosa, escura e obscura, com alegrias modestas e fundos dissabores, mas, "estrada". Muito melhor que a cova onde eu ficaria se, perdido a vista, não recebesse instrução.

Um casal de cegos foi instalar-se com externato quase defronte do açougue. Ela ensinava piano. E ele lecionava tudo. Ensinava o "be-a-ba" a guris, preparava rapazes para bancos e dava explicações a candidatos à Escola de Guerra. Protótipo do laborioso professor paralelo ao médico da riça. Mamede Freire. Toda a redondeza o conheceu. Mestre "às direitas", porque fascinava pela palavra e convencia pelo exemplo. Caiu-me a sopa no mel. Eu que fazia barulho para me ver na escola onde andava meu irmão, encontrei um professor que me quis receber entre os seus alunos.

Aos oito anos, fazia as quatro operações e lia correntemente com os dedos. Mamede Freire, porém, sentia que eu não ia bem em casa. Observador arguto, e caprichoso investigador das coisas do cego e da cegueira, percebia que os carinhos dos meus me amolentavam. Lutava contra o excesso de zelo dos meus pais. Conseguia muito, mas não quanto entendia que eu precisava. "O menino tem de ir para o Instituto. Mais tarde será bom para ele, será bom para todos". Tanto martelou, que minha mãe foi ver o Instituto Benjamin Constant na Praia Vermelha, e eu lá dei entrada numa Quinta-feira, 8 de abril de 1915.

Fui estudando. Não sabia bem para quê, mas estudava para poder sair aos sábados. O que exigiam de mim, fazia. Um minguado curso primário de três anos, sem nenhum adestramento especial dos sentidos que deviam suprir a visão, sem nenhum recurso para povoar o cérebro das imagens que a vista não lhe dava.

Verbalismo a estourar a cabeça. Os bazares de Constantinopla, os templos da china, as armas dos esquimaus, o arco-íris, a tecelagem de lã, a extração do cobre, tudo nas palavras de Hilário Ribeiro, sem uma só miniatura, sem nenhum objeto para ser apalpado como longinqua comparação que fosse.

No terceiro ano de estudos decorava o nome de ossos e mais ossos, sem nunca ter tocado num. Esqueleto. Talvez daí, uma vaga aversão que me ficou na História Natural. Nem a freqüência do Instituto Anatômico de Santa Luzia, onde estudei, já homem, apalpando vísceras e peças formalizadas, não impediram que o exame de Biologia fosse o mais fraco dos que prestei no vestibular da Faculdade de Filosofia.

Nenhum adestramento de maneiras, nenhuma formação de gestos e atitudes, nenhum ensinamento adequado que visasse dar-me aparência normal, transmitindo-me essa compostura exterior que os outros aprendem espontaneamente através dos olhos. Nada... Eu e os outros cegos do internato criamo-nos sem nenhum daqueles ensinamentos. Por isso, ou temos a fisionomia imóvel, ou fazemos caretas. Ou somos parados quando falamos, ou temos gesticulação nervosa. Ou temos cacoetes, ou somos estátuas. Na aparência, somos criaturas diferentes, em desarmonia com as outras. Na face, nas mãos, nos braços, nos ombros, ou somos mudos ou dizemos cousas que não sentimos, ou não ajudamos a exprimir o que diz a boca como fazem todos.

Assim me fui criando: sentindo muita coisa, mas dizendo pouco, porque só falo com a boca. A compreensão da palavra pura ainda é privilégio dos seres superiores. O grosso da Humanidade entende-se mais por gestos e atitudes que pela palavra oral.

No meio em que eu vivia fora do internato, rudes comerciantes, açougueiros e vaqueiros, amigos de meu pai, o que eu sentia não encontrava ressonância. Temperado de boa mímica, o meu verbalismo trazido do Instituto, talvez maravilhasse aquela gente. Duro e seco, não me valia nada. Eu continuei a ser o "ceguinho", o "menino que perdeu as vistas com as bexigas".

No internato, estava fora da sociedade; dentro dela, achava-me isolado.

O colégio enchia-me de idealismo. Aprimorava-me o espírito, mas subtraía-me muito à realidade da vida. Porém, era nele que eu me sentia bem. Ali estava entre os meus e não experimentava nenhum sentimento de inferioridade.

Veio a adolescência e eu comecei a reagir; como tocava piano e entendia francês lido por brasileiros, fiz camaradagem com mocinhas e rapazes estudantes. Nesse meio, ia melhor; os rapazes liam e as meninas tocavam para mim. Eu tocava também. Comecei a fazer meu ambiente. Comecei tarde. Tinha 16 anos e ia muito devagar. Mas ia. Entendia que devia ter amigos entre os videntes, e iniciei a tremenda luta contra o maldito complexo de inferioridade. Não cheguei a tempo; o mal vinha-me arruinando desde os dois anos e deitara fundo as raízes no meu ser.

Com toda esta sobrecarga, parti para a vida, procurando fazer-me por mim mesmo, sem pesar a ninguém, pensando, trabalhando, agindo, como toda a gente, sem me valer da cegueira para encostar-me à tutela alheia.


PRIMEIRA INFÂNCIA

A Idade Pré-Escolar ― A falta de Mímica ― Regras Práticas da Primeira Educação ― Minhas Experiências Nessas Regras ― As Fantasias Dessa Idade.

Nossa criança já entra no terceiro ano retardada: passou a primeira fase da imitação sem nada poder aprender além da linguagem. Mesmo está, dizem psicólogos americanos que a aprendem devagar. Não temos observações generalizadas e abundantes para contrapor. Com a minha introspecção, porém, penso poder afirmar que a linguagem, de início, é prejudicada pela falta de imagens visuais que correspondem às palavras aprendidas. A imaginação da criança cega, muito mais fértil do que se pensa, vai criando as figuras relativas aos vocábulos aprendidos. Como as figuras não são as das realidade, a compreensão do que os outros dizem torna-se difícil, o que deve estorvar o desenvolvimento da linguagem. Isso, enquanto a inteligência não vem em socorro da nossa criança.

De mim, dou o testemunho que pode estarrecer os outros, pode provocar o riso ou a comiseração, mas são a pura realidade.

Meu pai, de formação religiosa, falava muito na mão da providência, referindo-se a Deus. Essa linguagem devia ter sido muito freqüente quando eu perdi a vista: "Foi a mão da providência... Que se há de fazer"... Nessa altura, havia uma cocheira ao fundo do quintal da nossa casa, para abrigo de seus cavalos. Não me lembro dos cavalos: talvez se houvesse desfeito deles, com o desgosto do meu mal. Lembro-me, sim, da cocheira vazia, entre as minhas reminiscências mais antigas. Paus a pique, calçamento de pedras como metades de paralelepípedes, abauladas e assentas não muito juntas. Uma tábua transversal, de um pau a outro, de vinte centímetros de largura, lá estava ao alcance da minha mão. Deixava, fora da escora, uma ponta de uns quinze centímetros que ficara por serrar, extremidade podre, acabada em várias pontas, à maneira de mão aberta, para minha imaginação pobre.

"Mão de Providência" muito tempo foi, para mim, a ponta podre do pau da cachoeira.

A palavra "piedade", na minha primeira infância, andou ligada à imagem de um prisma quadrangular pequenino, de uns cinco centímetros de base por dez de altura, muito liso, tendo em cima uma ponta em sacarrolha, do seu tamanho. Essa "piedade" era a estação próxima do lugar onde nasci, ainda hoje fazendo dó a quem sabe de tanto brasileiro ilustre digno de ali ser perpetuado. A imagem aparecia-me sempre suspensa, fora de alcance da minha mão. Não sei se era a transposição de alguma imagem visual para os processos do tacto. Consegui apurar que havia um médico da família, Dr. Paulino, residente em Piedade. Minha mãe levava-me a ele ao colo, quando eu ainda via.

Também aí dos meus três aos quatro anos, o "céu" era, para mim, uma escada de pedreiro, feita com tábuas de soalho em cutelo. Não sei de onde me vem a imagem. Talvez de alguma escada assim que eu tentasse trepar, e alguém me dissesse que eu ia ao "céu". Quem sabe?... É a minha hipótese.

É ridículo, é triste, é triste, mas é assim. Não sei que ideia deixarei de mim depois do livro, mas sei que estarei contente comigo mesmo, prestando esses depoimentos.

Enquanto as outras crianças pelos olhos, apossaram-se de uma grande variedade de movimentos para exprimir sentimentos e desejos, a nossa criança aos dois anos, há de sufocar desejos e sentimentos sem poder exprimi-los senão pela palavra ainda escassa. Além do mais os músculos que comandam tais movimentos especialmente os da face, já começam a enrijar-se, por falta de exercício, em prejuízo da plasticidade da expressão fisionômica.

Certo, o riso, o pranto e talvez a cólera são formas de expressão espontânea comandada diretamente de dentro para fora, através de secretos mecanismos. Mesmo estes, contudo, estão submetidos à pressão do ambiente social em que vive o indivíduo. O homem simples do campo não ri como o refinado das cidades; O seu riso será mais natural, de mais beleza talvez, mais um vínculo a menos a prendê-los ao ambiente citadino, uma razão a mais para que os grandes centros custem a assimilá-los. Exagero? Sutil demais a diferença? Por que é que se conhece logo à primeira vista quando os indivíduos são de fora?

Tudo sim, desde o riso até à mais complicada forma de manifestação exterior da individualidade, tudo está sob a pressão da atmosfera do meio em que se vive. Os homens dos trópicos têm gestos largos, abundantes e abrangentes, como para apanhar a vastidão do horizonte que lhe anda em torno. Os de perto dos pólos são sóbrios na mímica, como que oprimidos pela natureza que vêm. O homem da cidade anda firme e reto; o dos campos, aos bamboleios e às gingas. Em tudo, o ambiente, a imitação. Quem não vê o ambiente e não pode fazer imitação não será o homem dos trópicos, nem o granfino das cidades, nem o simplório dos campos: será o "cego", "o pobre cego", e até "o ceguinho" como o chamam, mesmo quando tenha um metro e oitenta de altura e de peso oitenta e tantos quilos.

Mas estamos na idade pré-escolar ― aos dois anos. A mãe inteligente fará alguma cousa pelo filho. Se a cegueira vem do berço ela já se habituou ao estado da criancinha e procura ensiná-la pelos meios aos seu alcance. Os meios são poucos, e ainda menos as mães capazes de aplicá-los. Contudo existem, e eu sei de mães que ensinaram com vantagem. Fazer o filho tatear tudo que possível, e falar-lhe, falar-lhe muito do que vê para estimular-lhe o cérebro, parece-me a primeira regra prática para qualquer mãe de cegos. Fazê-la tatear, mas um tatear ativo, em que ela própria explore o objeto de seu agrado. Não é passar-lhe as mãos nas cousas, como nós achamos que deve ser. Não: ela é que sabe das suas necessidades, que sabe conduzir a satisfação de seus interesses. Quando esse interesse falha, então sim: estimulá-la, chamar-lhe a atenção para esse e aquele detalhe, para aquela nuance em que vimos seus dedos prenderem-se em o momento de maior interesse. Tudo serve para tatear: não apenas o belo, mas o feio, que a vida é bela e feia. Não apenas o agradável, mas o repugnante. Até porque, o belo e o agradável para a vista, nem sempre o são para o tacto.

Laura Bridgman ― notável surda-muda-cega americana ― declara que o que mais gostava de apalpar na primeira idade era a bota velha do pai. Os patinhos de um dia, tão feios para ver, são agradabilíssimos para a mão. Sua penugem dá a impressão tátil do arminho e sua forma oval permite o prazer de abrangê-la na concha da mão. Objetos ásperos, em pedra lavrada ou madeira tosca, quer utensílios, quer obra de arte não são agradáveis de pegar. "Quer obras de arte" sim: mesmo obras de arte. O tacto não compreende a beleza plástica. Chegaremos aí mais adiante. O tacto prefere as superfícies polidas, se bem que a rugosidade, quando simétrica, não lhe é muito chocante.

Em suma, poucas vezes estão de paralelo o tacto e a visão.

O sapo repugna o tacto, não pelos olhos esbugalhados mas pela viscosidade e a friúra. Assim, um sapo quando de massa, dá tanto prazer ao tacto como um leão. É claro que isso é muito alterado pela lembrança que cada qual desperta. Mas aquela impressão do feio, que o próprio sapo de massa dá aos olhos, o cego, mesmo adulto, não a tem. Já disse que adiante esplanaremos a questão. Por agora, é só para fazer compreender que as mãezinhas não devem pensar que agradam seus filhos cegos com os mesmos brinquedos que aos outros.

Não se fiem só na vista para a escolha do que dar a apalpar a seus filhos cegos. Por outro lado, temos que levar em conta que a sensação de repugnância é uma função da idade e do conceito que se tem das cousas. Enquanto que em criança pegamos numa barata pelas barbelas e andamos com ela pela casa, fazendo correr os grandes, depois de adultos nem queremos olhar para o inseto. O mesmo se passa com os cegos; nem podia ser de outro modo. Lembra-me bem, que, aí pelos meus 4 anos, tinha numa cobra mansa de um amigo da família uma das delícias do meu tacto. Gostava de meter as mãos por entre as roscas do ofídio e deixar-me apertar por ele. Achava-o macio e liso. Não me lembro de que me repugnasse de algum modo, nem mesmo achava fria aquela cobra do Afonso. Bem mais tarde, adolescente, no internato, eu já lera e ouvira muito sobre cobras, quando curioso como sempre, ensaiei botar a mão numa jararaca que o chacareiro matara. Retirei a mão, horrorizado, ao primeiro contato do bicho nas polpas dos dedos. Há poucos anos, repeti a experiência: abarquei com a mão uma cobra viva segura no pescoço pelo dono, no mercado da Bahia, mas desisti logo, impressionado pelas torções do animal gelado. Como se vê, foi bom que eu brincasse com aquela cobra aos 4 anos. De outro modo, nenhuma noção teria desse bicho tão vulgar e símbolo do mal. É bom, portanto, que os cegos, na primeira idade, pequem, examinem e manipulem tudo o que puderem, o belo e o feio, o útil e o inútil, o agradável e o repugnante, para não lhes faltar mais tarde, a ideia do bem, nem a ideia do mal.

O modo de pegar, o processo de examinar devem ir sendo modificados com a idade. Não há regras a tal respeito, senão as que decorrem das experiências dos próprios cegos. No entanto, pouco podem os professores de vista, porque "ninguém ensina o que está fora das próprias experiências".

Não sei de ninguém que tenha sido capaz de usar por muito tempo o tacto em substituição à visão, a ponto de tê-lo educado como o dos cegos. Assim, a não ser cegos, não há quem tenha experiência tácteis para transmiti-las a discípulos sem vista, e, muito menos para condensá-las em regras pedagógicas. Poucos são os cegos curiosos da psicologia, pouquíssimos os que têm a coragem de intentar a introspeção, ainda menos os que se comportam com relaxamento interior para surpreenderem seus fenômenos íntimos, e raríssimos os que têm a coragem de trazer a lume as observações sobre si mesmos. Daí, o atraso da pedagogia dos que não vêm; atraso tão grande, que só dois ou três institutos no mundo tentam o adestramento sistemático dos sentidos, cuja necessidade, no entanto, ressalta aos olhos de qualquer observador.

Mas voltemos lá aos nossos ceguinhos de 2 a 4 anos. Vamos ver se tiramos da nossa experiência de cego abelhudo, da sagrada recordação da nossa querida mãe, alguma cousa que possa ser útil às mãezinhas desses seres.

O que dissemos atrás, já foi baseado nessa experiência e nessas lições. Mas queremos acrescentar que é preciso, mais que tudo, "coragem". Coragem para assistir o filhinho "ver" as cousas de modo tão diverso dos outros irmãozinhos!... Coragem para ver-lhe os olhos fechados ou abertos mas parados, ou agitados em desordem, diante de objetos que fazem arregalar e brilhar de alegria os olhos de outros seres. Coragem, mães; que o hábito virá substituir a dor! É assim que os filhinhos cegos devem ver; é assim que eles devem ser estimulados a observar as cousas.

Ponham-lhe o objeto na mão. Não lhe mostrem nenhum detalhe. Deixem que ele tome a iniciativa do exame. Desde crianças que "nós" gostamos mais assim. Deixem-nos apalpar tudo à vontade, ir e vir os dedos, apertar, tomar temperaturas, tomar peso, tomar o cheiro, ouvir o som, mesmo sem encontrar os pontos mais preciosos ao aprendizado. Deixem: só isso nos dá prazer ; e só a esse prazer pode seguir-me um bom aprendizado. Quando começarmos a perguntar, expliquem. Quando estivermos fartos do exame, entrem com os ensinamentos; chamem a atenção ― dos nossos sentidos para os pontos que nos escaparam. E escapam mesmo, porque o tacto "vê" parte por parte, é analítico e só tem a noção do conjunto por composição. Depois, o mundo foi mesmo feito para ver com os olhos. Poucas cousas há que mereçam mais pegadas ― que olhadas.

Mostrem sempre, e mostrem muito, porque o tacto quase não se fadiga. Minhas experiências no Instituto de Cegos da Bahia convenceram-me de que a criança cega é incansável no apalpar e no ouvir. O olfato sim, cansa-lhe logo. Ela perde, com a idade, esses hábitos tão proveitosos à educação, especialmente o de apalpar, por causa de compulsão do meio. Apalpar de público "é feio", ― denuncia a cegueira que os parentes querem encobrir; suja as mãos, suja as cousas, suja as cousas, suja os outros, estraga os objetos, é indiscreto, enfim, encabula quem está vendo, quem acompanha a pobre criança que precisa apalpar para tomar conhecimento do mundo. "Tira a mão, menino". E o cego vai perdendo o contato com as cousas e a vida. Quando rapazinho, dá pela necessidade de conhecer a vida, já perdeu o hábito de usar as mãos, já adquiriu o vexame de apalpar diante dos outros. Entra para dentro de si mesmo, constrói o mundo a seu modo, e sofre, sofre muito, quando o seu interior não encontra ressonância na realidade ambiente. Vitima da educação...

Vitima da família que não soube tomar as providências para evitar-lhe a cegueira, e não teve depois o desprendimento necessário para apresentá-lo à sociedade como cego, e para suportar a crítica dos outros. Vejam, Senhoras mães, que é preciso coragem e resignação para reparar o mal, o "grande mal" da cegueira de meus filhos.

Apalpar é, em suma, o maior meio de aquisição para os cegos. Helena Keller conta que foi apalpando o rosto da mãe conversando com visitas, que teve a grande revelação de que as criaturas se comunicavam pelo movimento dos lábios. Porém ela era um gênio acorrentado, e sua mãe, mulher de vasta intuição. A ninguém agrada ter o rosto apalpado pelas mãos quase sempre sujas das crianças. Além disso, o rosto é aquela parte considerada nobre e intangível, tão sagrada que a tradição situou nela a vergonha. Como consentir que o apalpem os meninos cegos? Permite-se-lhes pegar nas mãos, nos braços, nas costas dos outros; no rosto, nunca. Por isso, ficamos, por toda a vida, completamente desinteressados por essa parte tão expressiva do ser humano.

Quando um amigo encontra um cego e quer ver se é reconhecido sem falar, este apalpa-lhe as mãos, os braços, as costas. Notem que nem o peito... talvez porque disso fosse impedido de criança, para não se aproximar do rosto, não sujar a camisa, não torcer a gravata do examinado, ou não encabular a pesquisada. O fato é que o cego, depois de adulto, quase não se interessa pelo peito, e nunca liga ao rosto das pessoas de suas relações, mesmo as mais íntimas.

De mim sei que namorei três anos a mulher com quem me casei, sem nunca ter tido a curiosidade de lhe apalpar o rosto, ― nem mesmo quando a beijei, pela primeira vez, na testa, 15 dias antes de casar. Se mais tarde adquiri o hábito de examinar o rosto ― das pessoas de minha intimidade, foi das do outro seco e menos para agradar a mim que a elas, e para lisonjear-lhe a vaidade. É ridículo? É triste, é engraçado? Mas é assim. É para dizer a verdade ― do que sei sobre os cegos e a cegueira, que estou escrevendo o livro.

Entretanto, se me tivessem permitido, e mesmo estimulado o exame do rosto alheio a ponto de eu me interessar hoje pelo dos meus melhores amigos, não estaria aí um elo mais seguro para fortalecer as minhas amizades?

Depois do apalpar, está o ouvir. Depois, sim, porque o ouvido é, por excelência, o sentido que favorece o desenvolvimento da inteligência. Quando não esteja apalpando, a criança cega deve estar ouvindo. Deixá-la muito tempo quieta, entregue a si mesma, como não raro, ela gosta de ficar, é permitir-lhe estar elaborando idéias falsas, e começar a ingressar nessa "vida de fantasia" que lhe será a amargura da existência.

É fato: ― Por mais que trabalhe, por mais realista que seja, por mais que viva de mistura no mundo dos normais, o cego tem sempre uma "vida de fantasia" mais intensa que a de outras pessoas em igualdade de condições.

Disse-me isso em palestra, Merle Frampton da Universidade de Colúmbia, e eu passei a observar em mim mesmo e vi que era verdade. Não é possível que homem que tenham negócios ou as preocupações que eu costumo ter, façam tantas fantasias como eu e pensem tantas bobagens como as que penso. Sei que são tolices, mas agrada-me pensar nelas para aliviar-me das preocupações, assim como quem fuma ou bebe. Se andasse com potes de leite na cabeça, havia de entorná-los muitas vezes, como a Pedrina de La Fontaine.

Que fantasia fará ele, em que bobagem pensará esse homem que me está tomando o tempo com este livro? Perguntará o leitor: talvez tenha coragem de contá-las adiante. Por agora, vou reportar-me apenas às da idade pré-escolar de que estamos tratando.

Nessa idade, talvez um pouco mais, aí com uns 5 anos, lembra-me bem que eu era perseguido por um pássaro esquisito: era uma ave de corpo alongado como um peixe, pescoço muito fino e cabeça pequenina, asas compridas, sempre fechadas. Delicada e meiga, falava como uma menina. Conversava comigo, e eu com ela, já não me lembra o quê, mas sei que era muita cousa bonita, bastante do meu agrado. Conversava muito, muitíssimo; andava sempre na minha cabeça. Até sonhava com ela. Chamava-a "Lirila" e foi minha companheira por bom tempo. Depois, não sei por quê, passou a desagradar-me a insistência com que este ser vivia na minha cabeça. Não podia ser autocrítica; certamente, meus pais passaram a censurar-me porque eu devia falar muito sozinho conversando com ela . O certo é que passei a querer ver-me livre dessa criatura. E mesmo nesse esforço para libertar-me dela, ainda era a vida de fantasia que atuava; um dia, vim à porta do açougue com ela na cabeça, e como ouvi que passava um carrinho de mão, fiz gesto como quem a atirasse ao carro para que a levasse.

Certo, se me tivessem falado continuamente do que prende as outras crianças pelos olhos, a força da minha imaginação não se teria derivado para tão estapafúrdia fantasia . Por mais imaginoso que fosse, poderia fantasiar, mas a própria realidade da vida, e a ideia não seria assim tão fixa, doentia.

Enquanto que o cérebro das crianças vive num oceano de imagens que turbilhonam incessantemente pelos olhos a dentro, o dos cegos não. Essa falta do banho de luz deve secar e estarrecer o cérebro de quem não vê. Verdade que a uns seca e a outros faz crescer em direção contrária à da realidade da vida, numa introversão sempre dolorosa para o indivíduo, e não raro prejudicial à coletividade. Como quer que seja, cumpre trazer o cego sempre em contato com a realidade, e a palavra bem dirigida é dos melhores instrumentos para isso. A palavra da mãe, inspirada no santo amor materno, inspirada pelo desejo de remediar o mal do filho, quase sempre basta. Falar-lhe dos bichos, das plantas e das coisas que ele não pode pegar; falar-lhe do sol, das estrelas, da lua, do céu, do mar...

Não tenham medo de fazer a criança sofrer: se perdeu a vista cedo, ela não se incomoda. Tenho consciência de nunca ter sofrido em criança por não poder ver. Não sei de nenhum cego de infância que diga ao contrário. Se algum há que se refere triste à falta da visão, é para copiar as lamentações que fazem em torno dele pessoas menos avisadas. A não ser por conquista da inteligência, ninguém lamenta a falta do que nunca teve.

Por igual, não temam que eles se aborreçam ou se desinteressem por não poder ver essas coisas. Talvez por atavismo, as imagens visuais continuam deliciando os cegos, desde que bem descritas. Nem de outro modo se explica que, depois de homens, eles possam vir a gostar tanto de literatura.

O fichário da correspondência da Revista Brasileira para cegos do Instituto Benjamin Constant, prova que os nossos leitores preferem a literatura, em especial a poesia. No entanto, para mal da criança que não vê, por esses e outros impecilhos, ninguém lhe fala das coisas da visão, justamente nessa idade, onde se devia plasmar a embrião de suas futuras tendências.

Haja embora o risco de infiltrar no cego o "verbalismo", o uso da palavra deve ser exabundante na formação de sua mente. Não se conhece até agora outro meio de lhe povoar o cérebro das imagens inacessíveis ao tato. É verdade que eles ficam mesmo um tanto verbalistas depois de receberem essa instrução nas escolas especializadas, mas o mal é bem compensado pelas outras vantagens. Dirão ainda os educadores e psicólogos que as imagens visuais transmitidas pela palavra, chegam ao cérebro deles completamente deformadas ― que eles terão das coisas uma noção bem diversa do real. Pode ser que sim, mas mesmo a noção falsa lhe será instrumento de felicidade, se não entre em conflito com o meio, se basta apara que o compreendam e ele compreenda os outros. Que importa a ideia errada da imagem do sol e do céu, se o sol for para ele a fonte da vida, e o céu, a origem do amor...

Por si mesma, não raro a criança costuma arrancar-se à limitação da cadeira ou do quarto onde a queriam ter. Conquistou a casa, conquistou o quintal, sobe e desce, trepa e cai, abre e fecha portas e gavetas, é dono de tudo em casa, quase na mesma idade dos outros irmãos.

Minhas conversas com as mães de cegos me convencem de que, quando bem dotados, eles aprendem essas coisas tão depressa como os outros. Não há diferenças sensíveis. Por mim sei que me movia, desde cedo, à vontade pelo quintal de minha casa, bem grande e um tanto acidentado.

Filho mais velho, nem tinha irmão que me ajudasse nos primeiros cinco anos. Ganhei o ambiente da casa, senão lhe cedi a primazia aos irmãos que foram vindo. Imaginei e dirigi sempre as travessuras maiores, como chefe acostumado a ser obedecido. Só fui perdendo essa primazia, quando chegamos à idade de fazer relações com outros rapazinhos: eles se me avantajaram, principalmente depois que fui fechado no internato.

Mas o exemplo da criança cega quase nunca convence os pais, tão grande é a pena que a cegueira inspira, tão irremediável parece o mal dela decorrente.

O filho vai de 3 para 4 anos, e nada se lhe ensina. "Coitadinho, deixa!..." Mexam-lhe o café, picam-lhe o pão, põem-lhe a comida na boca, descascam-lhe a banana, deixam-no que meta a mão no prato. "Coitadinho! Já basta o que ele sofre!..." E a criança não sofre nada com a falta da vista, como já dissemos. Sofrerá, sim, mais tarde, a conseqüência dessa educação mal dirigida.

Egocêntrica como as outras, vai-se tornando despótica no lar, irascível e turbulenta, acorrentando aos seus caprichosos pais, desta sorte cada vez mais sofredores. É a tragédia do filho cego em toda a sua plenitude.

E o cego vai crescendo. Se ainda tem força, vai quebrando essas grilhetas. Pede a colher para mexer o café, morde o pão por si mesmo, leva a comida à boca e descasca a banana. Quantos há que fazem tudo isso antes dos quatro anos. Mas, oh! Fatalidade, são justamente os menos válidos da fortuna.

Nossas experiências nas coletividades de meninos cegos, no Rio, na Bahia e em Belo Horizonte, mostram-nos justamente que as crianças de meios mais pobres são as que se revelam mais capazes. É que os pais não têm tempo para impor aos filhos a limitação que desejariam, e estes se desenvolvem ao sabor de sua natureza. Talvez seja também que o afortunado tem pudor de mostrar um filho cego, e o traz, por isso, o mais preso que pode. Não exagero não. Eu e outros educadores de cegos sabemos de homens de bens e posição, que escondem o filho cego, a ponto de o não mandar aos colégios especiais, nem lhe dar professor em casa. Eles têm razão: a cegueira é quase sempre um mal tão fácil de evitar que um homem de posse e situação tem por que se envergonhar dela num filho. Pela ignorância ou pelo desleixo do pai que não preveniu a cegueira, pelo excesso de amor da mãe atormentada incapaz de educar o filho cego, pela incompreensão da verdade situação que a ausência da luz promove, por isso ou por aquilo, o certo é que há de amargurar de algum modo a vida, aquele que em criança teve a má sorte de perder os olhos.


PRIMEIROS CONCEITOS DO DESCONHECIDO

Minhas Primeiras Idéias do Céu, do Sol e das Nuvens ― A Valia dos Conceitos, Mesmo Falsos ― O Mal da Diferença dos Conceitos ― O Tato na Formação das Idéias ― Diferenças Entre as Idéias Adquiridas com a Vista e as Recebidas pela tato ― Persistência das Imagens Tácteis ― A Formação dos Meus Conceitos ― Precariedade das Minhas Idéias das Coisas Comuns ― Conceitos Sugeridos pela Realidade e Criados pela Imaginação ― Minha Primeira ternura pelo Outro Sexo.

Por desconhecido, aqui vamos entender aquilo que só é acessível à vista.

Que ideia fará o cego do sol, das nuvens, da cor, da luz, do céu? Eis a pergunta que toda gente se faz ao pensar na privação da vista.

É uma questão de conceito: cada cego tem o seu individual como é todo o conceito. Todos vêm o sol, mas, cada qual, faz um conceito dele. "Ver" não é fazer ideia; é ter elementos para formular um conceito, variável de um indivíduo para outro. Assim o cego formula o seu conceito, não do que vê, mas do que ouve, e do que apalpe a respeito daquelas coisas.

É claro que, com esses processos de aquisição imensamente indiretos, seu conceito afasta-se muito dos tidos como realidade. Em suma, são conceitos quase puramente intelectuais. Evoluem, profundamente, à medida que aumentam o conhecimento do cego. Por isso, o mais interessante, é surpreendê-los na origem, na primeira infância.

Muitos há, que por pouco falados, não chegam a nascer nessa idade. Dependem do interesse que a criança ponha no meio que a circunda. De mim, garanto que, até meus sete anos, só o céu, o sol e as nuvens me despertaram conceitos. Nem cor, nem luz, nem estrelas.

Aquela estapafúrdia imagem da escada de tábuas de soalho, foi, como as outras e que me referi, sugerida pela sua coincidência com a primeira vez em que as palavras me impressionaram. Datam de antes dos meus 4 anos.

Antes dos sete, "céu" passou a ser para mim aquele pedaço em que eu mergulhava as mãos acima da minha cabeça subindo sempre e sempre. Quando ouvia dizer que estava bonito, dava-me a impressão de que eu havia de gostar de meter a mão por ele a dentro, como fazia no mar, sem nunca encontrar o fundo. Não tinha a impressão da abóbada, do limite visual.

"O sol", ― também fiz o meu conceito dele antes dos sete anos. No meu bairro, os operários da IV Divisão da E.F.C.B. lançara, num carnaval, uns carros alegóricos pequeninos, puxados por cabritos. Passaram na minha porta, e minha mãe fez-me apalpar tudo. Chefiava o bando um rapaz que freqüentava a escola dirigida por um cego onde eu estava, e o exame foi fácil. Pararam tudo, e a mãe do menino cego arrostou os comentários e as caras de piedade pelo filho, para eu apalpar.

De tudo em que peguei, ficou-me o sol: um semi-globo de massa onde tinham, a espaços, espetado uns paus que faziam os raios. Lembro-me de que os paus eram quadrangulares. Daí por diante, quando sentia em mim um raio do astro-rei, tinha logo a ideia de uma coisa comprida que vinha lá de longe, de m globo, de uma bola, para esquentar a gente. A Luz, não a ligava a essa coisa: tinha-a nos olhos, mas não me preocupava saber de onde vinha.

"Nuvem", ― não sei por quê, trouxe-me sempre para lembrança, um grande floco. Floco muito leve, solto no espaço, fofo como o algodão, mas não sedoso. Esse floco me aparecia com a esperteza de gaze. Era como se fosse um algodão de fios ásperos. Qualquer cego me compreenderá se eu disser que é um floco como os de algodão de açúcar que esses carrinhos vendem na rua, sem a viscosidade daquele.

Nenhuma noção de cor aliada ao conjunto. Nem neste, nem nos outros. Minha córnea opacificada pela varíola só me deixava perceber as cores muito vivas e fixadas bem de perto. Parece que não descobri essa possibilidade na primeira infância. Ou não a tinha, ou não sabia dela, porque não me exercitavam os olhos. É mais certa a Segunda hipótese, porque, nessa época, na rua com meu pai, um dia, indo a um oculista, chamei-lhe a atenção para um reflexo que me feria os olhos, vindo da calçada. Era uma lata de graxa, refletindo o sol de perto do meio-dia. Certo, evitam puxar pelos meus olhos para não me entristecer.

Falsos embora e bem diversos dos de toda gente, aqueles conceitos iam servindo às necessidades do meu espírito. Eles eram a ressonância do céu, do sol e das nuvens na minha cabeça, e o quanto bastavam para que eu me interessasse quando falavam nessas coisas. O mal não estava na falsidade deles, mas no que tinham de profundamente diverso dos outros.

Não naquela idade; mas, mais tarde, a diferença do meu conceito das coisas para os dos outros veio a formar entre as amarguras da minha vida. O conceito dos artistas de cinema, dos futebolistas, da moda feminina. Muito me custou achar prazer nas palestras sobre tais assuntos. Consegui. Como, direi a seu tempo. Insisto: "O mal nem sempre está na falsidade do conceito". Aquele meu conceito do céu ― espaço existindo infinitamente para cima, que acha o leitor quando o compara ao céu da vista ― abóbada azulada? Qual estará mais perto da realidade? Ah! isto sim; mais belo o da vista é. Imensamente mais belos, são quase todos os conceitos sugeridos pela visão. Talvez principalmente por isto é que os cegos, em geral, não são alegres. Tenha eu, porém, a coragem de dizer, que, onde o tato pode chegar direito, apanha mais elementos que a vista para a formação do conceito.

Um coelho visto, por exemplo, é um animal branquinho, adornado pelos olhinhos vermelhos e as orelhas em pé, limpinho, de aspecto vivaz. Para o cego, é o animal agradável de pegar, pelo macio, orelhas em pé, ossinhos finos ali logo sob a pele, tremendo sempre, barriga quente, focinho frio, patas que arranham, irrequietas, forçando por escapar-se das mãos. Dos poucos coelhos em que tenho pegado, tudo isso me ficou para formação do meu conceito.

Depois, as aquisições do tato são mais duradouras; parece que o torvelinho de coisas que desfilam todos os dias diante dos olhos, impede que a grande maioria delas chegue à verdadeira análise da inteligência. Não sou eu quem o diz: é Carrel, no seu, no seu famoso livro.

Só essa persistência das aquisições do tato explica que os cegos logrem formar tantos conhecimentos. Qualquer brinquedo lhe fixa na mente a ideia do objeto que ele nunca poderá apalpar. Uma locomotiva e um barco a vela que tive antes dos 8 anos, fixaram-se em mim, para sempre como símbolos daqueles veículos. O barco ― muito simples ― tem sido modificado por outros que venho apalpando, ficando embora sempre bem vivo, como base do conhecimento. Com a locomotiva, porém, não sucedeu o mesmo: ficou aquela e aquela só. Para mim, esses majestosos tratores de aço continuam sendo um cilindro, paralelo aos trilhos, deitado em quatro rodas, com um ou dois tubos para cima, e uma plataforma lateral à guisa de estribo de bonde. Pela teoria das máquinas a vapor, sei que há os pistões, alguém já me falou que são vistos mover de fora, mas não tenho ideia de onde ficam.

Isso não me impediu de aprender as leis que regem aquela máquina e transmiti-las a alunos que hoje excelem como mecânicos na aeronáutica. Se quisesse, pedia que me descrevessem essa tão conhecida invenção de Stephenson, e dizia aqui que completei o meu brinquedo com as lições da vida. Para quê? Eu quero que saibam o que sou, e não o que gostaria de ser. Escrevo norteado pela ideia de bem definir o que é um "cego", para torná-lo mais compreendido e melhorar a sorte dos que hão de vir depois de mim, mau grado meu.

Olhem que o meu falso conceito da locomotiva aliada ao barulho dela, pode bem despertar-me um sentimento de entusiasmo, uma noção de força e de imponência quando um desses monstros de aço passa junto a mim. A realidade pode sugerir o mais exato, mas não o melhor conceito. Nesse particular a imaginação pode muito. Penso que é Oscar Wild quem sintetiza isto muito bem num apólogo assim:

Um pescador emérito, toda vez que voltava do alto-mar, contava aos companheiros que vira a sereia. De uma vez, chegara a tocar-lhe os cabelos, tão sedosos que quase não os sentira. De outra, ouvira-lhe a voz, branda como a luz da lua. De outra feita, enfim, vira-a fora d'água, rendilhada de espuma, balouçando-se pendurada num raio de luar. Tudo patranhas com que o pescador entretinha os crédulos companheiros. Um dia, porém o pescador loquaz chegou à terra mudo. Acostumados às suas histórias embaladoras, os companheiros rodearam-no para ouvi-lo, mas não lhe arrancaram uma só palavra. Ele vinha atônito, estarrecido. Tanto fantasiara para os amigos que, naquele dia, teve uma alucinação no alto-mar, e viu, de fato, uma sereia.

De quantas sereias assim, na realidade, estarão livres os cegos!... Pouco importa: aí também pode muito a sua imaginação.

Também os elementos de sedução no sexo oposto costumam ser tidos por desconhecidos pelos cegos. "Que conhecerá o cego a sedução de uma mulher?", pensará o leitor.

Meu depoimento franco sobre a minha primeira ternura pelo outro sexo, será o início da resposta a essa indagação. Se não disse, fica dito que, dos cinco aos oito anos, freqüentei uma escola particular onde os únicos cegos éramos eu e o professor. Havia meninos e meninas, todos interessados por mim. Gostavam de ir buscar-me em casa e trazer-me de volta ao fim das aulas.

Tive, entre as meninas, a minha eleita. Nada me agradava mais que andar pela mão dela, sentir-lhe o perfume e ouvir-lhe a fala rápida, sempre avivada de um riso que lhe saía na voz. Outras privavam comigo mais de perto, eram minhas vizinhas e companheiras de rua, mas foi ela que escolhi.

Por quê?... Resposta difícil. Ninguém, senão um cego, compreenderá como, sem os olhos, pode alguém eleger para si a pessoa do outro sexo. Nunca lhe toquei no rosto nem no corpo, nunca desejei saber se era bonita. Queria-a pelo que dela me vinha através dos meus sentidos restantes. A pressão, o calor, o nervosismo do aperto de mão, a meiguice com que me falava, o modo como brincava, a dedicação com que me fazia apalpar as coisas, o cuidado quando me guiava, o perfume, foram os elementos de que tenho consciência para a minha sedução nesse primeiro afeto de antes dos meus oito anos... Outros intervieram também para as mulheres de quem vim a gostar mais tarde. Não me faltará coragem para confessá-los ao leitor, no capitulo adequado.


DESERDADO DA ESCOLA

Isolamento Crescente ― Início da Introversão Perigosa ― Falta de Aplicação da Forças Interiores ― Concentração Doentia ― Prodígios do Aprendizado ― Vida de Fantasia ― Deformação Somáticas ― Desequilíbrio Nervoso.

Lá ficou o nosso herói fora da escola: vive em casa, já tem 8 anos, começa a sentir-se inferior aos outros meninos, a rua não lhe apetece. O colégio de cegos, é longe, muito longe, ― lá no Rio, a mãe não quer que ele vá ― "Qual, comadre!... Depois para voltar?... Eu, me apartar de meu filho? Ele não pode viver sem mim!... Ele não se veste direito. Coitado! Andar por mãos de estranhos... Dizem que lá ele estuda, mas estudar para quê?... ― Deus quis tirar as vistas dele... agora, deixa ficar. Deus sabe o que faz..."

E o isolamento do menino cresce. Só há alguns irmãos menores, quase da idade dele, ainda sem ir à escola, enfim... Sua idade mental já começou a retardar-se e ele sente prazer na companhia dos irmãos de 6 e 5 anos. Mas é sempre um isolamento. Sua atividade cerebral começa a crescer em desarmonia com suas relações com o mundo. O cérebro espera, retarda-se mas não muito: em pouco, ele começa pensar em coisas incapaz de executar, e essa atividade mental não saciada, entra a rumar por caminhos falsos.

― "Eu queria ir lá no morro, naquele pé de goiabeira... O Tonico trouxe tanta goiaba... Ele só vem de noite da escola... Mamãe não deixa eu ir sozinho... Eu era capaz de passar naquela vala. Eu deitava na pinguela e ia-me arrastando. Mamãe não deixa. Mas eu queria. Eu queria. Eu queria... Se eu fosse... Se eu fosse... Mamãe não deixa!... Ela saiu agora mas volta já. Eu queira... Eu queria... Goiaba... Goiabeira... O morro... E aquele dinheiro que a mamãe não quer que eu mexa?... Vou rasgar todo..."

A mãe só encontra fagulhas do dinheiro. Grita, desespera-se com o prejuízo mas não sabe que aquilo foi o morro, as goiabas, a goiabeira. "Perverso"... O mal, tu sabes fazer. Soubeste bem onde estava o dinheiro... mas os sapatos, tu não sabes. Deus quando te cegou não foi à toa!... "

O cego revolta-se mais. Sofre mais que os outros meninos ralhados, porque a repreensão lhe fica rodopiando na cabeça dias a fio. De outra vez, talvez não rasgue o dinheiro, nem faça coisas de que a mãe dê conta. Será pior: revolta-se intimamente contra o irmão que vai à goiabeira quando quer. Recalca uma raiva surda que não exprime, mas que lhe sai insensivelmente, sob várias formas, nas relações com Tônico. É claro que ele não se conforma com a proibição. Acha que podia ir, deitava-se na pinguela, mas a mãe não deixa. A ideia continua a perseguí-lo. Ninguém lhe sabe descobrir distrações para esquecê-la. O róseo da alvorada, o azul do meio dia, o vermelho do poente, nada chega até ele. Tem uns brinquedinhos de casa mas cansou-se deles. Descobriu tudo. Se as outras crianças gostam de quebrar brinquedo, ele então, que só tem as mãos para exprimir-se... quebra, quebra muito mais que os outros, brinquedos e objetos da casa. Sabem disso todos os que vivem com crianças cegas, principalmente os inspetores dos internatos. Um internato de colégio de cegos, de uns 10 anos, arrancou, um por um, todos os martelos de um piano e atirou-os pela janela. Criança perversa? Não: criança que tem, nas mãos, quase que o único instrumento de expressão da sua atividade mental, não raro incendiada de recalques. De mim, sei que cheguei até às crueldades no uso das mãos. Quando um de meus irmãos me trazia um gafanhoto vivo, distraía-me algum tempo a tatear os movimentos do bicho e depois, querendo fazer que ele me impressionasse também o ouvido, encostava-o na chapa quente do fogão. O pobrezinho chiava, e eu gostava muito.

De uma feita, aprisionei uma galinha. Eu estava, só no galinheiro, um dos meus lugares preferidos. Estive com o bicho na mão, muito tempo, apalpei-o por todos os lados, examinei-o bem e lembrei-me do seu bebedouro ― uma panela de ferro bem menor que ela. "Se a metesse lá dentro?" "Se a metesse lá dentro?" Meti-a, vi que não cabia bem, e decidi-me fazê-la caber. Novo Procusto de galinhas. Passei-lhe as asas para dentro, depois a cauda, mas o papo e o pescoço ficavam muito fora. Peguei na cabeça, meti num vão, e subi em cima do desgraçado bichinho para nivelá-la com o bordo do bebedouro. Um grito de minha mãe arrancou-me à tarefa. Tirei o bicho às pressas e pú-la no chão na esperança de que andasse. Empurrei-a com o pé, mas já ia longe a vida. Não me recordo de que me desse pena. O aspecto da ave imóvel, cabeça retorcida, enlameada, massacrada, comparado com as outras soltas, alegres, branquinhas, mariscando no terreiro, talvez confrangesse outra criança: a mim não.

Pelo que observo em mim e nos outros, a ausência do aspecto visual da desgraça deixa-nos, muitas vezes, indiferentes a ela. Também, já nos chega a tristeza nossa. Mas é assim: um freguês do açougue que morreu, uma senhora cheia de filhos, que passava por ali todos os dias, para ir comprar leite, com as crianças pela mão. Todos se entristeciam, meus irmãos comentavam, o enterro passava e ia tudo pra a porta ver. Eu não: era como se nada tivesse havido. Não via a mulher, nem os filhos... Nunca falaram comigo... Para mim era como se tivesse morrido uma chinesa em Nanquim. Esse detalhe, porém, como tantos outros, era mais uma causa de me sentir diferente no meio dos meus.

Retomemos lá o recalque da goiabeira: se o recalque não se exterioriza no irmãozinho, ainda pode ser pior. Um ratinho branco que a criança tivera uma vez na mão e desejara muito possuir, vem e mistura-se com a história da goiabeira. O ratinho começa a falar-lhe ao ouvido: ― "Eu te levo na goiabeira... Eu te levo". É uma voz suave. De repente, o bichinho cresce, cresce, fica assim mais alto que um cachorro dos que o cego pegou. "Eu te levo... Eu te levo". O corpo fica muito esguio, lá em cima de umas patinhas finas, finas como as do ratinho que tivera na mão. Já pode montar no rato e ir. Não se apercebe do corpo frágil, nem das pernas finas. A ideia o persegue; o rato leva-o onde a mãe não quer que ele vá. A bobagem não lhe sai da cabeça, entra noite e sai dia. Agora, o rato pisa forte: o barulho do vizinho pisando duro, na casa ao lado, de soalho antigo, já lhe parece a cavalgada do rato. A ideia não o deixa. O vizinho era o meu e a perseguição tão minha, que pude aqui pintá-la facilmente.

Era a manifestação da "vida de fantasia", tão funesta à minha formação mental, de si já tão difícil. O tempo e os fatos esbatiam a obsessão. Mas, novamente, os fatos e o tempo davam lugar a outra.

Gostava muito de passarinhos, mais ou menos por aquela época. O guarda-livros de meu pai tinha muitos e prometera-me um, mas quando o pegasse no alçapão. O alçapão do Senhor Guilherme não me saiu mais da cabeça.

"Cai, cai passarinho no alçapão do seu Guilherme". Não sei quanto, mas tenho a consciência de que durou muito a obsessão. Durou o necessário para eu me lembrar dela até hoje. Recordo-me bem de uma noite em que passei na calçada do meu quarteirão, abaixo e acima, com a mão no ombro do meu irmão Antônio, e falei, falei muito no alçapão do Senhor Guilherme. O passarinho não caía e a fantasia ia aumentando. Devaneios de toda sorte.

Essa atividade fantasiosa acaba, parece, por tornar-se num vício mental. Hoje, aos 37 anos, quando sei surpreendê-la, conheço-lhe a origem e posso dominá-la, ainda me distraio muito formando os meus castelos. Quando dou por mim, lá estou fora do mundo pensando... direi mais adiante.

Estamos vendo que a concentração mental no cego chega a ser doentia. Se bem orientada, contudo, muito pode ajudá-lo a superar a privação. Com efeito, por vezes, fatores casuais isso determinam: é o caso do menino cego que faz isso e faz aquilo. Paulo, filho de comerciantes pobres, estabelecidos num subúrbio do Rio, prendeu a atenção nos aparelhos de iluminação. Deve ter cismado tanto naquilo, que, aos 11 anos, instalou tomadas e lâmpadas com bastante acerto.

Essa concentração é vizinha ou parente daquela vida de fantasia. Também ela acaba por se erigir em vício, ou antes em defeito do cérebro de quem não vê. Dou o meu testemunho de que, até hoje, me concentro demais nas coisas que desejo executar. Penso nelas em demasia, amasso-as por demais no cérebro, môo e remôo o prazer, no antegozo de realizá-las. A pior conseqüência é que, saturado, não mais experimento grande satisfação ao executá-las. Há outras: atormento-me com as perspectivas do insucesso, e dano-me quando vou dar algum passo que falha. Não é só: no mecanismo centrípeto da mente, projeto um êxito retumbante e não tenho forças para atingi-lo. Na concentração excessiva, esqueço os ouros passos da vida. Vivo assim constantemente espicassado pelo aborrecimento de me esquecer de certos afazeres, o que retarda o andamento dos trabalhos que tenho em mão.

O leitor, que sempre ouviu dizer que "o cego tem boa memória", estará intrigado com a minha afirmação. Tem memória decorrente daquela concentração que estudamos. Memória para os obstáculos, porque se exercita no andar sozinho. Memória para números de telefone porque não pode consultar catálogo. Enfim, memória hipertrofiada numa direção e atrofiada noutra.

A vista é, por si mesma, dos melhores auxiliares da memória. A memória visual, para quem a tem, é das mais retentivas e abrangentes.

Deixem-me aproveitar o ensejo para dizer, com a minha experiência e observação que a falta da vista não dá privilégios a ninguém. Traz, sim, à custa de enormes sacrifícios, desenvolvimento de aptidões com que os outros não mexem porque não precisam. Quando não sucumbe ao esforço para desenvolvê-las; lá surge o cego com elas à luz do sol. Quantos cegos brasileiros, notáveis conhece o meu leitor, dos nossos... 60.000 ou das centenas que passaram pelas escolas??...

O dito "Deus tira os dentes mas alarga a goela" ― não tem aí aplicação. No cego, a goela se alarga à força de engolir os bocados duros que a privação da vista lhe oferece constantemente. Ou alarga, ou o espírito se lhe definha de fome ― fome de sensações, de alegria, de amor, de vida...

Na infeliz criança que ficou fora da escola, temos ainda mais desditas a apontar. Não sou pessimista: tenho é que dizer a verdade. A coisa é triste, não posso fazê-la alegre.

Aquela falta de movimento que surpreendemos desde o berço, com a ausência de luz, veio sempre perturbando a saúde do nosso pequeno. Aí o temos, com oito anos, minguado, raquítico, enfezadinho. Por melhor que haja sido o seu meio, por mais bem compreendido no seu estado, ele se movimentou, pulou, retouçou e correu menos que as outras crianças do seu ambiente, pelo que viemos vendo.

Além do mais, não vendo as atitudes corretas para imitar, adquire vícios de postura. Se anda, não tem o tronco ereto nem balança os braços. Senta-se e derreia-se todo para a frente, abaulando o dorso, com graves danos para o tórax. Como não precisa encarar os outros, a cabeça cai-lhe pesada sobre o peito.

Toda a saúde se lhe altera. Embora limitados os desgastos da mocidade, pelas próprias condições de cegueira, é elevada a percentagem de vítimas da tuberculose, entre os cegos de meu conhecimento

À essas causas danosas para a saúde, junte-se ainda o desequilíbrio nervoso que deve resultar da luta mental referida no capítulo. A ausência de expressão para o trabalho da mente, não pode deixar de ser ruinosa para a saúde. Começam aí os tiques, os cacoetes e as manifestações nervosas de toda ordem.

Não me permito acabar este capítulo sombrio, sem avisar o leitor de que há confortadoras exceções a essas crianças. Sei de uma meia dúzia delas que tiveram a fortuna de encontrar quem as soubesse conduzir. Pouquíssimo para "os deserdados da escola" no Brasil, mas o suficiente para assegurar o êxito da tarefa de recobro pela educação mesmo em casa e para animar o pai dos cegos a encetá-la com denodo.


IDADE ESCOLAR

A Tortura da Mãe ― Início da Tragédia Social do Cego ― O Divórcio dos Irmãos ― O Prazer da Criança Cega nos Brinquedos dos Irmãos ― Iniciativas de Minha Mãe ― Meus Primeiros Complexos pelas marcas da Varíola ― Minha Participação num Bloco Carnavalesco de Crianças ― Botões Crestados Antes da Floração ― Males Sociais da Criança Cega.

Chega a idade, mas a vida escolar não começa. Os irmãos vão para o colégio, mas a criança cega fica. Fica e chora, desejosa de acompanhar os outros, mas não vai.

― "Você não pode ir, meu filho: você não enxerga. A professora não te aceita. Deixa que mamãe vai comprar um trenzinho para você: Não Chora! Cala a boca!..." A mãe talvez chora mais que o filho que acalenta. O fruto de suas entranhas não pode ir ao colégio; não virá a "ser gente" como os outros. E aquele doutor lhe disse que se ela tivesse pingado o tal nitrato nos olhos do menino não tinha vindo aquela purgação e o filho não tinha ficado cego logo com quinze dias de nascido. Agora não pode ir para a escola!... Qual vai ser dele quando ela e o Pai faltar?...

É o início da tragédia social da criança cega. Pela primeira vez, ela tem perfeita consciência de que é diferente das outras. Helena Keller diz que o trato com os visitantes de sua casa, muito cedo a convenceram de que ela era diferente dos outros. Não diz quando, mas afirma que foi anteriormente à vinda de sua professora. Percebeu que os outros moviam os lábios para comunicar-se, e começou a mover também os seus desordenadamente.

É de comover a sua descrição da angústia que isso lhe causou. Aí entre a nossa criança a dissociar-se dos irmãos: eles vão passar parte do dia com ouras crianças, vão viver em ambiente novo. Chegam em casa, e o irmão cego não os entende. Eles fala de coisas e meninos que ele não conhece e a separação vai-se cavando.

A família não sabe acudir ao mal. Como fazer que se entendam os meninos? A mãe tem pena de falar ao filho cego naquilo que os irmãos aprendem. Ele não pode aprender; coitado!... Ele vai ficar triste; não se fala nisso.

E a atividade escolar dos irmãos passa até a ser segredo para o pequeno. E deixem que, na sua ignorância, essas pobres mães têm lá sua razão: elas me contam cenas de esfrangalhar um coração. "Quando ele escuta o irmão ler, vai para ele, apalpa o livro com os dedinhos e vai repetindo a mesma coisa como se estivesse lendo também".

É dura de suportar a situação da criança cega no lar. Se a mãe é animosa, inteligente e cheia de vontade, procura vencer: "Vai, meu filho; leva teu irmão contigo". ― "Mamãe, ele não sabe soltar papagaio". ― "Não faz mal, passeia com ele, e deixa o papagaio para depois". Mas o filho quer é ir ao papagaio com o colega de escola que o irmão cego não conhece. A mãe tem vontade mas não sabe: lembra-se do papagaio colorido, a cabriolar na limpidez dos ares, e pensa que o filho não vai gostar daquilo.

Mãe, ele gosta sim. Quem te diz é quem foi cego desde os primeiros anos, e teve os momentos mais felizes da infância, solto na rua, correndo com os irmãos, a mão esquerda sobre o ombro direito de um, fazendo tudo que eles faziam, diabruras, fossem quais fossem. Lembra-se bem o prazer enorme que me dava, segurar na linha tesa do papagaio, ora mais frouxa, ora repuxando, guinando de um lado para outro, abaixo e acima. Pelo ângulo que a linha me fazia na mão, eu dava conta de tudo, e providenciava, como os outros, para manter o papagaio no alto. Não lhe via as cores nem as cabriolas mas tinha prazer naquilo. Porque fossem limitados os meus entretimentos, quem sabe se eu tinha até maior prazer que os outros?

Mãe, que amarguras como a minha amargurou a desventura de ter um filho que não vê; não penses nuca na falta de vista de teu filho, quando quiseres saber se ele vai gostar disso ou daquilo. Tu, mesmo tu, que és mãe não o compreenderás na sua situação: faze-o participar da sociedade de teus outros filhos, sem te importar com a cegueira dele, nem com a cegueira espiritual do teu vizinho que te censura. Faze como esta mãe:

Um dia, as famílias de sua vizinhança resolveram lançar um bloco infantil para o carnaval. Convidaram-lhe os filho sãos e ela disse que sim, contando que o cego fosse também. Houve arrepios, cochichos e até censura cara-à-cara. Que ia fazer o pobre ceguinho no carnaval? Que o deixasse em casa que era melhor.

A mãe fez que não ouviu e o filho foi, fantasiado como os outros, pintado como os outros. Quando o pintaram, os foliões maiores, encarregados de arrumar o bloco, disseram, sem saber o que faziam: ― Ele fica até melhor que os outros, com esses buraquinhos na cara!"... Falavam das marcas da varíola. Magoaram a criança: tinha ela seis anos só, mas já aprendera que trazia no rosto umas marcas que não saíam, tão comentadas pelos outros. "Coitadinho, ficou tão marcado!..." Ele apalpava o rosto e encontrava os furinhos. O nariz, então, havia quem dissesse que era casa de marimbondo. Já aos seis anos, ninguém lhe falasse naquilo: cocava-se até o fundo. Mesmo dizendo que "ele ficava melho que os ouros", magoaram-no. Mas ninguém soube; foi um momento só.

Daí a pouco, saía o bloco:
Minha linda jardineira,
O que é meu bem,
Como vai nosso jardim,
Vai muito bem.

Lá se ia ele cantando com os outros. Dançar, não dançava. Pular, talvez não pulasse tanto como os outros, mas cantava, berrava e sacudia o mesmo chocalho que os camaradas, um pedaço de pau com tampas de cerveja amassadas pregadas numa ponta. Divertiu-se, teve, a seu modo, prazer que lhe fez o mesmo bem que aos outros.

Foi feliz naquele carnaval. Mais que em nenhum outro da sua vida! Vieram os anos, e ele não foi mais folião. Cresceram-lhe os sentimentos de inferioridade, e a boa mãe não soube mais como contê-los.

Tinha razão aquela santa mãe na luta contra os vizinhos. Não fosse a sua fortaleza moral no contrariar a opinião dos outros quando achava que defendia o interesse do filho, estava este talvez não estivesse agora datilografado estas páginas.

De outra vez, foi numa festa de escola: os irmãos foram e o cego quis ir. Quis e foi. A mãe vestiu-o de branco como os outros e ele foi à festinha de fim de ano da escola, comeu doces e ganhou presente como se fosse aluno. Também aí me lembro de uma professora que me chocou sem o saber: meteu-me na mão uma lapiseira como presente, e retirou-a depois dizendo a uma colega: "Isso não serve para ele; vamos ver outra coisa".

Assim começa a idade escolar do nosso herói. Se a escola especializada não lhe acode a tempo, o mal se agrava mais e mais. Com muito otimismo, somos 60.000 cegos no Brasil. Destes, 22,2 por cento, ou sejam 13.200 crianças devem estar na idade escolar. Estarão aí incluídas aquelas para quem a causa da cegueira foi também a determinante de perturbação mental. Não muitas, porém. Os maiores responsáveis pela cegueira ― oftalmia, tracoma, etc. ― lesam o olho de fora para dentro, nada tendo a ver com o cérebro.

Assim, mais de 10.000 crianças cegas esperam pela escola. Os institutos existentes não chegam a cuidar de 500. Dez mil brasileiros que estarrecem; 10.000 criaturinhas que definham a um canto ignoradas: 10.000 promessas frustadas, botões crestadas antes da floração, células necrosadas envenenando o organismo social.

Não é fácil que a sociedade se aperceba dos males que lhe causa a criança; todavia, eles existem recônditos mas alarmantes. A criança cega que não ingressa na escola torna-se um ser doentio, inútil, apático e estarrecido. Ora, não é possível a prosperidade e o bem-estar de uma sociedade onde existe uma boa parcela de seres nestas condições. Sua tortura moral infiltra-se pelo ambiente social que a rodeia. A tristeza do seu aspecto afugenta de seu lar a alegria de viver.

A mãe, sobrecarrega de penas e cuidados pela visão permanente do filho cego em casa, não pode dispensar grandes carinhos nem dar alegria aos outros filhos.

O pai vai transmitir, insensivelmente aos amigos e aos companheiros de trabalho, a amargura que experimenta por ter um filho que não está participando de sua ativa. São as respostas menos delicadas, a cara fechada e o mau humor para o companheiro, naturais e quase inevitáveis num homem que sofre com o padecimento do sangue de seu sangue.

Assim, a desdita do cego contamina, à distância, o meio social. Por ela sem o saber, muita gente tem a alegria diminuída.

Mas, tudo se muda, tudo se transforma, como que por encanto, se o filho vai para a escola. A mãe e o pai se desanuviam, confortados pela certeza de que, na escola, o filho virá a "ser gente" e a participar das delícias do convívio social.


MINHA PRIMEIRA ESCOLA

O Professor Mamede ― A Tabuada ― O Esqueleto ― Várias Lembranças ― O Prazer das Recordações Pobres.

Deixem-me desabafar as minhas recordações daquele externato dirigido pelo professor cego ― Mamede Freire. Foi a minha primeira escola. O nome desse professor ilumina-a e reconhece-a, muita gente. Espírito lúcido e conversador emérito, o diretor cego do grande colégio particular do Engenho de Dentro, deve ter sido o espelho em que meus pais se miraram ao mandar-me instruir. O colégio era defronte; os fados foram por mim. Chorei por ir e fui. Do primeiro dia, lembro-me só de estar na nossa sala de jantar, em pé na minha cadeira alta, enquanto minha mãe me amarrava os sapatos. Vem-me depois à memória o dia em que aprendi a escrever. Uma afilhada do professor levando-me pela mão... a mulher dele, carinhosa na voz... os passos para a mesa através de uma sala escura, pisando perpendicularmente as tábuas de um soalho que meus pés notavam empenadas... Reparem nos elementos de recordação: da afilhada, as mãos; da professora, a voz com meiguice; da sala, o escuro e o soalho empenado. É só. Depois, o pontão de furar o papel na escrita... o aparelho de escrever já muito turvo na lembrança e nada mais do quadro.

O "seu" Mamede", voz timbrada, falando muito, corpo cheio e um paletó de fazenda fina chamando a minha atenção. Desta casa é só.

O colégio mudou-se para outra. Aí, a tagarelice da meninada recitando a tabuada à antiga: "Um e um, dois; dois e um, três". Que saudade! O Luiz Alves, o Sidney, o João Tomás, chamados à mesa do professor para ler ou responder gramática ali perto de mim. Só as vozes deles na minha lembrança. Apenas do Tomás, uma outra coisa ― os chinelos, que se deviam ter fixado, porque os outros não os usavam. Tão poucos elementos de recordação; o quanto basta para uma saudade grande.

D. Elisa ― a professora dos atrasados, esganiçada, voz de velha, gritando sempre e batendo com a régua na mesa. Depois de mim pondo os tipos nas casinhas, arrumando contas para eu fazer... a "caveira" ― um só osso que fazia medo aos meninos. Eu pegava nele, como um brinquedo. Não conseguiam infundir-me terror com aquilo. Não era mais corajoso que os outros; talvez já tivesse medo de alma de outro mundo, porque era uma concepção subjetiva. Mas o horrível de um esqueleto só muito mais tarde me impressionou.

O Xerxes era o mais levado. Constantemente ia de castigo na janela, com o osso pendurado ao pescoço. Não me lembro ter feito por onde merecer o mesmo. Por certo fiz, a julgar por minha conduta no internato, mas perdoaram-me. Era o único cego entre tantos alunos...

Dormia nas aulas. Meu ensino tinha de ser individual, e quando o professor me deixava muito tempo para ocupar-se com os outros, deitava a cabeça na mesa como se ninguém me estivesse vendo. Isso é aliás um traço característico do cego: instintivamente temos a ideia de que os outros não nos observavam de longe, como nós não os observamos. Descuidamo-nos muito das atitudes em público. Só a educação nos corrige.

Às vezes, ia para o sobrado. D. Laudelina ― mulher do Sr. Mamede ― tomava conta de mim. Na sala de jantar, de soalho muito liso, uma mesa grande... soprava uma brisa fresca. Dali ouvia melhor o barulho das oficinas da Central. Ainda tenho nos ouvidos as pancadas que hoje sei serem do malho. Áurea, uma das afilhadas do casal, abaixou-se e disse: ― "Está aqui o coelho, Dindinha, mostre a ele". Em cima da mesa, peguei num bichinho de pelo muito liso, dois apêndices levantados que a professora me explicava ― !olhe as orelhinhas dele". Agachado, de modo que eu mal distinguia as patas cobertas com mo corpo, o bicho foi a minha delícia por muito tempo aquele dia.

A licença para ir ao banheiro era uma pedra: se estava na mesa do "seu Mamede", não havia ninguém "lá fora". Quem fosse, tinha de levá-la consigo. Eu estava sempre com essa pedra na mão, entretido a apalpá-la. Era diferente das que eu já conhecia. Era mais pesada, muito rugosa, mas tinha uns pedacinhos lisos, lisinhos, assim do tamanho da polpa do meu indicador. Esses "lisinhos" atraíam-me muito. É como se ainda tenha a pedra nas mãos.

Como são mesquinhas as recordações do cego: meus colegas daquele tempo devem ter lá longe, a enfeitar-lhes a saudade da meninice, a figura de Xerxes fazendo gatimônias, a cara bonita de algumas colegas, o semblante sereno do professor e tanta outra coisa que eu não sei Para mim, as imagens belas dessas lembranças, que ainda agora me dão gosto recordar, são o canto da tabuada, a voz do professor, o pedaço de quartzo, a brisa do sobrado e a surpresa do coelho. A recordação da menina de que falei no capítulo dos conceitos é quase subjetiva. Quase não há apelo aos meus sentidos. A graça dos meneios, a leveza dos gestos, a mobilidade do andar, a brandura no rosto, a formosura das linhas não existem para mim. Por que, então, recordo? Por que tão cedo, distingui uma, entre as meninas à minha volta? Por que dá-me tanto prazer recordar-me de imagens pobres como aquele pedaço de quartzo que se escondia nas minhas mãos? Não sei. Digam-no os psicólogos. Digam o que quiserem, mas não afirmem que o prazer é menor que o dos outros. Antes fosse, que, uma vez perdido, não doeria tanto. Dos males da cegueira, um está justamente aí. Ela não reduz a capacidade de sentir, e, portanto, a de desejar. A perda do bem, dói-me tanto como sinto que dói aos outros. Sei que me falecem elementos materiais, para desejar e para querer bem. Mas sobra-me, a mim e aos outros cegos, aquela fixidez de ideia, de que já falei. Antes fosse ao contrário. Se a incapacidade de conquistar os prazeres, trazida pela falta de vista, correspondesse a uma diminuição dos desenhos à sub-estima dos bens, a cegueira não seria tão cruel.


A vida nos internatos

Colégios brasileiros ― Programas ― Abandono das famílias ― Socialização ― Sopro renovador.

Não quero perder essa oportunidade para apontar livremente o que me parece errado na educação da criança cega no Brasil. Se me faltar razão, paciência: não me faltou sinceridade no expor o fruto da minha experiência dura. O Instituto Benjamin Constant, ― no Rio ― é o mais antigo dos estabelecimentos. Nascido há metade do século passado de um broto do Instituto de cegos de Paris, trouxe muito do verbalismo e do empirismo da França de então. Trouxe e conservou. A instrução ali ministrada durante muito tempo, era desprovida de sentido utilitário. Só instrução, nada de educação. Em seu internato, os meninos levam vida feliz, num mundo onde todos são como eles. Sem contato com a realidade da vida, saindo só quando as famílias querem ir buscá-los, estudam e brincam longe do mundo que os espera cá fora.. Estudavam programas livrescos que cedo os fazia odiar o aprendizado profissional de verdadeira utilidade para eles.

As famílias começam por vê-los de 15 em 15 dias e vão espaçando a ponto de abandoná-los. Verdade triste, mas "verdade". As honrosas exceções quase desaparecem.

O mundo no internato é bem maior que o de casa, mas é artificialmente preparado para os cegos. Justamente por isso, o nosso menino sente-se bem aí. A princípio refuga, chora, mas cedo se adapta. Esquece a saudades dos seus, a companhia dos irmãos e o carinho dos pais. Se vai para casa, começa a não achar-se bem aí. Talvez por isto, a família lhe espace as saídas; e. Por este espaçar, também, ele se deslembra cada vez mais dos seus, cada vez gosta menos do ambiente de casa, portanto, do verdadeiro mundo. Os regulamentos dos internatos não têm dispositivos que amparem o mal. Este cresce, alarmante, culminando, quase sempre, no abandono definitivo da família. O pátrio poder, uma noção errada da obrigação do Estado de assistir o cego, a burocracia, a falta de elasticidade das leis, e, acima de tudo, a ausência de confiança da família na vitória do filho pela educação.

Felizmente, o Governo atacou o mal com a reorganização do Instituto Benjamin Constant em fins de 43. Cumpram-se os decretos.

A criança prossegue nos estudos: mesmo sem queda, há de fazê-los à força. Repete ano atrás de ano, porque o estudo é a justificativa para continuar asilada no Instituto, e a diretoria já não tem mais para onde mandá-la. Ninguém sabe mais da família dela. Vai melhor em ofícios, mas não há um sistema estabelecido para determinar-lhe a vocação. Tem que fazer o curso de letras. Se alguém de bom senso sabe o que fazer com ele, o regulamento não permite.

Às vezes, não vai melhor em nada. É um infeliz débil mental que tem de fazer o mesmo curso dos outros, tudo emperrando e atrasando todos.

Os que vencem, vieram estimulados pelos diretores e mestres, mesmo se abandonados pelas famílias. Concluem o curso, estão moços ou moças, e o estabelecimento não tem mais nada que ensinar-lhes. Encaram o futuro: lá fora o mundo, onde nem a mão de um parente distante lhes acena. Não sabem mais de nenhum dos seus. Emprego, ninguém lhes dá, a não ser, por caridade, nas associações de proteção de cegos, para angariar e cobrar sócios. Amizades, quase não têm. Nos bancos escolares, de onde saem as melhores, só fizeram amigos cegos como eles.

Sabem geografia, história, línguas e matemáticas, ― mas que fazer com elas? Seu curso, chamado "secundário", num estabelecimento federal, não era reconhecido pelas leis, para o prosseguimento da carreira. Os mais audazes saem a encarar a luta pela vida, dolorosa e edificante tragédia anônima que depois contaremos. Outros não: perscrutam o mundo que lá fora turbilhona, buscam dentro de si a lição de coragem dos grandes vultos da história dos cegos, mas o complexo de inferioridade se alvoroça sufocando tudo. "Não", lá fora vou me achar no vazio, não tenho a quem me agarrar. Os "videntes" vão dizer: coitado...o ceguinho...Eu que estudei tanto aqui, para agora..." Alguns ensaiam vôos tímidos, para voltar logo abatidos com, com as primeiras refregas: "Não" Os "videntes" não nos compreendem; eles não querem compreender. Tudo para eles é coitado, é ceguinho; não nos dão atenção nenhuma". "Precisamos fazer uma "propaganda pelo cego".

E ficam no Instituto.

Ensinam ali de graça, anos e anos, à espera de um lugar que tarda sempre. Transmitem bem o que sabem, porque se valem das próprias experiências, mas o ensino é morto. Falta-lhe a seiva do contato com a realidade da vida, o sopro das idéias que se agitam pelo mundo. Remunerado com o teto e o prato de comida, o professor não pode fazer senão repetir o que aprendeu, e seguir a didática formal há muito embolorada pelo tempo, moendo e remoendo os conceitos arcaicos, abrigados, no casarão vetusto, contra o vento renovador que sopra lá fora. Seus alunos, cada vez mais se distanciam da verdadeira vida.

E o professor, improvisado pelos embates da sorte, ataca os ministérios com pedidos, de uma pagazinha para o lugar que já exerce. Porque seu defeito o distingue dos outros homens que fazem o mesmo, cedo se torna marcado pelos altos funcionários, que o botam na lista dos importunos. Seus reclamos são difíceis de compreender: além de sua linguagem não vir impregnada da ambiência espiritual do momento, falece-lhe a mímica das mãos, das faces, das atitudes e das mesuras tão usada por toda gente em especial quando se empenha em pedidos.

Cumpre dizer que esta situação foi bastante modificada pelo Dr. Luiz Simões Lopes como Presidente do DASP e pelo espírito renovador do diretor do instituto federal dos cegos ― O Dr. João Alfredo Lopes Braga. Mas esse era o panorama daquela casa até bem pouco tempo.

Vamos agora à minha vida no internato do Instituto Benjamin Constant.

Minha mãe quis ver o colégio, antes de decidir matricular-me. Levou-me consigo. Um casarão enorme, chão muito limpo. O diretor pôs-me ao colo, e fez-me cócegas no rosto com os bigodes num beijo. "Não chore, minha senhora: ele aqui ficará bem, e vai ser homem". ― "Sim, Doutor, estou muito contente". O "contente" morreu-lhe embargado na garganta. É como se eu a escutasse ainda.

Semanas depois, era a véspera da minha ida para o Instituto: "O Zezinho vai mesmo amanhã, comadre?" ― "Vai sim, comadre. Nunca me separei dele, mas quero que ele seja homem". À noite, na sala de jantar, a luz acesa, a máquina de coser batia. Sentei-me à cabeceira, do lado da roda, como era meu costume. Peguei na costura de cima da máquina: era uma calça, de brim liso e forte como caqui. ― "É para mim, mamãe?" ― "É sim, meu filho; mamãe está acabando para você levar amanhã".- "Que é que a senhora está chorando?" (Conheci-lhe na voz) ― "Estou não, Zezinho". Mas chorava. Evitava responder às perguntas que eu lhe fazia, para que eu não o percebesse pela voz. Fui para a porta do açougue, e tateei o vão, entre uma porta e outra, do lado de fora, na calçada, onde meu pai costumava estar sentado na sua cadeira de lona. Encontrei-lhe o berço cabeludo, as mangas arregaçadas, os ombros, os suspensórios de lona largos passados sobre a camisa. Àquela hora não tinha mais os aventais de trabalho. "Ou, meu filho"!. A fala era triste. Pôs-me ao colo, conversou muito, mas eu só lembro que me disse: "Quando meu filho se for deitar, peça a benção a seu pai, que seu pai lhe bota".

No dia seguinte, quinta-feira, 8 de abril de 1915, eu, pela mão dele, num salão grande, todo ladrilhado, vozes de muitos meninos que conversavam, barulho de bancos arrastados e um cheiro forte de café. Depois, subi escada, muita escada, e um homem, mostrando tudo, acompanhando a mim e a meu pai. Lá em cima, o homem chamou um menino e disse-lhe que tomasse conta de mim. Passei o braço no do colega, que me foi distanciando de papai. Já tinha andado muito pelo casarão, quando me senti agarrado e muito, muito beijado. Meu rosto ficou todo molhado do rosto de quem me beijou. Não falou, mas não tive dúvida de que era meu pai. Largou-me e afastou-me. Fiquei sabendo que ele estava chorando muito, não o achei mais para falar-lhe e entristeci. Passou logo: Dentro em pouco, estava na aula. Muito silêncio, tudo muito quieto. ― "Seu Justiniano, um menino novo". ― "Está bem". ― Que aula diferente da do meu colégio! De fora, vinha o canto de muitos passarinhos, e um vento que sacudia as páginas dos livros.

À noite, sentado, outra vez, para estudar. Senhor. Justiniano de novo. Eu não acertava o nome dele e os meninos riam-se. Fui chamado à mesa: "Leia, para ver o que você já sabe". Leia aqui. E punha meu dedo numa linha:

Maneco, rapaz travesso
Tinha fama de vadio.

 

Um dia, gaseia a escola
E vai banhar-se no rio.

Era o Primeiro Livro de Hilário Ribeiro ― o mesmo por que eu já estudara. "Ah!... Parece que você sabe é de cor".

Creio que não protestei: Justiniano infundia-me um certo medo. "Leia aqui agora". O Verdadeiro Patriota.

Júlio e Alfredo eram dois bons meninos, lá me fui desenrolando a cantiga, que eu devia mesmo saber de cor, tanto havia lido e relido aquele livro que o Senhor Mamede não conseguira substituir, por absoluta falta de material de ensino de cegos no mercado.

Logo no Sábado seguinte, eu esperava a aula, quando me foram buscar; meu pai, já lá em baixo disposto a levar-me. Aquele homem que me recebera ― o inspetor ― explicou que ainda não era hora, mas que ele falasse com o Diretor. Ele falou; o que disse não me lembro, mas levou-me. Soube depois que minha mãe estava inconsolável.

Não me recordo da chegada em casa. Lembro-me estar na cozinha com mamãe, luz acesa, eu com as mãos na mesa limpinha, forrada de papel, distraindo-me a sentir por baixo do forro, na tábua, um buraquinho oval que eu conhecia. "Meu filho está gostando de lá? O feijãozinho é bom como o da mamãe?"― "Estou sim, mamãe. Lá é bom. Lá tem muita escada". A lembrança da resposta está ligada ao buraquinho que eu continuava a sentir sob o dedo. A essa altura já havia furado o forro e esgaravatava o buraco para sentir a cabeça de um prego que eu sabia lá dentro. Essa ligação de pequeninas imagens táteis e certas conversas ou momentos da vida, acompanhou-me sempre. Ainda hoje conversei como secretário do Coronel Costa Neto ― o Dr. Casado ― sobre um assunto importante, e tudo o que lhe disse e dele ouvi ficou ligado a uns detalhes de um tinteiro que encontrei sob os dedos.

Quis voltar para o Instituto, e Segunda-feira lá estava. Logo nesses primeiros dias, o colega encarregado de mim meteu-se num grupo que resolveu ""fazer guerra contra o paredão"" Enchiam as mãos de seixos que encontravam num canto do recreio, e iam atirá-los num tapume de madeira que limitava o pátio. O barulho das pedras nas tábuas era delicioso para todos nós. Pensava em partilhar da brincadeira, quando o inspetor chegou, dissolveu o bloco e pôs todos de castigo, sem excluir o meu guia. Ficando só, dediquei-me a explorar a casa. Subi as escadas, e fui andar lá em cima, no último pavimento. Perdi a orientação, e vim cair na própria escada onde subira. Rolei uns quatro ou cinco degraus, o necessário para nunca mais cair naquela escada.

"Vamos perder o gurizinho hoje?" ― "Não, não. Ele é pequenino ". ― "Vamos sim: Não tem pequenino nem nada. É agora depois de jantar". "Ninguém escapa disto". Era na mesa do refeitório que discutiam, e o gurizinho era eu. O Nelson pegou-me pela mão, levou-me ao "pomar! ― um pátio interno onde encontrei muitas árvores grossas. Abandonou-me no meio, dizendo: "Saia daí agora. Vá para o seu recreio". Comecei a andar medroso, apalpando as árvores, sem ouvir nada. Calaram-se todos, para não orientar-me. Fui, fui até escorregar num rego fundo, ladeando a parede. Estourou a gargalhada dos meninos e a recordação se esvai.

A vida ali não era má. Afora a lembrança da sensação de falta de alimento, só me são agradáveis as recordações do internato. Mundo artificialmente feito para mim: meninos cegos como eu, salões amplos, pátios planos, pratos feitos, talher, copos e guardanapos invariavelmente no mesmo lugar, copeiro até para servir-me a água, coma feita, roupa no lugar certo. Pouco estudo, menos trabalho e muita folga para vagar à vontade pelo casarão e os grandes terrenos. Não fossem minhas saídas constantes, em pouco eu teria esquecido, como os outros, a família e o mundo cá de fora ― o verdadeiro mundo. Só o extremo amor de meus pais salvou-me disso. Durante nove anos, todos os sábados que Deus pós no mundo, foi meu santo pai buscar-me da Praia Vermelha para o Engenho de Dentro. Nós mesmos nove anos, todas as segundas-feiras, foi ele levar-me de casa do Instituto.

Como a falta de aplicação ou o mau comportamento importaria na privação da saída é fácil perceber quanto isso influiu na minha formação. Sem saber bem o que faziam, esses pais construíram minha modesta vida com seu amor. Franzino, pobre de saúde, difícil de estimular, eu me teria estiolado no fundo do internato sem a sua indizível dedicação.

"O Senhor Coronel quer o pequeno mais cedo agora no Instituto; amanhã às 5 horas temos de estar a pé". Era meu pai, falando a minha mãe, a respeito de meus deveres no Instituto.

Era Domingo à noite: eu, papai e mamãe na porta do açougue... Mamãe sentada na soleira, papai na cadeira dele e eu espichado numa cadeira de abril. Começava a ter pena de deixar a casa.

Queria pedir para ficar, mas eles já achavam que eu estava bem no colégio. Na roda, as meninas ainda cantavam:

A lagoa já secou,
Onde os pombinhos
Vão beber!...
 

Coitadinhos dos pombinhos,
Que, de sede, Vão morrer!...



Você vai, eu também vou.

Você fica, ora adeus amor.

Ainda amiudavam os galos no lusco-fusco das manhãs de inverno e vinha-me, à cama, da cozinha, um cheiro forte de frituras. Os chinelos de meu pai arrastavam-se no soalho. "Ainda é cedo! Podemos deixar o pequeno dormir mais um pouco, hein Porcina?" Era ele na cozinha, falando a minha mãe, com a voz entrecortada na garganta pela bronquite que o perseguia sempre. Está tudo pronto? ― "Tudo. Só falta o pão, que eu ainda vou buscar na padaria para ele levar pão fresquinho". Daí a pouco, a pouco, uma coisa quente no meu rosto, e o cheiro do pão. "Levanta meu filho. Olha ai!... Mamãe já trouxe o pão quentinho. Vamos ao cafusca!". Levanta-me, enfiava a camisa e as calças, e ia lavar o rosto no tanque ― nossos único lavatório. Mamãe vinha com um paninho molhado nos dedos e, quase sempre, tinha que lavar-se os ouvidos por dentro e por trás das orelhas, porque eu me esquecia. Deixa ver as unhas.

O nariz, está limpo? Meu filho não faça malcriação a ninguém. Seja bonzinho para os seus superiores e para os outros meninos. Mamãe botou na merenda uma fritada, daquela que você gosta, umas postas de peixe e carne assada. Meu filho come primeiro a fritada, para não estragar. As laranjas são seletas, daquelas doces da mamãe. O pão está fresquinho. Está aqui o embrulho. Papai leva, você não pode" ― "Eu levo, mamãe; deixa ver". "Olha: isto aqui são as laranjas. Aqui vai o peixe... Lá, você desembrulha com cuidado. Beijava para a mão que ela me oferecia. "Deus te abençoe e te dê muito juízo". Isto já era dito com o rosto colado ao meu, num beijo muito grande, em que eu sentia o contato de toda a sua cara macia.

"Vamos, meu filho. O Cascadura vem aí". Era meu pai que me dava o braço. O punho duro, engomado, as abotoaduras, os botões da manda e a casemira do sobretudo de envolta com essas lembranças estão bem fixas na minha mente.

No colégio, como disse, não me achava mal: Esquecia tudo. O Rafael, tão cego como eu, ia ensinar-me a fazer uma arapuca para pegar passarinhos, ― a minha paixão da época. Tínhamos cortado dois paus de palmo e meio e amarrado dois barbantes que os ligavam em paralelas. Eram os "canhões", explicava ele. Faltavam as varetinhas de bambu para tecer a armadilha. Ele não saía nos domingos e talvez tivesse arranjado as varetas.

De fato, arranjou. Fizemos o resto do trabalho, eu aprendendo com ele, mas faltava-nos o arroz cru, para atrair a passarada.

O Lopes, dispenseiro, só dava pão: era muito "zura", não tinha ordem. Eu traria o arroz de casa. Tivemos que esperar o resto da semana, sonhando com os passarinhos presos debaixo da nossa armadilha. Na semana seguinte, veio o arroz. Bem longe, atrás de uma cerca, onde ninguém nos via, arrancamos o mato e armamos a arapuca de noitinha, "para pegar de manhã cedinho", como explicou o Rafael. Mal saíam do café e tinham a certeza de que o inspetor não os observava mais, os meninos iam, em segredo, à procura do prisioneiro dos seus sonhos. Ou pelos mourões da cerca, ou pelas plantas do campo, ou pelas sombras das árvores, ou por qualquer outro acidente do caminho, os meninos localizavam certinho no meio do mato ao lugar onde haviam deixado a arapuca. Não me lembro de a termos pisado uma só vez: chegávamo-nos a ela, com segurança, apalpávamos o chão debaixo e não encontrávamos o arroz. "Eles estão comendo", explicava o Rafael: "amanhã eles caem". Mas não caíram nunca.

Os estudos não me atormentavam. Lia mais ou menos e fazia as quatro operações quando entrei no Instituto, de sorte que nada tive que estudar no primeiro ano. Não me quiseram matricular no segundo, porque eu era muito pequeno. Eu era, de fato, o menor da turma. Andaram bem os professores. Fosse eu normal, nada mais natural que fazer o segundo ano com oito anos. Sem a vista, porém, minha idade mental certo não estaria acompanhando a cronológica. Parece que não estava mesmo, a julgar pela consciência que tenho como despertei tarde para a verdadeira vida.

No segundo ano, a não ser uns elementos de gramática, nada tive de novo para estudar. Era quase só brincar. Brincadeiras longas, monótonas, intermináveis, verdadeiras obsessões. Brincar e "passear". "Passear", chamávamos nós, andar de um lado para outro, palreando, ou calados, de braços, em filas de 4 ou 5, horas intermináveis. Só os mais irrequietos procuravam variar. Entre eles eu. Metia-me num bambuzal, apanhando varinhas e saía com elas a chibatar o tronco e a galhada das árvores. Quando não, estava com elas na mão, tempo esquecido, examinando-as muito, menos pelo desejo de descobrir alguma coisa, que pelo de apalpar. Apalpar, esquadrinhar com os dedos minúcias sem valor, era um dos meus passa-tempos preferidos. Tenho ainda na memória pequeninos detalhes de móveis, e de objetos de meu meio. A solda no dente de um garfo lá de casa, a racha na cabeça do enfeite de corrimão no Instituto, a frincha da gaveta da cômoda, o puxador pequenino e o friso de meia cana da mesa do gramofone, o forro balançando na balaustrada do peitoril, os nós especiais da corda da bandeira, a lasca do tamborete do refeitório, o parafuso da cadeira de papai sentar, o buraquinho bem feito na cantaria do portal do açougue e tantíssimas outras ninharias, presentes na minha cabeça como se fossem de agora.

Nem a lua nos subúrbios, as nuvens no Pão-de-Açúcar, o mar em frente ao Instituto; nada.

Na chácara, bem retirada, havia um chuchuzeiro de onde eu sabia que vinham os chuchus para o ensopado de que eu não gostava. Ia para baixo da latada e, explorando a folhagem com a vara, descobria um corpo duro que balançava e começava então a fustigar e a malhar. O som seco de uma coisa que batia no chão, anunciava-me um chuchu a menos para o prato aborrecido. "Assim, talvez tenhamos cenoura na terça-feira"; pensava eu satisfeito, enquanto prosseguia na atarefa, no lusco-fusco do fim do recreio de depois do jantar, quando eu sabia que o inspetor andava distraído para outro lado e que os empregados da chácara já haviam ido embora. Eu ainda não tinha dez anos.

Outra brincadeira preferida por mim e pelos endiabrados como eu, era atirar pedra. Atirá-las sem alvo, para frente ou para cima, só pelo prazer de ouví-las cair. Não raro, a cabeça de um de nós pagava pela imprudência. Nem por isso desistíamos. Os que viam um pouco jogavam pedras que custavam muito mais a cair que as minhas. Só muito mais tarde compreendi que eles imprimiam à mão um lance que eu não sabia dar.

Muito cedo, aprendi a atirar com a funda. Aí os que viam não me venciam, porque eu aprendera perfeitamente o movimento. Era um delírio. Em breve, nossas pedras atingiram uma açucareira da vizinhança, e os inspetores deram caça às fundas. Consegui escapar-me com uma, e levá-la para casa no Sábado. Antegozei muito o prazer de experimentá-la, Domingo, no meu quintal.

Não me recordo de haver distribuído a alegria com os meus irmãos. Certamente, já começava a divorciar-me deles. Lembro-me bem de. Sozinho. De manhã, catar uma pedra no quintal e metê-la na funda. "Queria ver se eu chegava no quintal da Ritinha ― bem longe do meu". Já naquele tempo, os maus fados me perseguiam: A pedra partiu, e ouvi que caía em vidros que se estilhaçavam. Logo a primeira! Tanta superfície para cair, e foi acertar justamente na clarabóia do Antonio da Quitanda... Soube que caiu na máquina de costura, justamente onde cosia D. Augusta, a mulher do quitandeiro.

Para cúmulo do azar meu e de meus pais, que tiveram de ouvir a descompostura do vizinho, naquela noite choveu. Na cama, ouvindo a bátega, preocupei-me, não bem pelo desarranjo do vizinho, mas pelo vulto que tomava a minha travessura.

O futebol e a guerra tinham muita influência em nossas brincadeiras; aquele mais que esta. Não que jogássemos o futebol verdadeiro, inacessível a quem não vê, contrariamente ao que muito se apregoa por aí. Quando muito, uns dois cegos tomavam parte num bate-bola de linha chutando para "goal" em companhia de 6 ou 7 crianças com vista. Pelo chute, o ouvido não determina a direção da bola. Mesmo rasteira, ela é por demais rápida e instável para ser acompanhada pelo ruído. Mas nós substituíamos a bola por uma lata ― de preferência, das de manteiga de meio quilo. As regras eram as da nossa conveniência, e as equipes formadas por quantos tivessem vontade de enfrentar o perigo de uma lata pela canela ou pela cara. Os inspetores reprimiam essa atividade danosa para o calçado ― mas nós lucrávamos muito com tal modalidade de exercício.

Outra brincadeira, inspirada no futebol era a "dribla". Uma equipe de três formava, um no "goal", entre duas árvores, e dois avançados à maneira de "backs". Os atacantes, em número de dois ou também três, procuravam passar entre eles e varar o "goal", sem que nenhum lhes pusesse a mão. O que conseguisse, marcava um tento. Bastava, porém, que um da equipe defensora tocasse os atacantes com a mão, estes tinham de voltar à posição inicial, perdendo um tento.

Prendendo-nos horas a fio, essa brincadeira era muito proveitosa. Aguçávamos o ouvido no descobrir as pisadas do atacante e exercitávamos a agilidade no livrarmo-nos uns dos outros.

No recreio, de pouco mais brincavam os arteiros. Eu e outros trepávamos em árvores, ou saíamos, nalguma exploração proibida. Um dia, quisemos fazer a volta ao vasto prédio por fora. Fomos, sobe aqui, cai acolá, descobrindo novidades ― canos, torneiras, uma planta, ― uns chamando os outros para examinar. Éramos uns três. Uma delícia. Fazíamos, pela primeira vez, um caminho proibido.

À certa altura, encontramos um portão de arame. Abrí-lo não nos foi difícil, e achamo-nos no meio de uma porção de galinhas. Continuamos a reta, varando outro portão, esquecidos de fechar um e outro. No dia seguinte, soubemos que as galinhas tinham devastado todo o jardim da frente do Instituto. Ninguém soube da nossa culpa.

Com a idade, ainda aprontei melhores diabruras. Num dia, tinha eu entre 10 e 11 anos, fui explorar um armário cheio de bichos de massa numa das principais salas do colégio. Era um feriado fúnebre pela morte de um dos alunos mais velhos, que a mim não entristecia nada. Tudo quieto, inspetores no enterro. Era o dia do armário. Há muito que eu sonhava pegar naqueles bichos, atrás das portas envidraçadas. Toda gente falava neles, até minha mãe quando visitava o instituto. O elefante, a girafa, o avestruz. Como seriam aqueles bichos que eu nunca vira? Amadurecendo o plano da investigação, por semanas a fio, naquele regime de concentração de que já falei, cheguei a conseguir uma chave que dava volta na fechadura do armário. Lembro-me bem: uma chave de cabo de argola ovóide.

Rafael foi o meu cúmplice. Abrimos o armário e começamos a examinar os bichos. Que alegria! "Olha esse, Rafael; parece um peixe, mas tem patas"; "e este, Veiga; olha que bico". ― "Ué!... Que isso aqui onde este está trepado". ― "Uma pedra, Veiga", explicava o Rafael que havia perdido a vista mais tarde do que eu. Foi um delírio: nossas mãos estendiam-se sôfregas pelo armário a dentro, agarrando tudo, desordenadamente, na satisfação do primeiro momento. Estendi as minhas, e percebi que havia prateleiras acima do alcance delas. Pendurei-me e comecei a subir. Rápido, desci horrorizado: o armário começava a virar para a frente, ameaçando esmagar-nos como uma ratoeira. Rafael fez o que pode para sustentá-lo, mas muitos dos bichos vieram ao chão. Quando pilhamos o móvel de novo encostado à parede, começamos a apalpar furiosamente o soalho em torno, na ânsia de não sermos surpreendidos. Era tromba de elefante daqui, cabeça de avestruz dacolá, pata de leão lá longe, verdadeiro naufrágio. Atafulhamos tudo de corrida nas prateleiras e atiramos no jardim a chave comprometedora para não sermos descobertos. Não o fomos, mas sofremos por muito tempo a angústia interior do culpado, sempre que em nossa presença, se lastimava "o que fizeram com o armário de História Natural".

Bem pior do que isso, foi o que me sucedeu mais tarde numa outra investigação. Eu descobrira, num canto do terreno, um depósito cimentado, à maneira de tanque, abaixo do nível do solo, cheio de canos que se cruzavam dentro dele. Na mesa, anunciei a exploração do achado para depois do jantar. Aderiram logo o Rafael, o Benedito Marra e outros.

Uma vez no recreio, procuramos ter a certeza de que ninguém nos via, e esgueiramo-nos para o local. Primeiro desci eu ao fundo do depósito: lá estavam os canos de chumbo, mais grossos que os que eu conhecia, cruzando-se na altura do meu joelho. Fiz descer os companheiros, orientando-lhes os pés para que não pisassem nos canos. O Benedito, porém de movimentos mais pesados, firmou o pé justamente num deles. Deu-se o desastre: o cano desencaixou da virola, e entrou a jorrar água em torrente. Para completar, ficou apontado para uma janela aberta no dormitório das meninas. Ouvi dizer que, naquela noite, algumas alunas tiveram que dormir sem colchão.

Nesse rol das grandes diabruras, posso ainda incluir esta outra: eu já tinha 15 anos. Iria o Rei Alberto à Praia Vermelha aquela noite, e improvisaram uma instalação elétrica na tabuleta do Instituto. Descobrindo a tomada e os fios, projetei logo dar um choque em quem se aproximasse da janela. Amarrei cuidadosamente um arame no balaustre de ferro do peitoril, mas, quando fui meter-lhe a ponta dentro da tomada para deixar ligado como queria, estalou, saiu faisca e as luzes todas se apagaram. O Rei da Bélgica não viu a fachada do Benjamin Constant, mas eu fiquei sabendo o que era um curto circuito.

No terceiro ano, os estudos começaram a apresentar-me dificuldades, por causa daquilo a que lá chamavam História Natural. Eram umas notas confusas, redigidas por um daqueles professores internos, definições para mim completamente abstratas e nome de ossos e mais ossos. Não havia um só esqueleto dentro do colégio e os bichos viviam em custódia, naquele sono que eu perturbei. Era decorar e mais decorar nomes e nomes, definições e mais definições, sem o menor interesse para mim. O que sei a respeito, tive de aprender mais tarde, em outra situação e com outra objetividade.

Sou tão franco que não me custa confessar que a única coisa que guardei é que "os ossos do corpo humano são em número de 208, não contando os do ouvido". Até hoje não sei se são mesmo, mas não vou conferir isto em compêndio algum, para deixar a minha confissão isto em compêndio algum, para deixar a minha confissão no sabor da originalidade. Lembra-me de que achei muito, 208, pilheriei, e só por isso guardei o número. Parece-me que ainda o sinto sob o meu indicador, no livresco velho, copiado a punção e transmitido de classe a classe por venda entre colegas.

O resto do estudo era a sintaxe, por um compêndio de João Ribeiro e frações ordinárias, decimais e sistema métrico. O curso primário devia findar aí. Nenhuma noção mais. Quem como eu sentiu o desamparo de noções elementares, que teve de adquirir por conta própria, não pode deixar de lançar aqui seu grito contra o ensino que o Governo suspendeu no Benjamin Constant, em 1937.


Reminiscências Esparsas

O nascimento de meus irmãos ― Os tiros no teatro ― Meu martelinho ― O marimbondo ― O zangão e as abelhas ― a cachorrada dos cajus ― Coisa feia ― O vidro do bexiga.

São reminiscências soltas, situadas em não sei bem que ponto da minha infância, mas andam todas por antes dos dez anos. São pálidas, sem refinamento, prosaicas, quadros foscos de meninice vazia, e pobre, mas são lembranças, e aí ficam. Façam delas o que quiserem meus críticos e os psicólogos.

A felicidade que meus pais sentiam ao nascerem meus irmãos, deve ter-se comunicado a mim, porque eu me lembro do nascimento lá em casa, mesmo do que ocorreu quando eu tinha só três anos. Deste tenho uma lembrança muito vaga, mas lembrança. Faziam obras em casa. Tenho ainda nas mãos o degrau de madeira desmontado, no qual me sentava ― o que dava para a sala de jantar. Haviam-lhe tirado a capa de cima e o interior estava cheio de terra.

Ai no quarto, em frente, um pouco à esquerda, minha mãe, que não saíra da cama. Falaram-me no nascimento de mais um irmãozinho. Era o Antônio. Não me lembro de mais nadam nem de ouví-lo, nem de vê-lo. Certo, não me deixaram apalpá-lo, tão mal habituados iam ainda com a minha cegueira de um ano.

De outra feita, papai veio acordar-me de manhãzinha, para anunciar-me a vinda de outro neném. Era minha outra única irmã. Desta vez, parece que me deixaram apalpá-la. O de que me lembro, porém, é de estar no quarto um pouco mais tarde e de me darem a escolher o nome para o neném. "Isaura ou Maria? Como é que meu filho quer que ela se chame?" Recordo que me encontrei, voltando-me para a parede e pousando as mãos no seu forro de papel. - "Isaura", decidi. Estava dado o nome à minha única irmã.

Tenho que foi num Domingo o nascimento do mais moço. Nove de novembro de 1913. Movimento desusado em casa coincide, na minha mente, com a ideia que tinha aos domingos. Não tenho lembranças precisas, talvez porque elas estejam ofuscadas por um fato bem desagradável: Antônio esteve à morte nos primeiros dias de vida desse irmão. Ainda tenho nos ouvidos os gritos de desespero de minha mãe, a voz serena do médico pedindo calma e o barulho de um molho de chaves batendo dentro da bacia do jarro do "toilette". Era mamãe que o atirava Desesperada, enquanto procurava alguma coisa à pressa. Apalpei Antônio e achei-o gelado.

Os tiros do teatro de Cascadura fixaram-se-me na lembrança, pelo horrível que representaram para mim. Pela distância da recordação, parece que não tinha mais de quatro anos. Eu devia estar num teatro assistindo uma representação. Pelos comentários da família muito mais tarde, parece ter sido "A cabana do Pai Tomás".

Tenho uma esbatida ideia das cadeiras, da meia luz e dos tais tiros que me encheram de terror. Não era que eu sentisse medo de tiros propriamente; não. Aquele barulho suscitou em a ideia de que estavam agarrando seres humanos pelas pernas, levantando-os no alto e dando-lhes com as nucas pelo chão do soalho. Não sei se havia gritos secundando os tiros, mas o certo é que essa ideia se apoderou da minha mente, infundindo-me um pavor indescritível. Eu ouvia a pancada das cabeças estourando contra o soalho à guisa de marretas e ainda ouvia uns ruídos que me pareciam os pedaços dos crânios rolando pelo chão. Não sei explicar que barulhos posteriores às pancadas seriam aqueles, mas garanto que é essa a ideia que ainda agora guardo daquele teatro malsinado.

Não me lembro do fato que explique fantasia tão macabra e tenho plena consciência de não costumar ser assaltado por alucinações assim tão pavorosas. Certo é porém que essa tive, talvez maior intensa mesmo do que a consiga descrever aqui.

Que ninguém tire daqui a apressada conclusão de que o erro foi levarem-me ao teatro muito cedo. Não: ao contrário, como muitas outras passagens da minha vida o demonstram, a minha capacidade de viver a vida como toda gente assenta justamente nisso: no cuidado que tiveram meus pais em trazer-me sempre ao pé de si, fazendo-me participar de todo o mundo deles.

Desde bem pequenino, gostei de lidar com ferramentas. Como machucasse os dedos com o martelo de casa, meu pai arranjou-me um de madeira. O operário Marcolino trouxe-o da Quarta Divisão da Estrada de Ferro, onde o torneou num dos mais santos furtos já feitos ao Governo. Era um cilindro de uns três dedos, com um cabinho espetado ao meio da altura. Não era bem cilindro, porque alargava um pouco no meio, à maneira de barril.

Nessa altura, tinha um friso circular de enfeite, paralelo à base, ainda impresso na minha memória tátil.

O cabo, lembro-me bem como era: começava fino, engrossava no meio, para afinar de novo, na inserção no cilindro. À madeira era lixada apenas; nada de verniz. Tenho tudo na mente, como se fosse de hoje, apesar disso ter sido aí pelos quatro anos.

O furto foi santo, mas não proveitoso: atirei o martelinho ao fogo. Não machucava, mas não pregava nada. Voltei ao martelo de casa. Machucar-me para conseguir o que quero, parece que foi sempre o meu destino.

Ia eu pela rua com meu irmão António, com a mão esquerda no ombro direito dele, como de costume, quando ele se abaixou: ― "Um marimbondo no chão! Está aqui. Peguei pelas asas!..."- "Deixa ver, Tônico! Deixa ver..." ― "Não, não; ele te morde!" "Mas eu quero ver; dá aqui na minha mão!..." Uma valente ferroada foi o alto preço de saber como era um marimbondo. As perninhas buliçosas, as asas ásperas, a cabeça móvel. De súbito, a dor, meu desespero, e eu estraçalhei o bichinho nas mãos. Algumas horas de choro, com o dedo envolvido em alho socado.

Tornei a ver maribondos mais tarde: meu irmão aprendeu a tirar-lhes o ferrão, e eu os examinava vivos não sem o recalque da primeira experiência.

Uma vez, depois do meio-dia, escapei-me de casa com dois irmãos, munidos de uma sacola para caçar zangões. Soprava um vento ameno, e o tempo estava sem sol, mas claro, desses que me dão uma sensação de leveza e bem-estar que experimento muitas vezes nas serras ainda hoje. Não sei se será um fenômeno ligado à influência da pressão atmosférica no meu aparelho circulatório ou no respiratório, mas o fato é que, desde criança, tenho essa mesma sensação em dias como aquele.

Em pouco, um dos manos aprisionara um zangão. Quis pegá-lo, por fora da sacola, o que fiz rápido, sem a conseqüência do maribondo. Em breve, as abelhas vingariam o prisioneiro.

Sabíamos onde havia um cortiço e fomos para lá. Papai falava muito da criação de abelhas, e no colégio, os colegas tinham-me dito que se a gente colocasse um caixotinho perto do cortiço, as abelhas viriam morar nele. Lá estavam morando as abelhas, numa árvore, do outro lado de um córrego que não podíamos atravessar. Alguém propôs uma pedrada. Desta vez, não me lembro se fui eu. Logo após o som seco da pedra, comecei a ouvir uns zumbidos e senti, no pescoço, na cabeça e nos braços, umas cócegas que acabavam por tremendas ferroadas. Meti a mão encolerizado pela dor, e fui arrancando, de mim, aos punhados, as abelhas, moles, lisas, meio escorregadias.

Corri em fuga desabalada, seguro a um irmão, enquanto o outro mais corajoso vinha atrás espantando os bichos, com o aventalzinho de açougue que já usava.

Eu devia andar nos meus nove para dez anos, quando me juntei a meus irmãos para "ir à serra. Ouvíramos falar de um caminho de acesso à uma serra que se via lá de casa ― a da Tijuca, e fomos em demanda dele.

Dia sombrio e fresco. Os três excursionistas ― um com a mão esquerda no ombro direito de um dos companheiros ― já escalavam um morro novo para eles, seguidos do Totó, seu viralata de estimação.

O caminho metia por entre árvores frondosas, em picada bem batida que facilitava a subida. De vez em quando, um rego a saltar, uma rampa mais forte a escalar, um obstáculo a transpor. O excursionista cego safava-se bem de tudo, com a ajuda dos irmãos e não os desgostava a julgar pelos convites que eles voltaram a fazer-lhe de outras ocasiões.

Cigarras chilreavam, grilos trilhavam e pássaros novos aos meus ouvidos pipilavam em volta. Enfim, o ar fresco, o cheiro agreste e os ruídos da mata foram o meu encantamento naquela subida. Ainda hoje o são, nas excursões que gosto de fazer. Eu mesmo não sei bem como é que, sem a sedução de paisagem, sinto-me invadido de tanto bem-estar, quando passeio por lugares de mato. Nunca me surpreendi com menos entusiasmo que os outros, em face de excursões ou passeios campesino que se me ofereçam.

Naquele dia, lá íamos tocando morro acima, quando se deparou a meus manos um cajueiro carregadinho. Não perdemos tempo: entramos a apedrejar os cajus, e já os primeiros caíam, quando apareceram uns moleques, aos gritos de "pega... pega..." açulando uma canzoada enorme, a julgar pelos latidos. Deitamos a correr, morro abaixo, enquanto que o nosso Totó, corajoso, enfrentava os da sua espécie, dando-nos tempo a que nos puséssemos a salvo.

Na corrida, entretanto, escorreguei no barranco e rolei aos trambolhões, até se colhido por uma moita amiga. Levantei-me logo, refiz-me do susto e pusemos a caminho de casa, xingando o moleque, lamentando os frutos perdidos e gozando as peripécias da excursão malograda.

O Trajano era, para nós, moleques do Engenho de Dentro, grande campo baldio junto às oficinas do Industrial Trajando de Medeiros. Ali passei o melhor das minhas vadiagens. Ali fui surpreendido fazendo em segredo uma "coisa feia": ainda não tinha oito anos.

Quem me surpreendeu, porém, foi o Olímpio ― o antigo empregado do açougue, que tirou do fato o melhor partido; não fez alarido, não disse a ninguém que eu soubesse, não fez queixa a meus pais. Limitou-se a envergonhar-me só entre nós dois. Toda vez que eu lhe fazia uma malcriação, ele me dizia baixinho: "Olha que eu conto a teu pai aquilo do mato do Trajano". Isso, não só fazia com que eu o ouvisse mais, como evitou que eu voltasse a repetir aquela "coisa feia", pelo menos, durante um tempo apreciável. Como os ignorantes acertam muita vez na arte de educar!... É que nela deve andar sempre o coração, e o Olímpio gostava de mim.

Soube que a loja de ferramentas lá junto da estação vendia atiradeiras e convidei o Antônio a ir comprar uma para nós. Reunidos os quatrocentos réis do custo, galgamos à toda pressa a Rua José dos Reis, e pusemos mão no objeto dos nossos sonhos: a forquilha era de arame, quase um "v", arredondado embaixo, prendendo em cima os elásticos em gancho bem apertados. O couro que recebida a pedra, bem cortado e lisinho por trás. Curioso é que não tenho mais memória do momento em que compramos o objeto. Lembro-me bem de o vir acariciando, logo depois de comprado, rua acima, com o meu irmão, partícipe da minha alegria.

Ouvi que vinha um automóvel rua abaixo e, entregando ao Antônio uma pedrinha que pusera no bolso muito antes de comprar a atiradeira, propus-lhe nervoso: ― "faz uma mira". Já o automóvel passava junto a nós, e eu me regalei com o "tanque" da pedra estalado nele. ― "I!... parou, Zezinho. Vamos azular". Antônio saiu correndo, e eu, com ele, sempre com a mão no ombro.

O chofer, vulgo Bexiga ― deu volta ao carro e veio em nossa perseguição. Com a demora na manobra pudemos chegar ao açougue, antes que ele nos pusesse a mão. Quando saltou na nossa porta, a rua estava cheia de curiosos e autos que paravam. O Bexiga voltava de um enterro grande e os colegas paravam a ver o que havia com ele, Tinha fama de mau. O Olímpio e o Fernandes, vizinho, vieram recebê-lo à porta. Discutiram, pagaram-lhe o vidro por ordem de minha mãe, mas não se lavaram do escândalo.

Meu pai estava para Cascadura. Quando chegou, ouviu e decidiu: "Uma boa surra nos dois". ― Não me livraram os rogos dos vizinhos invocando a minha cegueira. ― "Ele mandou, papai, ele mandou!", dizia o Antônio: eu não neguei, e a surra veio ― de correia larga das de que mais me recordo. Mãos abençoadas, que faziam desabrochar em mim o senso da responsabilidade, no mesmo pé de igualdade dos meus irmãos de vista.


MINHA ADOLESCÊNCIA

Meus Treze Anos ― Gosto pelo Estudo ― O Exame de Português e o Sacrifício do Natal ― Fora do Internato ― O Conflito de Espírito com a Expressão Social ― Minha Santa Mãe.

Chegaram meus treze anos, mas eu continuei menino socialmente falando. Não me lembro de começar a sentir-se rapazinho. Tão furtiva, foi a mudança, que me escasseiam as lembranças entre os 13 e os 17 anos. Contudo sei que, aos 13, aumentou o meu gosto pelo estudo. Em contrapeso, nascia-me também a fobia social. Português, francês, aritmética e geografia, de mistura com música, oficina de vassouras e empalhação de cadeiras. Estudava tudo e não fugia das oficinas como era costume no internato. Gostava de quase tudo: só piano me aborrecia. Ao fim da primeira série de que lá chamavam secundário, enfrentei os exames todos. Completava justamente 13 anos. Muitos colegas fugiam, decidiam repetir o ano, mas o menor da turma quis prestar exames. Vinte por cento de adolescência, e o resto ― ajuda da família. O pai continuava a busca-lo todos os sábados, como dizer-lhe que iria perder o ano? Isolei-me, apliquei e tentei os exames. Espontaneamente primei-me dos recreios, deixei de sair e até sacrifiquei o Natal.

Não fui em casa. Meu pai foi ver-me, despediu-se com a voz oprimida pelo choro, mas eu não saí. Ficaria lá no Natal para vencer os estudos. Meu pai ponderou que os outros saíram, mas eu resisti. Amargurei a família para contentá-la depois com as notas alcançadas. Só o Português falhou: no dia, pela manhã, veio a notícia de que morrera o professor da cadeira ― José Ventura Bóscoli. Por isso, não houve exames: os alunos perderam o ano. Uma ligeira amostra de desorganização do Velho Instituto de meu tempo.

Fora do internato a vida era apagada: eu continuava o "ceguinho", filho do "Seu" Veiga do Açougue". Sabia-se vagamente que eu estava num Instituto lá para a Praia Vermelha, para "não ficar desamparado quando me faltassem os meus". Para aquela pobre gente, a Praia Vermelha era essencialmente o lugar do hospício. Apesar das saídas semanais e das férias inteiras passadas em casa, eu sentia que me afastava daquela sociedade. Minha mãe levava-me às compras de Sábado à noite, parando aqui e acolá a conversar com uma vizinha na janela. Meu assunto vinha logo: lamentavam o meu mal de cara a cara, como se eu fosse surdo também. Minha mãe explicava: "Ele estuda; ele sabe geografia, passou nos exames". Nada!... Suas vizinhas lamentavam mais ainda: "Ah! Se ele tivesse as vistas!..." Eu emudecia de acabrunhado. Engolia os comentários: "Aquela gente não sabia nada! Não sabia falar de outra coisa!..." É só cego, coitado, coitado. Coitado é filho de rato que nasce pelado. Não sabiam falar!... "As vistas!... não é assim que se diz... Seu Almeida já me ensinou...".

Domingo de manhã, o Bulício no açougue, e eu lá para dentro de casa sozinho. Meus irmãos atarefadíssimos: o caixote cheio de carne para entregar no Trajano. Outro caixote depois para aquelas freguesas todas por ali. "Zezinho! Ganhei um níquel da velha do filet". Eu sabia quem era a velha, anos atrás já lhe entregara muita carne, junto com eles. Mas agora, no colégio chamavam-me de açougueiro; eu tinha vergonha de andar no açougue. A gorgeta da velha davam-me inveja do Tonico. Eu já tinha ganho dinheiro; agora, era só eles que ganhavam. Eu me ia separando. Aliás, já por essa época, não tenho muita lembrança deles junto as mim, e sempre morávamos juntos.

Andava pela casa, pelo quintal, pela cozinha. Aí mexia em tudo que a minha mãe preparava para o almoço: ― "Que verdura é essa, mamãe?" ― "É chicória, meu filho". Eu tomava nota. Daquela idade, nunca vira aquilo. Folha lisa como a couve, porém menor, mais tenra, de menos nervuras e o talo chato e frisado. "Que bonita batata doce, hein?!..." ― "Não é batata, meu filho; é inhame", Apalpava melhor: de fato era mais lisa que a batata doce e mais arredondada. "Vê se sabes que fruta é essa?" ― "Não sei. É lisa como o ábio, mas é mais redonda e durinha. Não sei". ― "É abricó, meu filho. Tinha lá na quitanda e eu trouxe um, só para você ver". Assim era o peixe, o chispe, o lombo, a carne seca: tudo passava pelas minhas mãos. Se eu gostava de apalpar, minha mãe mais ainda de mostrar.

Lá fora a freguesia tinha cessado e ia o café para papai e seus ajudantes. Só então eu me achegava. Não havia mais estranhos que me falassem, que me dirigissem perguntas tolas, que comentassem minha cegueira uns com os outros. "Desencalhou tudo, papai?" ― "Quase tudo, meu filho. Mas o encalhe que tenho aí é limpo. Passei três canelas. Vê esse tôro de filet, que puba!.." Passava-me a carne nas mãos e eu examinava tudo com interesse. Ouvia tudo, atento, e dava a minha opinião.

"Então, seu José, diz que foi bem nos exames?" ― "Não seu Guilherme; quase levei "simplesmente"; arranjei só 6 em Geografia". Era o caixa que trabalhava aos domingos com meu pai. Viram-me pequenino e acompanhava-me com orgulho. Puxava por mim. ― "Qual é a capital da França?" Eu dava o que podia e papai exultava, maravilhado: "Só mesmo pela Divina Providência!..."

Sentava-me numa cadeira de pau, de abrir, tomando parte nas conversas acompanhando o movimento e os comentários sobre a freguesia. "Só aquela malhada é que me ia arreliando os bofes. Aquilo tem cabelo na venta". Falavam de uma freguesa que reclamara de mais, ao ver deles. O Guilherme contava as peripécias do seu serviço de despachante aduaneiro de Dias Garcia, durante a semana. "O Governo vive roubado!... Não se pode, compadre; (era compadre de papai) não se pode andar na linha. O patrão quer é pagar pouco à alfândega. Os conferentes têm uma goela desse tamanho". Não via o tamanho da goela que ele fazia, nem me animava a pedir que me mostrasse nas mãos. Por isso, ainda hoje sofro por não dar ao que digo a expressão convincente dos gestos. Seu Guilherme lia bem e dava-me a ouvir alguns tópicos de jornal que julgava de meu agrado. Papai aparteava arremedando: "Pessoá...

Não é assim, homem. Burro como um carneiro preto". Corrigia-lhe a prosódia de Pernambuco, em contraste com a sua, lusa e da boa, discutiam, é, não é, acabando por entregar-me a decisão. Fazia o que podia e fazer por poder muito, creio que menos para mostrar-me que para reagir contra a situação de inferioridade em que me ai achando naquele meio.

"Veiga, vem. O banho está pronto". Mamãe chamava o marido. "Botei tudo lá em cima da cama. O José troca os botões da camisa. Estou atrasada com o almoço. É quase meio-dia. Vais te regalar com uma anchova vivinha!" Eu trocava os botões. Prestei sempre pequeninos serviços em casa. O almoço vinha, farto e apetitoso, como os de portugueses, especialmente aos domingos. Era a delicia de meu paladar e a causa do meu jejum nos outros dias da semana, tão grande a sua diferença para a comida do internato. Na mesa, a prosa continuava naquele tom do açougue. O Guilherme e papai falavam muito; Olímpio, quase nada. Os manos comiam apressados: queriam ir ao cinema. "Benção papai. Benção papai". "Deus o abençõe. Tire lá na gaveta: 2$000 teus e 2$000 teus e de Manoel". ― Mamãe gritava-lhes já quando iam no açougue: "Cuidado com a roupa; não se vão emporcalhar. Deu-me muito trabalho para engomar". E comentava, orgulhosa, para os da mesa: "Parecem dois homenzinhos. Ficam tão bem assim de branco!... A comadre Margarida diz que branco não vale a pena para crianças; diz que dá muito trabalho. Mas eu, enquanto tiver forças...".

Lá se iam os dois para o cinema. Distraíam-se, passeavam pelo Meier, pelo Engenho de Dentro e só voltavam à noitinha para jantar. O cego, o mais velho, com 13 anos, ficava, ia dormir. Não tinha para onde ir; os pais dormiam a sesta e ele dormia também. Sem nenhum contato com a sua gente, o colégio não o ensinava que ele devia acompanhar os irmãos, fosse onde fosse. Ficava. Cada vez mais isolado, prosseguia na introversão mental.

Dormia um pouco, mais ficava muito tempo na cama acordado, rolando à-toa, sozinho, vivendo para dentro. Lembro-me bem de como a fantasia me assaltava. Ficava fazendo projetos difíceis ou fora das minhas possibilidades. teria um viveiro grande, cheio de pássaros, muitos, como os da Rua Padilha. teria um papagaio que falasse muito como o da Baiana. Um coleiro, como aquele do Soares dentista, que puxava água num baldinho para beber!... Faria uma caixinha como aquela que o Inocêncio da encarnação do Instituto, estava fazendo, com tampa de esteira, à maneira das secretárias. E as idéias se fixavam; agora era o papagaio que falava muito, que acabava conversando comigo como gente, discutindo, entendendo o que eu lhe dizia e dando respostas como meus colegas do colégio. Vinha, deitava-se comigo na cama e deixava-se acariciar. Um papagaio grande, penas muito longas. O bicho ficava: o cérebro dava mil e uma voltas, mas a ideia permanecia. Era um jogo divertido. Distraía-me naquilo horas inteiras, com o papagaio carambolando na cabeça. Quando não, era o viveiro: eu dentro dele, cheio de passarinhos pousados na minha cabeça, no meu ombro, nas minhas mãos. Os pássaros acabavam por falar como papagaios e a coisa ia longe.

Aquelas fantasias matavam-me o tempo: davam-me o derivativo do cigarro ao fumante. Não garanto, porque não fumo. O fato é que me conturbavam, criavam dentro em mim um mundo fora da realidade, tornando-me cada vez mais inadaptado à vida.

Tão fortes e tão persistentes eram, que anos mais tarde, acabei por ter papagaios e viveiros. Não os da fantasia, é claro. Por isso mesmo, não me davam a satisfação sonhada. Ainda hoje padeço disso: quando realizo o que projeto, quase não experimento contentamento porque a realidade fica muito abaixo dos planos do meu espírito, viciado na "vida de fantasia", mesmo quando arquiteta coisas sérias. Sim, ainda sofro do mal de sonhar. Sofro e sofrerei. Quando me escasseiam os afazeres ou quero livrar-me das preocupações, ainda me distraio um pouco arquitetando o impossível. Talvez para meu mal, essas condições são raras. Mas ainda sonho acordado: não sonhos tão ingênuos, mas quase tão impossíveis. Uma renda mensal de 50 contos, e grande conforto da minha amada, meu pai e minha mãe ressuscitados, com uma farta mesada, para terem o que nunca tiveram. Para mim, um bom rádio-fonógrafo Scott, Beethoven, Wagner e Ravel bem representados numa farta discoteca. Negócios para dirigir ― indústria, de preferência. Devanear, todos devaneiam mas essas coisas tomam-me muito tempo que aos outros, como que assumem foros de realidade para mim e ocupavam na minha mente, um lugar que devia estar destinado a outra atividade. De confissão em confissão, vá mais esta: toda vez que corre o sorteio das apólices paulistas, eu sou assaltado por essas profundas crises de fantasia. Todo fim dos tais trimestres faço os meus castelos com os 500 ou os mil contos do primeiro prêmio. E vejam só: tenho uma só apólice. Sinto que me preocupo demais com isso, que penso em excesso nessa bobagem. Conheço as leis da probabilidade. Tenho consciência de estar perdendo tempo com devaneios tolos, mas, nem por isso me livro deles. É ridículo, mas é assim.

Mas, voltaremos àqueles domingos dos meus treze anos: lá pela tardinha, ao escurecer, mamãe que me via calado, metido em casa, sem distração, propunha-me carinhosa: "Vamos dar uma passeata com a mamãe, meu filho". Em pouco, estávamos prontos, e saíamos por ali, a pé, a visitar um parente na Estrada Real, ou a assistir alguma festa do "Divino Espírito Santo". As vizinhas lá estavam, pelas janelas, pelos portões. Nós parávamos. Eram os meus contatos sociais. Às vezes aborrecidos, como os descritos ali atrás; outras, naturais, com pessoas mais inteligentes, sempre, porém, aceitos por mim com esforço, para vencer a timidez. Ali era a Chiquinha ― senhora do Blanco da padaria, muito rico. ― "Entre, Porcina; minha filha Mercedes quer ouvi-lo tocar. Entre". Lá vinha "A voz do Coração", A "Prima Careza" e "Le Lac de Comme." ― "Muito bem!... Como ele toca, hein! Mas como é que pode aprender? É de ouvido?" Eu explicava que não; que a música era escrita em Braille, que eu lia com a esquerda e ia executando com a direita, invertendo depois o trabalho para a parte da esquerda. Decorava a execução de ambas as mãos, e depois combinava-as. A Mercedes sentava-se também ao piano. Já estava adiantada. Eu ensaiava a custo algumas perguntas sobre os métodos e as peças que ela estudava. Quando dava com uma peça ou um livro aos meus entre os dela, exultava. Era um ponto de contato uma situação de igualdade. Isso era raro, infelizmente, porque os programas do Instituto eram arcaicos, não pela professora, mas pela falta de aparelhamento para renová-los.

Prometia a Mercedes que voltavam, mas custava a cumprir.

Era-me duro vencer a timidez. Com esforço e a colaboração da minha mão, conseguia. Acabei por estudar no piano dela durante as férias. Eu é que sei o que tive de sufocar em mim.

Continuava o passeio. Se era para o Divino, lá íamos a uma reunião de açorianos, onde se adorava a coroa do Espírito Santo. Alegria ruidosa, nutrida de comesainas, farta e acesa de bom vinho português. A "alcatra" era uma carne assada ao forno, depois de curtida num excelente vinhadalho. Eu preferia as brinceiras ― espécie de pão doce saborosíssimo. As mulheres comentavam o preparo das comedorias, e os homens discutiam sobre as vacarias, o preço do leite e os açougues. Os açougues e os estábulos hoje extintos nesta capital, eram os negócios preferidos pelos açorianos. As mulheres falavam das doenças que determinavam as promessas pagas ao Divino. Eu ensaiava raros apartes que causavam sensação, porque vinham do "ceguinho". "Escuta, gente; escuta o filho do Veiga. Escuta o ceguinho! Louvado seja Deus!... Encolhia-me para dentro de mim, não articulando mais nada tão cedo. Era o Zé Roseira, o Manoel Cândido, o Manoel Pereira, a Chica Ilhoa, o Antônio Miguel, o Chico Vieira, o Zé Caldeirão e o Joaquim Pé Espanhado. Os nomes e apelidos dão ideia da humildade daquele meio. O Zé Roseira tinha um filho que nascera com o pé torto e não andava ainda. Minha mãe mostrava-me o pé doente do menino. Alguém dizia-lhe: "Viu, D. Porcina; aquela mãe também tem a sua cruz bem pesada". O pé do menino impressionara-me bem mal; e eu também era "cruz pesada" como ele.

Lá para as nove horas da noite, vinham os desafios. Violas de doze cordas de aço para tocar à maneira dos nossos violões. Som bem diferente, mais próximo do das guitarras. Algumas cordas duplas para fazer os trêmulos. O Vieira tocava bem a "chama-rita" ― espécie de acompanhamento que ficava soando na sala, seguido, à espera de que alguém quisesse cantar. Se ninguém se atrevia, o acompanhamento ficava só por muito tempo chamando a Rita que não vinha. Previno que a etimologia á arriscada por mim: os ilhéus nunca me disseram nada a respeito. Mas, enfim, a "chama-rita" compunha-se de um ritmo quaternário em 12 por 8 todo composto de colcheias seguidas, exceto a Segunda que era uma pausa, e a terceira, dividida em duas semi-colcheias. Tudo se passava entre um mi... si si mi si si-mi si si-ré... si si-ré si si-ré si si-ré si si-ré si si... mi etc. (o si para baixo) às vezes um cantava sozinho, ou então dois pegavam-se em desafio:

O vizinho está zangado,
Que foi que lh'aconteceu?
Só fala mal das mulheres,
Foi mania que lhe deu.

 

Por eu dizer as verdades,
Dizem lá que tenho telhas.

 

É que eu não deixo fazer
Ninhos atrás das orelhas.

 

Cota quando está zangado,
Ai! Mesmo ninguém te atura.

 

Pareces um trem de ferro,
Quando vai a Cascadura.

 

Se eu sou um trem de ferro,
Boto fogo sem carvão.

 

E vós sois uma baleia
Que virais uma embarcação.

Essa baleia virando a embarcação aí perto do trem que vai a Cascadura, é bem o símbolo de como aqueles filhos das colônias de pesca dos Açores estavam apegados às coisas do Brasil. Havia a música do !Ala Bois", bastante original, só tocada; nunca vi que a cantassem. Lembro-me de um ritmo cadenciado, algum tanto ligeiro, assim como quem persegue alguma coisa, Aliás, esse !ala" é "anda" no português dos Açores.

Toda essa alacridade, na mesma sala em que a coroa e o cetro do Divino repousavam num móvel qualquer em adoração. A certa hora, lá vinha a pombinha trazida de boca em boca para o beijo coletivo. Eu beijava também. A conversa ia animada: recordações "das ilhas", as coisas de casa, as doenças dos filhos, as rabujices dos maridos, entre as mulheres. Entre os homens, a lavoura e a pesca "lá na terra"; as vacas, o leite e a carne verde no Brasil. Não raro, um dito picante, ou um palavrão apenas disfarçado num ligeiro abaixamento da voz.

Lá para as onze, íamos saindo entre os primeiros. "Tenho que levantar cedo, para ele marchar para o colégio"; mamãe explicava. "Deus vá contigo, meu filho!..." ― "Nosso Senhor seja por ti!..." "Que o Divino Espírito Santo se lembre de ti! Ele ainda pode fazer o milagre. Ai! Tal milagre!" Eram as despedidas que eu ouvia, das pessoas a quem minha mãe me fazia apertar a mão na saída. "Lembranças ao Veiga, Porcina. Ele que apareça, ele que venha ao bezerro na Quinta-feira".

O bezerro era uma festa, vestígio do paganismo, na qual se carregava em triunfo um bezerro enfeitado, com música e grande procissão atrás. Era o símbolo do bicho a ser sacrificado em holocausto. No dia seguinte, dava-se carne, mas do matadouro de Santa Cruz. As leis frustavam as doçuras da tradição. Eu enfiava o braço no da mamãe, ela o apertava contra si, para que eu não caísse por aqueles caminhos ruins e alameados. "Um passo largo, meu filho. Upa! Assim. Vamos, agora outro. Tem lama aí. Não, não, mais adiante!..." Íamos os dois, só os dois. Mamãe, apressada, dizendo que era tarde, que devia ter saído mais cedo. Depois, falava-me radiante: "Eles gostaram muito de ti, meu filho". Eu é que não tinha gostado deles, pensava de mim para mim. Só das brincadeiras e um pouco dos cantos. Uns bobos: só falavam em mim, nos meus olhos. Qualquer coisa que eu dizia, um espanto. Uns bobos. No dia seguinte, sim: o Rafael esperava-me no Instituto, para experimentar aquele pica-pau que nós arranjamos. Daria tiro mesmo? Eu já levava escondido no bolso o chumbo que apanhara na cozinha do montinho de lavar garrafas. Daria tiro? A fivela estava levantando bem. O buraquinho da espoleta é que me parecida pequeno. O elástico de dar pressão estava bom; bem amarrado, com aquelas duas pontas aparecendo na emenda. Daria tiro? Havia de ser naquele cantinho lá atrás do banheiro de fora. Seu Miguel não saberia nada. O Rafael, sim; era colega e era forte. Fazia um muque no braço que eu não fazia. Era forte. Daria tiro, o pica-pau? Daria tiro?...

Pensando assim, calado, chegava em casa para dormir.


FALSOS CONCEITOS SOBRE OS CEGOS

Símbolo do Mal ― Desconfiados ― Nos Jornais ― Na Literatura ― Capacidade Musical ― Super-homem ou Incapaz ― Semi-Deus ou Bicho Ruim.

Nenhuma situação é tão mal compreendida e mal apreciada, nenhuma tão cheia de mal-entendidos e falsas interpretações, como a que a ausência da luz promove.

No conceito dos homens, por todos os tempos, a treva tem sido o símbolo do mal; a característica da ignorância e a expressão da desgraça. Em trevas, e só em trevas, aparece-nos o inferno em todas as imagens. "No negrume da desgraça", "Nas trevas da ignorância" são expressões consagradas na linguagem universal. Há mais: a cegueira é a imagem da insânia, da privação dos sentidos; "a cegueira do vício", "cego de amoar", "cego de ódio", ― expressões comuníssimas ― abonam a nossa afirmativa.

"Roupa cega", (roupa íntima sem renda); "faca cega", (faca que não corta); continuam o rosário de coisas más atribuídas às trevas, à cequeira e ao termo "cego".

"Desconfiados" é um adjetivo injustamente aplicado aos cegos. Quem vem reconhecendo tantas falhas no comportamento psicológico dos que não vêm, não havia de refugar essa, se a tivesse por verdadeira. "Os cegos são desconfiados", é versão muito corrente, mas é falsa. Decorre de interpretações errôneas das atitudes que nós os cegos, assumimos, para poder viver neste mundo cheio de luz.

Dois exemplos vão aclarar melhor meu pensamento: a criada vem trazendo ao meu leitor o copo d'água que ele pediu. Ele põe os olhos no copo, que vem chegando, assim como quem o espera para apanhá-lo, mas vai logo vendo se está limpo, se a água não vem turva. Quando o pedido lhe chega ao alcance da mão, leva-o logo à boca, como se tivesse toda confiança na criada, como se não fosse nada "desconfiado".

Eu, não: pego no copo e cheiro. O meu leitor olhou-o demoradamente, enquanto a criada se aproximava, eu cheirei rapidamente. Olhar, é natural, todos olham. A criada não reparou. Cheirar, é que não. Magoou a moça. "Cego desconfiado. Bem dizem que todo cego é desconfiado!..."

Quando tem que receber um troco, num balcão, o leitor corre os olhos no dinheiro que o comerciante está contando, e conta-o também de si para si, fingindo-se distraído. Em seguida, afetando um superior desinteresse pelo "vil metal", mete-o no bolso, bem seguro de que não foi roubado, mas, dando mostra de ser um "homem de boa fé", nada "desconfiado" dos outros. Eu, não: depois que o troco me chega às mãos, é que vou passá-lo e repassá-lo na polpa dos meus dedos, num espetáculo que prende logo a atenção dos outros. "Todo cego é desconfiado", alguém murmurará logo. Entretanto, estou fazendo somente aquilo que fez o meu leitor, considerado um "homem de boa fé, um bom sujeito, que confia no comerciante. E vejam: eu fui bem menos "desconfiado" que ele, porque acabei metendo no bolso dinheiro em papel que não conheço. Não fui, porém, capaz de desempenhar sua comédia, e a minha peculiaridade no contar dinheiro, suscitou o conceito falso ― "os cegos são desconfiados".

E são assim muitos dos conceitos sobre os pobres cegos. Falsos, afastados da realidade, ora por excesso, ora por deficiência, por otimismo, ou por pessimismo. Infelizmente, isso não é só entre o povo e os iletrados, mas nas elites e mesmo entre os homens mais cultos. Não é demais repetir: esse é o maior mal que aflige os cegos ― a falta de compreensão de sua verdadeira situação física, psicológica e moral.

Numa de suas crônicas, "Pro Domo Mea", Humberto de Campos diz que o dinheiro dos cegos não é para gastar com champanhe nem com mulheres.

Não é nada disso: o cego faz do dinheiro o que toda gente faz ― meio de expressão de seus desejos. Não se embriagará de champanhe nem de mulheres, se não tiver feitio para tais desvios. Não há de ser a privação da vista que lhe dará virtudes contra isso. Ao contrário: o recalque, a falta dos liames sociais como correntes inibidoras, leva muitos e muitos cegos à embriaguez do álcool. À de mulheres, também alguns são levados para derivar, ou para conquistarem a certeza de que o sexo oposto não os repudia.

Pode, sim, que a falta da vista, com o seu cortejo de cerceamentos, venha, indiretamente, evitar que eles encontrem certos caminhos maus. Mas também lhes evita alguns dos bons. E, se é certo que os maus caminhos andam por aí mais bastos que os bons, não há como admitir que a cegueira traga santidade para alguém.

Não achado o caminho do peito de Jesus para a sua lança, o cego do Gólgota soube pedir que lho indicassem, e não deixou de praticar o mal por não ver.

O barro do cego é o mesmo do Adão: tudo está na maçã, na serpente e na Eva. Será que a falta de sol purifica o barro?...

Na sua nobre missão de veículo da opinião pública, o jornalismo reflete, constantemente, essas falhas de interpretação. Vão aí expressões colhidas ao meu arquivo de recortes sobre os cegos: "O novo palácio das trevas", (título de um estudo sobre a reorganização do Instituto Benjamim Constant). Ora, "palácio das trevas", justamente para exaltar a reorganização de uma casa de ensino.

Aliás, essa sensação de trevas que tanto aflige a quem pensa na cegueira, não a experimentam os cegos. A angústia da falta da luz só existe nos primeiros instantes em que esta desaparece. Com o tempo, mesmo entre os que perdem a vista em idade madura, fica uma recordação dos dias de claridade, mas não horror que terá qualquer pessoa ao ver-se subitamente de olhos vendados.

"Os que vivem mergulhados nas trevas", é outra expressão aqui do arquivo, muito corrente em jornais. "Vive ali a sua noite eterna, um punhado de homens que nada mais seria entre nós outros...". Além do mais, reparem nesse "nós outros", vivo reflexo do conceito de que os cegos são seres diferentes, animais distintos da velha humanidade.

Não há muito, um prestigioso matutino carioca recusou insistentemente a um cego, a possibilidade de chefiar uma seção em certa repartição. Disse o jornal que o cego "não tinha capacidade legal para o exercício", que "não podia inspecionar os serviços a seu cargo" e que o seu endosso nos documentos era prejudicado pelo "uso de uma chancela um lugar de assinatura".

Vamos tecer aqui algumas considerações sobre o caso, tão somente para a defesa dos princípios atinentes à verdadeira conceituação do cego no mundo civilizado. A capacidade legal dos cegos é claramente reconhecida pelo art. 5 do Código Civil. Como os surdos-mudos aí são incluídos entre os incapazes, e os cegos não o são, fica, insofismavelmente, declarada a capacidade civil dos cegos. Essa jurisprudência, decorrente aliás, da ação social de muitos cegos através dos tempos, foi conseqüência de sentenças famosas, entre as quais releva apontar as da Corte de Nancy, em 15 de abril de 1846, e da Cassação, de 28 de junho de 1847.

No Brasil, já evoluímos até à outorga do direito de voto aos cegos, concedida, aliás, pelo Governo Getúlio Vargas, o que implica no direito da elegibilidade. Se podem, assim, vir os cegos a ter lugar em nosso parlamento, para dirigirem os destinos do povo, como já o fazem em terras estranhas, não vemos como, nem por que, nem por onde, há de se lhes recusar a "capacidade legal" para sentarem-se na simples cadeira da chefia de uma seção interna de repartição pública.

A possibilidade de inspecionar serviços, seria recusável a um cego, numa seção de fins industriais. Mas, numa seção onde se elaboram planos e pareceres sobre assuntos de sua competência, nos quais a palavra é instrumento essencial, ninguém o fará de boa mente, sem ignorar coisas, pessoas e fatos bem conhecidos, mesmo no Brasil. A necessidade de um secretário para fazer, ao chefe, a leitura dos processos a informar, não exclui semelhante possibilidade, de vez que, de secretários de confiança, servem-
se todos os chefes, mesmo os grandes administradores. Cabe ao chefe sem vista saber lançar mão de processos que excluam o seu ludibrio, o que se acha perfeitamente ao alcance do seu discernimento, conforme o Dr. Marcel Bloch na página 142 de sua obra "Les Aveugles em France".

Por fim, vamos ao uso que o cego faça da chancela, por não lograr escrever o nome a pena, de modo sempre legível, como só acontece aos que perdem a vista em tenra idade. O exercício da vontade do cego não se acha prejudicado pelo uso dessa chancela, desde que a ela dê fé a autoridade encarregada de fazê-lo, no caso, o Diretor na repartição. O cuidado do cego na guarda da rubrica, a cautela do Diretor no controlador o trabalho buscando a confirmação verbal do chefe em pareceres de maior importância, são percalços fartamente compensados, desde que os pareceres do chefe cego sejam mesmo necessários ao serviço.

Esta é a jurisprudência das muitas decisões judiciais sobre o exercício da vontade dos cegos, largamente apreciadas na obra já citada.

Não se perca, entretanto, o ensejo de render homenagem à Imprensa Brasileira, pelo muito de acertado que tem feito aos cegos desta terra. Aqueles e tantíssimos outros conceitos menos exatos, não passam de reflexo de noções correntes, firmados, infelizmente, desde longa data, em todos os lugares. Já se vão modificando, para nosso bem, mercê de Deus.

A literatura também tem a sua farta contribuição às falsas idéias sobre os cegos e a cegueira. Aí vão dois exemplos, tirados a romances dos mais batidos: Nídia ― a meiga amorosa amorosa sem vista do romance "Os últimos dias de Pompéia" ― reconhece a beleza de seu amado Glauco, passando-lhe a mão no rosto.

No "Rosário" de Barclay, que corre mundo para o deleite das moças piedosas, o protagonista, depois de cego, não reconhece, pela voz Rose Mary que tanto amou quando enxergava, apesar da amada lhe estar servindo diariamente de enfermeira. Suspeita da voz, mais deixa-se convencer do contrário por seu médico. Que cada qual ponha o caso em si, e veja que, fechado em seu quarto ou no aposento de trabalho, reconhece, pela voz o açougueiro ou o caixeiro que fala com a criada na porta do apartamento. Como admitir a ficção de Barclay?...

"Todo cego tem ouvido para música"; é outra inverdade tão grande como a do "cego desconfiado". Gerou-a a preferência que têm os cegos pela música. Isso, porém, não passa de conseqüência de suas limitações. O cego prefere a música, não porque seja dotado para ela, mas, porque acha aí uma das poucas atividades em que lhe é permitido aplicar suas forças interiores.

Não podendo conduzir nem pilotar aviões, lavrar terras nem lapidar pedrarias, apontar o fuzil nem manejar o bisturi, há de exprimir a personalidade com o que tem à mão.

Procura a música, como a palalítica das pernas, o bordado, o surdo-mudo, várias artes manuais; e o prisioneiro, os trabalhinhos tão conhecidos dos visitantes de penitenciárias. Nada de dons especiais. Acontece, sim, que a freqüência dessa dedicação entre eles, determina o aparecimento de grandes vocações. Quantos deixarão de ser músicos, entre os normais, por falta de oportunidade para porem à prova a sua vocação?...

Há vivo, entre os cegos brasileiros, um genial compositor que havia de figurar entre os mais apreciados, se não fosse morto para a coletividade, por falta de expressão social. É, porém, um talento excepcional, cego de nascença, que, aos brasileiros, valeria conhecer e admirar. Pois este gênio, grande entre os maiores, seria talvez hoje um mau seringueiro da Amazônia, se a privação da vista não lhe tivesse inculcado a atividade musical ― mais ou menos estranha entre os normais no ambiente da sua origem. Os artistas bendirão sua cegueira. Eu, não: avalio o que terá ele sofrido, por não encontrar na sociedade, o desejado sincronismo para o mundo sonoro que extravasa nas suas composições.

Musicistas assim, entre os cegos, há um por século. Concertistas, uns três em todo o Brasil. Músicos, mesmo populares, vivendo da profissão, uns poucos. Cegos que sabem tocar piano, violino, harmônio ou instrumento de sopro, algumas centenas: todos, porém medíocres. Se têm a ventura de possuir o instrumento, pode ser que nele encontrem derivativo à mesmice dos seus excitantes no mundo. Se não, o aprendizado só serviu para aumentar a amargura de desejarem uma coisa que não podem possuir.

Esse, o quadro da música entre os cegos. Entretanto, a arte lhes é ensinada quase compulsoriamente em todos os estabelecimentos. Como concordar honestamente com a versão popular de que "todo cego tem jeito para música"?

Assim vivem os cegos, mal interpretados, incompreendidos. Vivem e viveram, na antigüidade, pior que agora. Na idade antiga, admitia-se que ele fosse dotado de qualidades excepcionais, para exercer as funções sagradas de mediador dos homens junto às divindades. Ele era o adivinho e o carpideiro. Como o reputavam semi-Deus, achavam-no capaz de prever o futuro e de preparar a salvação das almas, derramando sobre os mortos, lágrimas de profissionais. Achava-se, porém, que as lágrimas vertidas por aqueles olhos não maculados pelas coisas feias do mundo, tivessem o Dom da purificação
Já nesse tempo ele era mais super-homem e semi-Deus, que incapaz, e bicho ruim. Isso mesmo demonstra que o tinham afastado do comum dos mortais, justamente o que até hoje, mais os atribula. Nenhum gosta de ouvir dizer que os cegos são bonzinhos, como a nenhum agrada ouvir que os cegos são desconfiados.

Eles se querem homens como os outros, apenas com a limitação da faculdade de ver. É isso que ainda não lhes deu a sociedade, que, por isso mesmo, pouco consegue fazer por eles, apesar de todo o seu esforço filantrópico no Brasil, em especial no Rio, cuja população contribui generosamente com cerca de cem contos mensais para as associações de cegos.

Hajam vista seus constantes desentendimentos com as diretorias das casas de caridade, que supões protegê-los a contento. Quem vive no meio deles, sabe que de insatisfação vai por aí. É que os protetores, na mais pura das intenções, julgam-nos diferentes do que são, e querem dar-lhes a tutela de que os supõem carentes.

Eles suportam, com a resignação dos necessitados, mas, lá um dia, vem a explosão dos recalques, nos protestos violentos. Enxovalhados, insultos, infâmias e até agressões aos protetores têm eles feito, nem sempre com muita razão, e, quase sempre, acima das reações normais.

Os protetores, justamente magoados, concluem logo: "Cego é bicho ruim. Deus, quando não deu asa à cobra..." Tudo questão de compreensão, de falta de penetração do verdadeiro estado de alma de quem não vê. Falta de investigação psicológica, como acentua Jastrow no Dicionário Filosófico e Psicológico de Baldwin. De fato, o material é difícil de analisar, porque se encolhe, se disfarça e se oculta. Faça-se a pesquisa com insistência. Que venham melhores confissões depois da minha, que surjam contraditas ao meu modesto esforço, para que os homens de saber, com a ciência da alma, possam abrir aos cegos as portas do confortável convívio social, esclarecendo ao mundo, a sua verdadeira situação psicológica.


DOS MEUS QUINZE AOS DEZOITO ANOS

Adolescência Fisiológica ― Minhas leituras ― Meu desejo de fazer amigos ― Primeiro amor ― Namoricos

Apesar de tudo, adolescia; amadurecia para a vida. A natureza não esperava pelo retardamento espiritual decorrente da cegueira. Pode ser que esse retardamento a embarace um pouco, mas ela progride sempre desde que a privação da vista não seja determinada por moléstia que lese o organismo. A maioria das privações não o são. Felizmente, para a sociedade que pode recuperar seus cegos. Mas, para nós... Sentir lá dentro a natureza fustigando para a vida penosa de viver sem os olhos; começar a desejar a posse de um mundo especialmente feito para ser visto, possuir-se da necessidade do convívio numa sociedade que não pode compreender os cegos, porque vive essencialmente pelos olhos, é suplício só conhecido de quem perde a vista e fica com todas as outras faculdades em grau de pleno exercício.

A natureza entrava a mostrar-me o lado belo da vida que é o amor. Sentia-o cantar na voz do outro sexo, na figura do trato, na tepidez das mãos e no perfume das raras mocinhas que me andavam em torno. Embora a severidade dos costumes com que me criei e as dificuldades do meu isolamento, aos quinze anos pequei comigo só, e aos dezasseis, pequei deveras.

O segundo pecado, não o completei, não sei se pela novidade oferecida ao meu tato, se pela repugnância da moral do meio em que me achava pela primeira vez.

Foi por essa época que comecei a sentir muito desgosto com a falta da vista. Principiei a ter prazer com a leitura, através da que fazia pelos olhos alheios. Ouvir ler era a minha grande alegria. Se disser que ler pelo tato também era, produzirá efeito no leitor, mas eu estarei mentindo. Pela falta de livros em português, ninguém, no colégio, aos 15 anos, lia com a necessária velocidade para encontrar satisfação na leitura. A biblioteca era apenas de livros didáticos que não podiam convidar a leitura assíduas e prolongadas. Mas eu e outros gostávamos muito de ouvir ler. Além da leitura oficial do internato, os alunos de mais visão liam para os cegos. Meu leitor era Osvaldo Peixoto ― amigo de quem deixo aqui o nome em preito de gratidão.

Já então preferia as leituras de conhecimentos gerais à literatura. Já ia substituindo as obras de Dumas pelos romances históricos. Mesmo estes, em breve, passariam a descer muito no meu agrado, porque eu não podia traçar bem o limite entre a verdade e a fantasiado autor. Depois de "Elzira Morta Virgem", "A Dama das Camélias", veio "A Esposa do Sol," "O Talismã" e outros.

O barbeiro meu vizinho, o ex-colega da escola do Senhor Mamede, o Antônio meu irmão, papai como podia, todos liam para mim quando possível. Mas já não me bastavam. Não que eu fosse gênio, nem tão estudioso assim, mas sentia impulsos interiores que só se satisfaziam na leitura, talvez à falta de outra expressão vedada pelas minhas condições. Quando me caía nas mãos um livro, meu desejo era devorá-lo todo de uma assentada. Enquanto me quisessem lê-lo, eu ali estava para ouvir, sempre atento. Depois, pegava no livro, apalpava-o muito, examinava-o tanto que guardava os menores detalhes dos relevos das capas, nervuras e as letras da lombada.

Parece-me ser de agora o dia em que, por esse tempo, a conselho de um professor, meu professor, meu pai trouxe-me da cidade o dicionário de Simões da Fonseca. Que contentamento o meu! Que cheiro bom tinha aquele papel! Na capa, um friso retangular com letras dentro. O forro, de uma rugosidade uniforme tão boa de apalpar. O papel muito liso, deixando claramente perceber a impressão.

Ali estavam as letras; que eu não podia ler e queria tanto. "Se eu pudesse ler aquilo, havia de progredir rapidamente, pensava eu. E ficava tempo esquecido, virando e revirando o livro nas mãos, sentindo amargamente a desdita de não ver. Passei então a afirmar que seria muito feliz, que não me importaria com a cegueira, se meus olhos se iluminassem diante das páginas dos livros que eu desejasse ler.

Hoje não penso mais assim. Talvez fosse mais belo dizer que sim, mas não. Hoje queria para ler um livro só: queria ter olhos para acabar de ler o grande livro da vida, no que ele me é proibido. Afinal este mundo foi mesmo feito para beber-se com os olhos. Eu vivo, leio, absorvo, aprendo, penso, produzo, mas tenho sempre em mim um vazio, trago comigo, permanente, a sensação de inacabado, de desejo incontentado, do prazer mal fruído. Deve ser a leitura incompleta do sublime livro da vida.

Foi aí pelos quinze anos que me possuí da vontade de fazer amigos. Fosse por me sentir mal no isolamento naquela sociedade que não me compreendia, fosse pela consciência das vantagens das boas amizades, fosse mesmo para confirmar que "o homem é um animal essencialmente gregário", o fato é que iniciei a batalha dos amigos. Íntima, surda, mas batalha, batalha contra mim, contra minhas inclinações, e principalmente, contra o sentimento, então muito forte, da minha inferioridade.

Procurei os vizinhos, ex-colegas do primeiro colégio ― e Tomás já no Pedro II e a Novais na Escola Normal. Com eles eu me ia bem: tínhamos estudos comuns e eu contornava como podia o arcaismo dos meus compêndios. Falávamos das traquinagens, dos livros e dos professores, eles mais que eu. Os meus, livros e professores, quase não eram conhecidos.

O Tomás lia Francês e falava muito de História. Eu gostava mais da língua. Naquele tempo meu pai dava um bife a um francês cigarreiro da vizinhança, para que ele viesse à noitinha trocar um pouco a língua. Isso já me facilitava entender o Tomás e formular frases para ele responder. Ele parece que gostava da permuta dos nossos estudos, porque me prendia em sua casa tardes inteiras. Eu é que não. Ou melhor: gostava da permuta mas não tinha prazer em ficar com ele muito tempo. Temia sempre que algum estranho aparecesse a perturbar a intimidade e a mútua compreensão que eu já estabelecera com o amigo.

Quando tal sucedia, lá vinha a minha tortura: o amigo apresentava-me, mas não se evitava o comentário ao meu estado. O Tomás explicava como eu ia remediando o mal, e que fazia o que podia, mas era difícil cortar as lamentações, sobretudo no meio daquela nossa pobre gente. Depois, vinha o convite para o lanche. "Vamos para a mesa, José", chamava-me o amigo, e eu já ia temendo pelo que pudesse acontecer. "O doce está aí à sua esquerda", informava-me o recém-chegado; e depois, à meia-voz ao Tomás: ― "Ele come sozinho?" ― "Come, sim, como não?" respondia o Tomás já bem familiarizado comigo ― "Vou partir para você, José". ― "Obrigado, Tomás". Por falta de ensino especializado, eu nunca me habituei a usar a faca na mesa em coisa alguma.

O Tomás partia, mas era um bolo seco, muito leve, de tomar com café, e o maldito escorregava do garfo sem que eu o percebesse. Quando sentia na boca o garfo vazio, era como se uma descarga me houvesse fulminado. Aquele "come, sim, como não" do Tomás, lá estava desmentido. Depois de já haver trocado umas palavras em francês para o visitante ver o que eu podia, achava-me agora diante dele numa tremenda situação de inferioridade. Engolia a língua. Perdia a iniciativa na conversa, limitando-me a responder o perguntado ou a raros apartes ensaios a medo. O amigo do meu vizinho retirava-se e eu ficava sofrendo intimamente com a impressão de acanhamento que lhe deixara. Quase não lhe dissera nada, deixara passar tanto comentário interessante sem fazer, perdera, enfim o ensejo de fazer uma amizade nova por que eu tanto forcejava. Evidentemente ele não me inscrevera entre as suas relações, não me passaria a ter por um rapaz com quem valesse a pena conviver. No entanto, eu gostara dele: apreciara-lhe as opiniões assisadas, a boa soma de conhecimentos e a prosa fluente. Eu teria muito a aprender com ele. Contudo, não tinha sido capaz de captar-lhe a amizade. Quando muito, havia-lhe inspirado uma simpatia piedosa, bem diversa da aproximação que eu procurava. Sofria com isso; sofria ainda mais, quando pensava que o Tomás havia de esfriar comigo, ante as minhas mancadas com as pessoas a que me apresentava.

Nem por isso esmorecia. A Novais tocava e insistia por minhas visitas. Lá uma bela noite, depois de grande luta íntima, eu aparecia. Muita satisfação em todos da casa. Ela, o maior encanto feminino daquele meu passado, A voz mais macia, mais dolente e mais repousante que já passou por meus ouvidos. No sentar-se ao piano ao meu lado, no falar-me, no conduzir-me pelo braço, no mostrar-me as coisas, revelava-me as maneiras mais finas, os modos mais meigos que eu pudesse imaginar. Do riso, quando falava alegre, Camões diria que eu era "brando e honesto, quase forçado". A respiração, tomada de um sorvo quando ele queria falar, denunciava um temperamento emotivo como poucos. A interpretação que dava ao "Despertar da Montanha" do saudoso Souto era mostra de fina sensibilidade.

Os vizinhos vinham chegando em visita, curiosos de ouvir-me. Eu não tinha repertório que lhes agradasse. Músicas de Gael e uma ou outra afronta ao pobre Chopin numa valsa estropiada. O bastante, porém, para deixá-los boquiabertos e arrancar, dos mais indiscretos, os tais comentários ao meu estado, que eram como duchas de água fria naquele meu convívio.

Também lá havia doces, e, provavelmente os tais insucessos de que já não dou conta. Por lá devia ter eu encontrado esse meu martírio das mesas ― os tais doces de compota para comer com a colherzinha, que apanha a calda mas não pega a fruta. Depois da fruta escapulir quatro ou cinco vezes à perseguição da colher, alguém propõe um garfo que aceito constrangido. Dois talheres no pires, um atrapalhando o outro e o meu complexo de inferioridade embaraçando a projeção que desejo ter no meio social.

Se vinha um cafezinho eu me ia muito melhor. Davam-me a xícara na mão, e, quando não me acontecia deitar no chão a colher, tudo corria bem. Assim mesmo, foi só muito mais tarde que uma pessoa teve a sábia coragem de advertir-me de que eu fazia um bico feio com os lábios para colhrr o café da xícara. Tinha improvisado o tal bico, é claro, por não ver o comportamento dos outros que tomavam café à minha volta. Corrigi o bico há menos de dez anos. Quantos bicos terei ainda por corrigir, por falta de quem tenha coragem de os apontar?... Quantos bicos deixaria eu de ter, se recebesse a tempo a educação neste sentido?

Não tenho recordação precisa de nenhum vexame à mesa na casa da minha vizinha normalista, mas lembro-me perfeitamente da ternura das despedidas.

Não é preciso referir episódios daquele tempo; ainda hoje á assim. Chega a hora de me ausentar das casas que visito e temo pelas ratas. Cumprimentar as duas ou três pessoas que falam mais perto de mim não é difícil. Mas dirigir-me às pessoas afastadas na sala e apertar a mão uma a uma, dizendo exatamente o nome daquela a quem estendo a mão, é dos meus grandes suplícios da vida em sociedade. "Não, aqui sou eu, a Teresa; boa noite.

Ela está lá na varanda". E enquanto me aperta a mão, diz para fora: "Elza já vai embora, quer despedir-se de ti". São desapontamentos dessa ordem, uns atrás dos outros. Se a pessoa que me acompanha tem prática de tratar comigo, então tudo vai bem: meu estratagema é esse: espero que meu acompanhante se dirija primeiro, para então eu ir certinho nas águas dele. Assim é nas missas, nas festas, nos pêsames, nas visitas de intimidade.

Naqueles meus primeiros ensaios de fazer amigos, voltava das visitas com a satisfação de um dever cumprido, mas nunca com a sensação de prazer deixado pela visita.

Prossegui no esforço de adaptação ao meu meio. O Pinheiro, farmacêutico generoso e lido, tinha relações com cegos e gostava de conversar comigo. Falava-me sem alusões ao meu estado, inquiria-me sobre a política, tomava em consideração o que lhe dizia, concordando ou rebatendo, e eu gostava de conversar com ele.

Outro que tal era o Dr. Souza Carvalho, médico da farmácia do Pinheiro e da confiança da minha gente. Diziam a meu pai que eu progredia e isso fazia bem. Tinha sempre certo constrangimento em parar na farmácia para ficar e tagarelar com eles, mas ao menos lá estava livre dos doces e de muita gente cumprimentar.

Com o resto dos vizinhos não ia bem. Gente humilde, com dificuldade de compreender-me; pobres senhoras dedicadas à roupa e à comida dos filhos que acaso nasciam e cresciam; pacatos comerciantes aferrados ao balcão.

O cinema e o futebol apartavam de mim os meninos da minha idade naquele meio, quase todos já sem estudar. Com a cabeça fervilhando de conceitos de Mardin e outros modeladores de caráter, eu achava demais ridículas as banalidades da bola e da fita em série. Hoje estou quase em afirmar que não foi bem assim. Não andasse meu espírito acima daquelas futilidades e eu teria muito mais amigos naquele meio. Amigos fúteis, dirão. Fúteis naquela idade, mas hoje evoluídos alguns, os quais seriam, pelos menos, pontos para eu me aproximar do meio em que desejo ter convívio. Fúteis ou não, situados embora em plano econômico abaixo do meu, muitos são hoje bem mais felizes que eu sou. E a felicidade não é o que todos buscam nessa vida?...


COMO OS CEGOS AMAM

Conceito da Beleza Feminina ― Mentiras de Reação ― Amor Platônico ― Amor Edificante ― Algumas Histórias de Amor.

Os cegos deleitam-se ou sofrem com o amor como todo o mundo, mas amam diferente. Correm, por aí, as mais desencontradas idéias a tal respeito, e é natural que assim seja: ninguém ama sem ver a criatura amada. Como é então que os cegos amam?

Que amam, não há dúvida, pois se conhecem, de cegos, até crimes passionais. Exemplifiquei "crime", porque é a conseqüência do amor aparecido nos noticiários dos jornais. Há, porém, belíssimas histórias reais de amor, tão comoventes, que parecem copiadas às obras da literatura sentimental.

Contá-las-ei, ficando fiador de sua inteira veracidade.

Vejamos, primeiro, o que desperta o amor no cego. "A voz", virá logo a resposta mais comum, entre as mais assisadas. Não: a voz, por si mesma, como timbre, como vibração, como harmonia, enfim, no que ela tem de agradável ao ouvido propriamente dito, é muito pouco, quase nada. A voz, pelas sutilezas que revela da personalidade, pelo mundo de coisas que ela traz de dentro do indivíduo, isso sim.

"Como é que ele sabe se ela é bonita? Pelo tato? apalpando ..." O tato não sente a estética da forma. Apalpando, ninguém, jamais, cego ou não, sentirá a beleza de um rosto ou a harmonia das linhas de um corpo.

- "Como sabe você disso, se não vê desde tenra idade? Que ideia faz do belo para emitir esse juízo?"
Para mim, a sensação que deixa, no espírito dos outros, o belo de um corpo de mulher é qualquer coisa paralela ao que eu sinto ouvindo o "Egmon" de Beethoven, ou o "Caçador de Esmeraldas" de Bilac. Meus dois exemplos não me dão sensações iguais, mas, paralelas. O belo feminino, o belo da forma, o belo para os olhos, estará numa terceira paralela que eu não posso percorrer, mas que julgo pelas minhas duas.

Ora, nada disso sinto pelo tato. Sempre que me é dado tatear um rosto de mulher, não sinto, no espírito, nada que pareça com aquelas paralelas; nada que me transporte, que me arranque exclamações com a música ou a poesia. Nem isto, nem a ausência disto, o que equivale dizer, nem o belo nem o feio.

Certo, à custa de examinar caras de bonecas, a que ouvia chamar "bonitas", acabei por firmar a noção da proporção entre as diferentes dimensões do rosto, o que me permite hoje saber quando um nariz é grande, os lábios grossos, a boca rasgada, mas nenhuma dessas particularidades repugna à minha sensibilidade, quando as encontro numa mulher. Quando muito, podem sugestionar-me, por influência do meio, isso porque estou farto de ouvir menosprezá-las.

Percebo formatos diferentes, caras largas ou redondas, rosto miúdo, queixo cheio, nariz grande, nariz pequeno, as covas do riso, mais ou menos fundas ou redondas, mas nada disso me desperta sensação de enlevo.

É como percebo formato de copos, garrafas, bules ou tigelas. Não pilherio não: a comparação é chocante, mas dá bem a ideia do que quero dizer.

Quando vim a ter entre as mãos o rosto das mulheres que amei, já foi para beijá-las e não para admirá-las. A algumas terei dito, passando-lhe a mão na face, que as achava bonitas, mas, para lisonjeá-las, para envaidecê-las e para não dar o triste espetáculo da minha incapacidade de sentir a beleza feminina como os outros sentem. Servi à vaidade delas, servi à minha própria, com essa doce mentira. "Mentira, que importa? No amor, a mentira é como o sal: de mais, salga: às pitadas, tempera".

Tenho, confesso, prazer em apalpar o rosto de quem amo, porém, nada tem tal prazer a ver com a sensação do belo: sensualidade apenas. Tanto é, que nunca desejo apalpar o rosto das pessoas com quem convivo, nem mesmo das mulheres a quem ouço chamar "bonitas", ainda quando isto me tem sido fácil.

É estranho, é esquisito, mas é assim. Alguns cegos dirão que não, porque lhes custará reconhecer a inferioridade.

Aliás, essa minha afirmação pode ser comprovada por qualquer pessoa: dê-se o leitor ao trabalho de vendar os olhos e apalpar o rosto de pessoas do seu convívio. Em que pese sua noção do belo adquirida pela vista, reconhecerá as criaturas em 60 por cento dos casos, por pequeninos detalhes mais salientes, mas não terá nenhuma ideia de beleza. Tenho orientado várias experiências dessas.

Esse desinteresse pela beleza da bem amada, faz com que os cegos sejam platônicos no amor. São comuns os casos de amor, de cegos para cegas, fiéis por cartas, durante cinco, dez e até quinze anos, em que, nos fugitivos encontros espaçados de quinze ou trinta dias, as carícias mútuas não passam das mãos. Cartas e cartas, que enchem caixotes, mas não fazem corar uma freira.

Rosas das Rosas,
Coração sincero,
Bem cedo espero,
Teu amor tão puro...

O autor destes versos - primeiros de uma poesia toda nesse tom de candura - "esperou" mais de dez anos, e foi ao enterro da noiva, sem tocá-la nunca, senão em rápidos apertos de mão. Não era ignorante; lecionava num colégio de cegos. Disse mal: "Ignorante", era, de coisas boas da vida.

Outros, residentes no internato, entendiam-se pelo estudo de piano: "Quando eu tocar tal peça, estarei sentindo isto". - "Eu também; quando tocar tal estudo de Chopin, estarei pensando em ti". - "Tal passagem, quererá dizer que eu vou sair". Levaram nisso mais de 15 anos, pontilhados de escassos encontros de namorados. Casaram-se, e gozam felicidade completada pela existência de filhos sãos que crescem na formosa promessa de bons elementos da sociedade.

Outro, branco, numa associação de cegos do Rio, ao convidar um amigo para o casamento, é que soube que a quase esposa era de cor. Não desmanchou, nem poderia desmanchar por isso, o casamento, ele que não se tinha interessado por esse detalhe até aquela data.

Não se infira daí contudo, que os cegos são incapazes de grande amor concreto. Parece, sim, que seu estado determina aquele platonismo; mas há exceções como esta: Ele, artista, cego revelado ao público desde os nove anos, hoje consagrado, encontrou a sua amada aos 15. Ela, de 14, com vista, nas veias, o sangue da pátria dele. Parece que a música os aproximou. Ele, ardente, sentimental, criou logo um grande caso. Os adolescentes tomaram-se um ao outro. As famílias não viam gravidade no que julgavam criancice. O cego arrebatado, esquecia-se até da presença de outros, e beijava a sua eleita às claras. O vinho wagneriano, bebido a uma vitrola ouvida em conjunto, embriagava os jovens. Na fantasia do amor não faltou o sal do sangue. Encontros fortuitos, em tardes tropicais, cheios de voluptuosa intimidade. De mistura, projetos: Concertos em Buenos Aires, na Europa; ela, a esposa do artista cego. A família de ambos continuava não dando por isso. Quando deu, foi para ter de acudir com violência. A dela não via no cego, mesmo artista, futuro para a filha. A dele tinha-o por menino. A oposição exacerbou os jovens: o cego, já com 17 anos, revoltado, projetou fugir com a moça. Logrou iludir toda vigilância, e chegou a alugar uma casa, dois meses de paga adiantada, ninho onde iria esconder sua felicidade. Ordenado, não tinha; possibilidades, as de artista cego no Brasil. Contudo, só não concretizou o plano, porque o descobriram na véspera.

Deixemos a exceção, e vamos, de novo à regra. Outro, com uma cega, preludiou quase seis anos, num namoro que não foi muito fiel, mas foi puro entre os mais puros.

Nesse tempo, passou-lhe pela vida uma menina com vista, tão dedicada a ele, que lhe prendeu a atenção. Ela aprendeu o alfabeto Braille e escreveu-lhe livros. Sentiu por ela alguma coisa, mas, tímido, nunca lhe falou em amor. Movido de sensualismo, chegou a apalpar-lhe furtivamente o busto e o rosto. Nem isso o decidiu. Diziam que era bonita, das que mais o eram em sua redondeza. Mas, a cega o esperava. 30 a 50 minutos de enlevo, trancado na cabine de telefone público da Galeria Cruzeiro, palestrando com aquela que não podia andar só, para vir encontrar-se com ele... Encontros em presença dos outros. Quando muito, uma carícia nas mãos. Passeios, nunca.

A outra procurava-o quase todas as noites. Sentava-se ao piano, tocavam e cantavam. Ela gostava de ler e falava-lhe de leituras. Ele se acha bem com ela. Mas o desajustamento social, a incapacidade de se impor aos parentes dela, manietavam-no.

O amaldiçoado complexo de inferioridade fazia-o pensar: "Qual ... eu sou cego ... depois, ela se aborrece de mim".

A cega, não: havia de ser dele para sempre, numa perfeita harmonia de entendimento. Diante dela não se sentia inferior: viera do mesmo colégio que ele, onde não tinha sido mau estudante. Ela não o podia ajudar; mas o amor dos livros que tanto o deleitava, não era todo feito de renúncia e sacrifício?... Gostava imensamente dela; quanto bastava. Desprezava o lado prático da vida. Fervia-lhe, na cabeça, a exaltação amorosa de livros que tinha lido -Paulo e Virgínia, Elzira Morta Virgem... Dezoito anos, 19, 20, 24... e a mentalidade de um adolescente. Sem amigos da sua idade, senão os que fizera no internato, distanciava-se cada vez mais, da realidade, principalmente no que tocava ao amor.

Logo que começou a ganhar melhor, pediu a moça cega e aceitou a imposição de "casar depressa". A noiva era fraca, tinha vivido meses num aparelho de gesso. Falavam-lhe de deformações no tórax ... não importava: maior seria a sua missão de fazer feliz a um ser doente.

Não lhe dava preocupação o corpo dela. Eram raríssimas excitações eróticas, nalgum aconchego fortuito. Nunca lhe pegara nas formas e casar-se-ia sem fazê-lo. Isto era para as outras, as que visitava como remédio, em dias certos do mês.

Faltavam 15 dias para o casamento, e andavam os dois, de braço, num corredor da casa dela, de um lado para outro. Respeito como sempre. No encantamento da conversa em que se faziam os castelos dos dias próximos, ele puxou-a para si, pela face, e pôs-lhe um beijo na testa, um beijo, mais homenagem que sensualismo, único beijo de seis anos de amor, devotamento e sacrifício.

Este "outro", fui eu. Mudei, com o tempo, mudei muito, não sei se para melhor ou para pior, mas, fui assim. Fui assim, e assim é grande parte dos cegos quando amam, não por virtude, mas por imposição das condições da vida de cego, e pela formação mental que a cegueira lhes dá.

Que teria eu encontrado nessa moça para consagrar-lhe amor tão puro? Isso é o que pergunto a mim mesmo, com toda a probidade, para dar, ao leitor a resposta mais certa possível. Estou convencido de que, da fidelidade do meu depoimento, dependerá uma melhor compreensão da situação de quem não vê, e, por conseguinte, um pouco mais de felicidade para os cegos da minha terra. Pretensiosa ou não, é a minha fé inabalável.

Creio que o meu amor por essa moça foi muito mais obra da imaginação dos sentidos. Chamaram-me a tocar com ela uma peça a quatro mãos no colégio, e eis aí o início. A meu lado, retraída, emitindo raros monossílabos, passou ela logo a ser objeto da minha fantasia. Um dia, a unha do seu quinto dedo arranhou o meu num "fá", e foi como se me galvanizassem. Tantas coisas alegres e tristes desenrolaram-se sobre esse ínfimo acidente, e ele não se me esvaiu da lembrança. Os mais velhos e mais prestigiosos no colégio, chegavam-me brasas ao lume da imaginação, com comentários de estímulo. Diziam-me que o pai dela tinha a mesma profissão do meu, e que era até da mesma ilha dos Açores.

Certa vez, eu ainda não andava só pela cidade, pedi a um amigo íntimo que me levasse a passar pela porta dela, de longe que fosse. Ele ainda está vivo, para ajudar o leitor a se rir de mim. Era um sábado. Passamos pela rua, quase pela calçada oposta. Quando o ouvi dizer "é ali defronte", todo o meu ser vibrou numa exaltação sublime. Junto ao açougue, havia uma casa de pássaros, e canta-me ainda na lembrança o agressivo gorjeio de uma graúna.

Ardia-me a imaginação. Armei projetos para me aproximar. Mas falhei durante mais de ano, nutrindo-a sempre no cérebro. Na infeção do tifo de que fui acometido nesse período, delirei muito com ela já casada comigo e eu lutando por um lar feliz com essa moça, a quem mal conhecia pela. O delírio do tifo não era mais que a continuação da minha "vida de fantasia".

Assim, foi que, nesse afã de viver pela imaginação, nesse idealizar da vida, fora da realidade, quando realmente me encontrei com a moça nos namoros, não tive mais capacidade para observá-la e julgá-la. Lembro-me de que notava defeitos, mas todos iam sendo escurecidos pela criatura do meu idealismo.

Quando amadureci, porém, para a vida, outros amores tomaram-me de assalto; fortes, humanos cheios e vividos. Alguns, pouco mais foram que um derivativo ao meu temperamento sexual incontido.

Em todos, os motivos de atração foram reais, mais humanos, e mereceram ser apreciados. Confessá-los-ei com o mesmo destemor. Custar-me-á menos, por isso que concordo com Jean Jacques Rosseau, que temia menos a confissão das faltas graves que a do ridículo.

A inflexão da voz, a volúpia que transpirava do acento de certas palavras, odor resultante da mistura do perfume e do cheiro da mulher, o aperto de mão quente, cheio e envolvente, que chegava até os pulsos, foram, em J., as centelhas que acenderam um amor material, de não grande duração, mas de bons efeitos. A voz não era bela; quase sem vibração nem harmonia, parece que ficava dentro da própria criatura e era outra vida através do seu corpo. As formas foram novidade para o meu tato, pobre de experiências. Quando soltei, da prisão de seda, os dois pomos do seu busto forte, pela primeira vez, foi uma delícia para a minha sensação tátil.

Não creio que os olhos me tivessem regalado mais. Nesse momento, as inflexões lassivas da voz dela substituíam a volúpia do olhar e a ternura da expressão do rosto. O ventre, crescido, flácido, e adiposo, não me impressionou bem. A essa altura, eu já tinha convivido o necessário, para estar informado de que isso não agradava aos olhos, e sugestionei-me.

Assim procedia eu com o tato, proporcionando-me o que os outros têm com os olhos, no prazer do amor. Não sei se tenho satisfação tão grande como a deles, mas sei que amei e amo sinceramente, profundamente e humanamente, No amor, tenho encontrado sempre estímulo para os melhores passos da minha vida.

No amor humano espiritualizado, no sincronismo espiritual concretizado nas delícias materiais, no amor-vida coroado pelo amor-sublimação, no enlevo da afeição e na renúncia amarga, hei buscado a grande razão de ser da minha existência. Tenho servido, até o fundo, o néctar dessa taça radiosa, cujo sabor vem, justamente, do gozo do sofrimento, da amargura e do mel, nela misturados com tanta sabedoria. Encontrei "A" ― a outra ― devotada ao bem alheio. Eu seguia a mesma estrada e topei com ela no caminho. A voz era das mais belas que tenho ouvido: timbrada, cheia, modulada nos mais diferentes diapasons, tinha, para os meus ouvidos, a música do falar de uma região brasileira que eu ainda não conhecia. Encantou-me. Quando falava, tinha uma dolência que lembrava a vibração de algum cristal que se partisse. O aperto, firme e prolongado da mão lisa como cetim, nem quente nem fria, nem ossuda nem gorda, bem conformada e enérgica, pronto, eletrizou-me, com a impressão de estar diante de uma mulher inteligente, de bom caracter e personalidade.

Às primeiras palestras, convenci-me de que não errara. Sagaz, arguta, tinha ma prosa atraente, nutrida de reminiscências, sempre vivas, de abundante leitura de bons livros.

Na época, destacado em serviço técnico, eu tinha posição de relevo e profusa atividade na localidade em que me achava. Envaideceu-me saber que ela já vinha acompanhando, a distância, os meus trabalhos, nutrindo, por eles, um entusiasmo tão grande, que lhe dava desejo de ajudar-me. Ensejei a ajuda, e nossa intimidade cresceu: serviços em comum, aprendizado do Braille. Pedia-lhe que me lesse, e comentávamos as leituras. Comentários sérios, superiores, resultado, não raro, em renhidas controvérsias, cedo terminadas pelo desejo que cada qual nutria de melhor compreender o outro. terceira colateral de um super-homem do Brasil, ela não desmentia o parentesco.

Humana, como as que mais o são, sabia temperar minha sisudez natural, com ditos vistosos e graças brejeiras. Ria-se como a ninguém mais vi rir; uma risada franca, sonora, abundante, modulada como uma porção de sinos pequeninos que caíssem, alegres, a bimbalhar por uma torre abaixo. Tudo nela encantava o meu espírito e a minha sensibilidade. Quando a conheci como mulher, encantou-se também com a minha sensualidade.

Tive de esquecê-la. Penei, amargurado, mas a brasa do sofrimento não me crestou a capacidade de amar de novo. Por que, sem a vista, tamanha inclinação para o amor, onde a minha condição de cego me tem feito encontrar tantos desenganos?... ― Ah! leitor amigo. Insisto: se a privação da vista estancasse, em harmonia, as capacidades interiores, cujo exercício ela prejudica, bem outra, bem diversa, bem melhor seria a sorte de quem não vê.

Veio a outra: era dona de um falar macio, surdo e rápido como vidrilhos que se misturassem sobre um pano de veludo. Na voz, nem timbre, nem harmonia, nem penetração; mas um som esquisito que prende pela originalidade, defeitos de dicção marcantes e inflexões nervosas que traduzem a expressão forte de um temperamento vibrátil. Uma leitura fácil, clara, deslizada, suave como a de ninguém. As palavras, como que não lhe pesam nos lábios nem lhe batem nos ouvidos e escorrem para a minha mente, como se as lesse, em silêncio, pelos meus próprios olhos.

Sóbria no trato, nervosa no pegar as coisas das minhas mãos, esquiva, deu-me sempre a sensação de alguma coisa misteriosa. O aperto de mão, rápido, furtivo, mão quase sempre fria, infundia-me a ideia de alguém que não se deixa penetrar. Encantado, teimei na posse. Achei-lhe os lábios húmidos, frescos e macios, como nunca senti em nenhuma. No corpo, descobri-lhe certas contrações curiosas; na pele, particularidades perceptíveis ao tato, minúcias que talvez não interessem à vista.

Não vinha ela de grandes troncos, não tivera boas oportunidades para o estudo, mas era senhora de uma agilidade mental como não pode haver maior e dona de uma inteligência aguda, mas desordenada, que aprende tudo pela rama.

Com tais dotes, exerceu ela sobre mim a maior e a mais envolvente sedução: amor sublime, amor completo, regalo para os sentidos, gáudio para a inteligência e exaltação do espírito.

Assim amei. Assim amei eu que sou medíocre, muito mais defeitos que virtude, muito mais barro que sopro divino.

Como os cegos deste capitulo, com poucas variantes, em geral, assim é que os cegos amam.


A LUTA PELA VIDA

Fim de Curso ― O Estágio para o Ensino no Instituto ― O Liceu Popular ― 13$200 de Salário Mensal ― Professor e Propagandista ― Estudando para Ensinar ― Como Usava o Quadro Negro ― Como Corrigida as Escritas ― A Confiança dos Alunos.

Aos dezoito anos, terminava o minguado curso do Instituto. Colhido de moléstia grave no meio do ano ― o tifo ― assim mesmo prestei exame e passei bem, tão pouco se exigia. Concluíra um curso que lá chamavam de "secundário", mas eu já sabia que me faltavam matérias para o secundário daqueles estudantes vizinhos meus amigos. Latim, História Natural, não me haviam ministrado. Recebera assim um programa à parte da legislação federal. Meus pais exultavam com o meu sucesso, na ignorância do que me faltava. O que eu fizera, era um assombro para eles. "Só mesmo pela Divina Providência". Sentia a deficiência, mas não tinha ambiente que me ajudasse a remediar.

Meus irmãos tinham abandonado os estudos. Os vizinhos estudantes faziam-me sugestões acidentais, poucas para convencer-me. Só um cego havia completado o curso ginasial entre videntes. Era muito rico e tinha até estudado Direito. Tinha disso uma notícia vaga.

Fora em São Paulo. Ele, Fausto Jordão, tinha sido meu professor, mas não me dera intimidade. Sabia-o rico, bons rendimentos e família de nomeada. Meus pais continuavam pobres, trabalhando para comer e vestir.

Direito, além do mais, não me atraía. O Dr. Fausto não exercia e eu não via como pudesse fazê-lo. Se ele, que era rico... quanto mais eu. Matemática, sim; era da minha preferência. Se não fosse cego, estudaria Engenharia. O Professor Corrégio surpreendera-se com as minhas respostas num exame de fim de ano e mandara-me chamar depois. "Veiga, venha cá". Era um grito de longe do inspetor. Eu já andava lá pelo bambuzal. "Veiga, venha cá seu menino". O Professor Corrégio o está chamando". Estremeci. Era a primeira vez que aquele professor me examinava. Ele era lá dos alunos adiantados.

Lá em cima, ouvi palavras de estímulo, enquanto uma mão ossuda e grande apertava a minha. Pouca vez um professor terá feito tão bem a um aluno. Não sei o que achou em mim. Que eu estudasse, que eu me aplicasse, que ainda havia de fazer e acontecer.

Que confiança em mim deram-me suas palavras... Que bálsamo aos meus sentimentos de inferioridade. Ele era professor de outro meio, era vidente e lecionava na Escola Normal. Diziam que tinha feito concurso no Instituto, vencendo velho doutores, ainda menino de vinte anos. Preso na nossa biblioteca, para as provas, assoviava aos perus soltos no terreiro, para fazê-los gorgolejar. Aquela mesma biblioteca onde eu hoje lia. Os mesmos perus que eu também fazia gritar. Que bálsamo, aos meus sentimentos de inferioridade.

Ele ainda aí está vivo e são para saber do que me fez e do meu agradecimento. É o Professor Corrégio de Castro, que muitos conhecem, mas poucos admiram como devem, tão modesto é ele.

Nos três anos que me restaram de curso, fui todo das matemáticas. Quando cheguei ao fim, estava enrabichado por elas. O Professor Corrégio foi, por muito tempo, o meu mentor no desenvolvimento da inteligência. Devo-lhe o gosto pela ciência pura. Segui cursos extra-escolares na Politécnica a seu conselho. O saudoso Amoroso Costa; que veneração!...

Era uma tarde clara de dezembro, quando o açougueiro do Engenho de Dentro foi buscar seu filho como aluno, pela última vez, ao Instituto Benjamin Constant. Eu fizera o último exame e a mão magra e grande, calosa, de veias grossas e pelos bastos de meu pai, lá estava para oferecer-se à minha. "Vamos, meu filho. Passaste bem? Como foi tudo?" ― "Fui bem, papai?. ― "Não estás muito cansado, tens comido bem? Não tiveste mais nada depois daqueles vômitos da semana passada?" ― "Não papai; nada ― ganhei o ano; o senhor não precisa vir buscar-me mais". ― "Eu vinha, eu vinha. Tu bem sabes que por ti eu não poupo nada. Tu só me tens dado é prazer. Agora tenho um filho doutorzinho".

Pegou-me pela mão. "Eu queria ver teus professores. Onde está o seu Chinês, seu Aguiar e o seu Justiniano?" ― "Não sei, papai. Vamos. Estou com saudades da mamãe". E puxava-o pela mão para que fôssemos. "Outro dia o senhor fala com eles. Outro dia". ― "Olha, o Senhor Diretor está ali. Queres ir falar com ele?" ― "Não, não papai; vamos embora". A lembrança da mamãe puxava-me para casa. Já íamos pelo jardim, quase no portão da saída. "Meu filho, o Diretor está olhando. Tira-lhe o chapéu". Levei a mão à copa, sem chegar a descobrir-me. Mamãe tinha passado noites e noites à minha cabeceira no meu tifo. Agora, esperava-me para saber dos exames. Eu tinha pressa. Estava laureado com as melhores aprovações. O Diretor, de pouco tempo, era quase um estranho, tão pouco falava aos alunos. Em casa, tudo devia estar à minha espera.

Quis fazer o estágio para o ensino e fiz. Havia correria para a vaga. O filho do açougueiro tinha contra si os apadrinhados do Ministério, mas eram por si, como por ninguém, as notas de aprovação do curso. Eduardo Pinto de Vasconcelos fez justiça: foi por ele. Estava eu assim candidato a ser um daqueles ruminantes de ensino apontados no capítulo "A Vida nos Internatos". Não me conformei. Fui interno ainda uns meses, mas as facilidades da família, o convívio com os meus irmãos, o hábito deles de conviverem comigo, o costume de meus pais de me ampararem e de contarem comigo no meu orçamento, tudo me ensejou a fuga do internato.

Meu pai não queria é que eu abandonasse o colégio. "Virei para casa e quando aparecer uma vaga de professor irei fazer concurso". ― "Não, não, meu filho. Longe da vista, longe do coração". "Hás de ir é para lá". Uma vez conseguido o estágio, concordou. "Está bem. Olha que eu acho que é muita canseira para ti ires dar essas aulas tão cedo e voltares toda a tarde. Vais-te esbaldar nessas viagens. Mas eu não contrario o meu filho".

Assim foi: com poucos meses passei a não morar no Instituto, mesmo durante o estágio, sem ganhar nada. Nunca me faltou o indispensável às despesas mais urgentes.

A vida em casa foi-me aguçando o gosto e enrijando a fibra para a luta. Um irmão já trabalhava na Estrada e o outro na Casa da Moeda. Chegavam em casa com dinheiro nos pagamentos. Eu é que não.

E pensava: "Se abrisse um curso, a exemplo do meu primeiro mestre?" A ideia crepitava-me no crânio, subia em labaredas, até cair-lhe em cima a água fria do meu complexo de inferioridade. "Não! Qual nada... O Rio já ia muito evoluído. Tudo por ali estava cheio de explicadores e bons. Quem iria acreditar no filho do açougueiro, criado por aquelas redondezas, sempre lastimando por toda a vizinhança? ... Ninguém".

No Instituto, não via probabilidade de colocação tão cedo. Uns esperavam há doze anos, internados depois do curso, e nada... Coitados! A Administração tinha até criado para eles um nome paradoxal, afim de ocultar a falência da educação dada àqueles pobres. Chamava-os de "alunos de curso acabado". Resistentes que davam aulas, copiavam livros, chefiavam bancas de estudo, mourejavam por lá de sol a sol pelo prato e o teto. "Alunos do curso acabado". Muitos bem aproveitáveis. Não lhes davam oportunidades. Banjamin Constant estabelecera o acesso automático estirpado pelos concursos que o Governo mandava fazer lá sem nenhuma preocupação com a pedagogia especial dos não-videntes. Dos candidatos, não se exigia o menor trato com cegos, nem mesmo que soubessem o alfabeto Braille.

Os "alunos de curso acabado" e os estagiários não podiam concorrer; só valia o que os outros sabiam. A experiência deles, seu conhecimento das particularidades da leitura e escrita, não entravam em prova. Os professores de fora iam entrando. Uns pela janela, outros pela porta larga do concurso, todos porém sem o menor conhecimento especializado da psicologia e da pedagogia particular dos alunos que iam ter. O de francês ganhava 700,00 cruzeiros, mas quem corrigia as escritas, fazia as emendas, lia na velocidade adequada aos cegos, indicava os recursos mnemônicos mais próprios aos alunos, era um cego, sempre sentados nas aulas ao lado dele sem ganhar nada. Os outros, quase todos, nessa bitola. Um houve ― o de violoncelo ― que mamou mais de 35 anos nas tetas gordas de um lugar efetivo, até ir refestelar-se no leito fofo de uma aposentadoria fácil, sem ter dado um só aluno que realmente tocasse o instrumento. Quando muito, uns três chegaram até o "Cisme de Saint-Saens" que mais era um corvo agoureiro.

Nos fundos do açougue, eu pensava nisso tudo. E a ideia do curso particular voltava para minha cabeça. "Não precisava ser perto daqui: num outro lugar qualquer de alunos pobres que não pudessem pagar a grandes explicadores"; Dinheiro para boas instalações não havia. O do açougue, dava só para comer. Comer bem, mas só.

Começaria um cursinho onde não me visse nenhum dos meus vizinhos. Onde fugisse à propaganda negativa das lamentações ao meu estado e da minha procedência do fundo do açougue.

O Senhor Pedro Nunes ― Presidente da Liga de Proteção aos Cegos ― resolveu a situação cedendo uma sala da instituição para o meu curso. Era num morro, na velha Rua das Mangueiras de Lins de Vasconcelos. Minha falta de vistas, e mais ainda, minha falta de convívio, não me permitiram alcançar que, naquele ermo, eu não faria alunos.

Comecei a tarefa inglória: pelo braço de meu irmão mais moço, fiz eu próprio a distribuição dos primeiros 500 cartazes custeados por meu pai. "Reabriram-se as aulas do Liceu Popular". Para fugir à responsabilidade de criar um curso novo, eu inventara a "reabertura" das aulas de um Liceu Popular que nunca existira.

O senhor me deixa colocar este cartaz aqui no seu armazém?" ― "Ele é um bocadinho grande. Enfim, bota-o ali". "Onde é este Liceu? Quem é que ensina lá?" "É "ele", meu irmão explicava, vencendo a minha timidez. "Ele, meu irmão explicava-se o português. "Mas como é que ele pode ensinar assim sem as duas vistas?" Lá vinham os esclarecimentos sempre penosos de dar e as objeções do taverneiro, não raro bem fundadas. O cartaz ficava e eu me ia com a alma abanando de incerteza pelo que dissera o dono do armazém.

Do Cabaçú ao ponto final do bonde Lins, varando transversais e subindo ladeiras, tropeçando, descendo em falso, andou o cego, pelo braço do irmão, distribuindo os cartazes do liceu que imaginara. Isso não me abatia. O mal eram as duchas de desânimo dos comentários. Por ali não se admitia que um cego pudesse ser professor. Só de cegos.

Ia em casa fazer as refeições, voltava à distribuição, ia ao marceneiro ver a tábua da tabuleta. Depois, pagava eu próprio na tábua, dava pressa ao homem.

Quando pronta, embarquei no bonde de segunda classe com meu irmão, e fui levá-la ao pintor. Meu irmão dispunha-se a ir só, mas eu queria acompanhar tudo. Travava contato com a vida. No bonde ouvia palestras de operários, de gente humilde, e tudo era novidade para mim.

No pintor, forneci os dizeres. Ele me perguntou os detalhes do letreiro e eu deixei tudo a seu cargo. Não entendia nada. Ele explicou: "Faço-lhe ali assim umas letras grossas azuis, com frizozinho vermelho à roda. "Liceu Popular", em destaque, com traço por baixo; ou então assim em curva. Fica bem". Eu não entendia nada daquilo, mas ia aprendendo. Meu alfabeto era uniforme, com letras sempre do mesmo tamanho e só escritas na reta. Ia aprendendo.

Apareceu então o primeiro aluno ― Rubem Paiva Bittencourt. Não sei que é feito dele, não sei em que posição de vida o irá pegar este livro. Foi meu primeiro aluno. Aulas noturnas, duas matérias, vinte e cinco cruzeiros por mês. Gastava dezoito cruzeiros e oitenta centavos de passagem. Treze cruzeiros e vinte centavos foi assim o primeiro ordenado do professor cego, filho do açougueiro do Engenho de Dentro. Que mundo de coisas, para mim nesses minguados níqueis!... Meti no bolso das calças o envelope recebido do aluno, guardando-o como se fosse uma relíquia.

O êxito do primeiro aluno, na promoção por concurso ao banco em que trabalhava, intensificou a freqüência do Liceu. Pelas queixas dos alunos, percebi o isolamento em que estava o curso e mudei-me para o Meier, amparado por meu pai.

"Meu filho veja lá o que precisa. Há de se arranjar os móveis. Se for preciso, o Banco da padaria empresta-me algum dinheiro". Não queria muito: doze cadeiras, uma mesa, um quadro, em segunda mão que fosse. Achei a sala num bom ponto, defronte da estação dos bondes. Dirigi as instalações, fazendo eu próprio o que podia, sempre com a ajuda dos meus.

O Liceu Popular, do professor cego, estava no coração do Meier. Ia ganhando confiança em mim. Os alunos vinham chegando. O professor sem vista, à cabeceira da mesa, sufocando uma imensidade de complexos num esforço sobre-humano, dava o que podia. Parece que não dava pouco, porque uns alunos vinham trazendo outros.

"O Senhor Gilberto da Silva Bago, vamos à leitura. Estudou a Sinonímia? Vamos. Leia, insulso, pare; que quer dizer essa palavra? Muito bem. Tome nota da palavra, para o exercício da próxima vez. Siga. Ináudito, não: Inaudito. Bem, bem. Escreva o que tem de fazer para a outra vez. ― Fazer duas frases com cada uma das palavras anotadas na leitura. Procurar no dicionário as palavras que não entender na lição seguinte". Explicava: "Preste atenção: não precisa escrever o significado. Veja, no dicionário o que mais se presta ao sentido em que se acha aí, e não escreva. Responda-me aqui de cor". "Qual é mesmo a lição seguinte? Não, não. Essa não serve. Quase não tem palavras que você não conheça. Veja a outra. Essa sim". Muita vez acontecia que eu não conhecia o trecho, mas fazia aquilo para impressionar a turma. Não tivera tempo de a ler de dia, ou não tinha tido quem a lesse.

Ainda não me sobrava dinheiro para pagar às ledoras. Socorria-me de um irmão ou do Osvaldo no Instituto, para preparar as lições da noite.

"O Senhor Francisco Matias, fez o exercício de sinônimos? Quantas frases conseguiu? Muito bem. Então troque o seu com o Senhor Pimenta. Ele lê o seu e o senhor o dele. Como, Senhor Pimenta... Como está escrito "assunto"? E "sucursal"?... Os outros acompanhem. Quando não estiver certo, digam antes de mim. Certo, Senhor Raul. Certo. Tem dois "s".

E assim uns corrigiam o exercício dos outros, enquanto a turma acompanhava, desejosa de marcar um tento, apontando o erro em primeiro lugar. Toda a classe vibrava de interesse pelo exercício aproveitando bem a lição, enquanto o professor cego fiscalizava tudo com o ouvido. Demos que o aluno aprendesse mais devagar, porque seu exercício levava muito mais tempo a ser corrigido, mas aprendia com mais segurança, por isso mesmo que a correção era bem lenta e se fixava melhor. Nem lhes faltava a fixação mnemo-visual, porque o professor cego punha um aluno ao quadro, só para escrever todas as palavras emendadas durante a correção dos exercícios. Não era provável ficar grafada errada a palavra do quadro que o professor não via, porque os oito ou dez alunos restantes observam logo: "Falta um "p", falta um "d". Além do mais, o do quadro era sempre um dos mais evoluídos, com que, o professor sabia bem como tratar.

Chegava a vez da aritmética. Eu devia corrigir expressões e problemas que os alunos tinham efetuado em casa, por minha determinação.

Como contornar a dificuldade? Os problemas e os exercícios eram por mim preparados antecipadamente, de modo que só eu lhes conhecia os resultados. Os alunos que me trouxessem as respostas exatas, tinham realmente feitos os exercícios. Quando ninguém ou quase ninguém acertava então entrava em cena o quadro negro.

O professor cego punha-se diante da tábua preta destinada a receber os traços brancos que o tato não percebia. Chamava um aluno, e começava: "Vamos, escreva: dois quartos mais três sétimos menos um nono. Agora um traço longo por baixo de tudo isso, começando no quatro e acabando no nono. Por baixo do traço, escreva tal e tal. Adiante do traço longo, um sinal de divisão. Dois pontos; isso mesmo, Depois desse sinal, um novo traço longo na mesma direção do primeiro. Em cima, isso e aquilo, etc., etc. Se a expressão era difícil de grafar o aluno era escolhido entre os mais habilitados. Se não, o professor tomava mesmo um dos mais fracos. Junto ao quadro, de ouvido alerta, ele distinguia quando o aluno se conduzia com desembaraço na execução de suas ordens. Quando falava e o giz não batia logo ou riscava, é que o aluno ia indeciso; fazia-se necessário ajudá-lo mais. A escrita de um traço longo, o dedo apagando algum algarismo, ou o apagador, ele os reconhecia bem pelo ouvido, ao cabo de certa prática.

Com o tempo, acabou por distinguir o movimento circular do giz traçando zeros, os dois tracinhos do sinal de igual, os dois pontinhos do "dividido por", etc. Com um ano de exercício desse magistério, o professor tinha desenvolvido a faculdade de acompanhar de cor os cálculos dos alunos, a ponto de calcular com eles, fornecendo os resultados parciais antecipadamente, como se tivesse o giz na mão.

Quando certos resultados, longos demais, não podiam ser feitos de cor, o professor tinha observações pessoais que lhe permitiam conhecer certos algarismos do número procurado. Com elas, podia dizer aos discípulos que o resultado achado por eles não estava certo, num grande número de vezes. Podia bem acontecer que os algarismos visados pelo professor conferissem, mas alguns dos outros fossem inexatos. Nesse caso, o mestre cego, seria levado a engano; isso porém, numa proporção tão pequena, quanto a dos enganos dos professores de olhos abertos. Havia ainda outro atenuante da percentagem dos enganos. Era regime estabelecido pelo professor cego, que os alunos acompanhassem no caderno as operações que o do quadro ia fazendo. E o professor arranjava-se bem para controlar esse regime sem os olhos. A certa altura do trabalho, quando o do quadro fornecia um resultado, ele corria a classe perguntando: "Que achou aí, seu Francisco? E o senhor, seu Pimenta?" Ouvia primeiro os resultados, para então dizer: "Não, não. Os senhores Gilberto e Rubem concordaram com o quadro, mas eu vejo que não estão acompanhando o cálculo no caderno. O quadro está errado".

Tal como no Português, a coisa ia mais devagar, mas se fixava mais nos alunos. Conduzindo assim lentamente o trabalho, eu podia observar melhora as dificuldades dos discípulos, e dosava os exercícios justamente para atingi-las. Cheguei mesmo a codificar, para meu uso, os erros mais freqüentes dos alunos em Matemática. Com isso, não me arrumava mal. Pelo menos, as turmas cresciam, até encherem a mesa. Daí por diante, recusava novos candidatos. Tomava nota dos endereços, para chamá-los no caso de alguma desistência ou de algum êxito em exames.

Ao fim de cada aula, contudo, eu me sentia esgotado. Saía mais ou menos satisfeito com o conseguido, mas ia fatigadíssimo. Com a fadiga, o peso da responsabilidade do que eu devia ensinar no dia seguinte e não sabia. Os rapazes da Escola Prática de Aprendizes Dr Silva Freire queriam também estudar mecânica aplicada, porque não iam tirando boas notas. Dizer que não, era perdê-los. Depois, "não", porquê? Se eles se propunham a aceitar essa matéria no mesmo tempo que lhes era concedido? "Não", porque eu não sabia, era desmoralizar-me perante eles, que não podiam compreender ignorasse o seu professor de português e aritmética o que eles, meninos e aprendizes de operários já estudavam.

O fato porém era que eu ignorava. Nada sabia das leis de engrenagem e de pulia. Mas os meninos tinham aquilo para dar dois ou três dias depois e queriam aprender. Eu ainda ia comprar um livro igual ao deles. Tinha de ensiná-los.

As engrenagens vinham-me engrenadas na cabeça. Compraria o livro; o Osvaldo leria para mim. Mas, que seria aquilo? Engrenagem... pulia... Engrenagem eu já tinha pegado numas rodas dentadas a que chamavam "engrenagens"; não sei se num despertador velho. Mas pulia... Conhecia de nome; sabia que se usava nas máquinas, mas o que fosse, não. Leria no livro deles... Perguntaria ao Corrégio se o visse... Faria o que pudesse pelos rapazinhos. Haviam de passar nos exames e trazer-me outros. Se de todo me falhasse o tempo, os amigos, ou a compreensão da coisa por muita explicação em figuras de que eu não pudesse fazer ideia, então prolongaria mais o horário das outras matérias, para não ter tempo de dar aquilo. Ficaria ainda para outra aula. Fizera-o de outras vezes, bastante contrariado.

Deixava eu a sala do Meier às 11 horas da noite. Vinha fatigado pelo esforço em remediar minha cegueira na cadeira de professor, vinha atormentado pela interrogação daquela mecânica, mas trazia, no fundo, o contento de estar servindo ao plano que me traçara ― viver a vida como toda gente.


NO MUNDO DOS CEGOS BRASILEIROS

A Massa ― Mendigos Domésticos ― O Clássico Mendigo ― Os Alfabetizados ― Tendências Literárias ― Trevas ao Meio-Dia ― Associações Protetoras

Os brasileiros que têm a má sorte de não ver, são em número maior do que se pensa. O último recenseamento encontrou 60.600. O erro provável tem de ser para mais, porque ninguém declara cegos que não tenha em casa. Isso, os cegos realmente "cegos" para a vida. Os de meia visão, os cegos para essa ou aquela profissão, e até para as escolas comuns, ninguém chama de "cegos"; não entram no recenseamento. É portanto uma enorme massa de seres, inúteis para a vida, petrificados a um canto, ou peças girando desajustadas na engrenagem social.

Conseqüência de moléstias resultantes da falta de higiene comum, inclusive da carência alimentar, a cegueira atinge, por isso mesmo, as classes menos favorecidas. Assim, os nossos milhares de patrícios cegos são, na maioria, pobres de recursos e também pobres de espírito, porque ainda esperam que um brasileiro acenda para eles o luzeiro do alfabeto, de modo que os atinja em grande escala. São eles massa amorfa e anônima, miséria diluída no nosso organismo nacional.

Ao Deus-dará da fortuna, nos vaivéns da maré da vida, curtem, em silêncio, a sua amargura imensa. Quase não saem à rua, não se exibem, tão oprimidos andam pelo professo universal, exigindo, cada vez mais, a participação da vista para viver. Recolhem-se em casa, fogem a tudo. Mesmo homens, se a fome não os tange, não saem à rua.

Os mendigos de rua, por mais que nos pareçam, são bem menos que os que precisariam mendigar. Os outros em casa, mendigos domésticos, vivendo das migalhas reservadas para eles. Preferem o mendigar silencioso do recesso dos lares, quiçá mais doloroso que o das ruas, porque não tem, como este, o desabafo da confissão pública da miséria.

São pais, e não matam a fome aos filhos; são maridos, e vêem a mulher comer do que os outros dão. Aos poucos, perdem a autoridade em casa e o respeito dos filhos. Entre as amarguras da sua vida, terá o cego mais a de saber que os filhos não estão sendo educados como gostaria. Recalca-se e sofre. Se tem recursos e vem avezado à independência, pode ser que reaja, não entregue o mando e nem se deixe tutelar.

A. era vendedor viajante, filho de pais de posse, audaz e trabalhador, intrépido e destemido. Conheceu terras e conheceu a vida. Virou o Brasil, no afã de ganhar e de gozar dinheiro. Colhe-o a cegueira aos 50 anos e ei-lo derreado, vencido e morto por dentro.

Com os últimos clarões nos olhos, corre para o torrão natal, a acoitar-se na casa de irmãs viúvas que há vinte anos não via.

Toda a sua energia se transmuda em apatia extrema. Submete-se, como criança, às irmãs mais moças, passando, subitamente, de protetor a protegido, e de tutor a tutelado.

Esse é um caso real, típico da transformação que a cegueira imprime no indivíduo. Daí por diante, foi ele o mendigo doméstico do pão que aquelas pobres irmãs amassavam com sacrifício.

Os outros ― os clássicos mendigos ― os mendigos de rua ― são os bem conhecidos do leitor. Vivem espalhados por esse Brasil a dentro, metendo dó, quebrando corações e amargurando a existência alheia.

Ou cantam modas dolentes, ou também violões tristonhos; ou sopram gaitas melancólicas, ou esticam sanfonas preguiçosas. A música tem mesmo um "quê" de seu: ― "Música de Cego", já a denominaram.

Os mais sinceros, porém, falam logo a linguagem da palavra dura: "Uma esmola a uma cego, pelo amor de Deus!..." Formam a sua mentalidade, a sua vida própria e a sua filosofia. O mundo deles passa a ser aquilo, um desabafar constante da miséria, uma queixa ao mundo que os não compreende. A queixa e o desabafo acabam em automatismo, em movimento natural para ganhar o pão, como o torneiro que maneja a goiva. Conheci um cantador em Feira de Santana, que só sabia conversar em versos. A exemplo do capinador que fica com as mãos afeitas ao cabo da enxada, não sabendo mais pegar na pena, ele também ficara com a palavra avezada ao verso das cantigas com que esmolava.

Reparem que o "amor de Deus" já vai desaparecendo das súplicas dos mendigos. "Favoreça uma esmola a um pobre cego"... "Dá, meu senhor; dá uma escola a um pobre cego". É mostra daquela filosofia de mendigo tão bem surpreendida por Joracy Camargo: ele sabe que está cobrando uma dívida que a sociedade tem para com ele.

O alfabeto muda o quadro. Por si só, não basta, penso já ter mostrado; mas alarga a visão da vida, modifica o comportamento mental.

Há mendigos alfabetizados, menos felizes que os outros, já se vê. Mas, em regra, o cego alfabetizado refuga a mendicância. Se a pratica, é daquela doméstica, tangido pela mais premente das necessidades. Faz-lhe mal o isolamento e forceja por associar-se ao banquete da vida. Quase não o consegue, e sofre. É instruído, mas não é ajustado. Introverte-se e deriva para a criação literária. Sugere a escassez da imagem pela música da forma. Castilho é o luminoso exemplo desta suplência.

Na sua tendência literária, o cego alfabetizado prefere o verso. A métrica e a rima satisfazem-no. A ideia é pouca, mas o criador exulta. As imagens são pobres, mas são as dos seus sentidos:

Domingo morno, lento, muito quieto
Os anos dela, e aqui, tudo sem nada...
A casa dela só, toda parada,
Cristais calados, teia pelo teto.

Quase sempre líricos e sensuais a seu modo, os cegos letrados desfiam versos e versos sem imagem alguma:

O tempo, a saudade leva;
Leva o amor, a esperança;
Só não me leva a lembrança
Que me vem de ti, ó Eva!

Vejam agora este sensualismo de cego de nascença. Que o analisem os psicólogos:

Não foi pecado, ó filha! Foi impulso do amor,
Da lei que rege a vida,  a lei universal.
Que culpa posso eu ter de obedecer ao ardor
Que, eu meu sangue, desperta a tua boca oval?...

Os teus seis de arminho, o teu colo ideal,
A tua carne moça, a vibrar de esplendor,
A escultura exemplar do teu corpo fatal,
A sensação de paz que vem do teu calor.

Por vezes, imagens reagindo contra o sentimento de inferioridade:

Tout au dessu de ma fenêtre,
Les hirondelles font leurs nids.

Dès que je vois le jour paraitre,
J'entends leurs tendre gasouille.

(Aqui por cima da janela,
As andorinhas fazem ninhos.

Logo que "vejo" vir o dia,
"Ouço" cantar esses bichinhos).

O poeta é um francês, cego e surdo, mas diz que "vê" vir o dia e "ouve" cantar os passarinhos.

Há trabalhos de pura cerebração, como estes sonetilhos de Oswaldo Peixoto:

Quem ― Não ― Zebu
Faz ― Têm ― Fugiu,
Bem, ― Nem ― Lulu
Jaz ― Pão. ― Seguiu.

 

Em ― Sem ― Dudu
Paz, ― Grão ― Só viu
Sem ― Vão ― Zebu
Ais. Bem. Sumiu...

 

Mas ― E ― Por quê,
Quem ― Dos ― Rapaz,
Faz ― Céus ― Você
Mal ― Deus ― Não foi
Tem ― Os ― Atrás
Tal ― Vê?... Do boi?...

Mas o lírico parece ser o gênero preferido dos literatos sem vista:


EI-LA QUE VAI
 

Brisas! Debalde entrais no quarto dela,
Seus cabelos buscando acariciar.

Deserto jaz o leito? E quereis vê-la?

Heis de vê-la amanhã, pro sul, no mar.

Pois bem, levai-a por um mar de rosas,
Levai-lhe os meus adeuses, e levai
Uns sons de minhas músicas saudosas.

Brisas! Ei-la que vai!...


Flores de seu jardim! Por que, tão tristes
Estais, assim, pendidas para o chão?
Falta o perfume dela! Oh! Bem sentistes
Que não vos toca a perfumosa mão!
Ao mar, que vos conduza o brando vento!
Vosso perfume, ao dela, misturai!
Dizei que tenho nela o pensamento...

 

Flores, ei-la que vai!
 

Astros que, dos seus olhos, nas pupilas
Buscais mias brilho para a vossa luz!
Que as cismas lhe afagastes, por tranqüilas
Horas em que a cismar tudo conduz!
Daí-lhe noites ideais, dias risonhos!
Mostrai-lhes belos céus, oh! Sim, mostrai,
E dizei que, com ela, são meus sonhos!

Astros! Ei-la que vai!...
 

E vós, dos navegantes protetores!
Sobre ela, encanto de bendito luar,
Vosso manto estendi, virgem Senhora!
Ela enfeitava tanto o vosso altar.

Tão meiga e boa a bela peregrina,
Que a mãe vai ver, e que já não tem pai!
Sede com ela, ó virgem, ó divina

Maria! Ei-la que vai!...
 

E a nós, família e amigos, que agonias,
Que penas custa esta separação!
Em torno dela, festas e alegrias;
De nós em torno, triste solidão.
 

Lá, sorri-lhe talvez a felicidade!
Aqui, nos punge uma incerteza atroz.
 

Ela vai, e, a chorarmos de saudade
Ficamos! Ai de nós.

(Os versos são de Gurgulino de Souza ― músico notável, poeta, como se vê amante das ciências, professor, organista da Candelária por muito tempo. O Brasil perde por não conhecer suas composições musicais).


FILHA
Versos reais de um pai cego a sua filha:

Vais completar dois anos; e quem sabe
Que serás ao fazeres outros tantos?...
 

Teu peito, onde hoje crescem os encantos,
É como urna, em que todo afeto cabe!
 

Embora a mágoa sobre nós desabe,
Num vendaval de desventura e prantos,
Colhe da musa os derradeiros cantos,
Antes que a glória do meu sonho acabe!...
 

Despreza deste cosmo as fantasias,
Nunca te vergues ao humano orgulho,
Sofrendo resignada os teus maus dias,
 

Pois hão de florescer os sonhos teus!
O lírio também nasce em pedregulho,
Em, embora sofras, pensa sempre em Deus!


BRAILLE
Dedicado ao inventor do alfabeto dos cegos.

Eis o novo Arquimedes procurando
A chave dos problemas, incansável;
Sente no olhar a noite impenetrável,
Mas a luz do saber o vai guiando!...
 

Vai-se o problemas, aos poucos, aclarando,
Ante a mente do sábio imperturbável,
Que perscruta e desvenda o indecifrável,
Novo caminho, aos cegos, apontando!
 

"Achei!" Ei-lo que brada enfim, agora;
Via surgir, ao cego, a nova aurora,
Abrindo-lhe a cidade do saber!
 

"Estes seis pontos", disse: "São a luz";
"Este alfabeto, irmãos, tudo traduz,
E os cegos que o recebem podem ver".

José Miguel Bastos Filho é o autor desses dois últimos sonetos, que dão bem ideia de seus dotes de artista.

De modo geral, não há negar uma grande ausência de imagem, uma como que secura no colorido, uma abstração da paisagem, uma falta de situação para a fantasia, certa carência, enfim, de palco para a cena.

Aquela "Só não me leva a lembrança que me vem de ti" podia dizer-se a qualquer mulher. Não há nenhuma caracterização para essa Eva.

Aquele "boca oval" e "colo ideal" são bem batidos. Salva-se, como original, aquela "sensação de paz que vem do teu olhar".

Nos versos de José Miguel e de Gurgulino a riqueza da rima e o sentimento merecem muito louvor. Há outros poetas como esses dois, sem vista, brasileiros ignorados. Não cabe aqui porém a coletânea.

O que vimos apreciando na maior parte desse nosso estudo, é o cego realmente criado sem os olhos, aquele que se plasmou nas trevas. Não nos escape, porém, considerar, no mundo dos cegos brasileiros, os que perderam a vista depois de homens, os que encontraram a treva em plena luz do meio-dia.

Suas atitudes mentais sofrem alteração, é certo, mas não podem ser as mesmas do cego de tenra idade. Se, a um galo, se extirparem as glândulas da masculinidade, ele virá a criar pintos, mas não perderá os esporões.

O rato a que se amputam as patas dianteiras nos primeiros dias, vira bípede, adquirindo, em conseqüência, muitos outros comportamentos que o diversificam dos outros ratos. O rato velho, entretanto, não se habituará mais a andar só nos dois pés. Ficará um bicho como os outros, um rato aleijado, embora, mas menos estranho à sociedade dos roedores, do que o bichinho alto, esguio e saltitante em que virou o nosso ratinho amputado cedo.

Os paralelos são esquisitos, mas dizem bem o que a prática me ensinou. O homem a quem a luz se apaga em idade adulta, se supera o traumatismo brutal, fica bem mais igual aos outros que os que cegam no alvorecer da vida.

Tem a mentalidade plasmada nos processos normais e conserva a aparência exterior dos tempos de visão, o que o torna mais assimilável pela sociedade. Tais cegos são mais aceitos, porque se fazem compreender melhor. Trazem as atitudes e a plasticidade dos movimentos adquiridas pela imitação, através da vista, como toda a gente. Continuam a comandar, por automatismo, a mímica da face e das mãos, sem mais o controle dos espelhos, nem o reajuste das imitações. Com isso, disfarçam bem a privação e o doloroso transtorno que lhes vai por dentro.

Que sofrem mais, não há dúvida, mas há prodígios de adaptação. Há os Monte Alverne, que ficam dizendo" é tarde, é muito tarde"; mas também há os Azevedo Amaral que continuam jornalistas, combativos, intelectuais, pensadores.

A estes, cegos ao meio-dia; a estes que tiveram, de súbito, virada a linha do destino, não se pode aplicar, portanto, a maioria das observações e dos conceitos que viemos espendendo até aqui. Cada qual terá o seu caso; cada qual, suas razões para ser mais isso ou mais aquilo.

Os núcleos de assistência particular, já mais de seis, no Rio, vão-se espalhando pelo Brasil; Rio Grande, Paraná, São Paulo, Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Pará e Amazonas. São centros pobres, de ação reduzida, apesar da enorme boa vontade de suas diretorias, salvo alguns no Rio e em São Paulo, já bem eficientes.

Algumas dessas associações, especialmente no Rio, tem um traço que as distingue da assistência aos outros necessitados.

É que elas são orientadas pelos próprios cegos seus protegidos. Dois ou três cegos mais evoluídos fundam o estabelecimento, e enfeixam, nas mãos, o poder legislativo e até o executivo, nomeando uma diretoria apenas para assinar os atos civis e comerciais da instituição. Eles se constituem em conselho, revezando-se em postos de responsabilidade.

Com tal regime, algumas sociedades chegaram a prosperar.

Em regra, o fabrico de vassouras nessas casas é incipiente, não passando de uma explicação para co-onestar o pedido de contribuições ao povo; isso no Rio. Só em duas ou três ele existe com real eficiência.

Ainda aqui, a reação do cego contra a sua inferioridade: não pede para seu sustento, como parasita; mas para "ajudar uma instituição que dá trabalho ao cego". Na realidade, porém, o trabalho quase não passa do angariar e cobrar as contribuições.

Todavia, muito têm valido aos cegos esses institutos: são centros de permuta de energia, de irradiação de idéias e de concentração de esforços para aluir as barreiras sociais. É, pois, bastante louvável a atuação dessas casas que, na falta de melhor, muito têm contribuído para levar um pouco de felicidade a uma punhado de brasileiros sem vista.


Continuando a minha luta

A Eletro-difusora ― Importador mambembe ― Agiota ― Construindo minha casa ― O Instituto de Cegos da Bahia.

Volto a falar, a meu pesar. Não é que tema me tomem por vaidoso. Não tenho porque me envaidecer da minha vida: aos 38 anos, nada tenho de meu senão a experiência. Saiba logo o leitor que sou um "fracassado", com licença do termo, funcionário pobre, de padrão "j", onerado de compromissos.

Tudo está em que prometi a mim mesmo ser sincero, rasgando ao leitor, em todos os sentidos, "A Vida de quem não vê".

O que sei, com segurança, da vida de outros cegos, e posso relatar, venho relatando até aqui, de modo generalizado. Como tenho de saber muito mais da minha vida que da dos outros, acabo, sem querer, falando de mim mais do que eu próprio desejaria.

Acresce ainda que posso dispor, a meu grado, do que é meu, são ou podre, sem picar senão os meus melindres e recalques, os quais neutralizo inteiramente, quando me sento à máquina para escrever o livro. Ature-me pois o leitor amigo, com a paciência de um estudioso, para recolher elementos com que faça melhor juízos dos cegos e da cegueira.

Três anos depois de fundado, o Liceu Popular, já no mais vistoso sobrado do Meier, recebia uma inovação ― a "Eletro-Difusora do Liceu Popular". Assim chamei um alto-falante público, que pus na fachada do sobrado, funcionando duas horas antes das aulas, para dar conselhos úteis, fazer anúncios e música. "Guerra aos mosquitos! Amasse, enterre ou mande para lixo, as latas velhas ou qualquer depósito que possa conter água". "Parque Royal, a maior e melhor casa do Brasil".

Era do finzinho do corredor que dava acesso à minha sala de aulas, que eu bombardeava, com isso, os transeuntes, cansados da luta de cada dia, voltando para casa, entre 5 e 7 horas da noite. Havia discos para camuflar o bombardeio.

Dei aí o primeiro exemplo de difusão, para a rua, de jogo de futebol irradiado. Juntou gente como formiga. Tenho o documento fotográfico feito para mostrar aos comerciantes que a Difusora tinha ouvintes.

Era eu que angariava anúncios, quem consertava o aparelho, quem cobrava aos anunciantes, quem redigia os conselhos, quem pagava os impostos e arranjava os discos. Em tudo, sempre acompanhado por meus irmãos, que a dedicação de meus santos pais conservava sempre junto a mim. Nessa época, o Antônio tinha aulas no Liceu e era o meu braço direito na Difusora.

A minha distância das rodas sociais, a escassez de amigos, não me permitiam ter noção da organização de uma empresa. Sem recursos para financiar o que projetava, atirava aos negócios todas as minhas reservas, pensando que o meu trabalho completaria o resto.

Não podia pagar empregados, não tinha relações que dessem para descobrir um sócio. Falta de mímica para convencer pela expressão, eu não encontrava senão, pobre como eu, meu pai para dar-me a mão, e ficava sozinho, queimando todas as minhas reservas de corpo, de bolso e de espírito. Assim foi na Difusora; assim, nas quatro ou cinco empresas que depois tive.

No tempo em que o rádio do pobre mal era a galena, quando os rádios com alto-falantes eram raros nos botequins, não seria a Difusora um manancial de boa renda?... Por que não foi?!
Deixem-me desabafar: porque o proprietário era um cego. O corretor que aparecia aos comerciantes, um cego, sem apresentações de amigos influentes, marcado pela aparência e a falta de expressão de quem perdeu a vista aos dois anos de idade.

Mas o cego atirava-se. O tímido nas visitas, abordava comerciantes, na ingrata missão de pedir anúncios. E o alto-falante anunciava, todas as tardes, às 5 horas: "Aqui fala a Eletro-
Difusora do Liceu Popular". A voz era, muita vez, a mesma do cego que se levantara de madrugada, preparara as lições dos alunos da noite, e tinha ido à Praia Vermelha dar aulas. De volta, andara, de porta em porta, oferecendo anúncios, ouvindo azedumes de portugueses, escárneos de altos comerciantes e frases piedosas que lhe arrancavam brutalmente a coragem de ser alguma coisa.

À tarde, antes da Difusora, ainda arranjava tempo para ler, por olhos de outros, um livrozinho que lhe aprimorasse o espírito. Às sete, chegavam os alunos. Com freqüência, ia um deles mesmo buscar o professor ao Portuense, jantando média com pão e manteiga.

O jantar esperava-me em casa, mas faltava-me tempo para ele.

Ao fim das aulas, o professor levava para casa, para revolver com o travesseiro, um desarranjo no aparelho, a duplicata que ia vencer, a promessa de anúncio do comerciante da Rua Larga, a Lei de Mariotz e a mecânica para a próxima aula.

Por falta de capital e de divisão do trabalho, a Difusora não conseguia anúncios que dessem para mantê-la. Paguei, em prestações, seis contos de réis, a J. Barros, desta capital, fiz minhas retiradas, mas não consegui levar a empresa por diante.

As estações de rádio progrediam, servidas de bons corretores. A minha aparelhagem desarranjava-se muito e o imposto municipal era pesado ― 366$000 mensais, bendita proteção dos nervos e ouvidos dos transeuntes. Morreu a Difusora, mas, para meu mal, continuou viva a minha vontade de vencer, de vir a ter independência econômica.

Continuei fixo na ideia de angariar mais conforto para mim e para os meus. Não sei era bem isso, ou uma ânsia de atividade que ainda hoje me aguilhoa. Não me sinto bem no marasmo a que a minha condição de cego parece condenar-me. Quero trabalhar, projeto fazer, seja o que for, sem pensar muito nos lucros do trabalho. São assim os cegos, cujo só defeito é não ter a vista. Não são raros os que trabalham só por trabalhar, sem nenhum fito monetário.

Há cegas que fazem panos de tricô, somente para se ocuparem. Não cuidam em vendê-los e, por que não dizê-lo, não sentem mesmo o prazer estético que se destaca do pano depois de concluído.

Gostarão de ouvir dizer que é bonito, mas, elas próprias não sentem a ideia do belo que o pano sugere por seus desenhos. Gostarão mais desse ou daquele, por apresentar mais fofos, mais ou menos aberturas, por ser mais fino, pelo bonito que irradia para a vista, não. Já disse que o tato não leva ao espírito certa beleza que a visão apanha. Os cegos custam a dizê-lo; só os menos vaidosos o confessam.

Eu, de pior barro que os outros, tenho trabalhado muito sem ganho, mas tenho projetado muita ocupação para ganhar dinheiro. Na minha correspondência com o estrangeiro, para indagar de livros e de aparelhos
para cegos, bem como de projetos e realizações na educação desses anormais, acabei por fazer boa camaradagem com um francês e um americano, por cujo intermédio passei a importar novidades para o Brasil. Importação mambembe: primeiro, aparelhos para cegos; depois bugigangas originais ― piteiras de mola que deitavam fora a ponta do cigarro sem sujar os dedos do fumante, e o "Diablotin" (diabrete). Este era o conhecido jogo de quadrinhos numerados, destinados a serem postos em determinadas ordens. Nos jogos conhecidos, os quadros podem ser tirados do plano, contrariando a regra. Nos que importei ― uma patente francesa ― os quadros deslizam no plano, sem poderem passar uns sobre os outros. Eram leves, de metal, higiênicos, de bolso, realmente uma novidade que fascinou crianças e muita gente grande.

Logrei pouco. Faltou-me o capital para a propaganda, e a quantidade importada não foi suficiente para o lançamento da novidade. Como na Difusora, eu tive de ser o despachante aduaneiro e o vendedor a retalho.

Mesma tragédia.

Procurava, enfim, adaptar-me à vida que os outros vivem, procedendo mal também como muitos. Já tinha constituído família, precisava mais conforto e errei: fiz-me agiota de garis. Oito por cento ao mês, sobre dinheiro emprestado àquela pobre gente para comer! "Um roubo", gritava-me a consciência. Mas eu, pervertido, explicava-lhe que não; que se calasse, pois eu ainda fazia bem aos pobrezinhos que só tinham quem os servisse a dez por cento.

Os homens da vassouro correram para mim. Muitos vingaram a extorsão com calotes. Abençoados sejam.

Faz-me bem confessar aqui o erro. Faça dele o juízo que quiser o meu leitor, mas queira reconhecer que eu estou sendo sempre franco.

Durante seis anos, perseguiu-me a ideia de ter minha casa própria. Considerava ofertas, estudava planos, fazia contas, mas faltavam-me os recursos. A ideia não me largava. Quando surgiu, no Rio, a primeira cooperativa de casas, eu me achava preparado pela obsessão e arrisquei-me logo. A cooperativa serviu prontamente os primeiros inscritos, em detrimento dos outros. Ela precisava de propaganda. Assim, saí-me bem; veio-me o crédito para a casa.

Iniciei então a tremenda elaboração mental para decidir o que fazer com o dinheiro: se construir, se comprar feita a casa. "Tremenda" não é aqui exagero de expressão. O termo deixa bem claro o esforço de cérebro que faço, para resolver as coisas de minha vida. O que os outros resolvem numas olhadelas e em dois dedos de prosa com amigos, eu, sem olhos e quase sem amigos, como sempre, queimei energia em tresdobro.

Preferi construir, já não me lembra bem por quê. Deve ter sido pela paixão do jogo mental da concentração. É que, ainda hoje, agrada-me muito moer e remoer no cérebro os projetos que tenho em mente. No meu apego a ideia, acabei por imaginar a casa que queria, e não fui mais capaz de encontrá-la pronta, tantos detalhes tinha.

Decidido, levei dois meses projetando, eu mesmo, a construção. A fachada? ― "Não. Beleza arquitetônica, o leitor já sabe que eu não posso imaginar. Deixei-a a cargo do construtor". Mas a planta baixa, com todas as minúcias, divisão dos cômodos, superposição dos dois pavimentos, armários embutidos, um cofre na parede com segredo próprio para meu tato, tubulação de terra e antena, mil outras miudezas, tudo, tudo foi meu.

Vivi seis meses, física e mentalmente para a casa, antes que ela recebesse os móveis. Trepei em andaimes e fui até o madeiramento do telhado, não só pelo prazer de apalpar tudo, como para indicar melhor o que queria. Quando precisei vender a casa para negócio, ganhei 25 mil cruzeiros, depois de alugá-la quatro anos.

Por aí se vê que o cego não fez um mau projeto de construção e que não se deixou roubar pelo construtor. Diga-se, desde logo, que este cego não é único: há muito quem o supere, em igualdade de condições.

Em 1936, fui destacado para a Bahia, para orientar a fundação de um instituto para cegos. Já levei comigo a convicção de que, sobre as possibilidades dos cegos, é melhor doutrinar com o exemplo que com palavra. Lá chegado, antes de por o colégio a andar, fui a toda parte fazer demonstrações. Fui ao palácio do rico e à casa da pobre; às escolas primárias e aos colégios secundários; às festas de arte, e às reuniões de intelectuais. Lia com os dedos, escrevia, datilografava, discursava, traduzia, mastigava inglês, arranhava francês, discutia, respondia, explicava, convencia...

Fui, voluntariamente, o pano de amostra que se deixou pegar, examinar e desdobrar em todos os sentidos.

Pus em foco minha cegueira, relatei minhas dificuldades, contei como me saía delas, em tudo, paciente e animoso, para sopitar meus recalques. Eu é que sei o que me custou. Estava, porém, certo de que, só pelo exemplo, poderia formar uma corrente favorável à escola.

Não me enganei. Dentro em pouco, ficou o povo da Bahia convencido das vantagens da educação dos cegos. Hoje, mantém ele, com sua contribuição, um estabelecimento que pode ser mostrado pelo Brasil.

Vivi com intensidade, e muito recolhi, sobre os cegos e a cegueira, nesse agitadíssimo período da minha vida.

O melhor amigo que fiz por lá, diz-me que eu espalhei realmente a convicção de que um cego é um homem como os outros, com virtudes e defeitos. Grifava "defeitos", com a malícia que lhe permitia a nossa intimidade.

Tinha razão. Também lá levei a vida a meu modo, fazendo um pouco de tudo, até daquilo que deu lugar à malícia do meu amigo.


Os cegos na vida prática

Conhecer dinheiros ― As cores ― O andar só ― A compreensão do mundo.

Porque viveu e ainda vive de esmolas, na maior parte, cedo pode o cego espalhar a fama de distinguir dinheiro pelo tato. Assim é, realmente, para as moedas. O tamanho, a espessura, a serrilha, o peso, o som e certas particularidades do cunho, guiam bem. Mesmo na profusão atual das modas brasileiras, os cegos afeitos ao manuseio constante do dinheiro não se deixam enganar. É certo que a coisa está muito complicada para nós: o bordo liso dos níqueis entrou a ser chanfrado nessas moedas com a efígie do ex-Presidente Vargas e a serrilha foi substituída por esse chanfro em certas pratas de dois mil réis. Só a diferença de tamanho pode guiar nesses níqueis chanfrados, não havendo ao tato nenhuma distinção nos cunhos. Aquela diferença não é fácil sem a comparação, mas o tamanho acaba por fixar-se na memória tátil, entre os mais práticos.
 

O pedinte cego -James Mullock, séc. 19
O pedinte cego - James Mullock, séc. 19
 

Os centavos também estão trazendo a sua atrapalhação, com a falta de serrilha nas moedas de 50, do tamanho dos 100 réis antigos. Há, porém, uns sulcos mais pronunciados e uma diminuição no relevo que salvam a confusão.

Os mil réis antigos distinguem-se bem pelo bordo em serrilha, mais grosso que o corpo da moeda, e o cunho saliente do lado da figura. Os dois mil réis, de serrilha, são mais delgados e de menos relevo nesse lado do cunho.

As moedas de um cruzeiro, bem menores que as de mil réis, quase levam à confusão com as de quinhentos réis antigos. Vale-nos é que são mais grossas e de serrilha mais viva.

Nesses poucos exemplos, vê-se bem que o cego se arranja para distinguir as moedas. O mesmo não sucede com as notas. Ao contrário do que pensa muita gente, não temos nenhum meio seguro de distinguí-las. O que fazemos é trazê-las previamente separadas nas divisões da carteira ou no bolso, o que tem ajudado a crença de que as conhecemos pelo tato. Essa é a verdade, muito embora nós os cegos, por vezes, digamos ao contrário, por vaidade ou por conveniência. Aqui está quem o tem feito algumas vezes, para acautelar-se de furtos de empregados novos. Quando os meninos, novos como empregados meus, perguntam-me se conheço dinheiro, respondo-lhe que sim, para que eles não tentem lograr-me. Contudo, depois me desmascaro, porque me encontro em situação de ter que conferir trocos com eles. Já é, porém, tempo de lhes ter conhecido o caráter.

O tamanho das notas no nosso dinheiro, varia tanto, que, às vezes, é até inversamente proporcional ao valor. A tessitura do papel e a conservação da nota como que nos dão uma pista, bem que mal segura. As notas de maior valor mostram-se menos manuseadas, ou, quando o são, não se apresentam com as rugas resultantes de terem sido amarrotadas, como acontece ao dinheiro miúdo. São tratadas com maior carinho.

O certo é que os cegos são, de fato, "cegos" para o papel-moeda.

Coisa idêntica passa-se com as cores. Há quem afirme que os cegos as conhecem pelo tato. Puro conceito falso. A pele humana não percebe as variações da luz. Por mais que tateie e retateie uma casemira, um sapato ou uma camisa, não me dou conta da cor. Eu, e qualquer cego honestamente dirá o mesmo. Distinguiremos a sarja ou o sarjão da mescla, o cromo da vaqueta, a seda da tricoline; cores, nunca.

No seu livro "A História da Minha Vida", Helena Keller conta que, pegando no vestido de uma senhora, disse uma cor que lhe veio à mente. Isto fez que alguém, mesmo leitor esclarecido, me tenha afirmado que a notável americana conhece cores com a mão. Juízo apressado, conseqüência da mística formada em torno da mulher gênio.

O que deve ter concorrido para mais esse mito sobre os cegos, além das mentiras resultantes dos complexos dos próprios cegos e das generalizações apressadas, é que a cor vem, de fato, em certas situações, ligadas a condições perceptíveis ao tato ou ao ouvido. A dos cabelos, por exemplo, se é loura, vem na dona de uma voz macia e cristalina, sem artifícios. Os cabelos são leves, bem soltos, finos e sedosos. Se ondulados, exibem ondas largas, elásticas e espaçadas. Se negros, os cabelos são lisos, bem corridos e grossos, ou de ondas estreitas, juntas e teimosas, quando for o caso.

Há cegos que distinguem a cor dos cavalos, por certas particularidades no pelo dos bichos. Entre as galinhas, as de voz, digamos, mais infantil, mais aguda, têm toda a probabilidade de serem brancas, da raça Legorne. O canto dos canários belgas também denuncia a cor da plumagem.

Assim vai o cego, tirando, do mundo a seu alcance, os dados com que interpreta e constrói o mundo da visão.

Comentadores de cegos há que se referem a comparações das cores com timbres, notas musicais ou estados d'alma. Não posso dar meu testemunho, porque a opacidade das minhas córneas ainda nos permite fazer uma ideia das cores, fixando-as a meio palmo. Os depoimentos que hei recolhido entre os portadores de cegueira absoluta, de nascença, não me autorizam a endossar nenhum de tais conceitos. Não sou melhor investigador que aqueles comentadores, mas, comigo, os cegos se abrem sem recalques, com a franqueza e o destemor de quem fala a um irmão de sorte. Entre os lidos, ou os vividos, há, sim, uma noção de estética que lhes permite saber a significação social de certas cores, e a situação provável em que se encontram. Sabem que os homens não são azuis, que os cães não são verdes e que o vermelho não é tristeza. Mas não dão mostra honesta de fazerem nenhuma ideia desta ou daquela cor... Vê-se mesmo que nenhuma lhes fere, em particular a sensibilidade.

Especialmente as mulheres, procuram trajar-se como melhor lhes indicam as pessoas de sua confiança. Gostam de se verem lisonjeadas na cor dos vestidos, mas a cor, em si mesma, não as interessa em nada.

Os rapazes sabem que o azul marinho lhes dá um tom de seriedade, o preto de severidade e o claro de jovialidade, e guiam-se por esses conceitos na escolha das cores do que vestem. Isso mesmo, só os mais evoluídos. Não raro, o desinteresse pelas cores e o trajo gera, entre os cegos, aparências deploráveis.

A cor lembra-me um comentário sobre a escolha do padrão do tecido, por igual irreconhecível pelo tato. Vou fazê-lo, mesmo fora de ponto, para não perdê-lo, como tantos outros que me ocorrem longe da máquina de escrever. Quando me acontecia estar sem pessoa da minha confiança para a escolha do padrão de uma roupa a fazer, tomava os livros de amostra, pondo em votação os retalhos, depois de esclarecer, com palavras, as minhas preferências. Acontecia-me assim trajar-me com ternos bem louvados. Adotei esse expediente na pintura e decoração da minha casa, elogiada depois sinceramente por quantos a visitaram. Meu expediente é o de muitos cegos.

Andar sem guia nos grandes centros, é outra coisa com que os cegos embasbacam muita gente, gerando também uma certa mística em torno deles.

Supõem-nos capazes de contar passos sem fim, de calcular distâncias enormes, de controlar postes de bonde, estações de trem; ou então, não supõem nada, atribuindo tudo a um poder sobrenatural.

Não tanto ao mar, nem tanto à terra. Há, é certo, na locomoção sem guia, um dos maiores esforços de adaptação realizados pelos cegos, uma das maiores vitórias sobre o complexo de inferioridade. Para fazê-lo, tem o cego de arrepanhar todas as suas energias, num jugo supremo de todo o seu alvoroço interior.

Uma vez adaptado, lá vai ele, como se nada fosse, marcado entre a multidão por seu aspecto singular, vitorioso anônimo, como os que mais o são. Quem sabe porém o que lhe vai de depressão nos nervos e no espírito?...

O tato aflora-lhe a pele, aguçado, vigilante, em todas as direções. Através da sola do sapato, percebe a natureza do solo em que pisa: chão batido, areia fofa, paralelepípedo, pedra bruta, asfalto, cerâmica, tacos, soalho, soalho em concreto, com porão, capachos, tapetes, passadeiras e até mosaico; nada lhe escapa. O declive da sarjeta denuncia a subida para a calçada; o sulco do trilho, marca a direção no meio da rua; uma grade no chão, um ralo de esgoto; a vizinhança disso ou daquilo. As costas da mão de raspão numa parede, as almofadas do ombro deslizando num poste, a manga do paletó roçando num vestido, tudo o tato, difuso, pronto, determina fornecendo elementos à orientação. As têmporas lá estão sentindo a aproximação dos obstáculos, na variação da corrente de ar, no reflexo dos sons em torno, até do som dos próprios passos. Intervém aí o ouvido, com a participação que todos sabem. Anda em tudo uma aplicação constante da inteligência, na interpretação dos escassos dados dos sentidos pobres e de pouco alcance.

A terra grossa, de súbito encontrada sob os pés, numa rua limpa, avisa da possibilidade de buraco próximo. A tábua encontrada solta, num tropeção, no meio da calçada, sugere a existência de um cimento fresco que não deve se pisar. O ruído da lamparina de soldador ou do martelo na talhadeira do pedreiro, levanta logo a hipótese de caminho atrapalhado. O barulho da pá, de raspão no cimento, ensurdecido num corpo fofo, previne o trambolhão no monte de areia em descarga. O grito de comando rude, da garganta do carregador, espremido pela força, acautela contra móveis ou caixotes que saem de um caminhão . O guiso muar, a ferradura batendo no calçamento, a intervalos, no mesmo local, alerta para a presença de carroça ou animal de carga parados. O cheiro da tinta de óleo fresca desperta cuidados para não sujar a roupa.

Assim vai o nosso transeunte, de olhos fechados para a luz, mas de narinas, tato e ouvidos abertos para tudo, de inteligência alerta, pronta a interpretar e a coordenar os dados dos sentidos, formulando hipóteses na defesa do seu dono. Nos passos, tem a memória das distâncias, mas não os traz contados como muita gente pensa. Ligeiros acidentes do caminho, percebidos como já indicamos, o ar que lhe bate no rosto, vindo de uma esquina, o som das lojas por que passa, o cheiro das frutas nas portas, dos doces, da fazenda nova, do café moído, da carne fresca, dos cereais seus conhecidos, guiam-no com a segurança que a todos extasia.

Saio de minha casa, ganho a calçada, dobro à direita, ando um pouquinho e logo viro para atravessar reto a rua. Vou seguro, sem hesitações, porque sei que me andam longe os postes e as árvores, e o silêncio já me disse que não vem veículo. Caminho rápido e confiante, até que sinto a depressão da sarjeta e estendo o pé firme para subir a calçada oposta. Já sei que encontro aí buracos feitos para árvores ainda não plantadas, e evito-os, procurando caminhar mais junto das casas, que distingo pelo ouvido, em função do barulho dos meus próprios passos. Não vou arrastando a mão pelas paredes, cioso de não dar muito a ver o meu defeito. Caminho lesto, a passos largos, acenando aos filhos que me gritam adeus da sacada. Vou firme, cuidadoso de não me raspar nos muros, nem me afastar muito para não descer, em falso, nos tais buracos. Ao fim da rua, já sei que me devo distanciar um pouco da parede, para fugir ao esbarro na jardineira externa de um edifício.

O cheiro do parati e das frituras, a batida da máquina registradora, avisam-me de que cheguei ao bar da esquina e devo virar para a avenida onde tomo o ônibus. A lufada fresca vinda do mar, confirma o aviso. Cruzo a avenida, em demanda dos ônibus no ponto final. O barulho de seus motores, carregando as baterias, indica-me onde eles estão. Esse mesmo ruído, na frente de cada um, indica-me aproximadamente a porta. Se não há motores em trabalho, já o ruído dos níqueis e das fichas na caixa de trocos, manipulados pelo motorista que os confere. Se ainda isso falha, há os passageiros que entram, já o cheiro da gasolina ou um pequenino detalhe para orientar-me.

Aboleto-me logo no banco atrás do chofer, o melhor para indagar o ponto de saltar, e, justamente, o menos procurado, portanto, o mais provável de estar vazio. Uma curva bem pronunciada para a direita, precedida de uma forte para a esquerda, diz-me que entrei na Avenida Pasteur. Deixo rodar um pouquinho, e peço ao motorista que pare no ponto próximo ao Instituto Benjamin Constant. Aliás, com muita atenção, consigo distinguir precisamente o ponto sem perguntar, porque ele é o primeiro, depois da travessia de uma rua larga, o que sinto pelo ouvido, em contraste com o eco que o ônibus vai fazendo nos edifícios e bangalôs altos.

Salto do carro para a calçada, deixo-o passar, e espero o silêncio da avenida para cruzá-la. Faço a travessia, aí não muito bem: a avenida é larga, e o pavor de um auto silencioso, em grande velocidade, traz-me sobressaltado. É travessia das que faço com grande esforço sobre mim mesmo. Vou de nervos tesos, vencendo a indecisão e sufocando o receio. Vou direito a um refúgio, além do centro da avenida.

Encontrado, acabo de atravessar mais calmo, porque a faixa restante é só de bondes e outros veículos pesados, mais audíveis à distância. Chegado à calçada do Instituto, tenho uma sensação de euforia. Nem todos os cegos são assim nervosos: a julgar por suas confissões, há os menos nervosos, menos preocupados, mais fatalistas.

Viajando da cidade, e de bonde, eu e os outros conhecemos bem quando chega o Instituto. O ruído da distribuidora de força da Light indica-nos a chegada ao Mourisco. Esperamos então as três curvas orientadoras: uma para a direita, rua da Passagem; outra para a esquerda, Rua General Severiano; outra para a direita, Avenida Pasteur. Se as perdermos da mente, o quase infalível bater da chave no trilho denuncia a da esquerda; o som oco do bonde, passando por sobre uma galeria, indica a da Av. Pasteur.

Quantos e quantos estudantes da Praia Vermelha passaram por cima dessa galeria anos a fio, duas e mais vezes, por dia, sem dela se aperceberem.

É assim que o cego contorna suas dificuldades. É assim que ele consegue tirar partido dessa vida, onde se pensa que tudo é luz e sombra: não há nenhum poder sobrenatural, nenhuma obra e graça maior do que a de que goza toda gente . O que há é que, no seu presídio, como o detento que faz milagre de canivete e chifre, o cego descobre essas galerias invisíveis para os que têm a ventura de ver bem.

O cego arranja-se, bem melhor do que se pensa, para compreender as pessoas que o rodeiam.

Não vendo o rosto nem os gestos de quem lhe fala, apercebe-se, contudo, facilmente, da atitude adotada para com ele. Mais que isso: percebe a lealdade ou a mentira de que lhe falam, a firmeza de convicção ou a inconsistência do que lhe dizem.

No livro "Blinds in School and Society", conta-se que um cego, acompanhando o pai que comprava passas, ouviu o caixeiro, interrogado, garantir que as passas não tinham semente. À saída da loja, disse o filho: "Papai, o senhor foi enganado: esse homem mentiu; vi pela voz dele: essas passas têm sementes". ― "Mas, meu filho, o caixeiro é um homem velho, de cabelos brancos". Quem comeu o bolo feito com as tais passas, viu-se a toda hora, atrapalhado para não engolir sementes.

Só quem tenha vivido sem os olhos, sabe que elemento precioso é a voz para a penetração da personalidade alheia. Nas nossas relações com os outros, depositamos confiança ou suspeitamos pela voz, como toda gente faz pela cara. Também temos as nossas simpatias e antipatias ao primeiro encontro, como as do leitor à primeira vista.

O que nos guia não é a voz rouca ou limpa, surda ou timbrada, rachada ou cristalina, bonita ou feia, forte ou fraca, agradável ou desagradável ao ouvido. Não: é um "que" indescritível que vem com a voz, um pouco do acento, da entonação, da maneira de falar, que sei eu?...

A voz do ex-Presidente Vargas, por exemplo, nenhum cego diz que é cristalina. Alguns não a acharão mesmo bonita. Tem um leve aperto gutural. Certa esquisitice , marcante, não é cem por cento cheia e falta-lhe muito para ser das mais timbradas.

Quando o ex-Presidente conversa, porém, numa entrevista, sai-lhe, por ela, um acento de entonação que denuncia o ponderado do que afirma e o interesse de suas indagações. Se fala, despreocupado, sente-se-lhe, na voz, seu sorriso proverbial, que assim não escapa também aos cegos. Se discursa, a voz se lhe quebranta numa expressão dolente, de quem sente realmente aquilo que está dizendo.

Sua voz, de escala média, tendendo para aguda, não revela, por si mesma, a bravura, que o ex-Presidente tem mostrado em certos momentos de sua vida. Mas, o modo como lhe batem na boca certas palavras explosivas, o ritmo precipitado de certos passos de suas frases, o tom profundo que assume, por vezes, sua voz, como que extraída bem dentro do peito, denunciam bem o homem audacioso que ele é.

Mme. Curie, que ainda tive o prazer de ouvir em conferência na nossa então Escola Politécnica, tinha a voz grossa, como de homem, num índice perfeito de sua masculinidade como cientista.

O nosso saudoso matemático Amoroso Costa tinha, na voz e na maneira de falar, a concentração e o repouso característico de sua atitude mental.

Ilca Labarte ― a Tia Lúcia ― tem bem a voz da mulher que gosta de trabalhar como homem.

Os traços belos e harmoniosos, bem como a expressão dominadora de Rosalina Coelho Lisboa, revelam-se na sua voz cristalina e cheia, como na sua maneira altiva de falar.

Não se pode dizer que fosse bonita a voz do Prof. Jônathas Serrano; mas servia a um falar suave e repousante, exprimindo a sua bondade interior.

O Professor Roquette-Pinto ― voz timbrada, cheia e grave, com um rachado uniforme, próprio do homem "homem", ― tem, no falar, uma pausa e mesmo uma certa hesitação e reveladoras do pensador que mede muito o que diz.

Os diferentes estados da alma, o sentimento com que nos dizem as coisas, a intenção com que nos dirigem a palavra, tudo percebemos pela voz, mais ou menos como se tivéssemos os olhos. Como, não consigo bem explicar, na minha pobre língua de escrevinhador. O fato é que tal fenômeno se passa em muito maior escala do que o pode supor muita gente. Não apenas pela voz, insisto, mas pela maneira de falar também.

A voz, bem se poderia dizer que é a fisionomia sonora do indivíduo. Pierre Villey ― esclarecido comentador dos problemas da cegueira ― chamou-a "de fononomia".

Ela é, na realidade, isso que disse Graça Aranha no "Canaan": "A voz é a revelação da personalidade íntima. Por ela, que traduz a música do cérebro, percebem-se as qualidades secretas de cada espírito, conhece-se a nobreza ou a grosseria da raça ou do grupo social a que pertencemos".

E o cego não tem só esse instrumento precioso para compreender aqueles com quem entra em contato. Tem, também o "aperto de mão", cheio, quente, forte, abrangente, efusivo e prolongado, ou minguado, frio, fraco, escasso, indiferente e rápido.

Quando menino, uma professora apertou-me a mão só pelos dedos, numa despedida. Ganhei-lhe uma antipatia que nunca mais perdi. Talvez tivesse ela a mão ocupada nessa ocasião. Mas, se soubesse um bocadinho de psicologia dos cegos, teria desocupado a mão, para não perder a simpatia do seu aluno, que nunca mais aprendeu nada com ela.

Não são raros os cegos que conhecem os amigos pelo simples aperto de mão. Se mais não são, é que os amigos, querendo ver se são reconhecidos, já dão a mão a apertar, possuídos dessa atitude especulativa que impede a espontaneidade do gesto, e, portanto, a verdadeira revelação da individualidade.

Há mais ainda: na própria maneira como nos dão ou recebem, das nossas mãos, as coisas, há um traço característico.

Há, enfim, várias expressões do indivíduo, além das puramente visuais: o cheiro próprio do suor, o ritmo, o peso ou a leveza dos passos, o cigarro, o perfume, o ruído da respiração, o limpar da garganta, o fungar, em suma, mil pequeninas coisas de que os cegos se sabem valer.

Lembra-me o caso de um cego, que maravilhava o dono de uma grande casa comercial do Rio, ao qual reconhecia, sempre que este lhe chegava perto, de cara a cara, sem falar nem lhe tocar. "Mas como é que você me conhece?", indagava o comerciante. O cego embatucava, despistava, porque não era de bom-tom explicar a verdade ao amigo. Explicou-me a mim, depois, que conhecia o homem pelo hálito, que era horroroso.

Creio ainda de interesse para o leitor, sejam apontados aqui pequeninos recursos de que os cegos se valem para superar as dificuldades, a cada passo surgidas para eles na vida prática.

Quando guiados, os cegos preferem orientar-se pelo guia, e não serem por estes orientados. Quero dizer: eles gostam mais de pegar no braço do acompanhante, e não que o acompanhante os segure para levá-los na frente.

A explicação é simples: com a mão pousada no braço do guia, percebemos os movimentos que ele faz, seguindo melhor o caminho sem grandes hesitações. Mesmo para entrar nos veículos, gostamos que o guia entre na nossa frente. Custamos a obtê-lo, porque em geral, o acompanhante, por si e pelos que o observam, não acha certo deixar-nos atrás. Entretanto, como isso nos é bem melhor!.. Entrando na frente, ficamos desorientados, sem achar prontamente o assento, à espera que o guia, atrás, empurre-nos para ele. Do modo que preferimos, seguimos a companhia naturalmente, com a mão levemente pousada nela, e encontramos, sem vacilação, o lugar que ela nos indica.

Viajando sós, de bonde ou de trem, acertamos, muita vez, o momento em que temos de atender ao condutor, pelos movimentos que sentimos nas pessoas coladas ao nosso corpo, nesses veículos, quase sempre tão apinhados.

Por igual, no bonde, sabemos quando encolher as pernas para dar passagem a alguém que sai, se esse alguém se levantou do nosso lado. Sentimo-lo voltar à posição no banco. Já sabemos que, na primeira parada, lhe devemos dar passagem. Tem-me sucedido saber isto, mesmo quando a pessoa não se levanta bem do meu lado, pela simples variação no assento ou nas costas do banco, determinada pela ausência do peso da pessoa.

Há cegos que acendem o cigarro, juntando o fósforo com ele, cabeça no mesmo nível da ponta, e riscando o conjunto na caixa. Logo que surge, a chama do fósforo acende o cigarro junto. Os cegos não se valem muito deste expediente , para não se mostrarem diferentes de público. Mas olhem que a descoberta é boa, mesmo para qualquer fumante acender seu cigarro no vento.

Algumas cegas arranjam-se bem na cozinha, em coisas ligeiras: conhecem o arroz quando está secando pelo som característico da fervura, ou pela densidade que encontram com a colher. Conhecem quando a carne assando precisa de água, pelo cheiro especial que ela tem. Mexem bem o mingau e sabem quando é tempo de apagar-lhe o fogo, pela resistência que a colher está encontrando nele. Descascam batata, desfiam vagem, picam carne, lavam e enxugam louça e talheres. Tenho segura notícia de que uma que até engoma terno branco.

Discar telefone, é coisa com que os cegos deixam muita gente boquiaberta; entretanto, os cegos desembaraçados fazem-no com a rapidez de qualquer pessoa. Os mais espertos não contam os orifícios do disco um por um: assentam-lhes os dedos em cima, de modo que contam três ou quatro de cada vez, para achar o número desejado. Se o algarismo que querem é de cinco para cima, encontram-no contando do zero para baixo. Além disso, enquanto o disco largado volta à posição de repouso, eles contam os orifícios do disco um por um: assentam-lhes os dedos em cima, de cima, de modo que contam três ou quatro de cada vez, para achar o número desejado. Se o algarismo que querem é de cinco para cima, encontram-no contando do zero para baixo. Além disso, enquanto o disco largado volta a posição de repouso, eles contam os orifícios que lhes passam sob os dedos, acompanhando jeitosamente o que desejam sem interromper a marcha da roda. Assim, mal o disco pára, é novamente puxado, sem nenhuma perda de tempo.

Tudo depende, é claro, da reserva de capacidade e de energia que o cego traga em si.


Um pouco do meu diário

Nada melhor que o relato dos meus atos, cogitações e pensamentos diários, para o leitor surpreender meus sentimentos, tendências e paixões nalguma subtiliza que eu não tenha sabido mostrar. Não tenho diário organizado, contarei aqui alguns dos dias que estou vivendo, para compor este capítulo.

Não fotografarei dias seguidos, porque me faltará o tempo.


24 de março de 1944.
Levantei-me, como de meu costume atual, entre 6 e 7.

Refeição matinal, cuidados com os meninos, providências domésticas banais, à falta de uma boa empregada. Fui levar Nicinha para vacinar. Nícia tem 20 meses e está comigo. Prometi à mãe, fora para repouso, que a vacinaria. Levei-a bem cedo. No ônibus, passei-lhe a mão nos pés e vi que lhe faltava um sapato. Fiz o empregado procurá-lo e não estava junto de nós. Saltamos e voltei a pé as duas quadras já rodadas. Vim logo amargurado pela ideia de que a mãe acharia que o sapato se perdeu porque eu sou cego. O empregado encontrou o perdido. Na sala de vacinação a enfermeira quis tomar a criança no colo para que a outra a vacinasse. Eu não quis: segurei eu próprio o neném, como percebi que faziam as mães das crianças a vacinar. Pareceu-me que a prestimosa enfermeira entendia que eu não era capaz de segurar a criança. Quis mostrar-lhe que era.

Escrevendo, agora, estou que não: a moça poderia estar sendo amável comigo, porque eu era o único homem ali com criança. Nós outros, os cegos temos sempre muito tensa a ideia da sub-estima das nossas possibilidades.

Chegando em casa, eram quase dez horas, telefonou-me um amigo de São Paulo, de passagem no Rio, estudante de medicina, oferecendo-se para diligências em horas disponíveis. Aceitei. Precisava ir a Divisão do Pessoal do Ministério da Educação e tinha um entendimento com o secretário de um Ministro. Não gosto de ir a esses lugares com o meu empregado ― menino de 14 anos ― que dá sempre a ideia do "guia do cego", sem compostura para a austeridade dos gabinetes. Pode ser complexo meu, mas eu não o venço; e nisso tenho grande obstáculo à minha atuação.

Encontrei-me com o amigo, fiz o projetado e voltei só, para a repartição. De ônibus não conheço bem quando chega, procuro aprender por conta própria e erro de vez em quando. Parei um ponto adiante. Grande massada: a Avenida Pasteur é larga e desorienta-me ao caminhar por ela. Não adianta procurar as calçadas laterais, porque não há paredes próximas para orientar-me pelo ouvido. Os edifícios ficam retirados. Costumo andar ali pelos refúgios do meio. Encontrei muita areia sob os pés em determinado lugar e desconfiei de buraco. Pus-me a dar passos receosos, muito lentos, tateando com a ponta dos pés antes de assentá-los no chão. Fui assim uns vinte passos até sentir o chão limpo. De vez em quando, perdia a direção e descia o meio fio para a rua sem querer. Retomava o refúgio e lá me ia. Só me desviava de árvores e postes quando muito juntos deles, pois só assim os percebo. Pelo barulho de um bonde que parou, localizei o poste que serve ao Instituto. Com isso, encontrei a escadaria e subi, fatigado pelo esforço da travessia.

Aí estive, por duas horas, tomando providências de minha função e saí às pressas para esperar uma amigo que chegava de Poços, depois de combinar encontro com meu irmão que me acompanharia ao aeroporto. Desencontrei-me do mano, e fui ao avião descontente, por ter que me apresentar ao amigo com o garoto guia. Disse ao empregadinho que me deixasse à saída da roleta e fosse esperar lá fora, só se aproximando quando o amigo tomasse o carro. Não precisei da cena, pois o amigo não chegou.

Achei depois o mano no ponto combinado. Acompanhei-o a uma caixa de empréstimo para ajudá-lo a tratar de um negócio ele foi comigo a uma companhia de transporte para eu reclamar um aparelho que fiz fabricar e chegou estilhaçado em São Paulo.

Dali rumamos para a Polícia Municipal, onde fomos tratar de interesses dele. Tinha-se ido o dia e ele me deixou no ônibus que me traria à casa.

Entrei no veículo, como de costume, balançando os braços ligeiramente, ao longo do corpo, procurando roçá-los de leve nos ombros das pessoas sentadas, no esforço de descobrir um lugar. Achei-o, sentei-me, mas estava estreito. Ou o passageiro esparramava-se muito, em desconsideração comigo, ou era gordo a valer. Da conjetura, passei logo à inspeção. Cheguei-lhe o cotovelo disfarçadamente num movimento como se me quisesse ajeitar no banco, e percebi um braço bem volumoso e flácido. Não me ficou dúvida; gordura tanta e tão balofa era de mulher. Para confirmação, recorri a outro meu estratagema. Deixei cair sorrateiramente a mão no espaço de banco que nos separava, à cata do vestido espalhado ali. Não achando, refiz a primeira prova e os resultados, os mesmos. O vestido devia ter ficado bem junto à dona.

Veio-me à mente uma Olga mulata, muito gorda da minha vizinhança de adolescente e passei a imaginar que a mulher devia falar como a Olga. Na Carioca, levantou-se para sair. As saias roçando-me pelas calças, confirmaram a experiência do cotovelo.

Cheguei-me logo para o canto, embora não me agrade muito sentar-me em lugar aquecido pelos outros. Faço, porém, sempre assim, para não dar asa a que um passageiro, querendo tomar o lugar deixado, peça-me licença com gestos que eu não perceba e continue sem lhe dar passagem com as pernas.

Cheguei em casa, tive que repreender uma travessura de meu filho. Não obtenho grande cousa dele com as admoestações que lhe faço. Ele é difícil de corrigir, mas eu emprego meios tão suasórios, apelo tantos recursos psicológicos, que estou convencido ser a minha falta de expressão fisionômica, a minha ausência de gestos próprios quando lhe falo, que fazem com que ele não me leve muito a sério. Isso me amargura.

Ouvi a "Hora do Brasil" para me por ao corrente dos fatos, pois não trabalhei com a secretária para ler jornal, e aqui estou batendo essas notas na máquina, já na quietude da noite.


Oito dias depois.

Vamos ao dia de hoje, já que estou com tempo e calma para contá-lo. É vazio, este, quase sem utilidade para mim e para os outros, mas não hei de só contar dias cheios e proveitosos. Pode bem que num desses esteja justamente o interesse dos desejosos de analisar a vida de quem não vê.

Recebi um convite para um banho de mar. Convite amável, tentador. Relutei: a pessoa amiga iria exibir-se com um cego em traje de banho. Na rua, acompanhando-me, depois da praia. Sinto precisão de sol e banhos de mar; contudo, vou adiando sempre o início da temporada. Na praia, não tendo quem esteja sempre junto a mim, ensinando-me retouços ou fiscalizando meus exercícios para não me bater nos outros, fico desamanhado.

Ainda hoje me persegue a dificuldade de fazer relações. Aqui na Urca, quase só senhoras e mocinhas alunas. Não posso valer-me delas e meus banhos vão sendo protelados. Lá um ou outro improvisado.

Assim de corpo e alma lavados, mais a alma que o corpo, entrei na repartição com boa reserva de humor para aturar os embates da minha função. Estamos forçando a abertura dos cursos do Instituto, fechados há seis anos. A máquina está enferrujada e tudo são dificuldades para pô-la a andar. Aborrece-me demais a morosidade dos serviços. Tudo é explicação para o "deixar para amanhã". Quem porém sente ao vivo, como eu, o quanto a falta da vista precisa do socorro da educação, mofina-se com passo ronceiro das coisas públicas. Entendo que se deve ali sobrepor a educação a tudo, mas lá vem a burocracia, a contemplação com o funcionário idoso, os salamaleques, com a senhora empoada e protegida dos superiores, e a solapa solerte dos invejosos covardões. Quase tudo ficou para amanhã... Doeu-me muito... Os cegos do brasil que esperem. Doeu-me muito o dia de hoje na repartição.

Temos lá u^m menino que pedi para internar antes dos outros, para abrir com ele o caminho, traçar o currículo, adestrar os inspetores e deixar tudo a ponto de receber a primeira leva de cegos na escola que a lei recente determina que seja o padrão para educação de cegos e amblíopes. Conversei com ele, como faço sempre, e abandonei a conversa comovido com a inteligência revelada numa resposta. Tão vivo, e cego como eu...

Dez anos... A vida chegando para ele, chegando cada vez mais, enorme, misteriosa, segurando a taça grande, de grandes amarguras, dia a dia mais perto, mais perto dos lábios dele. E ali dentro, pouca gente disposta a sacrificar-se para adoçar a taça. Alguns querendo fazer, mas não sabendo como. Ele cego, e a taça vem chegando. O Governo mandou para ele umas inspetoras mocinhas, recrutadas em provas de seleção de Aritmética e português. Ele precisa, para guiá-lo, de gente bem batida pela vida, bem cheia de experiência de desprendimento impossíveis de medir tais provas.

Quando as mocinhas estavam para vir, há quase um ano, eu disse ao Diretor que elas não serviam. O Diretor não pode dizer o mesmo aos seus superiores e elas vieram com a alegação de que não havia ainda meninos a cuidar. Deram boas auxiliares de escritório. Tal foi a minha franqueza no explicar-lhes o quanto as crianças cegas esperavam de seus inspetores, que algumas se convenceram de que não serviam.

Agora, porém o menino veio. Querem que elas comecem a ser inspetoras provisoriamente. "Não e não"; declarei ao Sr. Diretor. "O senhor tem uma função para me destituir dela se não concordar comigo. Mas depois de tanto tempo parados, precisamos começar direitos. Nada de provisório. Vou sustentar diante do Ministro que os inspetores são a alma da educação dos cegos no internato. Devem ser de nossa confiança".

Saí da repartição abatido. No ônibus, fui em pé e ninguém me deu lugar. Gostei bem; consideraram-me um homem como os outros a quem ninguém dá lugar em ônibus. Procurava manter atitude normal, movendo, vez em quando, a cabeça, como se estivesse vendo, para não inspirar pena. Ninguém se levantou para mim. Fui assim até o Mourisco, gostando bem. Vagou-se então um banco ao lado, e eu sentei-me.

Encontrei com meu irmão para ir entregar umas certidões no Ministério da Educação. Uma fila comprida a mais não acabar. Mal tomamos o lugar, um funcionário falou alto para meu irmão: "Ele é cego? Então não precisa ficar na fila. É ordem do chefe. Pode ir entregar". Quis protestar, quis dizer que eu era um homem como os que ali estavam, que a falta de vista não era nas pernas e eu podia esperar como os outros. Qual! não me entenderiam, "Cego mal agradecido ". Os outros querem o bem dele e ele e ele não quer". Isso é o que iriam dizer os próprios prejudicados da fila. Lá me fui, passei à frente de todos, bastante constrangido. Não ouvi nenhum murmúrio de zanga. O carioca é mesmo um povo bom de verdade: não sabe é como valer os cegos. Nada mais natural. Ele não conhecia esses depoimentos Da fila fui a umas compras e delas para o Ministério da Guerra tratar do certificado militar.

Já ando ali há dias. Encontrei um tenente bondoso que me tem orientado em tudo. Isso, aceito sem repulsa. Ele me instrui e ensina meu irmão onde temos que ir. Isso sim, não prejudica os outros e é cousa que se faz a muita gente.

- "Colega, veja aqui o caso do nosso "ceguinho".

Ainda me choco com esse "ceguinho". Há trinta e cinco anos que o escuto e não me habituo. O Tenente era bem intencionado, não fazia por mal. O Tenente é um bom. Não é carioca, é nortista. É brasileiro, basta. Todo brasileiro é bom para os cegos. Todo mundo é. Quase ninguém sabe, é como remediar o mal, o grande mal da cegueira.

Do quartel, fui esperar uma amiga, boa amiguinha com quem tinha um encontro marcado: saltaria de um ônibus. Ficaria no ponto à espera. Já estava com o empregado e não me deixei ficar agarrado ao braço dele, enquanto esperava. Dava passos, movimentava-me, mãos, ora atrás, ora na frente cruzadas. Queria que a minha amiga não me achasse muito diferente dos outros. Não queria despertar-lhe piedade.

Quando espero por alguém, na rua, especialmente, tenho sempre cuidado com as minhas atitudes: não me deixo ficar como estátua. A amiga demorou. Enquanto não vinha, mandei o empregado a uma volta sem necessidade, apenas para não estar com o "guia de cegos", quando a amiga chegasse. Só, afetando atitudes que me pareciam mais normais, ora andando, ora parado, encarava, num meio riso, os carros que chegavam. Pelo som, distinguia os da linha que a traria. Pela luz de que disponho, perceberia um vulto bem perto, e o perfume dela completaria a presença. Então, abriria num riso mais franco, recebendo-a antes que me tomasse as mãos imóveis, e me tirasse de uma atitude de alheamento, como me sucede muita vez, para meu desgosto. O empregado, porém, voltou a tempo de destruir meu plano. A espera veio logo ― "Esperou muito?" ― "Não; não muito". Tinha esperado quase uma hora, mas era preciso não penalizá-la". "Vamos"? ― "Podemos ir? " Previamente instruído, o empregado afastou-se. Tinha outros afazeres e sabia onde encontrar-me depois.

Dei voltas com a minha amiga. Umas de meu interesse, outras do dela. Acompanhei-a ao seu ponto de ônibus, o mesmo ponto do meu. Ela tomou o seu. Já me conhece e sabe que eu gosto de agir como qualquer cavalheiro. Talvez preferisse ficar para indicar-me o ônibus, tão boa que é. É, porém, bastante sutil para sentir esses meus melindres. Arranjo com qualquer pessoa para indicar-me o carro.

Voltei de ônibus, até o encontro com o meu empregado. No caminho uma criança chorou muito pedindo colo. A mãe, de pé, explicava-lhe que não podia com ela. Não iam longe de mim. Pensei em levantar-me para que a senhora pudesse satisfazer o filho, sentando-se no meu lugar. Chamaria a atenção dos passageiros sobre mim. Tanto homem devia ir sentado e nenhum se prontificava. Além disso, a senhora não aceitaria quando visse a minha falta de vista. Talvez que sim, posso não ter razão, mas é assim que penso e são esses os pesadelos que me atordoam. O choro do menino fazia-me dó. Puxei-o para mim, fiz menção de sentá-lo nas minhas pernas. Ele não quis por nada dessa vida.

Saltei onde me esperava o empregado, fiz umas compras para a casa e aqui estou escrevendo esse meu diário. Perdoem a mediocridade do meu dia.

Bem mais de um mês depois.
― Nada tenho escrito do livro. Na agitação em que me traz minha responsabilidade de Chefe da Seção de Educação do Instituto, falta-me a necessária concentração para escrever. Aliás, não venho produzindo esse trabalho de modo sistemático.

Só me sento para escrevê-lo, quando sinto a vontade compelida pelas idéias bem delineadas. Há quatro anos que iniciei as primeiras páginas dessa bagatela. Hoje pensei nela com insistência. Abandonei a chefia daquela Seção para não me submeter a imposições que desvirtuam a lei que o Governo deu ao Instituto dos Cegos.

Exonerado do Instituto, não deixei de pensar nos cegos: escrevi cedo um memorando em favor deles, para entregar na audiência que tinha marcada com o Dr. Simões Lopes. Aproveitei ter de sair acompanhado por pessoa apresentável, e consegui também fixar audiência com o Exmo. Sr. Ministro da Marinha.

O Almirante, compreensivo, como sempre, concedeu-me o aproveitamento de mais quatro cegos em seu Ministério ― na encadernação da Imprensa Naval. Aceitou também meu plano de uma oficina de vassouras, toda com operários cegos, para suprir as necessidades da marinha. Ficou de contornar-lhe as dificuldades. Aliás conversando com esse titular, sinto-me mais ou menos à vontade. A simplicidade com que me trata, patente tão alta, e tão destacada figura do Governo, ameniza de muito o meu complexo de inferioridade. Enquanto esperava, sentado, o Sr. Ministro, amassava no cérebro o que lhe queria dizer, ao mesmo passo que meus dedos se distraíam em examinar as extremidades do braço da cadeira. Percebi que era um bicho de boca aberta. Achei-lhe a língua recurvada, situada entre as duas presas. Achei-lhe muito liso o Côncavo do céu da boca, sem o relevo que apresenta a dos bichos ao natural. O focinho, pareceu-me largo demais. Aliás a falta de proporção nas miniaturas que examino, sempre me choca.

Achei os olhos do cachorro muito fundos e demais recuados na cabeça. Encontrei, por cima do focinho, umas rugas transversais que não houve interpretar. Não me vexei de interrogar minha acompanhante e aprendi que resultavam de estar o bicho a latir, com o nariz arregaçado. Chegou a hora de falar ao Ministro. Entrei no gabinete como sempre, cauteloso com a minha atitude, com os meus gestos, a minha compostura exterior. Minha acompanhante traquejadísssima comigo, fez me um sinal a tempo de eu estender a mão ao titular no momento próprio. Ganhei desembaraço. Ao sentar-me, contudo, não fui feliz no achar a poltrona que me era indicada. Quando achei, tive de forcejar contra mim para readquirir a confiança. Aliás, enquanto falei, minha atenção esteve presa no franzido do couro do braço da poltrona, embaixo dos meus dedos. Interromperam-nos para anunciar o chefe de uma missão naval, o Almirante deu instruções, enquanto eu fiquei à espera do momento próprio para continuar a exposição. Essa conjuntura é-me sempre muito difícil. O interlocutor volta-se para mim, olha-me com atenção, à espera de que eu continue, mas eu não percebo. É um martírio, uma angústia em que todos os sentidos se aguçam em guarda, na descoberta da oportunidade. Ou me adianto, ou me atraso, num desajustamento que não pode deixar de chocar àquele com quem falo. Não me fui mal dessa feita. O toque combinado com a minha acompanhante deu ótimo resultado.

Saídos do Ministério, tomamos um bonde, mas precisávamos saber onde saltar dele para tomar um segundo. Fui eu quem o indagou do condutor. Sempre que posso, timbro em tomar as iniciativas. Mesmo acompanhados, em extrema dependência, por lugares que não conhecem, os cegos fogem às tutelas. Daí o preferirem os meninos e as mulheres, aos rapazes e senhores.

Já na sala de audiência do Presidente do D.A.S.P., gostei de ouvir a descrição do ambiente, enquanto esperava: cortinas duplas, tapete cobrindo toda a vasta sala, outros sobrepostos no local dos grupos de móveis, a mesa grande para as reuniões em recinto ao lado, poltronas afastadas da mesa de audiência. Fiquei pensando na dificuldade da limpeza de tantos tapetes, de envolta com o que pediria ao Presidente para os cegos do Brasil.

Chegando a minha, sentei-me diante do Dr. Simões, depois de lhe apertar a mão. Trazia, na pasta, datilografados, uns lembretes para o que ia tratar, e dei-os a ler à minha acompanhante, funcionando aí como secretária. Podia tê-los escrito em braille, mas preferi exibir o luxo de uma secretária, a dar ao Presidente e aos circunstantes o espetáculo de ler com os dedos. Faço sempre por onde ser, quanto possível, o menos diferente dos outros, menos por vaidade que por obter que me compreendam, esquecendo-se da minha diferença dos outros homens.

Dali fui ao "Diário de Notícias" pedir a publicação da carta com que me exonerei de minhas funções de Chefe de Seção no Instituto. Assim, agi, para forçar o diretor a atender-me nesse pedido.

De volta para casa, depois de tanta lida, passei por um vexame, desses que tanto acabrunham a vida de quem não vê. No auto-lotação que devia tomar, só havia um lugar atrás e outro na frente. Cedi o de trás à minha acompanhante e procurei o da frente, mas eu não encontrava a porta para abrir e entrar junto ao motorista. Desorientei-me e fui apalpando o carro até o radiador, sem perceber que o fazia, tão esgotado já ia pela luta do dia.

O chofer falou para fora: "Não, não. Ensina a ele, gente". Um dos da fila veio tomar-me pelo braço, e abrir-me a porta que eu penetrei completamente acabrunhado.

Trazia, do Almirante, a promessa de mais quatro empregos para cegos; do D.A.S.P., a decisão de que a utilização dos semi-cegos como cabineiros iria ser estudada com a Prefeitura, mas ia ali sentado no lotação, rodando para casa, achando-me mesquinho diante dos companheiros de viagem que me viram naquela mancada ao entrar no auto. Não tenho o espírito tão forte que reaja, de pronto, contra semelhantes sentimentos inferiores. Esqueço o abatimento, é certo, não porém sem reflexos deprimentes para as minhas atividades.


Quatro anos atrás
Vou recortar agora uma página das mais variadas de uma tentativa de diário que fiz em 1940.

Escrevo estas linhas à meia noite, para espairecer de um dia muito sobrecarregado. Talvez venham a servir para um livro que tenho em mente.

Às sete horas, comecei a ler, pelos olhos de uma das minhas secretárias, os pontos de um concurso que o D.A.S.P. me incumbiu de examinar no Instituto Benjamin Constant. Fiz assinar, por procuração, umas ordens de pagamento, fiz rever umas contas e li um capítulo da "Ciência de Viver", ainda aqui no gabinete em casa. Dei ordem ao motorista para reparar a saída de gasolina do tanque de um dos caminhões das feiras, e colocar uns remendos no telhado de lona da garagem, indicando-lhe, com as mãos, o que eu queria que se fizesse.

Saí à procura de um operário, para levantar uma cerca que o temporal derribou num dos quintais das casas de meu pai. Combinei o serviço, e autorizei a compra do material, depois de fazer medir, na minha frente, os mourões e os sarrafos necessários. Parece que nada adianta que a medida seja tomada na minha frente, mas o operário, novo a meu serviço, não tentará enganar-me, respeitando-me a presença. Por outro lado, junto dele, mesmo sem companhia, eu me dava conta do seu comportamento psicológico, da sinceridade com que ia dizendo a metragem, pela sua voz e por outros elementos.

Fui ao açougue, estudar, com o mecânico, a melhoria da câmara frigorífica de conservação de miúdos, projetei e modelei em folha o prolongamento de um tendal para a adaptação de uma balança e tomei providências de ordem administrativa.

Despachei um empregado para levar ao ferreiro a peça modelada, redigi uma carta em inglês, por determinação do meu diretor no Instituto, almocei, e desci à cidade, acompanhado da minha secretária.

Dei bordejo pelos protocolos onde tenho processos em andamento, fui ao meu estúdio de gravação verificar a natureza de um defeito no aparelho, chamei o mecânico e combinei o reparo.

Ainda fui ver o andamento da pintura de um caminhão, dirigindo-me em seguida, ao D.A.S.P., afim de corrigir provas de nível mental, a que cegos ontem foram submetidos sob minha orientação.

Fiz aí o que me cumpria, conversei sobre Psicologia de cegos, li com os dedos e datilografei, numa demonstração íntima aos funcionários da seção.

Fui ainda à Praia Vermelha, dar conta do ocorrido ao Diretor do Instituto, e voltei ao estúdio de gravação, para tomar conhecimento do que o técnico estava fazendo.

Não gostei do serviço, e fiz comprar um novo condensador para colocar.

Nesse meio tempo, tive que executar, eu próprio, uma gravação, porque a auxiliar do estúdio não sabia como operar com o aparelho defeituoso, para servir o cliente a contento. Enquanto estava nisto, o telefone chamava-me do açougue, pedindo-me instruções, e duas pessoas procuravam-me para conversar sobre negócios. Resolvi ainda umas bagatelas e saí para tomar chá com uma amiga.

Conversei sobre coisas elevadas, deliciei o espírito e refresquei os nervos. Recolhi-me a casa e ainda tive que telefonar a dois amigos, em cumprimento de deveres sociais.

Brinquei com o meu filho até ele ir dormir, e aqui estou, tamborilando no teclado desta máquina até agora.


Atividades de um cego

Laboratório de Línguas ― Correspondência Comercial ― A Carta Falada ― Importação ― Carnes Verdes.

Poderia ter levado este relato para o capítulo "Vidas Edificantes", mas o dono dessas atividades não consentiu: achou que a sua vida iria macular as outras. Respeitei-o. Ele tinha um dinheiro junto. Aperfeiçoara-se em Francês e em Inglês ouvindo discos, e concebeu o plano de ganhar dinheiro, facilitando aos outros o mesmo aperfeiçoamento. Instalaria uma organização no centro da cidade, onde qualquer pessoa, mediante módica contribuição, pudesse ouvir discos numa daquelas línguas. Pôs mãos à execução.

À testa de tudo, escolheu o local, comprou móveis, organizou propaganda, despachou na alfândega, tirou licença, tratou empregados e montou o Gabinete de Línguas num edifício moderno da Rua do Ouvidor. Milhares de páginas, obras completas, inteiramente gravadas em discos pelos melhores locutores do país da própria língua, ali estavam, com os respectivos textos, às ordens de qualquer pessoa.

O dinheiro que tinha mal deu para essa fundação e sua primeira publicidade. A máquina estava montada, mas era preciso manter-lhe acesas as luzes da propaganda.

O óleo para essa iluminação, passou o cego a tirá-lo do próprio cérebro. Entrou a produzir, para o rádio e a imprensa, uma seção com que pagava a publicidade do Gabinete. "Revistas em Revista", em "A Tarde" desta capital, e "No Mundo das Curiosidades" na "Mayrink Veiga", não apareciam com o seu nome, para renderem mais em anúncios. Todavia, eram todas colhidas pelos dedos nas melhores revistas estrangeiras que recebia transcritas para Braille, e, de seus dedos, escorriam, através da máquina de datilografia, para a redação e a difusora. Para isso, tinha de passar e repassar os dedos em muitas dezenas de páginas de papel furado, ― transcrições de "Je Sais Tout", "Paris Soir", "Les Anales", "Ilustration", "Manchester Guardian", "Evening Post", "Herald Tribune", "Reader's Digest" e outros. Ao cabo, dois centímetros de propaganda no jornal, e um texto às seis da tarde pelo rádio.

Os ouvintes que pingavam não davam para manter a máquina em movimento. O cego cabeçudo teimava. Queimava tempo, reservas de salário e de energia. Muita gente louvava-lhe a ideia, notáveis professores de língua escreveram pareceres lisonjeiros sobre o Gabinete, e por ali passavam candidatos à carreira diplomática e homens cultos, desejosos do aperfeiçoamento. Isso lhe aquecia a esperança em melhores dias.

Enquanto esperava, deu ao Gabinete mais uma finalidade. Confiava no êxito dos discos, e porfiava por não desmontar o mecanismo. O Gabinete dirigiu-se aos comerciantes do Rio, propondo-lhes fazer sua correspondência em língua estrangeira, mediante uma taxa por carta. Azeite, ferragens, frutas, eletricidade, borracha, tudo foi aos ouvidos do cego, pela boca de sua secretária, para que ele traduzisse e respondesse, conforme as indicações.

Mais trabalho, mais esforço... Melhor: mais lume para a sua esperança, mais derivativo para a sua privação. "Economia, sigilo, presteza e técnica", prometia ele na circular ao comércio. Para cumprir o prometido, - presteza e técnica - diligenciava com esmero e rapidez.

Os clientes que adquiriu não o deixaram; mas eram poucos. O negócio era novo e era dirigido por "um cego"; era natural que os comerciantes não confiassem, temendo pelo sigilo dos seus negócios. Mas o cego, esquecido dos limites em que os outros fecham as possibilidades de um homem que não vê, queria viver a vida como toda gente.

Os negócios iam mal. O cego conservava-se no reduto, assediado pela crise, principalmente porque nutria e tinha quem lhe nutrisse a esperança de que o Colégio Pedro II viesse a criar o laboratório de línguas para as suas classes. Vendo nisso possibilidade de negócios, resistia ao sítio das dificuldades financeiras. Intensificava a propaganda das vantagens dos discos nas aulas de línguas vivas. Dava entrevistas, imprimia folhetos, procurava o Ministério da Educação, e entrosava-se com pessoas influentes, no desejo de tirar partido da introdução dos discos no colégio secundário padrão.

"Se não se permite, a um colégio, ensinar química sem provetas, como se lhe consente que ensine línguas sem discos? O laboratório de línguas é uma necessidade tão grande para o ensino, como o de química e o de física". O negociante sem vista sustentava essa tese, nas salas do Ministério, nas mesas dos cafés e nos escritórios de amigos. Sustentava a seco, sem a ilustração da mímica, nem aos meneios da encenação. Talvez por isso, a tese não pegasse.

Nessa altura, concebeu uma vitrola portátil que facilitava a audição do disco na mesa do professor. Era um conjunto elétrico, num só bloco, com o alto-falante voltado para os alunos, e o disco, recebido por trás, exatamente ao alcance da mão do professor sentado.

Chamou-lhe o "Fonolíngua". Faltaram-lhe, de todo, os recursos para fabricar os primeiros aparelhos, mas não lhe faltou a coragem de apelar para um amigo. Carlos da Costa Pinto ― capitalista baiano ― generosidade sem alardes, fez-lhe um bom empréstimo, sem juros, nem caução nem prazo.

Ilustres membros do magistério público compreendiam o cego, alimentavam-lhe o entusiasmo e facilitaram-lhe as demonstrações dentro do Pedro II. O Fonolíngua foi assim exibido perante professores no colégio oficial e comprado por um ginásio de São Paulo e outro da Bahia.

Foi uma brasa ateando fogo à audácia inconsciente do cego trabalhador. Esquecido do dinheiro que já havia empatado até ali, inverteu novas somas na propaganda do aparelho, imprimindo folhetos que distribuiu aos ginásios do Brasil todo. Ficou esperando pelos resultados. Falavam-lhe na possibilidade de fornecer uns aparelhos e discos ao Ministério, chegavam-lhe cartas de colégios do interior interessados no aparelho e o destino traiçoeiro acenava-lhe com uma possibilidade daqui e outra dacolá, de modo que o cego, esperançoso, ia mantendo o gabinete à custa dos maiores sacrifícios. De quando em quando pingava um negociozinho, como para robustecer-lhe a fé nas ilusões que o traíam. Os negócios de maior vulto, preparados à custa de tanto esforço e reservas acumuladas, esperados para cobrir os débitos, esses não vinham.

E o cego conservava seu escritório aberto, à espera de melhores dias. Ia já muito sobrecarregado, mas sabia que tudo no começo era difícil.

Por outro lado, o escritório dava-lhe a ilusão de ser um "homem de negócios", punha-o em contato com muita gente de ação e trazia-o numa vida ativa de que lhe era penoso desfazer-se. Entabolara relações com um exportador de discos de língua americanos, tinha que fazer uma contra-oferta de preço para uns aparelhos não existentes no Brasil, esperava mais uma partida de discos a chegar de Paris, despachava na alfândega duas máquinas especializadas que importara para uma organização de cegos, estava em negociações com outras na Inglaterra, dirigia, enfim, o conserto de uma que tinha chegado toda quebrada, e discutia a indenização com a companhia de seguros. Nesse transe, não lhe era possível encerrar o escritório. A cabeça fervia-lhe de planos, e o coração, de esperanças. Um ex-aluno seu, hoje o amigo Antônio Carlos de Santa Cecília, contador próspero, acudia-o nas dificuldades financeiras.

Em agosto de 39, introduz, no Gabinete, a "carta falada". "Mande a seus entes queridos, a sua carta falada, com o som de sua própria voz", publicava o "Diário de Notícias". "Sua voz gravada para sempre, por 15 mil réis apenas", anunciava uma difusora. As árvores exibiam cartazes, e as ruas do centro andaram sujas de uns papeizinhos redondos, à maneira de discos ― prospectos de propaganda imaginados pelo cego.

Em dezembro seguinte, o Congresso Postal Internacional, reunido em Buenos Aires, recomendava essa modalidade de cartas aos correios de todo o mundo. Passou pela cabeça do cego ambicioso, ser ele o explorador dessas cartas no correio do Brasil. Passou pela cabeça e ficou em ideia fixa. Em pouco, estava ele em audiência com o Diretor-Geral dos Correios e Telégrafos, expondo o plano, detalhando a ideia e exibindo a planta da cabine que pretendia instalar na sucursal da Avenida Rio Branco. O Diretor foi franco, dizendo-lhe logo que o correio exploraria o serviço diretamente. O negociante sem vista, achando razoável a diretriz do chefe, deixou-lhe, nas mãos, todo o plano escrito e desenhado.

Ainda hoje, quem faz uma carta falada no correio da Avenida, serve-se de uma cabine planejada por um cego.

Mais uma ideia morta, substituída, quem sabe, por dez esperanças mais, visto como o trabalhador sem vista não fechava o escritório.

Depois, por motivos longos demais para serem aqui analisados, o cego atirado entrou a negociar com carnes verdes. De plano em plano, ideou e concretizou mais um negócio novo no Brasil.

Várias feiras livres do Rio, receberam umas caminhonetes refrigeradas, transportando vísceras de boi e aves abatidas, acondicionadas em caixetas e em celofane, para vender à população. A mercadoria encontrou freguesia fácil. Não é aqui o lugar de explicar por quê.

A Administração Municipal, porém, tudo dificultava, recusando, ao cego, as feiras mais rendosas. É que o cego teimoso era sozinho para tudo, até para parlamentar com os chefões da Prefeitura.

A tragédia era a mesma: não o levavam a sério. Qualquer ignorante com vista, que tivesse semelhante ideia tão proveitosa à saúde e ao bem-estar do povo, arranjaria logo todas as facilidades, ganhando rios de dinheiro. Não se pretende acusar aqui os administradores, mas, tão somente, respigar a desgraça de "não ver".

Não é preciso levar mais longe este capítulo, para que o autor fixe bem o que desejava expor. Basta que o leitor tenha tomado conhecimento de mais essas atividades de um cego como outro qualquer, e tenha ficado mais bem habilitado a dar-se conta das possibilidades de tantos brasileiros que aí andam sem os olhos. Se ele vier a saber que tais atividades foram minhas, não me queira mal pelo disfarce.

Antes, considere que muito pode lucrar o Brasil com o trabalho dos seus cegos, no dia em que estes forem recuperados para a vida, através de uma educação especializada.


Vidas Edificantes

Caixeiro Viajante ― Irmãos de Negócios ― Têmpera que se perdeu ― Líder Batalhador ― Lutador Impenitente ― Homem de Arte e Fibra ― Casal Feliz ― Intelectual às Direitas.

Só focalizaremos aqui casos típicos de brasileiros que, privados da vista desde cedo, não se deixaram abater pela má sorte.

Quando o respeito humano exigir, mudaremos o cenário e palco desses grandes atores da vida de quem não vê, para não ferir suscetibilidades. Mesmo disfarçados, porém, darão eles ao leitor uma amostra do que sentem e podem muitos brasileiros, mesmo sem os olhos. "Quem os conheceu, reconhecê-los-á".
 

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G. termina o curso num internato de cegos, situado bem longe do seu torrão natal. Vivera aí uns dez anos, passando, de adolescente a homem feito, nesse mundo pequenino, artificialmente feito para ele. Os seus, muito pobres, só os visitara duas ou três vezes, levado por uma professora carinhosa, cega também como ele. Inteligente, assimilara bem o que lhe davam a estudar, e teria assimilado a vida entre os que vêm, se lhe dessem a viver no internato.

De namoro em namoro, acabara por fixar a sua eleita entre as internadas. Namoros simples, platônicos, troca de bilhetes nas aulas em comum, uma cola sussurrada a medo, um verso lírico dito a meia voz, a esmo, como quem espairecia. Quando muito, um aperto de mão mais quente, nos saraus que tentava o diretor daquela casa, no esforço de fomentar a socialização das internadas. G. talvez não dançasse muito, policiado por sua inteligência que lhe aguçava a consciência de suas limitações.

Veio o fim do curso. Os colegas, na maioria, conformavam-se em ficar naquele mundo estreito, submetidos a regime de meninos. G., não. Tinha credenciais, bom curso, capacidade para esperar uma gratificaçãozinha mesmo por ali, como interno, mas não quis. Preferiu o mundo que todos viviam.

Tenta uma ida à sua cidade, e, mesmo da pobreza dos seus, faz a catapulta de onde se atira ao mundo. Sua força de vontade despertou confiança em alguém que lhe arranja um lugar de vendedor de produtos farmacêuticos. No seu trabalho, vai ele pelo Brasil a dentro, ora só, ora com guia, como as circunstâncias permitiam. Parece que não vai mal, porque a empresa não o dispensa. Já casado, com a moça que também libertara do internato, mantém um lar alegrado com um filho. Dos produtos, passa também a vender terrenos para uma companhia. Só ele poderia dizer o quanto de sacrifício e têmpera custou-lhe a vitória sobre a incredulidade dos clientes, sobre suas dificuldades em viajar e em fazer amigos ― chave do êxito do vendedor. Só ele poderia contar, ao vivo, a sua luta íntima para vencer-se a si mesmo, para adaptar-se ao mundo que o seduzia, luta tão grande que, parece, acabou por acabrunhá-lo.

Não que o soubéssemos nunca desesperado...Mas, vemos, na associação de cegos que criou no interior, uma ligeira retirada dessa vida no mundo grande a que se lançara. Na associação, trabalhou pelos companheiros, morrendo pobre e ignorado. Deixou este exemplo a mais, do que podem e precisam os cegos desta terra.

Eram dois irmãos, ambos cegos, de família onde a cegueira já era tradição. Os pais, de boa compreensão dos problemas dos filhos, mandaram-nos estudar no Rio. Os laços de família continuaram tecidos em cartas assíduas e em permanências em casa, todos os anos, pelas férias.

Curso feito, os rapazes não tiveram dúvida nem dificuldade em voltar ao lar paterno. Isso não acontecia aos que perdiam o contato com sua gente. Daí, foram até Belo Horizonte cavar a vida, sempre ligados aos de casa. Encontraram lá ambiente seu ― um colégio de cegos e antigos professores.

Na capital mineira, até numa fábrica de vassouras um deles esteve. Nada de êxito. Na escola de cegos, não havia colocações que dessem para mantê-los. Moços tenazes, não esmoreceram. Voltaram a casa paterna e continuam a lutar. Um deles, acaba por fundar um colégio; e o outro, com mais queda para comércio, enfronha-se no estabelecimento do pai, terminando por chefiá-lo.

Acostumado aos êxitos dos cegos da família, o pai vai amparando os filhos até que eles se equilibrem. Um é hoje diretor e professor respeitado, de colégio com bastante movimento; o outro, dono absoluto da casa comercial, na mesma posição do pai que, de há muito, lhe retirou sabiamente a tutela.

Os dois cegos de berço pobre, hoje chefes de família, ocupados como os que mais o são, constituem duas células vivas de importante cidade mineira.

Filho de emigrantes, fora para o internato ainda menino, e, para logo, entrara a perder o contato com a família. Gente humilde, toda voltada ao trabalho braçal, os pais tinham, no filho, um tropeço às suas obrigações de trabalhar para comer. O internato foi o alívio.

A julgar pelo que foi na escola, o menino não devia ser sossegadinho em casa. Era uma preocupação para os pais, quase sempre ausentes.

Aos sábados, ou não havia quem fosse buscar o pequenino, ou faltava o dinheiro da passagem. Saíam tarde do trabalho, e o colégio ficava longe ― muito dinheiro de passagem. Havia saudades do filho cego, mas havia que matar a fome aos de casa, que iriam esperar muito pelo jantar. O outro estava bem, diziam que lá era muito bom, e ele não se queixava. Os de casa estavam sem roupa, sem caderno para o colégio e andavam tossindo MUITO. Guardariam o dinheiro da passagem para eles. Iriam buscar o cego no mês que vem. A saudade ia passando; no outro mês, não iam. O cego ia ficando.

Vivo muito inteligente, cedo se marcou, entre os colegas, pelos estudos, mas também se distinguiu pelas explosões dos recalques muito fortes.

Um dia tirou as páginas todas de um livro. "Menino perverso, foi ficar dois dias de castigo", pontificava o inspetor, ignorante em psicologia, funcionário público, copeiro do colégio, por muito antigo promovido à vaga de inspetor, que ninguém de fora queria, tão mal remunerada era. O guri não se conformou com o castigo. Estava procurando ver como eram presas as páginas daquele livro. E pensava: "Perverso é ele que se prevalece de meu pai não me ter vindo mais buscar, e deixa-me de castigo aqui de pé nesta árvore, tanto tempo.

O pai não aparecia: queria comunicar-lhe as boas notas nos estudos, mas não tinha como. Ali dentro ninguém lhe falava nisso: não havia reuniões mensais para a leitura das notas, não havia quadro de honra, não havia nada. Nem o carinho de uma mulher que, ao menos de longe, lhe lembrasse a mãe. Só homens para tratar com ele...

"Vai lavar esses olhos, menino. Está com isso sempre purgando! Precisa dizer a seu pai para comprar-lhe uns óculos". Era o inspetor enojado de suas órbitas vazias, escancaradas e purulentas. O menino ia em procura da bica do recreio, pensando: "Meu pai não aparece... Que é que eu vou fazer?... Vai lavar esses olhos, vai lavar esses olhos... Está sempre implicando comigo. Só gosta é do Gonzaga, porque o pai traz maçã para ele".

O inspetor não sabia fazer de outro modo. Não fora preparado para aquilo, e os olhos do menino repugnavam mesmo. Suplicara o lugar ao Diretor, por necessidade de ganhar dinheiro; não que sentisse nenhuma vocação para tratar com meninos cegos. Não eram as maçãs que o faziam bom para o outro. O Gonzaga era um menino de bom aspecto, olhos limpos, boa roupa, quietinho sempre, por pouco vivo. Não lhe dava trabalho algum. Ficava onde o largassem.

O pobre funcionário não tinha culpa. O menino cada vez piorava mais. Já rapazinho, e poucos amigos no internato. Turbulento, reativo, respondão, inconformado, explodia por um nada. Nas aulas, ia como ninguém: atilado na compreensão, ágil no processo mental, respondia primeiro, aprendia logo e sabia mais. Fora, chamavam-no prosa, vaidoso, sabichão... Vingava-se estudando mais. Só se chegava aos reacionários.

Já nem mais sabia onde andavam os pais. Estes espaçaram-lhe as visitas, a ponto de nem ir vê-lo mais. Nem uma palavra amiga que o confortasse.

Crescera feio, magro, pálido, anguloso, de modo que não atraía a simpatia de nenhuma família de outro aluno. O internato, nem para mandar pôr peças protéticas nas suas cavidades oculares. E o Governo pagava a um oculista bem melhor que a um inspetor. Muito raro, eram os alunos surpreendidos por duas badaladas do sino ― sinal de oculista na casa. Eles nem conheciam mais o toque, tão pouco ouviam aquilo. Nem conheciam a voz do anunciado. Ninguém os chamava para exames.

O rapazote da nossa história já vai pelo fim do curso. Continua brigando, agride colegas, fez sangue num; mas já vai bem esclarecido: dirige um jornal interno e namorica às escondidas. Para acabar os estudos, ainda lhe faltam dois anos, mas dá-lhe na telha de acabá-los num só. Os professores duvidam, refugam; mas ele quer. Vai ao Diretor, pleiteia e consegue. Escandaliza os antigos, que lhe apertam o cerco em torno. Melhor para ele: quanto mais o picam, mais dá de si.

Ao fim de um ano, estava vitorioso. Começa a ensinar de graça no colégio, para não sair. Inglês, história, matemática, em tudo a administração lhe dá uma turma.

Revê estudos, dedica-se ao ensino e dá boa conta de si naquele meio. Ensina as quatro operações a um copeiro da casa, para que este lhe leia, consulte-lhe dicionário e até lhe dite a Álgebra do Trajano que ele transcreve penosamente para seu sistema de leitura. O leitor fará uma ideia de quanto ele teve de adivinhar, de raciocinar e de se esforçar para entender um tal ditado. Pior que tudo foi que, ao cabo, ficara distanciado dos programas dos colégios comuns, onde esse compêndio há muito havia sido abandonado.

Muitos o admiravam, mas poucos lhe queriam bem. Trazia as arestas que só a vida em família tira. Sem ninguém de seu para guiá-lo, descuidou-se do traje e descurou do asseio. Tudo assim conspirava para que a sociedade não lhe desse o lugar que ele queria ter. Queria, pelo que trazia no espírito, pelo esforço que fizera, pela superioridade que sentia.

Nem o casamento lhe melhorou a aparência. Inspirado num amor que mantivera um noivado de quase 20 anos, foi ele contraído com uma cega, num rasgo de verdadeiro heroísmo. Bens de família, nem dele, nem dela. Os vencimentos de ambos mal perfaziam o salário de um operário humilde.

Viera logo um filho. Não tendo com quem deixá-lo, levavam-no para o trabalho, recém nascido, ao sol e à chuva, nos braços da mãe cega, guiada pelo pai cego. Não é romance: quem os conheceu, reconhecê-los-á.

Todavia, o casal sem vista trazia em si a força da ascensão que a cegueira emperrava mas não sufocava nunca. Mal lhe vieram as primeiras melhorias no salário, abdicaram da comodidade da moradia na vizinhança do colégio, e internaram-se pelos subúrbios para poder pagar a casa própria em alugueres.

Era de vê-los, no meio dos pedreiros, zelando pelo trabalho, como se fossem construtores. Só um parente da moça os orientava como amigo; nunca, porém, como tutor. Os cegos aprendiam com ele e decidiam a seu prazer.

Em certo transe de uma construção, a própria cega metera-se no barracão das obras, fazendo comida para os operários, que assim se conformavam com menor paga.

De faina em faina, derrotado aqui, vitorioso acolá, vem o casal de cegos, de um subúrbio longínquo, para uma casa, também sua, próximo do centro.

Nesse meio tempo, o cego de têmpera esfalfava-se: estudava até noite alta, na perspectiva de um concurso que não vinha. Cresciam os filhos e dinheiro escasseava em casa. Para suprir as faltas, imprimiu uns retalhos de um baú já cheio de suas produções. Correu a praça, mas não achou editor. Eram versos à antiga, literatura ainda do romantismo. Não se tendo infiltrado nas refinadas camadas sociais, e pobre para pagar ledores, ele não lograra dar, aos escritos, o sabor da época.

Não o desacoroçoaram as recusas dos editores. Contrai compromissos e imprime o livro à própria custa. Sem amigos jornalistas, sem relações entre os críticos, não pôde fazer funcionar a máquina da propaganda, e a obra não saía das prateleiras das livrarias. Nem assim esmorece o homem de têmpera: sai ele próprio com os livros às braçadas, e vai vendê-los pelos meios ao seu alcance. Não havia obstáculo para esse cego símbolo da tenacidade.

Estudioso dos problemas dos cegos, foi um eterno inconformado com a situação dos companheiros no Brasil. Assediava os gabinetes para fazer sugestões, mas suas palavras não encontravam eco, pelos motivos já conhecidos. Tornava e retornava à carga repetidas vezes, acabando até popular nos ministérios. Se a palavra que lhe saía da boca nas entrevistas dos gabinetes não surtia efeito, vingava-se, em casa, na máquina de escrever. Ia noite a dentro, escrevendo cartas, fazendo relatórios, redigindo memoriais e concatenando pareceres. Aos assédios pessoais, seguia-se o bombardeio com os papéis escritos.

O interesse pessoal não lhe era nunca o móvel da conduta. Pode ser que alguma vez lobrigasse qualquer quinhão no que alvitrava, mas punha sempre nos planos o que lhe parecia o bem dos companheiros. Combativo, não conhecia meias medidas no dizer a verdade, o que fazia com que seus projetos não levassem a graxa dos salamaleques, nem os perfumes das zumbaias. Por isso, talvez, tenha ele amargurado até o fim da vida, o desgosto de quase não encontrar ouvidos para seus propósitos.

E escrevia:

Armado, apresentei-me em cena para a luta.
Na conquista da luz, do bem e da razão;
Mas, tentando afastar a taça da cicuta,
Ouvi dizer-me a vida: "Intentas, pois, em vão!"

 

"Em vão?" então pergunto; e a vida mais se enluta!
Na aspérrima jornada, há longa escuridão!
E quando, ao peito, ergui a fé mais resoluta,
O mundo inda me diz: "Pára! Não sigas, não!..."

 

Hei de lutar; a vida é luta que não cessa;
E eu quero ver a glória aos pés cair-me opressa,
Entre a luz conquistada ao cabo da jornada!
Mas, quando um dia olhei, que soledade atroz:
À frente, abismo aberto! Atrás, a minha voz
Em eco a repetir: "Nada!... Mil vezes nada!..."

Não se deixou abater o cego destemido. Lutou, até o fim, por si e pelos seus, sem nenhuma tutela espiritual ou financeira, dessas de que tanto se valem certos cegos mesmo cultos. Foi, sozinho, o chefe da sua casa, e mentor de seus filhos, o protetor da mulher. Teve revezes, e muitos; mas não chamou pelo socorro de ninguém.

Timoneiro do seu barco, morreu num lar em que era realmente chefe, tisnado da refrega, batido da fortuna, homem de vontade férrea, senhor de uma "têmpera que se perdeu".

Outro, professor entre os melhores, cedo se fez líder entre os colegas. Espírito de escol, a um tempo idealista e prático, austero e benevolente, sabia fazer-se respeitado e querido pelos alunos.

Assim no colégio, assim nas relações sociais. Forte, saúde alardeada nas faces rosadas, aparência agradável, simpatia inata, era mais facilmente assimilado pelos meios sociais. Parece que sentia a facilidade, e tirava dela o melhor partido: não se deixa ficar somente entre os cegos. Insinua-se nas melhores camadas sociais, onde faz muitos amigos e muitíssimos admiradores.

Como se não viera de berço humilde, e não fora cego, progride e faz-se "homem de alta roda". O que amealha em amizades e simpatias, não gasta consigo só. Concebe o plano da assistência particular ao cego e funda a primeira casa de trabalho subvencionado por uma associação. Não fizera somente amigos ricos, mas soubera também rodear-se de quem com ele distribuísse , à larga, a luz dos olhos. Tinha quem lhe lesse, quem lhe fiscalizasse o traje, quem lhe traduzisse, em palavras, o mundo da visão, quem o ajudasse nas dificuldades da criação dos filhos e quem o levasse às recepções mais elegantes, na condição de amigo que acompanha, e não de empregado que guia. Com isso, teve lar próspero e regrado, de onde lhe saiu prole bem lançada, que hoje excele vitoriosa nas culminâncias sociais.

Filhos e filhas, noras e genros, netas e bisnetos, todos eram congregados em torno do ancestral cego, na plena consciência de que a ele deviam o melhor da sua situação. Foi, mais que o simples chefe de família, o tronco forte de que brotaram ramos de floração excelsa.

A casa de trabalho que fundara para os cegos, foi o mais e o melhor de suas preocupações. Deu-lhe quanto pode. Levou-a da semeadura à messe, consolando-se na contemplação dos frutos magníficos.

Adaptou cegos adultos ao trabalho produtivo, formando profissionais competentes. Em que lhe pesasse a lida nesse empreendimento, ainda encontrava tempo para se aperfeiçoar na disciplina que ensinava. Estudou-a com denodo, aperfeiçoando mapas em relevo, tão bons que foram adquiridos pelo Colégio Pedro II. Nossa exposição comemorativa do centenário da independência, exibiu um mapa da América do Sul, em relevo proporcional, onde a água corria nos rios, e vulcões lampejavam como vivos. O mapa saiu da cabeça e foi executado sob o controle dos dedos do nosso biografado.

Não podemos mais ocultar-lhe o nome. Mauro Montagna. Todos que privaram no mundo dos cegos no tempo dele, conheceram-no forte, animoso, boa prosa, conduzindo os companheiros, "líder batalhador".

Agora, um grande trabalhador, um "lutador impenitente".

Já aos quinze anos, ajudava, com o trabalho de operário, o sustento da mãe viúva e irmãos menores. Ainda tinha visão, que perdeu numa explosão de caldeira.

Quebra-se-lhe então a linha do destino: interna-se no colégio de cegos, deixando a mãe curtindo dor, saudade e pobreza. Parece que a extensão do desastre lhe enrija a fibra. Esclarecido com as primeiras luzes da instrução, percebe logo que o internato não era ambiente para a pujança de seus vinte anos. A mãe, lá fora, esfalfava-se na luta de criar filhos pequenos. Ele, o mais velho, não se julgava desobrigado de ajudá-la, só porque se achava sem a vista. Sai-lhe em socorro, para trabalhar, fosse no que fosse.

Em pouco, empreendera o que mais podia um cego naquele tempo: fundou um colégio. Num subúrbio pobre, começa a sua via-cruci de professor. Inteligente, bem falante, cedo conquista a confiança dos moradores da redondeza. O ex-operário caldeireiro, agora, enquanto espera, no barbeiro, faz roda de curiosos, interessados na sua prosa boa. É o professor do lugar, acatado, querido e admirado como nenhum. Ensina, de dia, a meninos, e a rapazes à noite.

Seus alunos começam a encarreirar-se na vida. Os pais procuram-no para orientação dos filhos. O defeito dos olhos, pronunciado mas disfarçado por óculos bem postos não afasta ninguém de si. Tem o Dom de convencer e de fazer amigos, o que o faz crescer na amizade e no respeito alheio.

Estudioso, sabe fazer, do que aprende de manhã, o alimento são para as conversas durante o dia. Com isso, fixa o que estuda, concretando bases para saber novo. Progride e faz progredir os que o cercam.

No meio daqueles comerciantes chãos e humildes operários, muita noção de ciências naturais e higiene espalhou o professor sem vista, na cadeira de barbeiro ou no balcão do armazém, enquanto esperava o embrulho.

Veio a escola pública e gratuita, mas a do cego não lhe cedeu o passo. Cobrava o que era praxe naquela época, e os alunos não o largaram. Admitiu professores, tão freqüentadas chegou a ter as turmas.

Criados os irmãos de sangue, o professor entrou a preocupar-se com os irmãos de infortúnio. A assistência particular aos adultos ia-se desenvolvendo numa casa lá para Botafogo; mas o professor queria apressar-lhe o passo, desejando o que lhe parecia mais e melhor. Lá, só se assistia o trabalhador cego que se conformasse com o internato. O novo guia, porém, queria possibilitar o trabalho, sem desarticular o cego do seu ambiente social.

Ei-lo amassando o barro do idealismo, nessa concentração semi-mórbida que assalta os cegos possuídos de algum grande desejo.

Vai, do projeto à realidade, por si mesmo, sozinho, porque o plano é audacioso e ninguém quer dar-lhe ouvidos. Na sua própria residência, recebe os primeiros trabalhadores cegos, núcleo da "Liga de Auxílios Mútuos", ― hoje a "Liga de Proteção aos Cegos do Brasil".

É o Mamede Freire. Não há mais evitar-lhe aqui o nome. Sua figura não se pode confundir na amálgama do anonimato.

Começa ele então a tarefa ingente de popularizar, no Rio, as possibilidades do trabalhador sem vista. Propaganda inglória, publicidade ingrata, nas quais se esgotam a fluência da palavra do Professor Mamede. Vai de firma em firma, de jornal em jornal, de grupo em grupo, de palacete em palacete, angariando adeptos, ateando entusiasmos, coordenando forças, comunicando, contaminando, arrebanhando e amealhando para o bem dos cegos no Brasil.

Era de vê-lo à noite, diante de alunos que ainda tinha, fisionomia exausta, mas contente, contando os triunfos de cada dia. Do relato do conseguido, passava ao devaneio, vaticinando: "Vocês ainda verão, ali naquele terreno de Cascadura que a Prefeitura nos deu, o bagageiro entrando por um ângulo e saindo pelo outro do edifício, carregado de rimas e rimas de vassouras fabricadas pelos cegos". E tamborilava, feliz, na mesa de trabalho.

Cresceu, de fato, a Liga. Dela saem hoje mensalmente, trezentos mil cruzeiros de vassouras, senão em bagageiros, em caminhões de sua propriedade.

Mamede foi para São Paulo. Na prosperidade do paulista, criou também o bem-estar de muitos cegos. Estranho ao meio, não tardou em se firmar, como fizera sempre. Batido, embora, da vida e dos desenganos, não se deixa abater pelo desânimo.

Lutador impenitente, reinicia lá o amanho do terreno, prepara a receptividade do povo para o trabalho do cego, palmilhando a mesma trilha abrupta e tortuosa que escalara no Rio. Nem o peso dos anos, nem a vastidão do ambiente o detém. Vai, de vagar, mas seguro; bandeirante de cegos, na terra de Pais Leme.

Por entre a azáfama das máquinas e o frêmito dos negócios, de São Paulo, rasga o caminho para os irmãos de sorte. De vitória em vitória, estabelece aí a maior rede de assistência aos cegos em todo o país. Viaja pelo estado, visitando seus núcleos de amparo, dirigindo tudo com zelo, acerto e eficiência. A posteridade dirá dele melhor que eu.

O que vem agora, cego de berço, desde criança dera mostra de indomável. Filho de ateu, numa sociedade católica, teve contra si o ser apontado como "castigo do pai".

Levado à igreja aos seis anos, pela mãe cristã, ganhou santinhos e teria começado a balbuciar as primeiras rezas. Soube, porém, por companheirismos, que o padre censurava seu pai, e escandalizou a gente da vila, rasgando e deitando ao fogo os santos já acumulados.

Muito devem ter-lhe anuviado e revoltado o espírito, as pechas de "parte com demo", "menino capeta", e "condenado ao inferno", chegadas aos seus ouvidos pelas bocas das beatas.

O cego endiabrado cresceu voluntarioso e independente. Menino ainda, arranjou um instrumento de sopro e descobriu-lhe, por si mesmo, a maneira de fazer soar todas as notas. Daí a execução de trechos sem professor, foi obra de seu temperamento de arte e fibra.

Passou no lugar um conjunto musical que atraiu o cego adolescente e foi por ele atraído. Os músicos de fora, apercebendo-se do gênio do da terra, deram-lhe um lugar na sua orquestra. Era o primeiro vislumbre de horizonte, para o talento aprisionado na pequenez do meio.

Certa noite, ia fechar-se, de novo, a porta da prisão: iam-se embora os da orquestra. Mas não: mesmo sem luz e sem alfabeto, o preso sentiu que se devia escapar. Na madrugada, o trem que levou, para longe, os músicos, levou também o cego de menor idade, fugido pela janela de seu quarto. De seu, uma trouxa minguada arrepanhada às escondidas. Dentro de si, porém, um mundo de esperanças, um mundo de talento musical.

Não sei bem por quê, improvisou-se afinador de piano. Como houvesse um fazendeiro precisando de um afinador, inculcou-se profissional. A fama do seu ouvido facilitou-lhe a patranha, ficando o resto a cargo da habilidade de suas mãos. Com uma chave velha que lhe arranjaram, deu volta às cravelhas, até sincronizar as cordas. A satisfação do cliente rico, trouxe-lhe boa paga e a propaganda. Outros pianos vieram concluir-lhe o aprendizado sem mestre. Era um recurso mais para aumentar a renda escassa do instrumento.

Perambulou no interior, dando concertos e afinando, sem nunca mais voltar aos pais senão a visitá-los.

Já homem feito, arranjou pensionar-se num internato de cego para alfabetizar-se. Era já músico às direitas, mas não lia pelos dedos.

Podendo então ler, por si mesmo, o que tocava, pairou mais alto. Deu concertos que deslumbraram as grandes cidades do Brasil, que lhe deram público e renome, recursos e entusiasmo, para ir mostrar-se no estrangeiro.

E foi. Como lhe faltassem meios e lhe sobrasse arrojo, foi só. Paris, Berlim, e não sei quantas cidades mais da Europa o conheceram e aplaudiram.

A França deu-lhe patente a um invento que aumenta os recursos do seu instrumento predileto. Muito valor deviam ter-lhe achado os europeus, para prestigiá-lo tanto, eles a quem não são estranhos os cegos de valor, eles que ensinaram ao mundo a suplência da vista pela educação especializada.

De volta à pátria, viveu ainda um tempo bafejado da fama que trouxera da Europa. Deu concertos freqüentados, ganhou o pão, fruiu conforto, constituiu família, fez-se pai, viajou e aperfeiçoou-se.

A falta do devido amparo, contudo, trouxe-lhe o declínio. O esforço que fizera para superar-se e para escalar os píncaros da glória, ao peso enorme de suas dificuldades, não podia deixar de esgotar-lhe os nervos e as reservas de vontade. Veio o declínio lento e agônico, onde o artista se debate, sofredor, amargurando a injustiça dos poderosos.

Ainda vive entre nós, como sombra do passado, resto de coragem e força, atestado do que pode um homem cego, quando seja "homem de arte e fibra".

E um casal de cegos, como se arrumará em casa, no amanho do lar e na criação dos filhos?... Vá lá um exemplo, para matar a curiosidade do leitor.

Amaram-se no colégio onde estudaram. São aqueles que se entendiam pelo piano, apontados em "Como os cegos amam?. Quase vinte anos de cartas e encontros furtados à disciplina, sem mal nem malícia, cimentando o verdadeiro enlace. Fiéis como só em romance, crentes no futuro distante.

Esperavam o professorado no colégio. Ele, cansado de esperar, emancipou-se, e andou trabalhando fora pelo ofício. Sem ninguém de seu na cidade do colégio, deve ter lutado muito para afazer-se ao andar sem guia. Mais duro que superar a própria timidez e a consciência do perigo, foi vencer a revolta que a comiseração dos outros levantava nele, criado num mundo sem lamúrias sobre a cegueira, e especialmente feito para ele.

Mas venceu. Quando lhe veio o emprego, já tinha comido muito pão amassado por si mesmo.

Casaram-se. O primeiro filho foi grande alegria, mas não sei se maior preocupação. Tudo dependia de vista: o serzinho mole era bastante estranho para os pais que, na sua vida de internados, talvez nunca tivessem nem pegado num tão pequenino. Para seus ouvidos, só o choro, tão difícil de interpretar.

Mas o entendimento esclarecido pelas letras entrava no jogo das conjeturas. Jogo teórico, mas inteligente, que, a par das leis da natureza, acabou por vencer as dificuldades.

O ouvido vai suprindo a vista. O choro assim mais lento, interrompido, é de fralda molhada. Esse mais rápido e constante é de fome. Esse outro, que se fina, é de cólica. E a mãe apalpava o recém-nascido, para ver se o sentia retorcer-se. Tirava conclusões, com dez vezes mais esforço de cérebro que as outras mães, mas tirava.

O que estudou no colégio, facilitava-lhe a compreensão do que lhe diz o médico. A consciência do perigo das moléstias fá-la mais obediente aos preceitos da medicina.

Quando percebe a escassez dos dados dos seus sentidos, remedeia o mal, apelando para uma vizinha. "Faça o favor de ver se o menino está com a língua branca; tenho encontrado muita baba no queixinho dele. Estou com medo de sapinho". A vizinha dizia que sim. Receitava a simpatia dos nove paninhos virgens e a da chave da igreja. Delicada, a mãe agradecia a informação e a receita: mas, de si para si, valia-se só da informação e projetava logo procurar um médico. Quando tivesse que voltar aos olhos da outra, para aplicar o que o médico determinasse, saberia contornar a dificuldade, engendrando uma mentirazinha que não desgostasse a moça.

Em tudo, a inteligência; deduzindo, discernindo e separando o mal do bem. Ninguém suponha se deixe a mãe enganar pela informação alheia. Com os dados ao seu alcance, ela sabe escolher a pessoa de sua fé, do mesmo modo que a leitora sabe em quem deve acreditar.

Com as dificuldades que apontamos em todo o livro, essa mãe faz seu círculo de relações. É corajosa, naturalmente sociável, sabe que precisa dos outros, principalmente para o filho, e contorna os obstáculos. Agora, o neném já fala, já lhe diz onde dói. Habituado com os pais, pega-lhes na mão para mostrar-lhes as coisas, mesmo antes dos dois anos, e desvia-se dos esbarros deles. "Menino, vou te dar uma chinelada..." E a mãe tateia o chão, nervosa, à cata do chinela que não acha.

― "Tá qui, mamãe; néu tá qui". É o filhinho ameaçado, que lhe põe nas mãos o instrumento do castigo. Começa a distribuir com os pais a luz dos seus olhos.

"Mais tarde, lhes será o guia abençoado, o São Rafael do Tobias"; pensará o leitor. Mas não: o casal é evoluído, e quer que o tempo do filho pertença a ele próprio ― à sua educação e ao seu recreio.

O pai há de curtir dificuldades de locomoção, mesmo para completar o pão de casa, mas não deixará o filho faltar à escola para guiá-lo. Sairá com ele a divertimentos infantis, a parques, a bailes de crianças e até a cinemas, mas não o fará seu guia no trabalho cotidiano. Quer ser pai, como os outros; não se escusa, com a cegueira, para relaxar a educação do filho. A mulher segue-lhe o passo.

O filho já vai para quatro anos. Folheia revistas velhas, fazendo perguntas aos pais sobre figuras que vê. Pega-lhes nas mãos, passa nas páginas lisas, indagando com inocência. O pai chama a cozinheira, que lhe venha ver aquilo que o filho quer saber. Esta explica mal; nem o pai nem o filho entendem. O pai guarda a revista, marcando a página com uma dobrinha, para mostrar depois à vizinha e ensinar ao filho. Arranja mais figuras, pedindo que lhes descrevam. Quando o filho interroga "papai, que bicho é este", já contorna bem o impasse: ― "Como é ele, meu filho; tem assim duas coisas na cabeça? E faz, com as mãos, a imitação de chifres". ― "Tem sim, papai". Então, já pode dizer ao filho que é um boi, porque sabe que, nas figuras escolhidas, não há outro bicho de chifre. Com expedientes de toda ordem, orienta, como pode, a educação do filho. Compra letras em relevo, mapas de armar e figuras recortadas que reconhece pelo tato. Sabe, porém, das suas limitações, e procura logo o jardim da infância.

O filho cresce. Os pais zelam-no a seu modo. A mãe fá-lo escovar os dentes de manhã.

Não pode controlar se a limpeza é bem feita, mas falará, com o filho, mais que as outras, sobre a conservação dos dentes. Escovará os seus diante dele, para que ele a imite. Fiscaliza-lhe a roupa. Não tem muitos elementos para saber se está limpa ou não, mas guia-se pelo olfato, pergunta à empregada, pensa nos lugares por onde o filho andou na véspera, tira conclusões e decide.

No banho, pode ser que lhe escape o tornozelo denegrido de graxa, ou as unhas tisnadas de tinta, porque isso o tato não percebe. Esfregou o filho todo, mas esse sujo não saiu nas vezes em que o esfregão lhe passou por cima. Ela própria pergunta ao filho quando o vai lavando: "Está limpo, meu filho?. Lá um dia, contudo, o cérebro pode estar cansado de tanto trabalhar para acudir a falta de visão, e uma falha escapa. Também as outras mães se cansam e falham.

Vai, ela própria, mexer o mingau, porque não confia na empregada que não pode controlar à distância, como fazem as outras mães. Dá o prato ao filho, e, se não ouve a colher raspando, insiste por que ele coma, que está na hora de ir para o colégio. "Acabei, mamãe". Não lhe basta a informação: suja os dedos, mas mete-os no prato, para ver se o filho comeu tudo. Arruma-lhe a pasta, faz-lhe ponta no lápis, muda-lhe a capa do livro, suja de gordura, o que reconheceu pelo cheiro da manteiga. Apalpa, examina, cheira, passa tudo pela ponta de seus dedos, meticulosa ao exagero, para suprir a falta da vista no desempenho do seu dever de mãe.

O pai, de quando em quando, vai ao colégio conversar com a professora. Quer ouvir se o filho vai bem e certificar-se do que lhe dizem da letrinha dele. Não podendo comprová-lo por si mesmo, vai à fonte segura. A professora fala em mais um livro, num caderno novo, e ele tudo compra, mesmo achando que é de mais. Compra, para que não venha a faltar ao filho nada, no desejo de compensar o que não lhe pode dar como cego.

Se vai à cidade, à compra de roupa ou calçado, também adquire do melhor que pode. Vai logo às casas especializadas, para que o filho ande bem arrumadinho. Sabe que é caro, que os outros compram mais barato, em casas mais modestas; mas não podendo escolher, prefere assim. Essa casa não o engana. Comprará um terno a menos para si.

Dizem-lhe que o filho anda pálido; ele lhe pega nos bracinhos e os acha finos. Resolve levar o pequeno para fora durante as férias. A mulher também não anda boa; será bom para ambos. Um sacrifício mais, combina com a mulher, e vão. Hotéis, de luxo, não, que não têm dinheiro, e a falta de vista não lhes permite acompanhar as etiquetas.

Um dos fregueses do pai falou-lhe num lugarzinho sossegado. O cego vai na frente, com um empregadinho, esquadrinhar o recanto. Chega, conversa nos botequins, indaga, informa-se, procura... Tanto bate, que chega a descobrir uma casinha onde se meta com a mulher e o filho.

Desce ao Rio, glorioso do achado. Explica tudo à mulher, e decidem em comunhão: levarão aquela mesa, só o estado da cama e o colchão, aquelas xícaras sem asa, isso e aquilo... A empregada não quer sair do Rio; não faz mal; irão sós com o empregadinho. Lá arranjarão outra. O lugar é estranho, mas os cegos sabem que terão forças para contornar as dificuldades. Basta que o filho esteja precisando de ir. Vão, veraneiam, gozam a vida e o filho engorda. Daí por diante, nunca mais deixarão de dar as férias a gozar ao filho, fora do Rio de Janeiro.

O menino já vai adolescente: na escola primária, não foi prodígio, mas fez o curso. Temperamento irrequieto, não se sentava muito para os deveres de casa. Arteiro, amante do bulício das ruas, noutro ambiente já teria deixado de estudar. Com os pais cegos, já faz o curso ginasial, e o faz no Pedro II! É vivo, tratável e mostra uma independência de caráter e um espírito de iniciativa, que se me afiguram comuns entre os filhos de casais de cegos evoluídos. A necessidade de se proverem a si mesmos, muita vez, procurando, com os próprios olhos, o que precisam, a circunstância de interpretarem, constantemente, para os pais, o mundo da visão, o fato de não se sentirem vigiados à distância pelo olhar dos pais, parece que acaba por criar, nessas crianças, um espírito de autonomia que não pode deixar de beneficiá-las pela vida a fora.

Nascera o primogênito de um casal bem jovem, num lar cimentado da mais sã moral cristã. Não lhe notaram nada, a princípio, os pais, estonteados de alegria. Mas a visão lhe viera prejudicada. Era pequeno o mal, e os pais começaram a combatê-lo. O menino veio vindo, esperto, ativo, no convívio dos irmãos que o seguiram. Os olhos, porém, pioravam. Confiantes, os pais, católicos, fervorosos, diligenciavam por atalhar a moléstia.

Chegou a época da escola, e o menino foi. Querida de todos na sua cidadezinha, a família sempre teve quem facilitasse o passo ao filho. Era difícil a tarefa de estudar quase sem vista, onde ninguém sabia nada de educação de cegos, mas o menino ia indo.

Já pertinaz e virtuoso, compassivo e bom, como havia de ser por toda a vida, dedicava-se às lições, obedecia aos mestres e sofria sem revolta. Esses traços de caráter abriam-lhe as barreiras que os estudos lhe opunham. O ambiente doméstico e o devotamento dos pais completavam as faltas.

Quando as letras diminuíam aos olhos do menino, cada vez mais gastos, o pai traçava-as maiores, para que o filho não parasse de estudar. O espírito do pequeno não amolecia em razão das dificuldades, que cresciam sempre. As professoras lutavam, a família porfiava e o pequeno se esfalfava, tangido por suas grandes qualidades interiores. Em vão: chegou o momento em que foi inelutável a paralisação dos estudos. A luz dos olhos avizinhava-se do lusco-fusco, e os médicos impuseram a saída do menino da escola.

O desgosto relou, até a alma, os pais estremecidos. Relou, mas não os desalentou. Lidos, tinham notícia de que os cegos estudavam. Procuraram, e encontraram a pista para o filho. Nas suas vizinhanças, um aluno do instituto de cegos do Rio viria, em breve, passar as férias do internato. O contato fez-se, mudando-se, por completo, os meios de aprendizagem do adolescente, já bem adiantado. Não lhe faltaram virtudes para suportar a mudança. Acima de tudo, o "Deus sabe o que faz" ― bálsamo de todas as dores, estrela de todos os caminhos da família, já então numerosa, curtida de sacrifícios, mas sempre consolidada nos dogmas do catolicismo.

O exemplo do aluno do Rio levou os pais à suprema renúncia de se apartar do filho.

Já chegando a rapazinho, dava ele entrada no Instituto da capital, bruscamente levado a mais de mil quilômetros longe dos seus.

Trazia maneiras finas, gênio pacato e educação que o diferenciava no conjunto. Com a mentalidade formada entre os meninos de vista, nem por isso lhe custou afazer-se aos colegas novos. Fez-se estimado, e soube estimar a todos. Embora cordial com os colegas, não se deixava imbuir dos vícios do internato, escudado sempre nas virtudes que, desde cedo, mostrara.

Via bater nos fracos e não batia; via fumar e não fumava; ouvia dizer nomes feios e não dizia. Mais tarde, veria beber, e não beberia; acompanharia os colegas até o portão da rua, mas não sairia com eles para as farras.

O amor de Deus e o amor dos seus era a amálgama das suas qualidades inatas. Escrevia para casa todas as semanas, já no sistema dos cegos que a família aprendera para melhor acompanhá-lo ao longe. Mantinha assim o fogo sagrado da educação doméstica.

Dedicara-se aos livros. Cordato, expansivo e bom, tinha amigos entre os mais vadios do colégio, mas, na hora de estudar, nada e ninguém o arrancava do caminho certo. Fez-se o melhor entre os melhores do internato, no estudo e na disciplina, superando todos na educação e no caráter. Completou, sem nódoa, todo o currículo escolar, voltando a casa, em definitivo, quando já não havia mais o que aprender no colégio.

Respirando, de novo, o salutar ambiente da família, rápido prosperou. Dedicou-se às letras a fundo e impôs-se um regime permanente de estudos, passando horas a fio no seu quarto, lendo por olhos de secretários que se revezavam no trabalho por cansados.

À noite, as revistas em Braille, impressas na Inglaterra, na Itália, na França e na América do Norte, atulhavam cadeiras ao lado de sua cama.

O moço estudava sempre, superando a terrível deficiência física. Em pouco, seu nome aparece nos jornais, assinando artigos que conquistam o louvor geral. Poucos sabem que começam a louvar um jovem escritor que quase não dispõe dos olhos, que é mesmo "cego" para seu ofício, porque não lê as letras no formato corrente. O nome cresce: dos jornais vi às vitrinas das livrarias, conquista a cidade, o estado e depois o Brasil.

À força de trabalhar em dobro, com tresdobrado sacrifício, tendo constantemente na alma o travo amargo de querer estar lendo o que os olhos não atingem, esse brasileiro, hoje bastante conhecido, conseguiu o impossível de ter os olhos crestados e ser um homem normal para a sociedade.

Quem procura achegar-se a ele, atraído pelas qualidades do ensaista, fica embriagado pela bondade da criatura humana. Sua prosa extasia, sua generosidade comove. "Bom como o pão e simples como a água", traz, no espírito, a ressonância das grutas cavadas pelo saber, e a sonoridade dos cristais fundidos pela bondade.

Estarei contente comigo mesmo, se tiver, ao menos, conseguido deixar clara esta verdade: "Para levar felicidade à vida de quem não vê, precisamos começar por interpretar as atitudes e os verdadeiros estados de alma determinados pela cegueira".

Deixem-me, então, fechar o livro, parafraseando o mestre de "Os Sertões": Que surja, pois, um Moura Brasil, para curar as miopias e as cegueiras da sociedade, em relação aos cegos.

Fim

 

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Confissões e relatos desassombrados do que o autor e outros cegos sentem, sofrem e gozam por não verem. O drama das trevas contado por um cego. A verdade sobre os cegos e a cegueira. O que os cegos pensam contado por quem vive no meio deles pela identidade de privação, e vive no nosso meio por sua ação nos negócios. Desassombrada confissão de sentimentos e impressões, de atos e recursos, de quem logrou ser professor e negociante, embora não tendo a vista desde os dois anos. A história edificante de muitos cegos brasileiros. in Contracapa do livro

 

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texto integral da obra:
A VIDA DE QUEM NÃO VÊ
José Espínola Veiga
Livraria José Olympio Editora
1946
Fonte: http://musicasmensagensecia

 


 

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[6.Jan.2012]
Publicado por MJA