|
-excerto-
Mendigos cegos na China - fotografia de Karl
Christ Gutmann, 1897
Assim que a tempestade de poeira assentou e a metrópole emergiu de seu véu,
atravessei a Cidade Tártara — onde moravam as elites manchus — com pressa para
alcançar a sede do Neiwufu, a Casa Civil Imperial, a fim de informar
oficialmente da minha chegada, sabendo muito bem que uma data auspiciosa teria de
ser piamente invocada e escolhida com cuidado pelos astrólogos da corte, antes
que o jovem imperador pudesse dar início a uma instrução estrangeira sob a
tutela do primeiro forasteiro de além-mar em centenas de anos de tradição do
império Qing. Expediu-se prontamente um edito para a representação diplomática
me avisando disso tudo e sugerindo uma demora infinita, assim me permitindo
começar a reconstruir os quatro pilares do universo de minha Annabelle.
Cuidadosas pesquisas nos arquivos da embaixada, com o auxílio de uma
bibliotecária chamada Martha, nos escritos rotulados de “Missões cristãs no
interior”, revelaram o mapa da estrada acidentada que levava à antiga morada de
Annabelle: Hua Cun, Aldeia das Flores, a sede da missão extinta do pai dela, a
leste de Pequim.
Sem demora segui o caminho no lombo de uma mula, a fim de visitar seu velho lar,
viajando pelas estradas provincianas apinhadas. O terreno montanhoso era cheio
de saliências e reentrâncias, no entanto, me mantive tão atento quanto uma
coruja em noite enluarada, ansioso pelo primeiro vislumbre de um horizonte
lendário e alegórico.
Outro tipo de ciúme de repente me entristeceu. Comecei a lamentar não a morte de
Annabelle, mas sua vida sem mim. Uma sensação de vazio me invadiu. Como eu
queria recuar passo a passo no tempo até sua infância encantada, levando-a nos
braços, murmurando ahs e ohs diante de cada árvore em que ela subira, cada rio
em que nadara, cada suspiro que dera, cada pássaro que voara acima dela nos
compridos dias de verão e nas frias noites de inverno.
Com garotos da aldeia nos meus calcanhares, entrei no quintal da casa de sua
infância — a casa Hawthorn, agora vigiada por um aldeão cego e seu filho que
enxerga, o primeiro tomando banho de sol e o segundo chutando uma caneca de lata
vazia.
Ai, se os tijolos lascados do quintal soubessem falar — tijolos estes lascados
pelos pés a pularem corda de certo ex-morador de rabo de cavalo. Ai, se o poço
fundo, agora seco, pudesse emitir os ecos abafados dela, devolver suas sombras
ondulantes. Mas tal prece era vã. Tratava-se apenas de muros vazios cercando um
quintal vazio, dando vista para aposentos vazios, somente três, um retrato
desbotado de Jesus ainda pendurado, torto, na parede de um deles. A única coisa
viva a confirmar alguma vivência anterior era o piriteiro secular ainda
estranhamente frondoso nessa aquarela embaciada de decadência e abandono, embora
sua sobrevivência confirmasse uma fábula episódica que eu ouvira muito tempo
antes dos lábios de minha A em uma noite de verão.
Na primavera, os Hawthorn adoravam tomar chá debaixo dessa árvore e apostavam
entre si em qual das xícaras cairiam as pétalas dos botões que se abriam. O
premiado ficava incumbido de preparar o próximo bule. Três vezes, me contara
Annabelle, as pétalas haviam abençoado sua xícara.
Tirei do bolso um saquinho de seda e espalhei seu conteúdo — cinzas daquele
fatídico incêndio — no chão do quintal. Esse ritual oriental invocador de
fantasmas — embora selvagemente manchado no Ocidente por tipos como o dr. Price
e seus seguidores imbecis, cujas ferramentas habituais de ofício variavam de
desajeitados contadores Geiger a osciloscópios — toldou minha visão. Mal havia a
última das cinzas plúmbeas assentado, a seguinte imagem fantasmagórica me encheu
os olhos: os buracos e as frestas da decrépita e pardacenta casa Hawthorn de
súbito se encheram e tornaram à vida. Sons e movimentos dessa existência passada
reviveram.
Como se chamado por um mestre de cena escondido, sobe ao palco um bem-apessoado
e ereto papai H, chamando carinhosamente mamãe H, que olha pela janela da
cozinha com a expressão mais amorosa do mundo. Então, do terceiro cômodo, cuja
janela dá vista para o sul, sai minha Annabelle, sua pessoinha de antigamente,
com a saia de barra verde combinando com as meias soquetes brancas que lhe
chegam aos tornozelos finos. Parece ter nove anos, no máximo, e vem pulando sua
corda desgastada em direção ao quintal, o rabinho de cavalo balançando para lá e
para cá acima do pescoço. Um vislumbre dela e tudo sumiu. A vida, como uma maré
em refluxo, foi drenada do quadrilátero do quintal. O sol se apagou, deixando
apenas a realidade de uma árvore atada à minha mula muda.
— Annie! Annie! Você voltou — gritou o cego, as mãos trêmulas tocando meu nariz
e minhas orelhas. — Finalmente você chegou.
Empurrei aquela mão, mas os dedos tortos insistiram em me tocar.
— Annie... Annie! Aonde ela foi? Estava aqui há dois segundos — persistiu o
cego.
— Você disse Annie? A filha do reverendo Hawthorn?
— Claro. Quem mais poderia ser? Aquela gargalhada gostosa... Quem haveria de
esquecer?
— Você acabou de vê-la?
— Vi uma luz brilhando neste maldito quintal. Diga-me, forasteiro, você é
vidente? Por que Annie é um fantasma? Ela morreu? — O velho parecia extremamente
agitado.
— Sim, morreu queimada.
— Morreu igualzinho à sua bebezinha.
— Bebezinha?
— Se você não sabe sobre a filha dela, não conhece nadinha dos Hawthorn — disse
o velho, cuspindo no chão.
Uma coisa é ouvir um cego dizer que viu o mesmo que você, outra é saber que ele,
de fora da sua casa, consegue ver mais do que você do lado de dentro.
Imediatamente caí de joelhos, implorando que me contasse mais.
— Você está de joelhos? — perguntou o velho, passando as mãos no meu rosto e nos
meus ombros. — Fique de pé, forasteiro.
— Estou apenas lhe tratando com respeito.
— Se o chefe boxer da aldeia sentir um cheirinho sequer do que vimos aqui, ele
há de cortar sua cabeça — avisou o cego, me puxando e me fazendo sentar a seu
lado na varanda de pedra, depois de mandar o filho fechar a porta do quintal e
botar para correr todos os garotos enxeridos que haviam me seguido. — Você deve
estar se perguntando como foi que eu vi o que vi sendo cego como sou.
Assenti com um murmúrio.
— Sou o abençoado. Vejo coisas que não deveriam ser vistas, mas com que
precisamos lidar mesmo assim. Depois de toda morte de causas não naturais, como
enforcamento, afogamento e assassinato, os fantasmas precisam ser levados da
aldeia para a floresta, para as montanhas ou para o mar, para o lugar deles,
dependendo da causa de suas mortes e do signo do falecido. Alguns falam a
verdade, como eu, enquanto outros dizem o que os outros querem ouvir, zombando
do nosso ofício. Fico feliz de conhecer alguém que seja como eu, mesmo se
tratando de um forasteiro. Mas você possui o dom, eu vi.
— Isso é um dom? — Balancei a cabeça. — Parece mais uma maldição.
— Recebi o dom assim como se recebe uma alma ao nascer. Sou capaz de ver o
fantasmagórico e a escuridão com meus olhos interiores. Se o mundo não me
dissesse que nasci sem globo ocular, eu não saberia o que é cegueira: tenho
tanta visão quanto qualquer um. Agora conte a este cego intrometido como foi que
você adquiriu o poder.
Como um pupilo tímido sob a tutela da divindade, falei da morte de Annabelle. O
velho encolheu de tristeza, comentando como apreciava a voz e a bondade da
menina. Então, falei dos meus surtos de dores de cabeça e dos humores sombrios
que se seguiram, os quais, misteriosamente, cederam lugar àquela agonia, sem
deixar de fora minhas tentativas fracassadas de me livrar do fantasma de
Annabelle.
— Por favor, não faça uma coisa dessas. Isso só prejudicaria seu poder e, em
alguns casos, poderia pôr em risco o santuário que é sua pessoa.
— Como assim?
— Você não vê? Não é a morte dela nem seu luto que deram origem a esse poder,
eles meramente ajudaram a trazer à tona o que era inato e inerente a você. Esse
poder é o dom do divino para que você possa iluminar o que é escuro e nebuloso
aos olhos das pessoas comuns, às almas dos não esclarecidos. É sua segunda alma,
imposta a você desde o primeiro suspiro dado, uma visão dupla nascida do útero
da sua mãe e da semente do seu pai.
O cego era um poeta. Perturbado, ainda assim, me dignei perguntar:
— Mas por que não consigo ver mais, ver outros fantasmas, outras auras etéreas,
outras almas no limbo?
— Porque sua anfitriã, o primeiro fantasma que você viu, tem você cativo. Sabe,
um fantasma ou seu espírito só é viável através de você, o anfitrião terreno,
para satisfazer as necessidades e os impulsos que tem e executar as tarefas que
ficaram inacabadas na Terra. Por outro lado, você precisa de Annabelle, o
iniciador que perfurou a escuridão, para alargar a fresta estreita de sua janela
que se abre para o outro lado. Minha anfitriã me manteve escravo durante os
primeiros dez anos da minha vida. Foi o fantasma da minha própria avó que fez
isso, para que meus olhos de menino fossem poupados da violência e da nojeira.
Talvez Annabelle pretendesse fazer o mesmo com você, ou talvez estivesse sendo o
fantasma de si mesma, escravizando-o exclusivamente a seu serviço para que você
tivesse apenas o ônus de realizar tarefas para ela e ninguém mais.
Esse comentário perfurou como uma agulha meu coração. Minha Annabelle me
escravizar? Quando a base era o amor, com a luxúria como sua competente
arquiteta, eu me deleitava em satisfazer todos os caprichos de minha namorada.
Ouvir que sempre tive olhos de vidente e que ela não passava de uma ninfa
fantasmagórica que me confiscara tudo era outra história.
O que alguém, Pickens ou não, há de fazer com tal encargo, com tão onerosa
premissa? Como era possível que esse joão-ninguém soubesse alguma coisa a
respeito de um homem branco que, de tão louco, poderia ser rotulado de
psicótico? Será que fazia ideia de que uma declaração dessa dimensão sobre uma
alma frágil como a minha equivalia a jogar mais óleo na fogueira ardente da
loucura?
Eu estava prestes a indagar sobre a veracidade dessa afirmação quando o ouvi
dizer:
— Foi com fé que você veio. É com a crença na causa cuja escolha não lhe cabe
que você deve partir de nossa aldeia. Mas antes disso, por favor, me explique
por que não há fantasma da criança enterrada no quintal onde todos dizem que a
bebezinha de Annabelle foi posta para descansar.
— Annabelle teve uma filha? — indaguei de novo, com um filete de voz, enquanto
minha cabeça zunia como se invadida por uma nuvem de abelhas.
A narrativa escorreu da boca barbuda do cego.
— Annabelle tinha acabado de fazer 13 anos quando partiu numa excursão com
outras meninas da igreja para a cidade vizinha do Cavaleiro Wang Dan a fim de
distribuir Bíblias e sacas de arroz. As outras voltaram ao entardecer,
Annabelle, não. Ao alvorecer do dia seguinte, ela chegou, trazendo sacas de
seda. Não havia vestígio de ferimentos, não houve queixa de tortura, conforme os
boatos que correram, nem exigência de resgate. Ela contou que havia estudado o
livro sagrado com um cavaleiro naquela noite e que isso era tudo. Mas o
reverendo Hawthorn sequer desconfiava de que, em seus aposentos, tal cavaleiro
havia feito de sua filha uma mulher precisamente nessa noite. Essa malfadada
gravidez logo se tornou evidente, para grande vergonha do bom reverendo,
detonando as mais sangrentas batalhas que a região jamais viu. Mais tarde
disseram que Annie deu à luz um bebê morto, cujo corpinho foi enterrado no
quintal.
Após tal relato, com resquício de fábula aterradora, saí cambaleando atrás do
cego, que seguiu o filho que enxergava até um jardim cheio de mato. Uma nuvem de
tristeza pareceu sufocar meu coração e nublar minha visão.
Num estreito trecho iluminado pelo sol, vi a pequena lápide que estampava os
dizeres “Nina Hawthorn, amada na eternidade pelo Senhor e pela família”.
Não me lembro de ter por fim achado o caminho para Pequim, embora me lembre de
que um tael de prata trocou de mãos: da minha bolsa para o cego vidente, depois
dos apelos do filho do cego, que insistiu para que eu pagasse pela história
contada pelo pai. Pensando melhor, acrescentei outro tael, na esperança de que
os dois continuassem a vigiar a casa em prol de minha amada e, em troca, o velho
vidente cego enfiou em meu bolso um papel dobrado contendo alguns escritos,
sussurrando que aquelas palavras impressas serviriam de aviso para alguém
inclinado a ir até o fim na missão de caçador de fantasmas.
FIM
ϟ
-
Em '"A Última Imperatriz" Da Chen
leva-nos para o mundo secreto e
sumptuoso do palácio imperial da China, com seus fantasmas e suas perdas, onde
concubinas sedutoras, eunucos maquiavélicos e senhores de guerra se dividem numa
desenfreada luta pelo poder. 'A última imperatriz' é uma saga épica da China do
século XIX, em que a jornada de um homem atrás de seu destino torna-se uma
viagem desvairada em busca de um amor proibido.
-
Da Chen (1962) é um escritor chinês que vive nos Estados Unidos. A sua obra
'Brothers' (traduzida como A Montanha e o Rio em português) foi nomeada melhor
livro de 2006 pelo The Washington Post, San Francisco Chronicle, Miami Herald e
Publishers' Weekly.
Bibliografia: China's Son: Growing Up in the Cultural Revolution (2001) Sounds of the River: A Memoir (2002) Wandering Warrior (2003) Brothers - A Montanha e o Rio (2006) My Last Empress - A Última Imperatriz (2012)
ϟ
A Última Imperatriz
autor:
Da Chen
título original: My Last Empress
tradução Regina Lyra
editor Nova Fronteira
1.ª ed. 2015
14.Mar.2017
Publicado por
MJA
|