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-excerto-

Cena de 'A Expiação' publicada no The Illustrated London News, September 26, 1891
O Nascimento de Naomi
À hora das orações da tarde, Israel e Ruth dirigiram-se, de mãos
dadas, à Sinagoga, situada numa travessa perto de Sôk el Fôki.
Ruth ajoelhou-se no seu lugar, na galeria, perto da teia e das
lâmpadas suspensas, e orou:
- " Senhor - Tem piedade desta Tua serva e afasta dela o castigo
que lhe coube entre as mulheres. Que os Teus olhos se voltem
para ela, Senhor, para que o marido se não envergonhe dela!
Concede-lhe um filho, visto que és bom, para que o olhar do
esposo se alegre ao vê-lo! Que não seja como ela deseja mas como
Tu o ordenares, Senhor, e a Tua serva ficará contente!"
Israel ficou de pé durante muito tempo, com a mão sobre o peito
e os olhos no chão, e rogou a Deus, como um credor que quer ser
pago, dizendo:
- Por quanto tempo ainda Te esquecerás de mim, Senhor? Os meus
inimigos triunfam e profetizam-me a Tua maldição, embuscados nas
ruas para me escarnecerem. Confunde os meus inimigos, Senhor, e
exproba-lhes os seus intentos. Lembra-Te de Ruth, suplico-Te,
porque ela é bondosa e o seu coração é humilde. Dá-lhe filhos do
Teu servo, e o seu primogénito será santificado em Ti. Dá-lhe um
filho, e ele será Teu: se for rapaz, será Rabino nas Tuas
Sinagogas. Ouve-me, Senhor, e atende os meus rogos sinceros, eu
To juro! Um filho apenas, um rapaz ou uma rapariga - é todo o
meu desejo que ponho a Teus pés. Por quanto tempo ainda Te
esquecerás de mim, Senhor?"
A comunicação do Califa a que Israel não tinha respondido, tão
perturbado estava, era um pedido do Xerife de Wazzan para ir sem
delongas àquela cidade contar os rendimentos e fixar os
tributos. O pedido fora transformado em ordem pelo Governador,
porque o Xerife era um príncipe do Islam no seu país, e em
muitas províncias mais, onde os crentes lhe pagavam tributo.
Passados três dias Israel estava pronto para iniciar a viagem,
com homens, mulas, e os camelos que levavam as tendas, à sua
porta.
Naturalmente teria que estar ausente de Tetuão durante alguns
meses, e era impossível Ruth acompanhá-lo. Nunca se tinham
separado, e a preocupação de Ruth consistia em ficarem assim
afastados durante tanto tempo. A de Israel, porém, era mais
grave.
- " Ruth" disse-lhe ele quando chegou o momento da partida, eu
vou afastar-me de ti, mas os meus inimigos ficam. Eles vêem o
mal em tudo o que eu faço, e agora também me censurarão.
Promete-me, pelo amor que tens ao teu marido, que, se te fizerem
qualquer maldade - não os verás; se te insultarem - não os ouvirás;
e, se te perguntarem alguma coisa a meu respeito - não lhes
responderás ".
Ruth prometeu que seria cega para qualquer maldade surda para
qualquer insulto e muda para qualquer pergunta que lhe fizessem
acerca dele.
E só então se despediram com muitas lágrimas e abraços.
Israel demorou-se perto de seis meses na cidade e província de
Wazzan e, tendo terminado os seus trabalhos, voltou para Tetuão,
carregado de presentes
que lhe fizera o Xerife, escoltado por soldados, e por criados
que o acompanharam até à porta de sua casa. Ali, sentada no seu
quarto, Ruth esperava-o, com os olhos orvalhados por lágrimas de
alegria, radiante com a grande novidade que ia dar-lhe.
- "Ouve", murmurou, "tenho muito que te contar."
- "Já o sabia - retorquiu ele, "já o sabia porque o li nos teus
olhos..."
- "Mas ouve", murmurou ela de novo, brincando com a gola do
caftan e corando intensamente sem se atrever a fitá-lo.
As suas orações tinham sido ouvidas, e o filho que tinham ido
pedir à Sinagoga estava para nascer. Israel ficou louco de
alegria. Correu para Ruth e apertou-a repetidas vezes contra o
peito, beijando-a com ternura.
Ficaram assim por muito tempo, ele contando-lhe o que lhe
sucedera durante a viagem, e ela falando-lhe da sua solidão
durante aqueles longos meses em que ela se tornara cega, surda,
e muda para todos, solidão que apenas fora quebrada pela
companhia de Fátima e de Habeeba.
Durante os meses seguintes, enquanto esperavam pelo filho,
Israel nunca abandonou Ruth. Era sempre um sacrifício deixá-la;
enchendo-lhe o quarto de frutos e flores, não havia desejo que
ela manifestasse, que ele não satisfizesse imediatamente; e
conversavam ternamente sobre o nome que deviam dar ao filho,
quando chegasse o dia do baptisado. Israel decidiu que, se fosse
rapaz, se chamaria David, e Ruth resolveu que, se fosse
rapariga, se chamaria Naomi.
Era com prazer que Ruth pensava que, depois de o desmamar, o
levaria à Sinagoga e diria: - Senhor: eu fui a mulher que se
ajoelhou a Teus pés, a orar. Eu pedi-Te um filho e Tu ouviste as
minhas orações". E Israel descrevia já como seu filho seria
educado para ser Rabino e servir a Deus, e como, mais tarde, os
filhos dos seus inimigos se humilhariam, pedindo-lhe uma esmola
ou um pedaço de pão.
E ambos construíam assim castelos no ar acerca do futuro do
filho que esperavam.
Chegou finalmente o momento em que a criança devia nascer, o que
coincidia com as Festas da Páscoa, no mês de Nisan.
*
Ruth mostrava uma cara aterrada, mexia os lábios mas não se lhe
ouvia a voz.
Israel indagou:
- "O que te aconteceu, minha querida, alegria da minha vida,
orgulho do meu orgulho ?"
Ruth afastou a criança do seu seio e mostrou-lha, dizendo:
- "O Senhor recebeu o meu pedido como um pecado! Olha: a criança
é muda e cega!"
Israel sentiu-se desfalecer e, com a garganta apertada,
murmurou:
- "Não! Não! Não acredito ! "
- "É verdade! É verdade!" gemeu Ruth.
- "A criança ainda não soltou nem um grito e nem sequer
pestanejou ao ver a luz!"
- "Não o creias, digo-to eu! " E, com um queixume, levantou a
criança nos braços para se certificar.
Quando a colocou em frente da janela que deitava sobre a rua
onde a profetisa o amaldiçoara, os olhos da criança não se
fecharam, nem as pupilas se contraíram. Ele principiou a tremer
de tal forma, que a parteira tirou-lhe a criança dos braços e
deitou-a ao lado da mãe.
E Ruth tornou, chorando:
- "Se fosse rapaz, nunca poderia servir na Sinagoga ! Nunca!
Nunca!..."
Israel começou então a praguejar. Os seus inimigos tinham já
entrado para dentro do quarto e diziam:
- "Paz! Paz! Paz!
Judas ben Lolo, o mais velho de todos, resmungou, dizendo:
- Não está escrito que aquele que tiver sido castigado por Deus,
não poderá servi-lo nos seus templos ?"
Israel fixou em silêncio os que o rodeavam, primeiro a sua
mulher, depois os seus inimigos, que ele próprio convidara.
Começou então a rir, com um riso de arripiar, gritando:
- "Que importa? Qualquer macaco é uma gazela aos olhos da mãe!
Cambaleou, os joelhos vergaram e, com um gemido surdo, caiu para
a frente, batendo com a cara no chão.
A parteira e a escrava levantaram-no e humedeceram-lhe os beiços
com água: os seus inimigos voltaram-lhe as costas, abandonando-o
e murmurando entre si: - "O Senhor mata e dá a vida: rebaixa e
levanta; e faz escorregar para dentro do fosso o homem mau que o
cavou para outrem."
*
A Infância de Naomi
Nos primeiros momentos após a sua humilhação, depois de ter
ficado confundido perante os inimigos que ele esperava
confundir, Israel só pensou em si próprio; mas o coração
generoso de Ruth, mesmo nesse instante, só pensava na criança.
Ela tinha nascido cega, surda e muda. Nada lhe fora concedido
para gozar a vida. Por isso Ruth, virando-se para Deus pedia que
lha levasse. E clamava:
- Leva-ma! Leva-ma! Vem de pressa, meu Deus, e leva-ma!"
Mas a criança não morreu. Viveu - e tornou-se
robusta. Ruth criou-a ela mesma e à medida que a ia alimentando
com o seu leite, ia-se-lhe afeiçoando de tal maneira que
esqueceu a súplica que dirigira a Deus. Assim, pouco a pouco,
voltou-lhe a coragem, dia a dia o coração a ia enganando, e hora
a hora um anjo vindo do céu parecia segredar-lhe:
- Enche o teu coração de esperança. Deus não castiga de vontade.
Talvez a criança não seja cega, talvez não seja muda, talvez não
seja surda... Quem poderá afirmá-lo? Espera e verás!
Durante os primeiros meses, Ruth não encontrava diferença alguma
entre a sua filha e as das outras mulheres. Às vezes, ajoelhava
junto do berço e fixava com atenção os olhos da pequenina, e só
via uns belos olhos azues, onde se não notava qualquer defeito,
em que nada havia que indicasse que para eles tudo era
escuridão. Outras vezes olhava a linda concha da orelha, via que
ela era tão redondinha e perfeita como uma conchinha da praia, e
nada mostrava que ela não ouvisse a voz do mar, nem que lá
dentro tudo fôsse silêncio.
Portanto, Ruth acarinhava em segredo uma esperança, e o coração
segredava-lhe: "Tudo está bem, a criança vai bem. Ela olhará
para ti e ver-te-á; escutará a tua voz e ouvir-te-á; com a sua
vozinha ainda há-de falar-te, e isso dar-te-á uma grande
alegria. E então, uma imensa serenidade se lhe espalhava pelo
rosto, transfigurando-a.
Mas, quando chegou à idade em que as crianças começam a ver, já
familiarizadas com a luz, olhando para as mãozitas, fitando os
dedinhos, agarrando-se ao berço para olhar em volta numa
investigação
calma e hesitante de tudo o que as rodeia - ainda os olhos da
filha de Ruth não começavam a ver, antes ficavam inertes e
vagos.
Quando chegou a idade em que as crianças começam a ouvir a cada
instante, a doce tagarelice da carinhosa mãe; quando começam a
repetir as palavras, balbuciando sons-os ouvidos da filha de
Ruth nada ouviam, e a sua boca continuava muda.
Ruth perdeu a coragem; mas o anjo do céu ainda voltou com
palavras de esperança, segredando-lhe:
- Espera, Ruth! Tem esperança por mais algum tempo. "
Por isso Ruth reteve as lágrimas, e de novo se curvou sobre o
berço da filha, espiando se um sorriso viria responder ao seu,
escutando um balbuciar daqueles lábios. Mas nunca um som humano
quebrou o silêncio entre as palavras que, trémula, ela própria
pronunciava; e nunca na face da filha passou o reflexo do seu
lacrimoso sorriso.
Fazia dó ver o seu sofrimento, e ainda mais os
seus esforços para o esconder. Todos os dias, ao meio-dia,
trazia a criança para o pátio, e espreitava
se a criança pestanejava com a luz do sol; e se, por
acaso, Israel se aproximava, curvava a cabeça e
dizia:
-"Que dia tão agradável está hoje, e como é bom sentar-se ao
Sol! "
- "É verdade - respondia ele - é verdade!
Também, quando algum pássaro cantava na
figueira que crescia no pátio, pegava na criança,
aproximava-se com ela o mais possível para ver se
ela ouvia; mas, se Israel a surpreendia, começava a
rir - com um riso estridente como um grito - e tapava a cara
envergonhada.
- Como estás alegre, meu amor! dizia ele, e entrava em casa.
Durante algum tempo, Israel tentou ser condescendente, fingindo
não ver o que via, nem ouvir o que ouvia. Mas todos os dias o
seu coração sangrava ao ver Ruth, e sentindo que não podia
suportar por mais tempo essa situação, porque a sua alma sofria,
exclamou:
- "Acaba com isso, Ruth! acaba com isso, pelo amor de Deus! A
criança é uma alma sem vida, é um espírito cativo: Os olhos são
escuridão, como a dum túmulo; e os ouvidos são silêncio, como o
das campas. Nunca ela sorrirá a um sorriso da mãe, nunca ela
responderá às palavas do pai. O primeiro som que ela ouvirá será
o das trombetas celestiais, e o primeiro ser que ela verá será
Deus...."
Ao ouvi-lo, Ruth atirou-se ao chão, chorando desesperadamente. A
esperança que acalentava morrera. Israel já não podia
consolá-la, porque o seu coração se empedernira. Soltou um fundo
suspiro, e dirigiu-se para a Cidadela, onde fazia o seu trabalho
maldito.
A criança viveu, e cresceu. Conforme já tinham combinado antes
dela nascer, deram-lhe o nome de Naomi, o que, como ela não o
pudesse conhecer, parecia troça.
Com quatro anos, era uma criança duma belesa fina e delicada.
Apesar da sua origem judaica, era loura como o dia, e fresca
como a aurora. Se nos seus olhos reinavam as trevas, havia luz
na sua alma;
se, para os seus ouvidos só existia o silêncio, havia música no
seu coração. Era mais clara do que o sol que não podia ver, e
mais doce do que as canções que não podia ouvir. Era tão alegre
como um passarinho na sua pequena gaiola, sem nunca se queixar
das grades que o prendiam. E, como o pássaro que canta de noite
- a sua alma risonha cantava em plenas trevas.
Um único som saía de seus lábios: era o riso. com ele se deitava
à noite e se levantava de manhã. Ria enquanto a penteavam, e ria
ainda quando, de madrugada, saía do seu quarto, dançando.
Duas únicas luzes alumiavam o seu espírito: o tacto e a
faculdade de sentir. Só com elas - parecia notar a diferença
entre o dia e a noite, perceber quando o sol brilhava ou quando
o céu escurecia. Conhecia a mãi pelo tocar carinhoso de suas
mãos, e o pai pelo picar da barba. Conhecia as flores que
nasciam nos campos, fora das portas da cidade, e colhia-as,
guardando-as no regaço, como faziam as outras crianças e
levando-as consigo para casa. Quási parecia conhecer também as
cores das flores, porque as que escolhia para engrinaldar os
cabelos eram vermelhas, e as que punha ao peito eram brancas. E,
na verdade, ela própria era uma flor, à qual só o vento podia
segredar e só o sol podia falar.
Eram comoventes os esforços que ela fazia, às vezes, para se
aproximar das pessoas que a rodeavam. O seu coração era o de uma
criança, e ela não conhecia maior prazer que o de brincar com
outras crianças. Mas a casa de seu pai era amaldiçoada e nenhum
filho dos vizinhos tinha licença para
atravessar o limiar da sua "porta; por isso ela só encontrava
alguma criança quando saía pela mão da mãe, a passear pelos
campos.
Ruth percebeu isto - e só então, pela primeira vez, teve
consciência do isolamento em que tinha vivido, desde que casara
com Israel.
Ela ainda tinha como companheiro e camarada o marido, mas a sua
pequenina Naomi estava dupla e até triplamente isolada:
primeiro, como filha única; depois, como uma criança cujos pais
não têm relações com pais de outras crianças; e finalmente
porque era cega e surda.
Mas Israel também percebeu esta situação e, um dia, trouxe para
casa um pretinho da Cidadela, com uma cara meiga e muito redonda
e com uns grandes olhos inocentes como os dum anjo. O garoto
chamava-se Ali, e tinha quatro anos. O pai matara a mãe, porque
ela lhe fora infiel, e abandonara o filho; que, não tendo
ninguém que o resgatasse, fora executado nesse mesmo dia, O
pequeno Ali tinha ficado só no mundo, e por isso Israel tomou
conta dele.
Ruth recebeu bem o rapaz, e adoptou-o. Ele era Maometano pelo
nascimento, mas ela educou-o em segredo como Judeu.
Durante alguns anos ela não fez diferença alguma, visível a
olhos estranhos, entre ele e a sua própria filha. Comiam,
passeavam, brincavam e dormiam juntos, e a negra cabecita do
garoto repousava na mesma almofada branca que a loura cabeça da
rapariga.
Que estranhas e patéticas eram as relações entre estes dois
exilados da humanidade! Nem se sabia se, ao vê-los, se deveria
rir ou chorar.
Ali sentia um certo espanto e confusão quando dizia a Naomi - "
Vem. " e ela não ouvia; quando lhe perguntava - Porquê?" e ela
não respondia; quando lhe dizia - Olha! e ela não via, embora
ele visse os olhos azues dela fitarem-no. Depois admirava-se e
divertia-se ao sentir os deditos nervosos sempre a tocar-lhe nos
braços, nas mãos, no pescoço ou na garganta. Todavia, muito
antes de ter percebido que Naomi era diferente dele, que a
natureza lhe dera olhos, mas que estes não viam como os dele;
ouvidos que não ouviam como os seus, língua que não falava como
a dele - já a própria natureza tinha galgado as barreiras que os
separavam. Viu que Naomi conseguia compreendê-lo, fizesse o que
fizesse, bem como quási tudo o que, na sua infantilidade,
dissesse. E assim, brincava com ela como brincaria com qualquer
outra criança, rindo os dois, chamando-a, e fazendo diante dela
toda a casta de brincadeiras próprias da sua idade. Contudo,
parecia que uma misteriosa intuição o fazia compreender que
tinha o dever de olhar por ela. Quando a sua garotice de rapaz o
levava a fugir de casa, e a aventurar-se pelas ruas com Naomi,
iam encontrá-lo nos lugares mais concorridos, às vezes atrás das
mulas e dos burros, com a mão de Naomi apertada entre as suas,
lutando para afastar as pessoas da frente deles, e gritando com
uma vozita de falsete: "Arre! Ar-re! Ar-r-re! Para Naomi, a
vinda do pretito fora um motivo de enorme prazer. Tudo o que Ali
fazia, ela queria fazer. Se ele corria, ela corria; se ele se
sentava, ela sentava-se também; e ria com o coração cheio de
alegria, embora não ouvisse o que ele dizia, não
visse o que ele fazia, nem percebesse o que ele queria dizer.
No tempo das colheitas, quando Ruth os levava para os campos,
ela ia às cavalitas de Ali, tentava agarrar as espigas de
cevada, saltava e ria - embora não visse as louras espigas, não
ouvisse as cantigas dos segadores nem os gritos de Ali que a.
correr lhe ia gritando, esquecendo-se com a brincadeira que ela
o não percebia.
À noite, quando Ruth os ia deitar, Ali ajoelhava voltado para os
lados de Jerusalém, Naomi ajoelhava-se junto dele cheia de
seriedade, deixando de rir. Enquanto ele rezava a sua oração, a
boquita dela movia-se, como se também rezasse, punha as mãos e
levantava os olhos ao alto. E Ali dizia:
- Que Deus abençoe o Pai, a Mãe, Naomi e toda a gente.
A pequenita tocava-lhe nas mãos e na garganta, passava-lhe os
dedos pela cara, descendo das pálpebras aos lábios, e imitava-o,
parecendo com o seu silêncio responder-lhe.
Que cenas tão belas e dignas de compaixão! Quem poderia vê-las
sem lágrimas ? Havia uma coisa evidente: se a alma da criança
estava prisioneira, o facto é que vivia; se estava manietada,
todavia não podia morrer; era imortal, estava pura, e só
esperava a sua hora para ser ligada a outras almas pela palavra.
Os dias passaram. Naomi foi crescendo em beleza e em doçura -
mas nenhum anjo desceu do céu para abrir aquelas janelas
fechadas, que eram os seus lindos olhos, nem aqueles pesados
reposteiros que lhe cerravam os ouvidos...
Morte de Ruth
Apesar de toda a sua alegria e belesa, Naomi representava um
pesado encargo, que só o amor podia suportar. Pensar nela
durante o dia; sonhar com ela durante a noite; nunca se
aproximar dela sem ter que lamentar aquela sua desgraça; nunca a
abandonar sem o receio de qualquer desastre que tão facilmente
lhe podia suceder; ver, ouvir e falar por ela - era realmente um
fardo tremendo e tirânico.
Ruth não conseguiu resistir-lhe.
Durante sete anos foi ela os olhos de sua filha, os ouvidos de
seus ouvidos, a voz da sua garganta. A vista começou a
turvar-se-lhe, e o ouvido a enfraquecer. Era quási como se os
tivesse gasto com Naomi, num sacrifício de amor e de piedade.
Pouco depois as forças começaram a abandoná-la e percebeu então
que a sua hora soara, e que tinha de abandonar para sempre
aquela pesada tarefa.
Mas esta tinha-se-lhe tornado querida, e sentia-se presa a ela.
Quando olhava para a filha pensava que tendo dispendido as suas
forças com o amor que lhe dedicara desde a primeira hora - tinha
agora que a deixar entregue ao amor e aos cuidados de outrem.
Passou a viver num quarto do andar superior, ordenando a Fátima
e a Habeeba que não deixassem lá ir Naomi, pois não queria
revoltar-se, vendo a filha a cuja infelicidade não podia valer.
*
Era ao pôr do sol, e os últimos raios, que agora iluminavam o
rio, os laranjais e as planícies ondulantes, entravam pelo
quarto dentro, numa faixa de luz dourada, através da janela que
olhava para o poente, e vinham bater em cheio na cara pálida e
desfeita de Ruth.
Pela outra janela do quarto, que olhava a cidade, via-se o
mercado até à Mesquita e ao Forte da colina; subia das ruas, já
escuras, o ruído do palmilhar da multidão e do seu vozear.
Os Judeus de Tetuão voltavam todos juntos para
o seu pequeno bairro para que os Mouros, a quem ele pertencia,
os pudessem encerrar na Mellah durante a noite.
Naomi já estava na cama, e por isso Fátima trouxe-a em camisa de
dormir. Parecia perceber para onde a levavam, porque se riu
quando Fátima lhe pegou na mão, e foi dançando pelo caminho.
Mas, quando chegou à porta, deixou repentinamente de rir,
tomando uma expressão triste, como se alguma coisa naquele
quarto em que havia tanto sofrimento, tivesse perturbado os
sentidos que lhe restavam.
O maior desgosto que um cego e surdo pode sofrer é, talvez, o de
nunca poder sentir as boas-vindas que lhe são dirigidas.
Quando Naomi parou no limiar da porta, Israel, em silêncio,
pegou-lhe na mão e conduziu-a à cabeceira da cama onde a mãe
descansava; igualmente em silêncio, Ruth estreitou sua filha
contra o peito. Por um momento, Naomi pareceu indecisa. Tocou
nos dedos de sua mãe, mas eles tinham mudado, estavam mais
magros e longos. Tocou-lhe então na cara, e sentiu que também
estava diferente: era agora engelhada e fria.
E, abandonando a pressão dos dedos e o sorriso da face, inclinou
a cabeça para o lado, como alguém que escuta atentamente, e
depois, suavemente, soltou-se dos braços que a enlaçavam.
Ruth, que a observava com os olhos marejados de lágrimas,
começou a soluçar.
- "A minha filha não me conhece! exclamou ela. Não te tinha eu
dito que isto me despedaçaria o coração?"
- Experimenta outra vez", disse Israel. "Experimenta outra vez".
Ruth, contendo as lágrimas, chamou Fátima, dizendo-lhe que lhe
trouxesse novamente a criança. Então, desapertando o colar que
lhe pendia do pescoço, pô-lo no de Naomi, e tirando também os
braceletes que tinha nos pulsos, pô-los nos de sua filha. Fez
isto, para que Naomi pudesse lembrar-se das mãos que sempre
tinham sido carinhosas para ela.
A criança, logo que se sentiu enfeitada com um colar e
pulseiras, obedecendo a um irresistível instinto feminino, não
pensou mais em Ruth, que a observava, e esperava carícias de
agradecimento e beijos de alegria, e, saltando para o meio do
quarto, começou a rir e a dançar.
A luz do sol poente, que pousara na cara transtornada de Ruth,
refulgia nas jóias da criança e batia nos seus olhos cegos,
dourando os seus cabelos louros, e dando um tom avermelhado à
sua camisa de noite - enquanto ela dançava e ria, como que
festejando a morte de sua mãe.
Da morte nada sabia, menos ainda que o próprio Adão antes de
Abel ser assassinado - e mais parecia que um diabo fugido do
Inferno se tinha apossado daquele coração inocente, para o fazer
escarnecer da morte da maior amiga que tinha no mundo.
Continuou a dançar desordenadamente, não com o passo incerto
duma criança cuja fala é também ainda incerta, mas desvairada e
delirantemente.
No quarto, que escurecia rapidamente, ainda passava junto aos
pés da cama a faixa avermelhada da
luz do sol, no meio da qual a figurinha de Naomi saltava e ria.
Soltando um grito horrível, Ruth caiu para trás, voltando-se
para a parede. A escrava negra baixou a cabeça para não ver. E
Israel escondeu a cara com as mãos, gemendo na sua agonia sem
lágrimas.
- Oh! Senhor Deus! Tens-me castigado a chicotadas, mas agora
castigas-me com escorpiões !
Ruth voltou rapidamente a si.
- "Tragam-ma aqui outra vez !" gemeu ela. E de novo Fátima
trouxe Naomi para junto da cama.
Então, abraçando-a e beijando-a, Ruth parecia esquecer no meio
da sua perturbação que Naomi não a podia ouvir, e exclamou:
- "Sou a tua mãe, querida, ainda que tão doente e tão mudada!
Não a conheces, Naomi? Sou a tua mãe, meu amor, a tua querida
mãi que tanto te ama e que tem agora que te deixar para nunca
mais te ver!"
Só Deus poderia dizer o que naquele terrível instante conseguiu,
finalmente, impressionar a consciência da criança.
Primeiramente, empalideceu ao sentir o abraço que a retinha;
depois, corou; em seguida, com os deditos nervosos, agarrou de
novo as mãos da mãe; os lábios começaram a tremer-lhe, e
finalmente, atirando-se para os braços de Ruth, aninhou-se
neles. Ruth caiu sobre o travesseiro, mas agora com um grito de
alegria; a escrava negra chorava voltada para a parede, e Israel
incapaz de se dominar por mais tempo, sentiu-se abatido e sem
forças. O sol desaparecera, o quarto escurecia rapidamente,
porque o crepúsculo naquelas regiões é de curta
duração; as ruas estavam silenciosas, e o Mueezzin,
no minarete próximo, bradava no meio do silêncio:
- Deus é grande ! Deus é grande! " Passados momentos a pequenita
adormeceu nos
braços de sua mãe; ao ver isto, Fátima quis levantá-la e levá-la
para a sua cama, mas Ruth não consentiu:
- Não, deixem-ma, deixem-me tê-la junto de mim enquanto eu
puder.
- Ninguém ta tirará" sossegou Israel. Ruth olhou para a criança
e suspirou:
- "É duro deixá-la sem nunca lhe ter ouvido a
voz !
- "Essa é a maior amargura, concordou Israel.
- "Eu não voltarei para perto dela", continuou Ruth, "mas ela
virá ter comigo e então talvez - quem sabe? - talvez depois da
Ressurreição eu consiga ouvi-la".
Israel não respondeu.
Ruth tornou a contemplar a filha e exclamou:
- "Meu infeliz amor! Quem tomará conta de ti quando eu partir?"
- "Descansa, descansa e dorme", disse Israel.
- "Ah! Sim! Eu sei" - tornou Ruth - "é uma loucura; és o seu pai e
também a amas. Ainda assim, promete-me... promete..."
- "Nunca lhe faltará o amor e o carinho", interrompeu Israel. "E
agora fica sossegada, minha querida; sossega e dorme".
Ruth estendeu-lhe a mão: - "Sim, era o que eu queria dizer",
murmurou sorrindo. E uma nuvem de tristeza sombreou-lhe a face.
"Mas quando eu tiver
partido", disse ela, "Naomi saberá alguma vez que a sua mãi que
já morreu a prejudicou ?"
- "Nunca a prejudicaste", contestou Israel. "Mas acaba com
isso".
- "Deus castigou-nos pela nossa oração, meu amigo", continuou
Ruth.
- "Paz! Paz!" respondeu Israel.
- "Mas Deus é bom - insistiu Ruth, "e não afligirá certamente a
nossa filha por muito mais tempo".
- "Cala-te! Cala-te, que vais acordá-la!" disse Israel, sem
mesmo pensar o que dizia. "Agora sossega e dorme, querida.
Também estás fatigada".
Enquanto houve luz, Ruth ficou sossegada olhando a sua filha
adormecida, e quando escureceu por completo, escutando o seu
brando suspirar. Depois murmurou, dirigindo-se à filha com
alegria infantil:
- "Sim! Sim! Teu pai tem razão; tua mãe deve ficar sossegada,
muito sossegada, para que a sua pequena Naomi possa dormir
muito, por muito tempo, e acordar de manhã, muito feliz e
contente. Que linda então estará! Tão fresca e rosada!..."
Parou por um momento. O seu respirar tornou-se mais apressado:
- "Mas estarei eu aqui para a ver? Estarei?" Parou novamente e,
como que querendo afastar
aquela idea, começou a cantar-a cantar em voz tão baixa que mais
pareciam gemidos. Depois deixou de cantar e voltou a falar, mas
desta vez num murmúrio entrecortado:
- "Como o seu cabelo é sedoso e brilhante. Oxalá Fátima se
lembre de o lavar todos os dias! Deve enrolá-lo nos dedos para
lhe conservar estes lindos caracóis... Oh! Porque é que Deus fez
tão bonita a minha filha?... Valha-me Deus, o vestido que trazia
de manhã precisava de ser cosido nas mangas ; será bom que
Habeeba repare nisso. Há ainda a catnisita... Será ela sempre
surda, cega e muda? Poderá ser que veja quando eu... Dizem que
os anjos são mandados... Sim! Sim! É isso; quando eu estiver lá
irei ter com Deus e dir-lhe-ei: - Oh Senhor ! A minha filhinha
que ficou lá em baixo é... Não podeis imaginar, oh Senhor,
quantas coisas podem acontecer a alguém como ela... Deixai-me,
deixai-me ir olhar por ela.. Oh Senhor! Deixai-me
ser a sua..."
A fraqueza dominara-a, e finalmente ficou mais calma. Israel
sentou-se silenciosamente junto à cama. O coração parecia
saltar-lhe fora do peito. A escrava negra estava a um canto,
encostada à parede. Passou-se algum tempo: Ruth acordou. Estava
numa grande excitação.
- "Israel! Israel! gritou num tom quási alegre. Tive uma visão.
Era Naomi, que já não estava cega, nem muda, nem surda... Era já
mulher, mas eu logo a reconheci. Ainda nem era bem uma mulher,
mas uma jovem tão bela, tão linda! Sim! E falava, via e ouvia!"
Israel julgou que Ruth delirava, e experimentou sossegá-la, mas
a sua agitação não era de molde a ser dominada.
- "O Senhor viu finalmente as nossas lágrimas", clamou ela.
"Esqueceu o nosso pecado. Estamos perdoados. A nossa filha ainda
será feliz..."
Israel nem tentou contradizê-la, e ante aquela alegria, que ele
via tão bela mas que julgava inútil - não pôde, por fim, reter as lágrimas. Novamente Ruth tornou a
adormecer e, pouco depois, voltou a acordar:
- "Agora estou pronta", disse num suspiro, "perfeitamente
preparada, meu Deus, - sim, perfeitamente preparada".
Então, com a mão que tinha livre, tateou na escuridão,
procurando Israel e, tocando-lhe na testa, acariciou-lha,
dizendo docemente:
- "Adeus, meu bom amigo!" E Israel respondeu:
- "Adeus!..."
- "Boa noite", suspirou ela.
Israel, pegando-lhe na mão, levou-a da testa aos lábios e,
soluçando, disse ainda:
- "Boa noite, minha querida!"
Então ela beijou com os seus lábios descorados os olhos cegos da
filha; nesse instante o Espírito de Deus caiu sobre ela,
chamou-a a Si - e ela morreu.
Trouxeram luz para o quarto e Fátima, vendo que chegara o fim,
quis arrancar Naomi dos braços de Ruth, mas a criança acordou
quando lhe tocaram e, lançando os bracitos ao pescoço da mãe já
morta, cobriu-lhe a boca com beijos. E, quando percebeu que
aqueles lábios não respondiam aos seus beijos, e que os braços
que a rodeavam já não a estreitavam, mas a tinham largado -
abraçou-se ainda com mais força, e as lágrimas saltaram-lhe dos
olhos.
*
Só Espírito
Foi fielmente cumprida a promessa que Israel fez a Ruth à hora
da morte: que a Naomi nunca faltaria amor e carinho. Desde esse
momento, ele tornou-se o pai e a mãe daquela criança.
Ao tomar sobre si esse encargo, analisou a situação, e achou-a
pior do que se pode imaginar, e do que palavras podem traduzir.
Era fácil dizer que ela era cega, surda e muda, mas era bem
difícil avaliar a realidade que tão grande desgraça implicava.
Ela era como uma irmãzinha vivendo no seio da família, mas muito
afastada dela... Tão afastada, como se vivesse noutro planeta.
Nenhuma simpatia humana se lhe podia demonstrar, quer na
alegria, quer na dor, quer na tristeza. Não tinha qualquer"
papel a desempenhar na vida. No meio dum mundo cheio de luz, ela
vivia imersa em escuridão, e envolvida em completo silêncio, no
meio dum universo cheio de vozes. Era uma alma enterrada viva.
E que conhecia Israel daquela alma ?
Sabia que ela tinha memória, porque Naomi se
lembrava da mãe; sabia-a capaz de amar, porque sentira a falta
da mãe. Mas de que valia memória e amor, sem fala e sem vista?
Era como que um íman fechado numa caixa: inútil em absoluto.
Pensando nestas coisas, Israel viu bem, pela primeira vez, como
era horrível a desgraça da sua pobre filha, sem a mãe. Ser cega,
era já uma desgraça; ser cega e surda, não era ser desgraçada
duas vezes, mas mais de cem mil; e ser cega, surda e muda, não
era ser desgraçada três vezes, mas mais do que qualquer número
que se possa imaginar.
Ainda que Naomi fosse cega, se ela pudesse ouvir, o pai poderia
conversar com ela, poderia consolá-la quando sofresse dores,
partilhar das suas alegrias e, finalmente, neste mundo que Deus
fez tão belo, tão cheio de coisas dignas de serem contempladas e
amadas, ele poderia ser a vista daqueles olhos que não viam.
Por outro lado, se Naomi fosse surda, mas pudesse ver, seu pai
poderia comunicar com ela por meio da luz dos seus olhos, e se
sofresse, ele vê-lo-ia, se sentisse prazer, ele percebê-lo-ia -
e os homens, o mundo, o mar e o céu, seriam para ela livros
abertos em que poderia ler.
Mas, sendo simultaneamente cega e surda e, para cúmulo, muda -
que palavras haverá para descrever a sua desolação, o vácuo
perfeito do seu isolamento, estando à parte, aparada, afastada,
encerrada, prisioneira, algemada, alma que não comunicava com as
outras, alma viva mas, contudo, sem vida?
Israel, analisando assim a triste situação em que Naomi se
encontrava, devido à sua grande
infermidade, foi levado a pensar no modo como poderia comunicar
com aquela alma obscura e silenciosa. E começou por tratar de
saber quais os dons que lhe tinham sido deixados, para os
desenvolver com vantagem para a filha, aperfeiçoando-os para sua
consolação e alegria. Mas nenhum dom lhe pôde descobrir, excepto
os que lhe tinha reconhecido desde o princípio: o sentido do
tacto e a faculdade de sentir. Com este pouco, ele tinha que
levá-la a ver - pois doutra forma ela estaria sempre na
escuridão; e levá-la a ouvir - ou o silêncio seria para sempre o
modo de se exprimir. Lembrou-se então que, quando vivia em
Inglaterra, ouvira falar de coisas extraordinárias sobre o modo
dos surdos falarem, ainda que sem ouvir, e sobre o modo dos
cegos e dos surdos perceberem e responderem. Assim, mandou vir
de Inglaterra muitos livros que versavam as maneiras de tratar
essas infelizes crianças e, depois de os receber, estudou-os
minuciosamente, ficando entusiasmado com os trabalhos
maravilhosos que descreviam. Porém, quando quis aplicar os
princípios que estudara, desanimou, porque os obstáculos eram
enormes. Uma e mais vezes experimentou, mas sempre sem
resultado, atingir com um simples raio de luz a alma invisível
de Naomi, através do seu envólucro de carne e osso. Nem o mais
simples pensamento, nem o mais pequeno elemento duma idea pôde
chegar até àquele espirito, de tal forma eram espessas as
paredes que o envolviam. "Sim" era um mistério que se lhe não
podia revelar; e "Não" um problema de resolução superior ao seu
entendimento. Sorrisos ou uma cara zangada, não serviam para a
ensinar. Não havia método aplicável ao seu espírito ou ao seu
coração. A não ser fisicamente, era impossível dominá-la. Só por
impulsos se dirigia.
Israel não desanimou. Se num dia estava desanimado, no dia
seguinte sentia-se forte. Por fim, já conseguira, depois de
muito pensar e de muito trabalhar, que Naomi compreendesse que
quando ele lhe acariciava a testa era sinal que aprovava o que
ela fizera e, quando lhe tocava na mão, era para concordar com o
que ela pretendia fazer. Nesta altura cessou, repentinamente, o
seu trabalho. A sua esperança não esmorecera, nem lhe faltara a
energia, mas tinha-se-lhe arreigado a convicção de que tais
esforços, neste caso, iam ofender a Deus.
Naomi não era só uma criatura enferma, produto da mão esquerda
da Natureza, - era também um ser castigado pela mão direita de
Deus. Era um monumento vivo do pecado que, aliás, não era seu.
Tornava-se inútil prosseguir. A criança devia ser deixada tal
como Deus a fizera.
Todavia, se a Naomi faltavam os sentidos que teem todos os seres
humanos, parecia comunicar com a natureza por meio de outros
órgãos que eles não tinham. Era como se o próprio espírito a
tivesse ensinado, e nessa fonte ela tivesse bebido o poder que
tinha. Contar tudo o que ela sabia fazer para guiar os seus
passos, dirigir os seus divertimentos e mostrar as suas afeições
- seria ir além dos limites fixados ao que é crível. Realmente,
era como se Naomi, cega, pudesse ver uma luz que mais ninguém
via, e sendo surda, pudesse ouvir vozes que mais ninguém ouvia.
Assim, quando passava saltando pelo corredor, ela percebia
quando alguém se aproximava, porque estendia as mãos e parava.
Ainda mais: ela também conhecia quem era, tão bem como se os
seus olhos e os seus ouvidos lho indicassem, porque, sempre que
era o pai, estendia as mãozitas para lhe agarrar a mão esquerda
e encostá-la à sua cara; sempre que era o pequeno Ali, curvava
os braços para o abraçar pelo pescoço; sempre que era Fátima,
saltava-lhe para o colo; e sempre que era Habeeba, passava
adiante.
Se ia com Ali pelas ruas, distinguia a porta da Mellah, da da
cidade, e as ruas estreitas, do amplo Sôk. Se passava pela
imponente Mesquita, no largo do mercado, diferençava-a das lojas
baixas que se aninham aos lados, por detrás e em volta. Se uma
caravana de mulas e camelos se aproximava, distinguia-a dum
ajuntamento de gente; e, se passava por uma encruzilhada de
ruas, parava e voltava-se para uma e para outra.
Com o decorrer do tempo, ela chegou a conhecer tudo, dentro e em
redor de Tetuão - a cidade dos Mouros, a Mellah dos Judeus, a
Cidadela e a estreita ladeira que para lá conduzia, o forte
sobre a colina e o rio sob os muros da cidade, os montes que
formavam o vale, e até mesmo alguns dos seus desfiladeiros
rochosos. Podia seguir o seu caminho entre estas coisas sem
auxílio nem guia, e nenhuma vigilância se lhe podia impor,
a-fim-de a resguardar dum caminho perigoso.
Enquanto Ali era pequeno, era o seu companheiro inseparável,
sempre pronto para qualquer aventura
que o espírito irrequieto lhe pedisse; mas, depois dele crescer,
mandavam-no à escola de manhã e à tarde, e ela vaguearia
sozinha, se não tivesse uma cabrinha branca, que o pai lhe tinha
comprado para ser companheira das suas brincadeiras.
Como o dom de sentir era a sua vista, e o tacto o seu ouvido, a
testa sentia o vento, e as plantas dos pés a relva dos campos;
preferia andar de cabeça descoberta, quer o sol escaldasse quer
o ar estivesse fresco, e descalça, desde o romper da manhã até
as estrelas brilharem. Assim, lançando para longe as chinelas e
o grande chapéu de palha que as raparigas judias usam,
embrulhada no seu chalé branco, que caía negligentemente em
dobras graciosas, acompanhada da cabrinha que a precedia, embora
não a vendo nem a ouvindo, ela trepava à colina para além do
forte e ficava de pé no cume, como um espírito pairando no ar.
*
Naomi nada conhecia de Deus, não tendo nenhum modo de comunicar
com os homens. Deus condená-la-ia por isso, e expulsá-la-ia para
sempre? Não, não, Deus não lhe podia exigir boas obras naquela
mudez, nem trabalho naquelas trevas. Ela
não tinha olhos para ver o mundo, lindo como Deus o criara, nem
ouvidos para escutar a sua palavra sagrada. Deus tinha-a criado
tal como ela era, e não ia destruir o que tinha feito. Antes
olharia com amor e piedade para a sua filha, que tão longa e
cruelmente sofrera no mundo, e destiná-la-ia certamente a ser
uma santa, abençoada no céu.
Israel tentava consolar-se com estas ideas, mas em vão. Era um
Judeu, no mais íntimo do seu ser, e dizia para consigo que tinha
sido o seu desejo criminoso, e não a vontade de Deus, que tinha
trazido Naomi a este mundo tal como ela era. E então, no dia do
juízo final, como poderia ele responder pela sua alma?
E via diante de si as infindáveis expiações pela alma daquela
que não conhecia Deus. Eram estes os mais cruéis terrores das
suas noites passadas em claro, mas por fim sossegou, porque viu
qual era o dever que tinha a cumprir. Era seu dever para com
Naomi falar-lhe de Deus, e revelar-lhe a palavra do Senhor! Que
importava que ela não pudesse ouvir ? Conquanto ela tivesse
tanta compreensão como as areias do mar, pelo caminho da luz só
Deus a podia conduzir. Que importava que ela não pudesse ver?
Com os olhos da alma é que se vê Deus, e nunca nenhum homem o
viu com outros.
Por isso, todos os dias, daí por diante, ao pôr do sol, Israel
levando Naomi pela mão, subia a um quarto do andar superior, o
mesmo em que Ruth
tinha morrido, tirava dum armário a Bíblia, lia-lhe os
mandamentos de Deus ditados por Moisés, e falava-lhe dos
Profetas e dos Reis. Enquanto ele lia, Naomi sentada a seus pés,
segurava nas suas a mão que o pai tinha livre, encostando a cara
às mãos.
O que a pobre rapariga pensava deste novo hábito, o mistério que
era para ela, só os olhares que mergulham na treva o poderiam
alcançar; mas por fim, logo que o sol se punha - porque ela
conhecia quando o sol estava posto - a própria Naomi pegava na
mão do pai, e levando-o para o quarto de cima, ia buscar o livro
e punha-lho nos joelhos.
*
E assim, grande na sua
fé, Israel todas as noites lia para Naomi. Quando o seu espírito
estava magoado pelas muitas afrontas que suportara durante o
dia, a sua voz era rouca, e lia então a lei que diz:
"Não amaldiçoarás o surdo, nem porás nenhum obstáculo diante do
cego."
*
E assim, durante noites seguidas, quando o sol já tinha
desaparecido, Israel lia as Leis e cantava os Psalmos para
Naomi, para sua filha, que era cega e surda. E apesar de Naomi
não ouvir, nem ver, nas horas silenciosas que passavam juntos,
havia sempre mais alguém no quarto com eles, e esse alguém era
Deus.
*
A Visão do Bode Expiatório
Aconteceu naquela noite, depois do pôr do sol, quando Naomi,
conforme o costume, levou o pai ao quarto de cima, e foi buscar
a Bíblia ao armário da parede, para a pôr sobre os joelhos do
pai, que este leu uma passagem onde as páginas se abriram por si
mesmo, mal sabendo o que ia ler quando começou, porque tinha o
espírito angustiado pelas barbaridades praticadas naqueles dias.
A passagem onde o livro se abrira era a seguinte:
Aarão tirou à sorte dois
bodes, um para o Senhor e outro para ser o bode expiatório.
Então ele matará o bode que é sacrificado pelos pecados, que são
de todo o povo, e porá o sangue dentro de um vaso. E ele fará um
sacrifício no lugar santificado, por causa da impureza dos
filhos de Israel, e por causa das ofensas de todos os seus
pecados... E quando tiver acabado a purificação do lugar
santificado, do tabernáculo da congregação, e do altar, irá
buscar o bode vivo; e Aarão
imporá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ela
confessará todos os pecados dos filhos de Israel, e todas as
ofensas dos seus pecados, descarregando-as sobre a cabeça do
bode e mandá-lo-á, levado por um homem escolhido para esse fim,
para o deserto: E o bode carregará assim com todos aqueles
pecados para uma terra desabitada.
Naquela mesma noite Israel teve um sonho. Tinha adormecido, e
acordara num lugar desconhecido. Er um vasto deserto árido.
Cinzas em toda a volta; um sol abrasador caindo-lhe em cima; nem
uma gota de água a brilhar. Israel olhou lentamente através da
luz do sol resplandecente, e pôde descortinar umas paredes
brancas, sem telhado, como ruínas de um pequeno estábulo. "São
túmulos"-pensou ele, "isto é um Mukabar - um cemitério árabe - o
lugar mais desolador neste mundo de Deus". Afirmando-se, viu que
paredes sem teto cobriam o chão até perder de vista, e veio-lhe
a ideia que esta planície deserta era a própria terra, e que
toda a vida tinha acabado no mundo. Então, de repente, na
imobilidade daquele deserto, um ser solitário moveu-se. Era um
bode que se arrastava sobre a cinza quente com a cabeça
pendurada e a língua de fora. "Água!" parecia gritar, apesar de
não se ouvir nenhum ruído. E os seus olhares estendiam-se pela
planície fora, como se quisessem fazer brotar uma nascente
daquele deserto. Israel sentia-se cheio de febre, a delirar. O
bode aproximou-se e olhou para ele, e ele viu-o de frente. Deu
um grito e acordou. É que o focinho do bode parecia ter feições
humanas - era a cara de Naomi.
*
Então o Senhor disse a Israel, "Olha agora para Naomi, tua
filha, ela é sacrificada à expiação dos teus pecados, para
expiar as tuas ofensas, para asexpiar por ti e pelos teus, e por
isso ela é muda para tudo o que seja voz, e cega para tudo que
seja
vista, é uma alma algemada e um espírito encarcerado, porque,
olha: ela é como aquele sobre quem recaiu a sorte lançada pela
justiça e pelo Senhor".
E Israel gemeu na sua agonia, exclamando, "melhor fora que essa
sorte tivesse caído sobre mim, Senhor, para que pudesses ser
exacto quando falas, e justo quando julgas, porque só eu é que
sou o culpado perante Ti".
Então o Senhor disse a Israel, "Sobre ti, também, caiu a sorte,
e foi a sorte do bode expiatório dos inimigos do povo de Deus".
Israel tremeu de medo, e o Senhor tornou a chamá-lo, dizendo,
"Israel, assim como o bode expiatório carregou com as
iniquidades do povo, tu arrastas as iniquidades do teu amo, Ben
Aboo, e de sua mulher, Catarina; e assim como o bode leva os
pecados do povo para o deserto, assim, na ressurreição, tu
levarás os pecados desse homem e dessa mulher para uma terra que
ninguém ainda conhece".
Israel já não discutia com o Senhor, mas suava como se fosse
sangue, e exclamou, "Que devo fazer, Senhor" ?
E Deus respondeu, "Deixa-te aí estar até romper a manhã, então
levanta-te e dirige-te aos arredores de Meknez, e ali procura o
homem de quem ouviste falar, e ele te indicará o que tens a
fazer".
Então Israel chorou de alegria, e perguntou;. "Viverá a minha
alma? Ficarei livre da má sorte que caiu sobre mim, e da que
caiu sobre Naomi, sobre a minha filha" ?
Mas o Senhor retirara-se, a luz avermelhada
desapareceu dos pés da cama, e tudo em volta ficou nas trevas.
Desde esse momento até à última hora do último dia da sua vida,
Israel juraria sobre os Evangelhos que tinha tido aquela
aparição, que tinha ouvido aquela voz, não em sonhos enquanto
dormia, mas estando acordado, tendo pleno conhecimento de todas
as coisas vulgares que o rodeavam - o quarto, a cama, o docel que
a cobria. E ao levantar-se de manhã ao alvorecer, tinha tão
presente o sentimento do que vira e ouvira, e era tão forte a
impressão colhida, que ele imediatamente começou a cumprir as
ordens recebidas por aquele meio, sem discutir a sua realidade,
ou duvidar da sua autoridade.
Portanto, entregando o governo da sua casa ao cuidado do preto
Ali, que crescera e era agora um robusto adolescente, o seu
braço direito e o seu ajudante, Israel começou por mandar dizer
ao Governador que tinha que estar dez dias ausente de Tetuão,
depois mandou pedir à Cidadela um soldado e um guia, e em
seguida buscar mulas ao mercado.
Então Israel partiu para a sua viagem.
*
O Baptismo do som
O que sucedera em casa de Israel durante a sua ausência,
conta-se em poucas palavras. No dia da partida, Naomi andou de
quarto para quarto, parecendo procurar quem não podia encontrar,
e à tarde as escravas pretas foram dar com ela no andar de cima,
onde o pai costumava ler-lhe a Bíblia à hora do pôr do sol,
ajoelhada junto à cadeira do pai, com o livro nas mãos.
"Olhem para ela, pobre criança", disse Fátima.
"Olhem, pensa que ele há de vir como costumava. Deus abençoe a
sua santa inocência"!
No dia seguinte Naomi fugiu de casa para a cidade, dirigindo-se
à Cidadela, e Ali foi encontrá-la nos quartos da mulher do
Basha, que a tinha achado, quando ela andava à toa no pátio,
vagueando entre o Tesouro e a Sala da Justiça, a porta das
prisões. No dia seguinte não tentou sair, e não vagueou pela
casa, mas sentou-se, sempre no mesmo sítio, parecendo estar à
espera de qualquer coisa, cheia de
paciência. Estava pálida, sossegada, e não ria; não dava as
gargalhadas do costume, mas tinha um olhar de submissão que
muito comovia.
"Agora até os santos estão com pena desta linda jóia", disse
Fátima, "por quanto tempo terá ela de esperar, pobre amor?"
Na manhã do dia seguinte o sossego foi substituído pela
inquietação, e a palidez por um rubor ardente na cara. Tinha as
mãos a escaldar, a cabeça febril, e os seus olhos cegos estavam
raiados de sangue.
Era agora evidente que a pequena estava doente, e que os receios
de Israel ao partir tinham realmente uma justificação. Ali,
vendo o estado de Naomi, foi chamar o único médico que havia em
Tetuão - um boticário espanhol que residia na rua entre muros
por onde se ia ter à porta ocidental. Este pobre homem veio
examinar Naomi, tomou-lhe o pulso, pôs-lhe a mão na testa a
escaldar, viu-lhe a língua com dificuldade e declarou que a
doença era febre. Deu algumas indicações caseiras relativas ao
tratamento a seguir - porque perdeu a coragem de dar remédios a
quem era como ela - e prometeu voltar no dia seguinte.
A meio da noite Naomi delirou, Fátima conservou-se
constantemente ao pé da cama, banhando-lhe a testa escaldante
com água e vinagre, Habeeba dormiu numa cadeira a seus pés, e
Ali estendeu-se num canto, do lado de fora da porta.
O boticário voltou de manhã, como tinha prometido, mas nada
havia a fazer, e ele com gravidade, abanou a cabeça, e disse,
"Voltarei daqui a mais
dois dias, que é quando a febre deve estar no auge, e trarei
comigo um famoso médico de Tânger."
Entretanto, o delírio de Naomi continuava. O seu espírito estava
tranquilo, mas sucedia um caso extraordinário naquela sua
inconsciência - é que, tendo sido muda durante o tempo em que o
espírito, na escuridão em que vivia, era o seu único guia, agora
falava sem cessar, e assim foi durante todo o tempo que durou a
ausência da razão. Não que a língua nesta sua doença falasse de
forma a seguir-se e a compreender-se o que ela dizia, mas
ouvia-se um balbuciar incessante de sons sem significação, com
inflexões exprimindo sentimentos variados, umas vezes de
alegria, às vezes de tristeza, outras de censura e ainda outras
de súplica.
*
Era um velho negro encarquilhado aleijado pelo reumatismo, que
estivera surdo como uma porta e que ainda o era bastante, meio
cego reputado como tendo só metade de são juízo, escravo fôrro
oriundo do Sahara, mal sabendo ler o Alcorão e o Torah. Mas
ensinando um e outro de boa vontade e com imparcialidade, de
acordo com o que sabia. Como não sendo Judeu nem Muçulmano,
tinha um pouco de cada um, como ele mesmo costumava dizer não
tendo aliás muito nem dum nem doutro. Para um tal ser híbrido,
numa terra de intolerantes, não deveria haver lugar, a não ser
nas masmorras da Cidadela, mas a verdade é que este
indescriptível indivíduo tinha privilégio, porque todos gostavam
dele.
No seu subterrâneo
escuro, numa ladeira junto à Grande Mesquita no Metámar,
sentava-se desde o romper da manhã até ao sol posto, dias
seguidos durante trinta anos, no chão coberto de junco, entre
gerações sucessivas de rapazes; e todas as noites que Deus dava,
ele ia visitar os doentes e os moribundos, levando a consolação
de palavras bondosas, e as vezes alguma coisa de comer e de
beber, tirado à sua parca subsistência.
Tal era o outro herói de Ali, depois de Israel, a quem agora, na
ausência deste, e na grande aflição em que estava, se apressava
a procurar.
- "Pai", disse o rapaz, "nos bons livros não se diz que as
orações dum homem justo valem de muito?"
- "Diz-se, sim, meu filho", respondeu o Taleb, "falas verdade. O
que há?"
- "Então, se orares por Naomi, ela curar-se-á", disse Ali.
Era um pedido delicado, feito com uma fé simples. O velho Taleb
mandou embora os alunos, fechou a porta com um cadeado, e foi a
manquejar até ao pé da cama de Naomi vestido com o seu selham
branco e esfarrapado. Olhou para ela através dos grandes óculos
encavalitados no grosso nariz de preto, e então, com uma névoa a
flutuar entre os olhos e os óculos, e num soluço que o sufocava,
ajoelhou-se e rezou, enquanto Ali e as duas pretas se ajoelhavam
a seu lado.
A oração do preto era infantil. Contava tudo a Deus; ia narrando
os factos ao Pai Celeste, como a alguém que morasse muito longe,
e de nada soubesse: a menina estava doente de morte, tinha
estado três dias e três noites sem conhecer ninguém, não comendo
nem bebendo nada; era cega, muda e surda; o seu pai amava-a, e
todo se concentrava nela. Era a sua única filha; a mulher
morrera, e ele estava só.
Andava agora por longe, e se, ao voltar, a filha tivesse partido
e estivesse perdida - se estivesse morta e enterrada - o seu
coração forte partir-se-ia de dor, e a sua própria alma ficaria
em perigo.
Tal foi a oração do Taleb, e tal era a cena - o anjinho mudo,
branco e corado, voltando-se e agitando-se na cama, numa auréola
de cabelos louros espalhados, e os quatro negros de volta dela,
ansiosos e suplicantes, com os olhos fechados e a boca aberta,
implorando dos Céus a graça de Deus, que só o espírito pode ver.
Estavam assim, mas por força do acaso ou da Providência (o que
ninguém se atreveu a resolver), nesse mesmo momento, enquanto os
quatro pretos estavam de joelhos ao pé da cama, os movimentos e
a agitação da cabeça de Naomi pararam de repente, ficando
sossegada no travesseiro.
O rubor desapareceu das faces, as feições, que estavam
alteradas, voltaram ao natural, e as mãos, que tinham estado
sempre a mexer-se, ficaram quietas sobre a coberta.
O bom velho Taleb tomou isto como uma resposta às suas orações,
e exclamou: "El hamdu
lIllah! (Louvores a Deus! ), enquanto lágrimas grossas como
punhos corriam pelas rugas fundas do seu rosto.
E então, como para completar o milagre, e justificar a fé do
velho pela sua realização, sucedeu uma coisa estranha e
maravilhosa: primeiro, um líquido espesso correu dum dos ouvidos
de Naomi, depois, ela levantou-se encostada ao cotovelo. Tinha
os olhos abertos como se visse; tinha a boca entreaberta como se
fosse sorrir; deu um longo suspiro como alguém que tivesse
dormido sossegado" durante a noite inteira, e tivesse acabado de
acordar pela manhã.
Enquanto os pretos sustavam a respiração no primeiro momento de
surpresa e alegria, da boca entreaberta de Naomi soltou-se um
som. Era uma gargalhada - um eco fraco, quebrado, falhado, do
seu velho riso feliz. E logo a seguir, quási antes que os outros
tivessem ouvido os sons, e quando ainda vinham a sair da boca,
levantou a mão livre e cobriu o ouvido, e pelo rosto passou-lhe
uma impressão de medo.
Tinha sido tão rápida a mudança, que as escravas não a tinham
visto, e estavam exclamando "Aleluia! " em coro, só pensando que
aquela que estava morta, voltara de novo à vida. Mas o velho
Taleb gritou com vivacidade, "Calem-se! meus filhos, calem-se! O
que está a chegar é uma coisa maravilhosa! Eu sei o que é - quem
o sabe tão bem como eu? - Já uma vez estive surdo, meus filhos, e
agora ouço. Escutem! A criança teve febre - uma febre cerebral.
Já se foi; desapareceu. Agora ela vai ouvir. Escutem, porque sou
eu que o sei - quem há que
o saiba tão bem como eu? - Sim, ela não continuará a ser surda.
Vão-se abrir os seus ouvidos. Ela ouvirá. Dantes ela vivia na
terra do silêncio; agora vai entrando no mundo dos sons.
Abençoado seja Deus, porque fez esta maravilhosa obra! Deus é
grande! Deus é poderoso! Louvemos para sempre Deus
misericordioso! El hamdu Illah!".
Por maravilhoso e inacreditável que parecesse ser o que o velho
Taleb dizia, contudo parecia que se ia realizar, porque quando
ele falava, começando por um murmúrio, que se ia elevando em
rapidez e altura, Naomi voltava a cara de frente para ele; e
quando as escravas, na sua fácil fé, se uniram nas exclamações
de louvor, ela também voltou a cara para elas; e fosse de que
lado fosse que no quarto soasse uma voz, ela inclinava a cabeça
nessa direcção, como alguém que quisesse avaliar donde vinha, e
também como alguém a quem esses sons assustavam.
Mas, não vendo o seu ar de sofrimento, não sabendo senão uma
coisa, que era aquela maravilhosa e extraordinária mudança de
quem fora surda e agora ouvia, de quem nunca ouvira falar e
agora ouvia as vozes dos que falavam em sua volta, Ali, numa
arrebatada alegria, rindo e chorando ao mesmo tempo, com os
dentes brancos a brilhar, e com a negra cara bochechuda luzidia
de lágrimas, principiou a gritar, a cantar, e a dançar em volta
da cama, na grande satisfação pelo milagre que Deus fizera, em
resposta à oração do seu velho Taleb. Não prestou atenção
nenhuma aos conselhos do mestre, mas continuou a dançar, e nem
as escravas viam os braços
levantados do velho e as palavras com que as mandava calar, tão
dominadas elas estavam pelo seu contentamento, tão espantadas e
como embriagadas de alegria. De repente acima desse tumulto soou
uma série de gritos lancinantes. Eram os gritos de Naomi no seu
terror cego e repentino, ao ouvir os primeiros sons da voz
humana que jamais a tinham impressionado. Estava pálida, as
pálpebras tremiam-lhe, com os beiços a mexer, as narinas a
palpitar, parecendo toda ela subjugada por uma vertigem de medo;
e na terrível desordem de todas as sensações, o seu cérebro, ao
acordar do doloroso sono de três dias de delírio, sentia-se
vacilante e incerto ao chegar com felicidade ao mundo dos sons.
Então Ali acabou de repente a sua dança frenética, as escravas
calaram-se num momento, e um silêncio absoluto reinou no quarto
depois daquele barulho todo.
Foi nesse instante impressionante que Israel, voltando da
viagem, vestido com o jellab dum mouro, bateu, como um estranho,
ao portão da sua casa. Quando entrou no quarto, ainda roto e
esfarrapado, demasiadamente excitado para despir o triste fato
que lhe tinham dado no caminho, Naomi estava a descansar
encostada às colunas da cama. Então reparou que o seu aspecto
tinha mudado, e que parecia escutar com todas as feições do
rosto.
Já não se parecia com um cordeirinho inocente e alegre, nem
tinha a cara duma criança pacífica e feliz; mas estava afogueada
e hesitante. Lia-se-lhe no rosto o medo, a admiração e o
espanto; e como Fátima estivesse a seu lado, dizendo-lhe
palavras carinhosas
para a animar, parecia não sentir nenhuma alegria, mas só susto,
pois que se afastava quando Fátima falava, como se o som daquela
voz lhe ferisse os ouvidos, aterrorizando-a. Tudo isto foi
percebido por Israel num momento, mas a vista turvou-se-lhe, o
coração bateu apressadamente, um espesso nevoeiro pareceu-lhe
cobrir tudo, e através da densa atmosfera duma
semi-inconsciência, ouvia o sussurrar da voz baixa de Fátima
chegando aos seus ouvidos como se viesse de muito longe: "Minha
linda Naomi! Meu lindo coraçãozinho! Minha doce jóia de ouro e
prata! Não é nada! Nada! Olha! Vê! O pai voltou! O querido pai
voltou para junto dela!
Pareceu-lhe que o quarto deixava de andar à roda, e sentiu que
os braços de Naomi o abraçavam, que os seus próprios braços a
enleavam, e que tinha a cabeça dela muito encostada ao seu
peito.
Sim, era ela! Era Naomi! Ali tinha-lhe dito a verdade! Estava
viva! Estava curada! Podia ouvir! A velha esperança que tinha
alegrado a sua alma estava justificada, e o querido e delicioso
sonho tinha-se tornado em realidade ! Oh ! Deus era grande, Deus
era bom, Deus tinha-lhe concedido mais do que ele pedira ou
merecia!
Assim ficou por alguns minutos imóvel, abençoando o Deus de
Jacob, sem soltar uma palavra, porque o seu coração estava cheio
de mais para falar; apenas conservava Naomi muito junto a si,
enquanto as lágrimas caíam sobre a cabeça da sua ceguinha. E os
pretos que estavam no quarto choravam ao ver a cena, pois que
não era mais muda, naquela hora
de grande alegria, Naomi que assim tinha nascido, do que aquele
em cuja casa Deus tinha operado tão maravilhosa obra.
Israel ainda não tinha reparado nos sinais de ansiedade da
fisionomia de Naomi, alegre entre os mais alegres. Quando ele a
tomou nos braços, ela reconheceu-o, e tinha-se-lhe abraçado na
alegria da surpresa. Mas quando continuou a ficar encostada ao
seu peito, não era só por ele ser seu pai e ela lhe ter amor,
nem só por o ter perdido e tornado a achar, mas também porque
ele era a única pessoa silenciosa de todos os que a rodeavam.
Quando ele o compreendeu, o seu coração humilhou-se; mas
percebeu o receio dela, pois que, saindo do mundo do grande
silêncio, onde a voz humana nunca se ouvia, onde a atmosfera era
sem canções como a dos sonhos, e obscura como um túmulo, a alma
dela iludia-a, e o seu espírito estremecia num mundo novo de
sons estranhos. Porque o que era o ouvido se não um pequeno
quarto escuro, um subterrâneo, uma masmorra dum castelo, onde a
alma passava constantemente para dentro e para fora, recebendo
impressões do mundo exterior?
*
Enquanto estavam assim ele desejou falar-lhe, a ver se ela, pela
expressão da sua cara mostrava que ouvia. Bastava que fosse só
uma palavra, uma só, para
que ela pudesse conhecer a voz do pai - que ela nunca tinha
ouvido - respondendo-lhe com um sorriso.
"Filha! Minha querida! Meu amor!"
Só isto, nada mais. Só estas
únicas palavras suaves, cheias de toda a ternura silenciosa que,
como um rio sem escoante, tinha estado durante dezassete anos
retida no seu coração. Mas não, não podia ser. Não devia falar
para que não se alterassem as feições dela, nem se retirassem
dele os seus braços. O coração despedaçava-se-lhe se tal
acontecesse. Não obstante lutou com a tentação; foi terrível.
Não se arriscou, e assim continuou sentado na cama, silencioso,
mal se mexendo, quási sem respirar, cheio de poeira, vestido com
um jeitão roto, tendo Naomi nos braços.
*
O Grande Dom de Naomi
Com a vinda do dom do ouvido, os outros dons que Naomi possuía
quando surda, e as graças com que tinha sido dotada, pareciam
tê-la abandonado de repente, como se abandona um vestido que se
despe.
Era como se o seu antigo sentido do tacto tivesse ficado
perturbado com o novo sentido do ouvido. Perdia-se na casa de
seu pai, e podendo agora ouvir os passos, não percebia de quem
eram. Levaram-na à rua, ao Feddán, ao caminho entre muros que
conduz à grande porta, às íngremes arcarias que sobem para a
Cidadela. Nunca, como anteriormente, tornou a abrir caminho
entre a multidão, como quando parecia vê-la com todas as feições
e a saudava com o riso da sua linda boca, mas ia caminhando para
a frente em passo incerto. Levaram-na à colina por cima do
forte, e ela arfava ao subir aquele caminho familiar, e ao
chegar ao cimo não tornou a exultar por ter chegado a ponto tão
alto, nem a beber vida nova nas rajadas violentas dos ventos que
a cercavam, mas tremeu
como uma criança cheia de medo, quando se voltou para a cidade,
que aliás não podia ver, situada abaixo dela, e ouviu as vozes
que dali se levantavam; e ouvindo ciciar a brisa que banhava as
suas faces, lhe pareceu agora que gritava aos seus ouvidos.
Puseram-lhe a harpa de Ali nas mãos, a mesma em que ela tocara
tão estranhamente na Cidadela, quando do casamento de Ben Aboo;
mas nunca mais, como naquele dia, ela dedilhou as cordas em
rapsódias selvagens de sons como nunca ninguém até então ouvira,
nem mesmo podia compreender, e apenas as tocou e apalpou com
dedos inexperientes de quem não sabia música.
Perdeu as antigas faculdades de distinguir o seu caminho, de
dirigir as suas brincadeiras, e de amar as ; suas afeições.
Parecia que não comunicaria com a Natureza mais do que por meio
dos órgãos que o resto da humanidade possue. Já não era mais uma
rapariga de espírito radiante e alegre, mas apenas uma linda
jovem, cega, uma doce irmã dos homens, fraca e débil.
*
O que Deus estava então a preparar naquele espírito adormecido,
só Ele o sabia; mas chegou a hora do acordar, e com ela chegou a
Israel o primeiro prazer causado pelo novo dom que Deus tinha
concedido a Naomi.
Para revigorar o espírito e despertar a memória, Israel tinha-a
levado a passear ao campo, fora da cidade, onde ela gostava de
brincar na sua meninice
- os lugares silvestres, cobertos de hortelã-pimenta, cravos,
tomilho, mangerona, e giesta branca, onde ela colhia flores nos
tempos idos, quando era só Deus que lhas indicava. O tempo
estava agradável, na frescura da manhã o ar era suave, e o vento
fraco; debaixo das árvores umbrosas, os abrigos formados pelos
canaviais estavam tranquilos. E para onde quer que Naomi
desejasse andar, eles lá iam sem destino.
*
O regato murmurava a seus pés; uma velha oliveira por cima da
cabeça, rumorejava com a infinidade das suas folhas; a pequena
família dum esquilo chiava a seu lado, e um dos mais pequeninos
da ninhada trepava-lhe pelo vestido; um tordo balouçava-se num
dos ramos mais baixos da oliveira e cantava ao mesmo tempo, e
uma ovelha de aspecto grave - magra, feia e velha - estava a
saltar por detrás dela. As abelhas zumbiam, os gafanhotos
zuniam, o vento ligeiro murmurava, e vacas mugiam ao longe. A
atmosfera deste suave lugar nesta hora tão doce, estava cheia da
música dos delicados sons do céu e da terra, e fragrante com
todos os perfumes silvestres do bosque.
*
Era o acordar da sua alma para a musicalidade, e a partir desse
dia ela achou prazer em ouvir todos os sons agradáveis,
quaisquer que eles fossem - vozes de crianças a brincar -
balidos da cabrinha - passos dos que ela amava - o chiar da roda
da velha roca, da sua mãi, que ela agora sabia manejar-a harpa
de Ali, quando ele a tocava no pátio durante as
horas frescas da tarde.
*
Enquanto que antes de receber o seu grande dom, todas as suas
faculdades se concentravam no tacto, e ela parecia sentir
materialmente o pôr do sol, o céu, o trovão e o relâmpago, agora
a sua expressão era toda de quem somente ouve. Parecia ouvir por
todo o seu corpo, era como uma alma com vida a flutuar num mar
de sons.
Assim, dias e dias, viveu no silêncio e na escuridão, a
arquitectar noções sobre os homens e sobre o mundo, servindo-se
do novo dom que Deus lhe concedera. Mas as coisas estranhas que
foram então para ela a terra, o sol com o seu calor, o mar com o
seu bramido, as feições dos homens, os olhos da mulher, ninguém
o sabia, nem ela mesma o podia dizer, porque a sua alma não
estava ligada a outras almas - alma a alma - pelo encadeamento
da linguagem.
*
Apesar de fugir à tentação de abandonar a si mesma a alma de
Naomi, ainda às vezes o seu coração o iludia. Via que quando lhe
falava lhe parecia ser como um homem que vai gritar à boca duma
caverna, e que só ouve como resposta o eco da própria voz. Se
lhe falava do céu, que é tão grande como o mar, que podia ela
saber de grandes profundidades para as avaliar? Se lhe falava do
mar, tão verde como os campos, que conhecimento tinha ela da
relva para lhe distinguir a cor ? E às vezes, quando lhe falava,
vinha-lhe de-repente à idea que as próprias palavras que ele
costumava pronunciar, não valiam para Naomi mais do que as notas
que Ali tirava da sua harpa inerte, ou o balido da cabrinha
deitada a seus pés.
Não obstante, a sua fé era grande, e pensava "Deus encontrará o
caminho para chegar até ao seu espírito".
*
Já tinham passado três semanas depois do seu regresso, e o calor
abrasador continuava. O temporal que tinha rebentado sobre a
cidade não dera nenhum resultado enquanto a frescura ou
humidade, porque o solo estava muito ressequido, e a chuva tinha
sido pouco duradoura e rápida demais para o penetrar. Todas as
folhas e arbustos verdes que não se tinham mirrado com o calor,
tinham sido queimados por uma geada mortal. Os gafanhotos tinham
passado havia pouco vindos do sul e do leste, em número que
excedia tudo quanto se possa imaginar, milhões de milhões,
tornando denso o ar à sua passagem, e
escurecendo o céu azul. Tinham devastado toda a. verdura
daquelas terras, deixando atrás de si um rasto de desolação. A
relva desaparecera, a casca das oliveiras e das amendoeiras
tinha sido destruída, e as árvores despidas lembravam o inverno.
*
Israel em Sháwan
Depois de voltar da sua jornada, Israel seguiu os preceitos do
jovem Mahdi de Meknês. Analisando a sua situação, viu que, pela
dureza do seu coração nos primeiros tempos, e mais tarde pela
sua vil submissão à vontade de Catarina, mulher cristã do Caid,
tinha enchido o país de miséria. Agora não se poupava a despesas
para restituir o que injustamente tinha extorquido.
Assim, àquele que tinha pago taxas em dobrado, restituía agora o
dobro - metade pela própria taxa e outro tanto pelo respectivo
excesso; e se algum homem tivesse sido injustamente
sobrecarregado pelos tributos do Caid, tendo hipotecado as
terras pelas dívidas, e preso na Cidadela, tivesse ali morrido
sem as resgatar, então pagava quatro vezes mais aos filhos - o
dobro pelas terras e o dobro pela morte. Israel fazia isto
constantemente, sem dizer nada a Ben Aboo, pagando tudo da sua
algibeira, a ponto de, homem rico que era, dentro de um mês
passar
a ser pobre, porque, que valia a riqueza de um homem, no meio de
tantos outros que nada possuíam ?
Não ganhou no entanto nenhumas simpatias, mas unicamente dó e
desprezo, porque o povo que recebia o seu dinheiro agradecia-o
ao Caid, o qual, segundo o que eles supunham, tinha mandado
Israel reparar o mal que tinha feito.
*
Naomi era a sua esperança e salvação. A sua fé em Deus resultava
do seu amor pela filha. Ele estava como que a subornar Deus para
que se amerceasse dela. Bem percebia, enquanto viajava
dirigindo-se assim à prisão de Sháwan, atrás das mulas
carregadas de pão que levava para os prisioneiros, que embora
muito lhes devendo, por ter sido ele uma das causas da sua
miséria, que a caridade que agora lhes mostrava era como uma
caridade feita a si próprio. Assim, quanto mais se aproximava,
mais abaixava a cabeça, como se até o sol que tão violentamente
lhe caía em cima, tivesse olhos para espreitar para dentro do
seu coração que o estava a iludir.
*
A Reunião no Sôk
A-pesar-de Israel não o saber, e na ansiedade em que vivia o seu
coração, dar tudo para o saber, a verdade é que, se alguém
pudesse ver dentro do escuro envólucro onde o espírito de Naomi
tinha vivido durante dezassete anos em silêncio, teria visto,
que sendo a criança tão querida do pai, muito mais querido e
necessário era o pai àquela filha. Desde que a mãe morrera ele
tinha sido para ela a vista dos seus olhos, e o ouvido dos seus
ouvidos, tocando-lhe na mão para dizer que sim, acariciando-lhe
a testa para aprovar, adextrando-lhe os dedos a fazer sinais.
Assim Israel era para Naomi mais que qualquer pai para a filha,
mais do que mãe, irmã, irmão ou parente, porque era o único
caminho para o mundo em que ela vivia, a única estrada onde o
seu espírito vagueava, a chave que abria a porta fechada daquela
alma; e sem ele, nem o mundo chegaria até ela, nem ela podia
comunicar com o mundo.
*
Quando Israel se preparava para ir a Sháwan, Naomi agarrou-se a
ele para lhe impedir a partida, como se se lembrasse da longa
ausência que fizera quando fora a Fez, parecendo ligá-la com a
doença que a afligira durante aquela ausência; ou como se visse,
com aqueles olhos cegos para as coisas do mundo, o que estava
para lhe suceder antes dele voltar.
*
A Cegueira de Naomi
Apesar de Naomi, na escuridão e mutismo em que vivia, ter
aprendido a conhecer e diferençar as vozes humanas, o que fazia
desde que recebera o dom de ouvir, e querer pronunciar as
palavras, repetindo-as e servindo-se delas, não passava contudo
de uma verdadeira criança, ignorando a sua significação exacta.
Enganava-se, balbuciava e atrapalhava-se: teve que aprender a
falar como uma criança quando começa a crescer, mas com mais
rapidez, não só porque lhe era mais necessário, mas também
porque já era uma rapariga crescida. Percebendo a sua
incompetência, e envergonhando-se dela, notando a paciência com
que o pai esperava quando ela hesitava nas conversas com ele, e
ainda mais, humilhada pelo auxílio impetuoso de Ali quando ela
estropeava alguma sílaba, tornou a ser silenciosa.
Era difícil conseguir que ela falasse; alguns dias depois da
noite em que a sua língua, soltando-se, salvara Israel dos seus
inimigos no Sôk, ela apenas dizia "Sim" ou Não" apesar das
insistentes perguntas de Ali, das bênçãos lacrimosas de Fátima,
das invocações incessantes de Habeeba, e não obstante a fome e a
sede do coração do pai.
*
Israel não tinha agora por onde escolher. Tinha que entristecer
o espírito desse ente de alegria, para que o corpo se
conservasse a salvo de perigos. Naomi não era mais que uma
criancinha, levada só por impulsos, mas sujeita a maiores
perigos vindos de si própria do que qualquer outra criança, pois
que fora privada de dois dos seus sentidos até ser crescida, e
nenhum meio havia de a vigiar.
Israel por fim fez um esforço para executar o seu mais que
doloroso dever, e numa tarde em que Naomi estava sentada com ele
no terraço ao pôr do sol, a ouvir-se nas ruas o ruído dos Judeus
a chinela no seu regresso à Mellah, ele disse-lhe que ela era
cega. Esta declaração, ao princípio, não a impressionou. Já a
tinha ouvido antes, e não lhe tinha ligado mais importância do
que a qualquer ruído desconhecido. Era cega de nascença, e
portanto não podia realizar o que era ter vista. Tornar compreensível a terrível verdade, era difícil, e Israel sentia
remorsos enquanto o estava fazendo.
Naomi riu-se quando ele lhe pôs os dedos nos olhos para a fazer
compreender. Tornou-se a rir quando ele lhe perguntou se ela via
a gente que só podia ouvir. E mais uma vez se riu quando, já
posto o sol, tendo o Muezzin saído da Grande Mesquita no
Metámar, Israel lhe perguntou se ela via aquele velho cego no
minarete a clamar, Dus é grande! Deus é grande! "
Podes vê-lo, filha?" disse Israel.
"Vê-lo?" respondeu Naomi, "porque não, querido paizinho, com
certeza que o vejo. Escuta! disse ela, parando de rir,
levantando um dedo, e inclinando a cabeça para o lado "escuta:
Deus é grande! Deus é grande! - Pronto, eu vi-o".
"Isso foi só ouvi-lo, Naomi - ouvi-lo com os teus ouvidos, com
este ouvido, e ainda com mais este. Mas podes vê-lo, amorzinho?"
Quereria o seu pai perguntar-lhe se ela sentia o Muezzin no
minarete situado muitas jardas acima deles ? Mais uma vez
inclinou a cabeça, e depois de uma pausa, exclamou num impulso:
"Ah, eu estou a perceber; mas meu Paizinho tonto, como posso eu
fazê-lo se ele está lá tão longe".
Então deitou os braços ao pescoço de Israel e beijou-o.
"Pronto", exclamou ela, no tom de alguém que quer marcar uma
diferença. "Eu assim, pelo menos, posso ver o meu pai.
Era duro de contrariar a sua alegria, mas Israel
tinha que o fazer. Disse-lhe, em palavras abafadas, que ela não
era como as outras meninas, - nem como seu pai, nem como Ali,
Fátima ou Habeeba; que ela era um ser castigado por Deus; que
havia alguma coisa que ela não possuía, alguma coisa que não
podia fazer, um mundo que ela ignorava, de que nem sequer tinha
sonhado até então.
A escuridão era mais do que frio e quietação,
e a luz mais do que calor e barulho. Uma coisa era
o dia - regulado pelo ardente sol no céu - outra
coisa era a noite, alumiada pela lua pálida e pelas
brilhantes estrelas.
A face do homem e os olhos da mulher eram mais do que feições
palpáveis, tinham espírito e alma, que se sentiam, se seguiam e
se amavam, sem que ninguém lhes pudesse tocar com a mão.
"Há um vasto mundo em tua volta, minha filha" disse Israel, "que
tu nunca viste, apesar de o ouvires, de o sentires, de lhe
falares. Sim, é verdade, Naomi, isto é a verdade. Tu nunca viste
as montanhas com os seus perigosos abismos e suas encostas
alcantiladas. Nunca viste o poderoso oceano, e as tempestades
que o cavam e o agitam. Nunca viste um homem, uma mulher, ou uma
criança. Não achas extraordinário, minha filha? Ouve: tua mãe
morreu há nove anos, e tu nunca a viste. O teu pai está a pôr-te
as mãos na cabeça, mas tu nunca viste as feições dele. E se as
espessas cortinas que te não deixam ver caíssem dos teus olhos,
e o pudesses ver; agora. não o distinguirias de outro homem, de
uma mulher ou de uma árvore, - és cega, Naomi, és cega". Naomi
escutava atentamente.
As feições contraíram-se-lhe, os dedos pousaram nervosos no
seio, os olhos abriram-se de espanto, e encheram-se de lágrimas.
Israel estava comovido. Dizer-lhe isto tudo, ainda que
precisasse de o fazer para segurança da filha, era como estar a
censurá-la pela sua cegueira. Mas por agora era só a comoção da
voz do pai, que alcançara o âmbito cerrado do espírito de Naomi.
A horrível e esmagadora consciência da sua cegueira, só mais
tarde a sentiria, tornada sensível e até imposta, por mão mais
frágil e mais leve.
Ela tinha sempre gostado dos pequeninos, e desde que ouvia
gostava cada vez mais deles.
Apreciava o seu balbuciar, as suas palavras mal pronunciadas,
muito simples, as suas ideas infantis, todas adequadas à sua
tenra idade, porque ela realmente não era mais que uma criança,
a-pesar de já ser uma formosa adolescente. De todas as crianças,
das que gostava mais, não era dos filhos dos Judeus, nem mesmo
dos filhos dos Mouros da cidade, mas preferia as crianças rotas,
descalças, pretas ou cor de azeitona, que vinham a Tetuão com os
Árabes e Berberes nas manhãs de mercado. Eram mais inocentes, as
suas falas eram mais engraçadas, e mais cheias de alegria e de
admiração por tudo. E assim ela colhia-as às duas, às três e às
quatro, às quartas e sábados, às portas das tendas armadas no
Feddán, e trazia-as para casa pela mão.
No pátio, Ali tinha armado um balouço com uma corda de cânhamo,
suspensa de uma trave lançada entre os parapeitos dos terraços,
e ali Naomi divertia-se com os pequenos. Balouçava-se no meio
deles,
com uma pretita delgada sentada a seu lado, com um pretinho de
grande barriga e cabeça rapada agarrado à corda por detrás, e um
valente Mourito vestido com um reduzido jellab branco a
puxar-lhe os pés pela frente; todos a rir ao mesmo tempo, a
cantar quando o balouço subia, e ela a ouvir, de cabeça posta à
banda, com o seu lindo cabelo louro espalhado pelas costas
abaixo e em volta do pescoço, a sorrir com o rosto branco de
neve inclinado sobre o ombro.
Era uma linda cena de luminosa alegria, mas foi assim que veio a
primeira grande sombra na sua vida de ceguinha.
Aconteceu um dia que uma das pequenas - uma mulherzita delgada -
trouxe a Naomi do mercado um presente, tirado do cesto da mãe.
Era uma flor de uma espécie rara, que só crescia nos longínquos
montes onde vivia a pretita. Naomi passou os dedos por cima da
flor, e não a reconheceu. O que é isto?" perguntou. "É uma flor
azul, disse a pequena. "O que é azul" disse Naomi.
"Azul - não sabes? - é azul - respondeu a pequena.
"Mas o que é o azul?" Tornou a perguntar Naomi, segurando a flor
nos seus dedos inquietos."
Que pergunta, minha querida! não vês - é igual
- é a flor, bem o sabes", disse a criança na sua linguagem
ingénua.
Ali estava perto naquela ocasião, e pensou em correr em auxílio
de Naomi. "Azul é uma cor", disse ele.
"Uma cor?" interrogou Naomi.
"Sim, como - como o mar, acrescentou ele.
"O mar? Azul? Como?" perguntou Naomi.
Ali experimentou outra vez.
"Como o céu", disse simplesmente.
Naomi parecia perplexa. "E com que é que se parece o céu?"
perguntou.
Naquele momento o seu lindo rosto estava voltado para Ali, e os
grandes olhos azues, imóveis, pareciam fixar os de Ali. O rapaz
estava atrapalhado, e não pôde reter a resposta que lhe saltou
pela boca fora. "Como", disse ele. "Como..."
- "Então?"
- "Como os teus olhos, Naomi!"
Pelo velho hábito de se servir do tactear dos dedos nervosos,
cobriu os olhos com as mãos, como se o sentido do tacto lhe
podesse mostrar o que os outros sentidos lhe não ensinavam.
Mas o solene mistério tinha finalmente alvorecido no seu
espírito. Ela não era como as outras, faltava-lhe alguma coisa
que todos os outros possuíam, que as crianças que brincavam com
ela conheciam, e que ela nunca podia conhecer; era uma doente,
uma desgraçada, vivia aparte; havia um estranho mundo, formoso e
luminoso em volta dela, onde todos os outros podiam brincar e
divertir-se, mas que era vedado ao seu espírito, porque ela
vivia fora desse mundo, separada pela poderosa mão de Deus.
Desde essa ocasião tudo parecia querer recordar-lhe a sua
inferioridade; parecia ouvir constantemente uma voz a dizer-lho,
envenenando-lhe a vida.
Mesmo os seus sonhos, embora sem pesadelos,
eram cheios de vozes que lho lembravam. Se um passarinho cantava
por cima da sua cabeça, levantava para o céu os olhos cegos;
passeando na cidade nas manhãs de mercado, se ouvia o alarido da
multidão
- os gritos dos vendedores, o "Balaio dos condutores de camelos,
os "Arre!" dos arreeiros, o som agudo da gaita dos charlatães,
- suspirava, e deixava cair a cabeça.
Escutando o vento, perguntava se ele tinha olhos ou se era cego;
ouvindo falar das montanhas cujos cimos cheios de neve
penetravam nas nuvens, perguntava se elas eram cegas, e se
conversavam umas com as outras lá nos céus.
A terrível revelação que era cega transformou-a, deixou de ser
criança para ser mulher.
Na semana seguinte aprendeu mais do mundo, do que nos anos
anteriores da sua vida. Deixou de ser . um irrequieto raio de
sol, um descuidado espírito cheio de alegria, para ser uma jovem
fraca, paciente, cega, consciente da sua grande enfermidade,
humilhada e envergonhada de a ter.
*
Israel percebeu a vergonha de Naomi. A cegueira, que para ela
era uma humilhação, tornou-se para ele um mal corrosivo.
Tinha pedido a Deus que desse a fala a Naomi, tinha prometido
contentar-se.
"Dai-lhe a fala, Oh meu Senhor!" tinha ele exclamado, "a fala
que a erguerá acima dos animais, pois só pela fala é que ela
poderá perguntar e responder". Mas o que era a fala para ela,
que fora sempre cega? O que era o mundo todo para quem nunca o
tinha visto? Apenas o que o Paraíso é para o homem, que mal pode
sonhar com as suas glórias.
Israel renovou a sua oração. Havia coisas que era preciso saber
e que as palavras não diziam. Agora estava Naomi como se fosse
cega pela primeira vez, não sendo já muda. Dai-lhe vista,
Senhor! " exclamou ele, "abri-lhe os olhos, para que ela veja;
concedei que ela veja a beleza do Teu mundo para o conhecer! E
ela terá a vida salva, o coração feliz, a sua alma será Tua, e
então o Teu servo ficará finalmente contente e satisfeito!
A Importante resolução de Israel
Já tinham passado vinte-e-seis dias depois da reunião nocturna
no Sôk, e ainda não tinha caído nem um pingo de chuva.
Os ovos dos gafanhotos deviam estar chocados de um momento para
o outro. Então os bichinhos sem asas, iriam espalhar-se à
superfície da terra como neve, e os pobres e delgados talos do
trigo e da cevada, que vinham a romper a terra muito verdinhos,
murchariam por causa deles.
*
Durante estes vinte-e-seis dias perguntava a si mesmo o que era
justo e necessário que fizesse. Por fim concluiu que o seu dever
era abandonar o cargo que desempenhava sob as ordens do Caíd.
*
Preparou-se, mas não levou muito tempo: já não tinha dinheiro,
nem as jóias da esposa. Resolvera ficar com a casa, que não
seria mais que um abrigo para Naomi (porque ele devia-lhe
conforto material tanto como bem estar moral) mas para isso os
móveis e outros pertences eram muito luxuosos, mais do que as
suas necessidades requeriam, ou que o seu estado actual
permitia.
Assim, vendeu a um negociante israelita da Mellah, as camas e
boas cadeiras que comprara em Inglaterra, os tapetes de Rabat,
os cortinados de seda de Fez, e os dóceis de púrpura da cidade
de Marrocos. Quando já nada restava, senão os simples capachos
e as esteiras, que são tudo de que se precisa na casa de um
pobre num país como aquele, em que o céu é clemente, chamou ao
pátio, onde estava sentado, os seus criados - Ali e as duas
escravas
- porque resolvera que também se devia apartar deles, e deixar
seguir cada um o seu caminho.
"Meus bons amigos", disse, "vocês foram meus criados leais e
fiéis durante muitos anos - tu, Fátima, e tu também, Habeeba, já
antes de eu me ter casado,
- e tu também Ali, meu rapaz, desde que, crescendo, te tornaste
forte e prestável. Mal pensava eu que nos separaríamos antes de chegar o meu último dia; mas a
minha vida na nossa pobre Berbéria já está acabada, e amanhã já
serei o mais ínfimo de todos os homens de Tetuão. Eis o que eu
resolvi fazer: tu, Fátima, e tu, Habeeba, tendo-me sido dadas
por escravas pelo Caíd, nos antigos tempos em que o meu poder,
que agora é pouco e sem importância, era grande e necessário -
pertencem-me ; bem, eu dou-vos a liberdade. Os vossos documentos
são passados em nome de Ben Aboo, selei-os com o seu próprio
selo - foi a última vez, fora ainda mais uma outra, em que eu o
empreguei. Aqui estão ambos os documentos. Levem-nos de manhã ao
Caíd, depois das orações, e ele os ratificará. Ficarão depois
escravas libertas para sempre".
As pretas tinham, por mais de uma vez, interrompido as palavras
de Israel com exclamações de surpresa e de consternação.
"Allah!" "Bismillah!" "Deus do Céu! " Pelas barbas do Profeta!"
E quando finalmente ele lhes entregou os títulos de emancipação,
caíram em ataques histéricos de choro, em altos gritos.
"Enquanto a ti, Ali, meu filho", continuou Israel, "não te posso
dar a liberdade, porque nasceste um homem livre. Foste para mim
um filho durante estes catorze anos. Tenho para te dar um outro
encargo
- um trabalho de perigo, um dever solene - e quando estiver
feito, nunca mais te tornarei a ver. Meu corajoso rapaz, terás
que ir longe, mas nada receio por ti. Depois de partires,
pensarei em ti; e se algumas vezes então pensares neste teu
velho amo, que não te podia conservar, nós não nos poderemos
considerar sempre separados".
*
O perigoso encargo reservado a Ali era o de ir a Sháwan, e
libertar os adeptos de Absalão, os quais, menos felizes que o
seu Chefe, cuja alma forte estava em repouso, continuavam
presos, mas sem estarem abatidos pelas misérias que sofriam.
Tinha que realizar isto pelo poder dum alvará dirigido ao Caid
de Sháwan, e autenticado pelo selo do Caid de Tetuão.
*
O Milagre da Vista
" Basha" disse Israel - falando em voz baixa e sossegada, numa
calma forçada- "Basha, tendes que procurar outra mão para esse
trabalho - esta minha mão não selará nunca tal documento".
"Essa agora, homem", murmurou Ben Aboo. "Que espécie de bicho te
mordeu ? Sou ou não sou eu o Caid ? Não te posso fazer meu
Califa ?"
Israel tinha o rosto fatigado e pálido, mas os olhos brilhavam
com a chama da grande decisão que tomara.
Basha " repetiu calmamente "se fôsseis o Sultão e me podésseis
nomear Vizir, eu mesmo assim não o faria".
"Porquê?" exclamou Ben Aboo, "porquê, porquê ?
Israel respondeu: "Porque eu estou agora aqui para vos entregar
o vosso selo".
*
"Sou o seu bode expiatório, Basha", disse Israel com uma calma
de arripiar, "o seu bode expiatório, que carrega com as suas
iniqiiidades aos olhos do seu povo. O seu bode expiatório, que
peca contra o povo e o oprime, que o reduz a pó à custa das
maiores torturas, e que até o leva à morte. Isso é o que eu sou,
Basha, e fui-o durante longo tempo, para minha vergonha! E
enquanto eu ando lá por baixo, furioso, pelas ruas, no meio do
povo-odiado, ultrajado, desprezado, cuspido, banido - vós estais
cá em cima
na Cidadela, numa esfera superior, respeitado, satisfeito, e
rico, amado por um equívoco por toda a gente."
*
Aqui
está o selo. Está tinto com o sangue vermelho do vosso infeliz
povo, vertido durante estes vinte e cinco anos que passaram. Não
posso conservá-lo por mais tempo. Aqui o tem."
*
"Entrega as tuas chaves - as chaves da tua casa!"
Israel hesitou, e depois disse: "Deixai-me lá ir um minuto - é
tudo o que peço".
Ao ouvi-lo, a mulher riu-se histèricamente. "Ah! sempre lá
deixou alguma coisa!" exclamou.
Israel voltou os olhos vagarosamente para ela e disse: "Sim,
senhora, sempre lá deixei alguma coisa".
Não prestando atenção à resposta, Catarina dirigiu-se de novo a
Ben Aboo, exclamando, "El Arby, faze com que ele entregue a
chave daquela casa. Tem lá um tesouro!"
"É verdade, Senhora", disse Israel, "é verdade que tenho lá um
tesouro. A minha filha - a minha Naomi, a ceguinha."
"É tudo?" exclamaram ao mesmo tempo Catarina e Ben Aboo.
"É tudo", respondeu Israel, "mas é quanto basta. Deixem-me ir
buscá-la".
"Não o consintas!" gritou Catarina.
A cara de Israel mostrou os seus sentimentos. Lutava para os
vencer. "Tirem-me a casa, se quiserem", disse, "expulsem-me da
vossa cidade como um pobre, mas deixem-me ir buscar a minha
filha".
"Ela não to agradecerá", exclamou Catarina.
"Ela tem-me amor",
respondeu Israel. "Estou a fazer-me velho, estou já a contar os
passos para a morte. Preciso da sua alegre juventude a meu lado
nesta minha idade caduca. E depois, ela é uma infeliz, é cega, é
o meu bode expiatório, Basha, como eu sou o vosso, e ninguém a
não ser seu pai..."
"Ah! Ah! Ah!"
Israel tinha falado com calor, e Catarina estava a rir-se
mofando das mais ternas expressões de sentimento que finalmente
ele fora levado a manifestar. "Acreditem-me" disse ela, "eu sei
o que são filhas. As raparigas gostam de outras coisas melhores.
Não, eu vou dar-lhe o que será mais a seu gosto. Ela viverá aqui
comigo".
Israel endireitou-se a toda a sua altura e respondeu: "Senhora,
eu antes a quero ver morta a meus pés".
Ben Aboo interrompeu-o, dizendo: "Não levante a voz para a sua
ama, senhor".
"A vossa ama, Basha", disse Israel, "não a minha".
Catarina, ao ouvir estas palavras, com expressão diabólica e a
cara afogueada, precipitou-se sobre Israel, batendo-lhe com o
leque na testa. Ele não se moveu nem disse uma palavra. A
pancada cortara a pele, e uma gota de sangue corria da testa
para as faces. Houve uma pausa curta e penosa. O silêncio, sob
aquela forte tensão, foi então quebrado por um grito abafado.
Veio do lado de trás, do lado da entrada: era a voz duma
rapariga.
Na perturbação do momento, estando todos os
olhares fitos nos dois actores daquela cena, ninguém reparara
que tinha entrado alguém no pátio.
Era Naomi. Ninguém sabia há
quanto tempo ela ali estava, e como, sem ninguém dar por isso,
ela tinha atravessado os corredores desde a porta da rua.
Seria difícil alguém dizê-lo com clareza - mesmo passado o tempo
necessário para pôr em ordem os pensamentos confusos do
Makhazui, o guarda-portão. Ela estava debaixo do arco, com uma
das mãos sobre o peito, que visivelmente palpitava de emoção, e
a outra mão aberta contra a porta chapeada de ferro, como a
pedir auxílio e guia para o caminho a seguir. Tinha a cabeça
levantada, a boca entreaberta, e os olhos cegos e imóveis,
pareciam fitar com insistência Tinha ouvido as palavras de
cólera. Tinha ouvido o som da pancada que se seguira. Tinham
batido no seu pai! No seu pai! No seu pai!. Foi então que ela
soltou o grito que se ouvira. Todos os olhares se voltaram para
ela. A tremer, a cambalear, quási a cair, atravessou o pátio
titubeando. A alma e os sentidos pareciam lutar uns com os
outros naquela face. O que significava aquilo tudo? O que se
estava a passar? Os seus olhos fixos fitavam, como se fossem
rebentar as ligações que os prendiam, para olhar, para ver, para
saber! Nesse instante Deus fez uma obra extraordinária, uma
alteração maravilhosa, tal como Ele só duas ou três vezes obrou
desde que há homens que nasceram cegos no Seu mundo de luz. Num
momento rápido como o pensamento, num clarão espontâneo, como se
a alma da rapariga tivesse rasgado as escuras
cortinas que tinham pendido durante dezassete anos sobre as
janelas dos seus olhos, Naomi viu!
Logo todos o perceberam. Pareceu-lhes que todas as feições se
tinham concentrado nos olhos da rapariga. Como se a expressão
dos lábios, das sobrancelhas, das narinas, tivessem nascido dos
olhos; como se o seu rosto, tão cheio de sentimentos hesitantes,
tivesse sido até então apenas um papel em branco. Mais, parecia
que a viam agora pela primeira vez. Agora, sim, era ela!
E para Naomi também, este momento, era quási como se ela tivesse
acabado de nascer para a vida. Finalmente encontrava-se com o
mundo, frente a frente, olhos nos olhos. Para dentro da sua
câmara escura, que nunca tinha conhecido a luz, tudo tinha
entrado de roldão - o branco esplendor do sol, o céu azul, o
pátio de tijolo, as caras do Caíd, da mulher e dos soldados, e
também a do velho pai, com as lágrimas por enxugar ainda
suspensas da franja das pestanas. Não podia atingir a
interpretação da maravilha. Ignorava o que era ver. Não tinha
aprendido a olhar. A sua alma trémula tinha saído do seu
envólucro de escuridão, e encontrado a poderosa luz ao
expandir-se.
Oh! Ohl! exclamou, e ficou desorientada sentindo-se sem apoio. A
visão do mundo parecia tê-la subjugado; e cobriu os olhos com as
mãos, para a abolir por completo.
Israel viu tudo. "Naomi!, exclamou em voz sufocada, e
estendeu-lhe os braços. Então ela tirou as mãos dos olhos,
olhou, parou e hesitou.
"Naomi", exclamou outra vez, dando um passo
para ela. Ela tornou a tapar os olhos, como para esconder o
vulto estranho que eles lhe mostravam, e para unicamente ouvir a
voz que tão bem conhecia; e lançou-se nos braços do pai.
*
"Guardas, levem-nos
ambos. Ponham o homem a cavalo num burro, a rapariga que vá
adiante dele descalça, e que um pregoeiro vá gritando a seu
lado.
- Assim se fará a todo o homem que for inimigo do Caid, e a toda
a mulher que seja mentirosa e mistificadora! - E que assim
atravessem as ruas da cidade por entre o povo até chegarem a uma
das suas portas, por onde serão expulsos como leprosos e como
cães!"
*
A Nova Linguagem da Vida
Dois dias depois de terem sido expulsos de Tetuão, Israel e
Naomi estavam instalados numa pequena casa a um dia de jornada
do norte da cidade, pouco mais ou menos a meio caminho entre a
aldeia de Semsa, e a estalagem situada na estrada de Tânger.
Desde o momento em que as portas se tinham fechado nas suas
costas, tudo lhes correra bem. Os camponeses acampados na
charneca, tinham-nos rodeado e tinham-lhes dado provas de
bondade. Uma velha mulher Árabe, vendo a vergonha de Naomi,
viera pelas costas sem dar palavra, e lançara-lhe uma manta
sobre a cabeça e sobre os ombros. Depois uma rapariga dum rancho
de Berberes trouxera umas chinelas, e calçara-as nos pés de
Naomi. A mulher não usava manta, e a rapariga andava sempre
descalça. Toda aquela gente estava magra, esfomeada, tinha os
olhos encovados, mas os corações comoviam-se, por verem o homem
poderoso na hora amarga da sua desgraça. Allah tinha-o escrito,
murmuravam, mas mostravam-se mais clementes do que imaginavam
que o seu Deus era.
Assim, sentindo uma compaixão silenciosa e ouvindo bênçãos de
paz, saudados por palavras de bondade, reconfortados, tendo de
beber e de comer, Israel e Naomi tinham vagueado por aquelas
terras, de aldeia em aldeia, até que à noitinha, uma hora depois
do pôr do sol, encontraram a cabana onde se instalaram. Era uma
casa pobre e miserável nem era uma tenda redonda, como as que os
Berberes das montanhas constróem, nem um macisso rectangular de
pedra branca, com o seu jardim no meio dum pátio, como os Mouros
lavradores edificam para habitar, mas apenas um abrigo oblongo,
coberto de caniço e folhas de palmeira, como uma cabana
Irlandesa. E, realmente, tinha sido a cabana dum deportado
Irlandês, que, tendo fugido em Gibraltar do navio que o levava
para Sidney, navegara num veleiro Genovês para Ceuta,
internando-se pela terra dentro até chegar àquele isolado lugar,
perto de Semsa. Diferente da maior parte dos seus patrícios,
fora homem de costumes solitários e temperamento melancólico;
enquanto vivo, os vizinhos evitavam-no, e depois dele morrer a
casa ficara abandonada. Foi assim, que Israel e Naomi chegaram à
sua posse, não só por ser uma habitação pobre, como por não ter
sido reclamada nunca por ninguém.
Contudo, ainda que privada da maior parte das coisas que o homem
produz e aprecia, aquele cantinho era rico dalgumas daquelas
riquezas que só provém da mão de Deus. Assim, a manjerona, o
jasmim, os cravos e as rosas floresciam junto dos muros, e foram essas flores suaves que primeiramente atraíram o olhar
de Israel. Porque de-repente, através da confusão do seu
espírito, onde naquele momento todas as percepções eram
indistintas, parecia sentir uma recordação vaga e confusa da
casa abandonada como se as coisas que os seus olhos agora viam,
tivessem já sido realmente vistas antes. Israel não poderia
dizer como isto podia ser, visto que anteriormente nunca, que
ele se recordasse, passara nas suas viagens a Tânger, tão perto
de Semsa. Mas interrogando-se de novo, veio-lhe à memória, como
luz penetrando numa câmara escura, que realmente nunca nas suas
viagens vira aquele recanto, mas que o vira num sonho, na noite
em que dormia no chão no pobre albergue dos judeus, em Wazzan.
Era esta, portanto, a casa em que sonhara que vivia com Naomi;
era ali que ela parecia ter olhos para ver, ouvidos para ouvir e
língua para falar; era a visão da sua mulher, e era a que,
quando acordara na manhã do dia daquela sua viagem, lhe parecera
ser a ilusão vã dum sonho; agora via-o realizado, era
verdadeiro, era um facto. O coração de Israel trasbordava, e
estando então disposto a ver o Céu a dirigi-lo em tudo, também o
viu naquele facto; e assim, sem fazer mais que pedir as
necessárias informações que eram indispensáveis, instalou-se com
Naomi no lugar para onde o acaso os levara.
Ali, durante alguns meses seguidos, desde o meio do verão até ao
fim do inverno, viveram juntos, em paz e contentamento,
faltando-lhes muitas coisas, mas de nada precisando, e privados
de muita coisa que se julga tornarem felizes os homens, mas
sentindo-se contudo gratos e agradecendo sempre a Deus.
Israel estava pobre, mas não sem dinheiro. Salvos do naufrágio
da sua fortuna, depois de ter vendido o melhor do recheio da
casa, possuía cerca de trezentos dólares no bolso do seu
cinturão quando fora expulso da cidade. Empregara-os em ovelhas,
cabras e bois. Arrendou também terras a um súbdito do Basha, e
mandou vender lã e leite ao mercado de Tetuão, por mão de um
vizinho. As chuvas continuaram, os ovos dos gafanhotos foram
destruídos, a relva reverdeceu os terrenos, e Israel arranjou
pão para ambos. com uma lavoura tão simples, numa tal casa, não
pensando no futuro, passaram dias seguidos com alegria e
conforto.
*
E pairando muito mais alto do que a alegria, com
que Israel se lembrava constantemente de que Naomi fora cega e
agora podia ver, que fora surda e agora podia ouvir, que fora
muda e agora podia falar, estava o pensamento solene que tudo o
que acontecera era apenas um sinal e um símbolo da vontade de
Deus, e a certeza para o seu coração, que a má sorte de ser um
bode expiatório já findara.
Mas maior satisfação para o seu coração ansioso de homem, era o
delicioso prazer da vida nova para Naomi. Era como uma criatura
que acabasse de nascer, um ente radioso e alegre que tivesse
acordado de súbito num mundo de estranhas visões.
Mas não fora logo de entrada que Naomi mergulhara nesse prazer.
O que lhe acontecera fora, afinal, bem simples. Nascida com
cataratas nos dois olhos, a violenta comoção na Cidadela, quando
a vida do pai parecia estar mais uma vez em perigo, tinha como o
faria uma queda ou uma pancada - deslocado o cristalino e dado
luz às pupilas. Foi isto apenas. Durante todo o dia em que ela
recebera o último dos grandes dons dos sentidos, no dia em que
foram
expulsos de Tetuão, e enquanto caminhavam de mãos dadas pelos
campos, até encontrarem a sua casa, tinha ela conservado os
olhos constantemente fechados.
A luz assustava-a; penetrando entre as pálpebras delicadas,
magoava-a. Quando por um momento, levantou os olhos e viu as
árvores, estendeu a mão como para as empurrar; e quando viu o
céu, levantou os braços como a querer aguentá-lo. Parecia que
tudo lhe impressionava a vista; os raios de sol pareciam
feri-la. Enquanto não caiu a noite, não passaram os seus receios
e não se sentiu animosa. Durante todo o dia seguinte esteve
sempre sentada na sombra do canto mais escuro da casa.
Mas isto foi apenas o seu baptismo de luz ao sair dum mundo de
escuridão, exactamente como o seu medo das vozes da terra e das
do céu tinham sido o seu baptismo de som, ao sair dum mundo de
silêncio. Passados três dias o terror foi dando lugar à alegria;
e desde então o mundo encheu-se de maravilhas aos seus olhos,
que agora podiam ver. Eram doces e belos, mais que todos os
sonhos da sua imaginação, a admiração e o prazer por tudo o que
a rodeava - a relva, as plantas, as mais pobres flores que
desabrochavam, até ao móvel mais rústico da casa, e às pedras
vulgares que trabalhavam a moer o grão. Tudo já há muito
familiar para os seus dedos, mas novo e estranho para os seus
olhos, e tudo maravilhoso, como se um anjo os tivesse deixado
cair do céu.
Durante muitos dias depois de ter o sentido da vista, continuou
a reconhecer os objectos pelo apalpar e pelo som. Assim, numa
das primeiras manhãs
que passaram na cabana, logo de manhã cedo, depois de Israel a
ter beijado nos olhos para a acordar ela abrira-os e fixara o
pai que estava inclinado sobre ela. Olhou espantada por um
momento, pois ainda estava mergulhada nas névoas do sono, e só
depois de ter fechado os olhos outra vez, e estendido a mão para
lhe tocar, é que o rosto se lhe iluminou ao reconhecê-lo, e que
pronunciou o seu nome: "Meu pai, murmurou, "meu pai".
Nesse mesmo dia, passados minutos, voltou a correr para casa
vinda do campo de relva que estava em frente, com uma flor na
mão, fazendo um ror de perguntas insistentes a respeito da flor,
naquela sua voz balbuciante, ciciante e encantadora. Porque é
que ninguém lhe dissera que havia flores que viam? Ali estava
uma, que enquanto ela a mirava, abrira um grande olho muito
lindo, e lhe sorrira "O que é?" perguntou, "O que é?"
"É uma margarida, minha filha", respondeu Israel.
"Uma margarida!" exclamou ela com admiração; e durante o curto
silêncio e o arfar apressado da sua respiração que se seguiram a
esta exclamação, fechou os olhos e passou os dedos nervosos
rapidamente sobre o círculo de pequenas pétalas orvalhadas,
dizendo então suavemente, com a cabeça posta de lado como
envergonhada: " Ah! sim, é isto mesmo; é apenas uma margarida".
Contar como voaram estes primeiros dias em que Naomi viu, qual o
seu prazer ao ter sempre novas surpresas, qual a sua alegria ao
ver novas maravilhas, seria um trabalho demorado, ainda que
encantador. Vivendo a algumas milhas da costa, da pequena colina
próxima podiam ver o mar Distintamente; e num dia em que Naomi
tinha ido até àquela altura com seu pai, levantou-se de repente
do seu lado, e exclamou num tom abafado de terror: O céu! o
céu! Olhe! Caiu sobre a terra!
"Aquilo é o mar, minha filha", disse Israel.
"O mar! exclamou ela, e então fechou os olhos e escutou, depois
abriu-os e corou, dizendo, enquanto as suas sobrancelhas se
distendiam e voltava graciosamente a cara para o lado: "É isso
mesmo sim, é o mar".
Durante todo o dia e toda a noite que se seguiram, o seu
espírito revivia a maravilha daquela visão, e na manhã seguinte
subiu sozinha ao cume da colina, para tornar a ver o mar. Dali,
caminhando para a frente, através dos campos, onde crescia a
alfazema e florescia a camomila, sempre a caminhar, como levada
pelo encanto do poderoso abismo que estava ao longe brilhando ao
sol, chegou finalmente à borda dum profundo barranco da costa. A
maravilha das águas ainda a encantava, mas outra maravilha lhe
feria agora a vista. A costa abria-se num lugar deserto, só
habitado por inúmeras aves marítimas. Lá do alto dos rochedos, e
lá muito ao fundo do abismo, de cada buraco que havia dum e
doutro lado, saíam elas voando, com asas brancas e negras,
cinzentas e azues, e soltavam tais gritos no ar que ecoavam na
quebrada, que até parecia ser ela mesma a gritar com um estridor
que ensurdecia. Era meio dia quando Naomi chegou àquele lugar, lá passou, sentada, mais de uma hora, cheia de
medo e de pena. Quando voltou para o pé do pai contou-lhe
histórias pavorosas de demónios que viviam aos milhares no mar,
que combatiam no ar, e se matavam uns aos outros. "E olhe!"
acrescentou "veja isto, e isto, e mais isto!"
E então Israel olhou para os destroços que ela trouxera da luta
diabólica que presenceara, e disse, levantando-os um a um:
"Isto, é a pena duma ave aquática; e isto, é um ovo duma ave
marítima; e isto, é o corpo morto duma delas."
Mais uma vez Naomi carregou as sobrancelhas, fechou os olhos, e
tateou as coisas familiares em que a sua vista a enganara. "Ah,
sim", disse ela com meiguice, olhando para o seu pai a
sorrir-se, "afinal são apenas as coisas que me dizeis." E
acrescentou muito pausadamente, como falando consigo mesma:
"Como se leva tempo a aprender a ver!
FIM
ϟ

Sir Thomas Henry Hall Caine (14 de maio de 1853 - 31 de agosto de 1931), normalmente conhecido como Hall Caine , foi um romancista, dramaturgo, contista, poeta e crítico britânico do final do século XIX e início do século XX. A popularidade de Caine durante sua vida foi sem precedentes. Ele escreveu quinze romances sobre assuntos de adultério , divórcio, violência doméstica , ilegitimidade , infanticídio , fanatismo religioso e direitos das mulheres , tornou-se uma celebridade literária internacional e vendeu um total de dez milhões de livros. Caine foi o romancista mais bem pago de sua época. A Cidade Eterna é o primeiro romance a vender mais de um milhão de cópias em todo o mundo. Além de seus livros, Caine é autor de mais de uma dúzia de peças e foi um dos dramaturgos de maior sucesso comercial de sua época Hall Caine -
https://pt.qaz.wiki/wiki/Hall_Caine
Caine viajou para Tânger , Marrocos , por três semanas em março de 1890,
pesquisando a vida muçulmana e judaica . Desconsiderando o conselho dos
funcionários consulares britânicos, Caine explorou o Kasbah sozinho a pé em
todas as horas do dia e da noite. Retornando a Tânger na primavera de 1891 para
pegar a cor local para seu próximo romance O bode expiatório , ele sofreu um
ataque de febre da malária. A Expiação | The Scapegoat foi escrita em Hawthorns
imediatamente após Caine voltar para casa do Marrocos, enquanto ele ainda estava
com malária. Publicado pela primeira vez no The Illustrated London News entre
julho e outubro de 1891, e depois no The Penny Illustrated Paper entre outubro
de 1891 e janeiro de 1892. Na história, a pequena Naomi é surda, muda e cega.
Sua mãe está morta. Ela mora com o pai, na casa de Israel. Enquanto Israel muda
seus caminhos para se tornar uma pessoa melhor, Naomi começa a recuperar seus
sentidos perdidos. O romance foi publicado em dois volumes em setembro de 1891
por William Heinemann, e simultaneamente na Europa, América e Canadá. Passado em
Marrocos nos últimos anos do sultão Abd er-Rahman , ele expôs a perseguição
anti-semita e foi descrito como uma 'acusação contundente da tirania
marroquina'. O livro foi elogiado pelos "membros mais inteligentes e influentes
da respeitável comunidade judaica de Londres". As conexões de Caine com a
comunidade judaica britânica se estendiam desde a juventude de Caine. O
romancista Israel Zangwill alistou Caine no movimento sionista.
FIM

Título: A Expiação
Autor: Hall Caine
- excerto -
título original: The Scapegoat (1890)
tradução de: J. C. de Barros
edição: Clássica Editora, Lisboa, 1934.
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