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A Conversão de S. Paulo - Michelangelo,
1542
(Na estrada para Damasco, Saulo é atingido por uma luz intensa e fica
cego.)
De vez em quando ponho-me a fazer uma lista dos últimos livros que li e dos que me reprometo
ler (a minha vida funciona à base de listas: balanços de coisas deixadas em suspenso, projetos não
realizados). Nos livros dos últimos meses noto, por uma estranha coincidência, que há um tema
recorrente: as cores.
Li um poema persa da Idade Média, "As sete princesas", de Nezamì, traduzido
agora em italiano, em que as sete cores correspondem cada uma a um campo alegórico e moral
autónomo; depois o "Em louvor da sombra", do japonês Tanizaki, no qual se fala das “infinitas
gradações do escuro”; li naturalmente as "Observações sobre as cores" (traduzidas há pouco), de
Wittgenstein, para quem as cores só podem ser definidas no plano da linguagem; e este livro
levou-me a reler a "Teoria das cores", de Goethe, recentemente re-impressa.
Porém, antes de todos esses livros eu tinha lido um outro que logo me deu vontade de comentar, mas
que mantive até agora em espera, como acontece com os livros em que as coisas interessantes são
muitas, demasiadas para serem postas num artigo. Mas eis que as outras leituras vêm juntar-se a esse
livro que conta, por exemplo, que Newton, descobridor da refração do espectro, estabeleceu que as
cores fundamentais são sete, não porque realmente visse sete, mas porque o sete era o número-chave
da harmonia do cosmo (as sete notas musicais etc.), e além disso fiava-se num assistente dotado de
um olho tão selectivo que conseguia distinguir uma cor isolada entre o azul e o violeta: o índigo, nome
belíssimo, mas de uma cor que nunca existiu.
Enfim, não posso continuar adiando; é preciso que lhes fale deste livro de Ruggero Pierantoni: "L’occhio e l’idea: Fisiologia e storia della visione" (Boringhieri). Trata-se de uma história das
teorias que buscaram entender como os olhos funcionam, o que é de facto a visão, qual é a natureza da
luz, a começar pelos gregos, os árabes e, sucessivamente, até chegar à Idade Moderna, baseando-se
tanto nos aspectos fisiológicos quanto nos pressupostos filosóficos de todo o tipo de teoria, com as
consequências que derivam para as artes, em especial a pintura. O autor — leio na contracapa —
“especializou-se nos aspectos biofísicos da comunicação nos animais, trabalhando assiduamente no
Max Planck Institut de Tübingen e no California Institut of Technology, e hoje é pesquisador no
Instituto de Cibernética do CNR em Camogli”.
Há um território de fronteira entre a teoria da visão e a problemática das artes figurativas, zona
em que se situam os livros mais conhecidos de Gombrich; o livro de Pierantoni, especialmente nos
últimos capítulos, segue um curso paralelo ao de Gombrich e em discussão com ele. No entanto, aqui
me limitarei aos três primeiros capítulos, intitulados: “I mitti della visione”; “Lo spazio, dentro e
fuori”; “La luce, dentro e fuori”.
Pitágoras e Euclides acreditavam que o olho emitisse um feixe de raios que se chocava com os
objetos; assim como o cego avança estendendo o seu bastão, do mesmo modo o olho que vê dá-se conta
da realidade tocando-a com os seus raios, que depois retornam ao interior do olho e o informam.
Demócrito acreditava que imagens imateriais se destacassem das coisas e entrassem na pupila; já
para Lucrécio eram minúsculos fragmentos de matéria, a que ele chamava átomos (e nós, de fotões).
Para Platão havia raios que partiam do olho e raios que partiam do sol; encontravam-se ao
refletirem-se nos objetos e voltavam para o olho.
Para Galeno, havia um espírito visual que tinha origem no cérebro, escoava-se para dentro do olho, capturava na lente a luz e as imagens transportadas
por ela fazia-as voltar ao cérebro.
Herdeiros da ciência grega, os árabes partiam de Galeno, aceitavam a mediação do espírito
visual, mas rejeitavam claramente a ideia dos raios projetados dos olhos para o exterior: a visão
agora vem de fora, não de dentro.

Galeno
Na Idade Média cristã, a crença de que o olho emitisse luz também entra em crise. É na lente
(situada contra toda experiência no centro do olho, assim como a Terra no centro do cosmo) que
ocorre a fusão entre o Mundo e o Eu: esta era a convicção de Dante. Os diagramas da anatomia do
olho perdem qualquer conotação biológica, tornam-se uma geometria de círculos concêntricos como
— diz Pierantoni — “um mundo ptolomaico de esferas armilares”.
Na época de Leon Battista Alberti, os raios que partiam do olho transformaram-se em linhas
geométricas, abstrações euclidianas: a pirâmide perspectiva.
Mas logo Leonardo desmonta essa
construção abstrata: a “virtude visual” não é puntiforme, como seria se agisse no vértice da pirâmide
de linhas, mas é uma propriedade do olho inteiro.
As meditações de Leonardo sobre a óptica são ora inspiradas no seu modo genial de aderir à realidade por fora de qualquer esquema, ora no esforço para reunir a experiência com a
tradição aprendida nos livros. É ele o primeiro a entender que o nervo óptico não pode ser um canal
oco, tal como o pensavam a Antiguidade e a Idade Média árabe e cristã, mas algo múltiplo e complexo,
de contrário as imagens acabariam sobrepondo-se e confundindo-se. Nos seus quadros, no entanto, é a
natureza fisiológica e não conceitual da visão que ele tenta colher.

Mecanismo da Visão -
Leonardo da Vinci, desenho 1492
“Para Leonardo a luz nunca foi um raio abstrato movendo-se na mente e no olho do homem, mas
um mar radiante que de algum modo interage incessantemente com a matéria. E a matéria, os
objetos, os homens, os lugares, não são representáveis mediante as linhas contínuas e exatas de seus
contornos, mas apenas evocados pela evanescência contínua das superfícies.”
Enquanto isso, no campo da ciência oficial, Vesálio publicava as suas tabelas em que a anatomia se torna uma ciência experimental baseada na dissecação de cadáveres. Mas
não para o olho, que continua sendo desenhado de acordo com os tradicionais esquemas greco-árabes. As hipóteses geniais de Leonardo ficaram sepultadas nos seus arquivos particulares.
Nos pintores italianos da Renascença, “a luz é tão onipresente que parece ausente, e não dá a
impressão de provir de nenhum ponto do universo”: é um mar em que as figuras são imersas. Já no
Norte a ideia da luz é completamente diversa: “Os flamengos e os holandeses aprenderam a amar
aquelas matérias em que a luz se entretém, aprisionando-se numa rede de reflexos, e de onde
reemerge transformada em arco-íris. Esmaltes, cristais, aços, corais, quartzos. Disso resulta toda uma
ciência que persegue e surpreende a luz nos momentos críticos de sua viagem através da matéria e no
interior secreto do olho humano”.
Isso apesar das muitas diferenças de pintor a pintor: “Van Eyck
pinta as coisas como sabe que devem ser, e Vermeer, como as percebe. Em Vermeer a luz é um facto
subjetivo, privado… Nas mãos miraculosas de Van Eyck, ela é a revelação absoluta de um mundo
espiritual destinada apenas ao olho da alma e emitida pelo olho de Deus”.
Desde a Antiguidade e a Idade Média as metáforas que servem de modelo para o funcionamento
do olho mudaram várias vezes: o bastão, a flecha, a lente, a pirâmide, depois (na época de Leonardo)
a câmara escura, em seguida o “espelho do mundo”, a “janela da alma”.

Quando em 1619 Scheiner
secciona a esclera, observa dentro do olho, vê “como de uma janela” a imagem na retina “refletida
como num espelho”, essas duas metáforas tornam-se decisivas. Os artistas passam a pintar uma janela
refletida na pupila dos rostos retratados; até a lebre de Dürer, escondida no mato, tem uma janela na
pupila atenta.
Quanto ao espelho, Claude Lorraine pintava de costas para a paisagem, que via refletida num
espelhinho convexo, obtendo efeitos de remota vagueza. Nasce o pathos da distância, componente
fundamental de nossa cultura.
A imagem chega invertida à retina. Como se endireita? Leonardo tinha aventado a hipótese de
uma lente supletiva na câmara escura do olho, segundo um sistema opticamente perfeito, mas carente
de fundamentos anatómicos.
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A estrutura dos olhos - Kepler (1604)
Foi Kepler quem contornou o obstáculo ao entender que o ajuste da
imagem é uma operação intelectual, e não fisiológica. Estão maduros os tempos para que o ego
cogitante e imaterial de Descartes entre em campo. Mas Descartes ainda tem necessidade de um
suporte anatómico, e por isso escolhe a glândula pineal, enterrada no fundo do cérebro, uma fortaleza
bem defendida (a imagem é de Pierantoni), que garante a unidade da visão e do sujeito.

Diagrama da Percepção Visual - Descartes, 1646
Mas então por que deveríamos ter dois olhos, se a visão é una (e uno é o mundo)? A descoberta
do quiasma (ponto de encontro dos dois nervos óticos) e, paulatinamente, da sua função e
funcionamento absorve a filosofia.

La Dioptrique de Descartes
Uma pergunta atravessa toda a história que acabamos de percorrer: onde se forma a visão? No olho ou no cérebro? E, se for no cérebro, em qual de suas zonas? Quando nos
fazemos essas perguntas, é natural imaginarmos que o homem leve oculto dentro da própria cabeça um homúnculo que perscruta a imagem que chega, primeiro postando-se atrás
da lente, depois contemplando a retina e finalmente instalando-se no cérebro. É preciso fazer um grande esforço para imaginar como o
homem funciona evitando o antropomorfismo.
A questão é em que momento do processo a luz se torna imagem. Diz Berkeley: “O que mais
contribui a incorrer em erro é que aquilo em que pensamos é a imagem que se forma no fundo do
olho. Então imaginamos que estamos olhando o fundo do olho de outro homem. Ou que um outro
homem esteja olhando para a imagem que se formou no fundo do nosso olho”.
A alternativa olho-cérebro continua até o microscópio demonstrar que a retina e o córtex visual
têm a mesma constituição: abre-se assim o caminho que possibilitará entender que a retina é uma
porção periférica do córtex cerebral. Ou seja, o cérebro começa no olho. (Esta última frase é minha,
e esperamos que esteja correta.)
O capítulo culminante do livro de Pierantoni é aquele dedicado à descoberta de Camillo Golgi:
eu não o resumo para não reduzir os seus efeitos — tanto poéticos quanto dramáticos —, que são
realmente notáveis.
Finalmente chega-se à retina tal como a conhecemos hoje (a descrição é muito clara, mas não
teria sido supérfluo acrescentar uma ilustração que nos permitisse acompanhar graficamente todas as
relações “horizontais” e “verticais”), e o quadro geral da visão que daí emerge faz saltar pelos ares
todos os modelos sucessivos que se fizeram dele.
Em cada modelo Pierantoni discerne certas constantes “míticas”, e o fio condutor de seu livro é
justamente o desvelamento desses “mitos” que alimentam a nossa consciência e impedem que se
compreenda a realidade dos processos naturais, mesmo quando já se dispõe de todos os dados
necessários. O último desses modelos míticos, segundo Pierantoni, é o calculador eletrónico.
Tal abordagem “mitológica” da história da ciência e da cultura parece-me a mais acertada e
necessária: a minha única reserva refere-se à atitude de “polêmica contra os mitos” implícita no livro.
O conhecimento avança sempre por meio de modelos, analogias, imagens simbólicas que até certo
ponto servem para compreender e depois são postos de lado para que se possa recorrer a outros
modelos, outras imagens, outros mitos. Há sempre um momento em que um mito que funciona
verdadeiramente exerce uma plena força cognoscitiva.
A coisa extraordinária é ver como à distância de séculos uma concepção descartada como mítica
se reapresenta como fecunda num novo nível do conhecimento, assumindo um novo significado num
novo contexto. Não seria o caso de concluir que a mente humana — na ciência como na poesia, na
filosofia como na política e no direito — só funciona à base de mitos, e a única alternativa está em
adoptar um código mítico em vez de outro? Um conhecimento fora de qualquer código não existe: só é
preciso estarmos atentos em distinguir os mitos que se degradam e se tornam obstáculos ao
conhecimento, ou, pior ainda, perigos para a convivência humana.
Usando “miticamente” a imagem da estrutura biofísica da retina, a mente humana aparece-me como
um tecido de “mito-receptores” que transmitem reciprocamente as suas inibições e excitações, à
semelhança dos fotorreceptores que condicionam a nossa visão e fazem que, olhando as estrelas, as
vejamos radiadas quando, “na realidade”, deveriam parecer puntiformes…
FIM
-
De Paris, Italo Calvino envia de vez em
quando ao jornal em que colabora um artigo sobre
alguma exposição insólita, que lhe permite contar uma história por meio de um desfile de objetos:
antigos mapas-múndi, manequins de cera, tabuletas de argila com escritas cuneiformes, gravuras
populares, vestígios de culturas tribais e assim por diante. Alguns traços da fisionomia do escritor
emergem dessas páginas “de ocasião”: omnívora curiosidade enciclopédica e discreto afastamento de
qualquer especialismo; respeito pelo jornalismo como informação impessoal e prazer de confiar as
próprias opiniões a observações marginais ou de escondê-las nas entrelinhas; meticulosidade
obsessiva e contemplação desapaixonada da verdade do mundo. Além de dez dessas crônicas de
passeios pelas salas de galerias parisienses, Colecção de Areia reúne outras páginas de “coisas
vistas” ou que, mesmo se nascidas de leituras de livros, têm como objeto o visível ou o próprio ato
de ver (incluído o ver da imaginação). Completam o volume três grupos de reflexões à margem de
viagens a outras civilizações — Irão, México, Japão —, onde das “coisas vistas” se abrem frestas de
outras dimensões da mente.
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A Luz nos Olhos [1982] ITALO CALVINO Tradução: Maurício Santana Dias
Companhia das Letras
1.ª edição, 2010 in Colecção de Areia, 1964
[3.Dez.2014]
Publicado por
MJA
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