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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


A Expiação

Hall Caine

-excerto-


Cena de 'A Expiação' publicada no The Illustrated London News, September 26, 1891


O Nascimento de Naomi

À hora das orações da tarde, Israel e Ruth dirigiram-se, de mãos dadas, à Sinagoga, situada numa travessa perto de Sôk el Fôki. Ruth ajoelhou-se no seu lugar, na galeria, perto da teia e das lâmpadas suspensas, e orou:

- " Senhor - Tem piedade desta Tua serva e afasta dela o castigo que lhe coube entre as mulheres. Que os Teus olhos se voltem para ela, Senhor, para que o marido se não envergonhe dela! Concede-lhe um filho, visto que és bom, para que o olhar do esposo se alegre ao vê-lo! Que não seja como ela deseja mas como Tu o ordenares, Senhor, e a Tua serva ficará contente!"

Israel ficou de pé durante muito tempo, com a mão sobre o peito e os olhos no chão, e rogou a Deus, como um credor que quer ser pago, dizendo:

- Por quanto tempo ainda Te esquecerás de mim, Senhor? Os meus inimigos triunfam e profetizam-me a Tua maldição, embuscados nas ruas para me escarnecerem. Confunde os meus inimigos, Senhor, e exproba-lhes os seus intentos. Lembra-Te de Ruth, suplico-Te, porque ela é bondosa e o seu coração é humilde. Dá-lhe filhos do Teu servo, e o seu primogénito será santificado em Ti. Dá-lhe um filho, e ele será Teu: se for rapaz, será Rabino nas Tuas Sinagogas. Ouve-me, Senhor, e atende os meus rogos sinceros, eu To juro! Um filho apenas, um rapaz ou uma rapariga - é todo o meu desejo que ponho a Teus pés. Por quanto tempo ainda Te esquecerás de mim, Senhor?"

A comunicação do Califa a que Israel não tinha respondido, tão perturbado estava, era um pedido do Xerife de Wazzan para ir sem delongas àquela cidade contar os rendimentos e fixar os tributos. O pedido fora transformado em ordem pelo Governador, porque o Xerife era um príncipe do Islam no seu país, e em muitas províncias mais, onde os crentes lhe pagavam tributo.

Passados três dias Israel estava pronto para iniciar a viagem, com homens, mulas, e os camelos que levavam as tendas, à sua porta.

Naturalmente teria que estar ausente de Tetuão durante alguns meses, e era impossível Ruth acompanhá-lo. Nunca se tinham separado, e a preocupação de Ruth consistia em ficarem assim afastados durante tanto tempo. A de Israel, porém, era mais grave.

- " Ruth" disse-lhe ele quando chegou o momento da partida, eu vou afastar-me de ti, mas os meus inimigos ficam. Eles vêem o mal em tudo o que eu faço, e agora também me censurarão. Promete-me, pelo amor que tens ao teu marido, que, se te fizerem qualquer maldade - não os verás; se te insultarem - não os ouvirás; e, se te perguntarem alguma coisa a meu respeito - não lhes responderás ".

Ruth prometeu que seria cega para qualquer maldade surda para qualquer insulto e muda para qualquer pergunta que lhe fizessem acerca dele.

E só então se despediram com muitas lágrimas e abraços.

Israel demorou-se perto de seis meses na cidade e província de Wazzan e, tendo terminado os seus trabalhos, voltou para Tetuão, carregado de presentes que lhe fizera o Xerife, escoltado por soldados, e por criados que o acompanharam até à porta de sua casa. Ali, sentada no seu quarto, Ruth esperava-o, com os olhos orvalhados por lágrimas de alegria, radiante com a grande novidade que ia dar-lhe.

- "Ouve", murmurou, "tenho muito que te contar."

- "Já o sabia - retorquiu ele, "já o sabia porque o li nos teus olhos..."

- "Mas ouve", murmurou ela de novo, brincando com a gola do caftan e corando intensamente sem se atrever a fitá-lo.

As suas orações tinham sido ouvidas, e o filho que tinham ido pedir à Sinagoga estava para nascer. Israel ficou louco de alegria. Correu para Ruth e apertou-a repetidas vezes contra o peito, beijando-a com ternura.

Ficaram assim por muito tempo, ele contando-lhe o que lhe sucedera durante a viagem, e ela falando-lhe da sua solidão durante aqueles longos meses em que ela se tornara cega, surda, e muda para todos, solidão que apenas fora quebrada pela companhia de Fátima e de Habeeba.

Durante os meses seguintes, enquanto esperavam pelo filho, Israel nunca abandonou Ruth. Era sempre um sacrifício deixá-la; enchendo-lhe o quarto de frutos e flores, não havia desejo que ela manifestasse, que ele não satisfizesse imediatamente; e conversavam ternamente sobre o nome que deviam dar ao filho, quando chegasse o dia do baptisado. Israel decidiu que, se fosse rapaz, se chamaria David, e Ruth resolveu que, se fosse rapariga, se chamaria Naomi.

Era com prazer que Ruth pensava que, depois de o desmamar, o levaria à Sinagoga e diria: - Senhor: eu fui a mulher que se ajoelhou a Teus pés, a orar. Eu pedi-Te um filho e Tu ouviste as minhas orações". E Israel descrevia já como seu filho seria educado para ser Rabino e servir a Deus, e como, mais tarde, os filhos dos seus inimigos se humilhariam, pedindo-lhe uma esmola ou um pedaço de pão.

E ambos construíam assim castelos no ar acerca do futuro do filho que esperavam.

Chegou finalmente o momento em que a criança devia nascer, o que coincidia com as Festas da Páscoa, no mês de Nisan.
 

*

Ruth mostrava uma cara aterrada, mexia os lábios mas não se lhe ouvia a voz.

Israel indagou:

- "O que te aconteceu, minha querida, alegria da minha vida, orgulho do meu orgulho ?"

Ruth afastou a criança do seu seio e mostrou-lha, dizendo:

- "O Senhor recebeu o meu pedido como um pecado! Olha: a criança é muda e cega!"

Israel sentiu-se desfalecer e, com a garganta apertada, murmurou:

- "Não! Não! Não acredito ! "

- "É verdade! É verdade!" gemeu Ruth.

- "A criança ainda não soltou nem um grito e nem sequer pestanejou ao ver a luz!"

- "Não o creias, digo-to eu! " E, com um queixume, levantou a criança nos braços para se certificar.

Quando a colocou em frente da janela que deitava sobre a rua onde a profetisa o amaldiçoara, os olhos da criança não se fecharam, nem as pupilas se contraíram. Ele principiou a tremer de tal forma, que a parteira tirou-lhe a criança dos braços e deitou-a ao lado da mãe.

E Ruth tornou, chorando:

- "Se fosse rapaz, nunca poderia servir na Sinagoga ! Nunca! Nunca!..."

Israel começou então a praguejar. Os seus inimigos tinham já entrado para dentro do quarto e diziam:

- "Paz! Paz! Paz!

Judas ben Lolo, o mais velho de todos, resmungou, dizendo:

- Não está escrito que aquele que tiver sido castigado por Deus, não poderá servi-lo nos seus templos ?"

Israel fixou em silêncio os que o rodeavam, primeiro a sua mulher, depois os seus inimigos, que ele próprio convidara. Começou então a rir, com um riso de arripiar, gritando:

- "Que importa? Qualquer macaco é uma gazela aos olhos da mãe!

Cambaleou, os joelhos vergaram e, com um gemido surdo, caiu para a frente, batendo com a cara no chão.

A parteira e a escrava levantaram-no e humedeceram-lhe os beiços com água: os seus inimigos voltaram-lhe as costas, abandonando-o e murmurando entre si: - "O Senhor mata e dá a vida: rebaixa e levanta; e faz escorregar para dentro do fosso o homem mau que o cavou para outrem."

 

*

A Infância de Naomi

Nos primeiros momentos após a sua humilhação, depois de ter ficado confundido perante os inimigos que ele esperava confundir, Israel só pensou em si próprio; mas o coração generoso de Ruth, mesmo nesse instante, só pensava na criança.

Ela tinha nascido cega, surda e muda. Nada lhe fora concedido para gozar a vida. Por isso Ruth, virando-se para Deus pedia que lha levasse. E clamava:

- Leva-ma! Leva-ma! Vem de pressa, meu Deus, e leva-ma!"

Mas a criança não morreu. Viveu - e tornou-se robusta. Ruth criou-a ela mesma e à medida que a ia alimentando com o seu leite, ia-se-lhe afeiçoando de tal maneira que esqueceu a súplica que dirigira a Deus. Assim, pouco a pouco, voltou-lhe a coragem, dia a dia o coração a ia enganando, e hora a hora um anjo vindo do céu parecia segredar-lhe:

- Enche o teu coração de esperança. Deus não castiga de vontade. Talvez a criança não seja cega, talvez não seja muda, talvez não seja surda... Quem poderá afirmá-lo? Espera e verás!

Durante os primeiros meses, Ruth não encontrava diferença alguma entre a sua filha e as das outras mulheres. Às vezes, ajoelhava junto do berço e fixava com atenção os olhos da pequenina, e só via uns belos olhos azues, onde se não notava qualquer defeito, em que nada havia que indicasse que para eles tudo era escuridão. Outras vezes olhava a linda concha da orelha, via que ela era tão redondinha e perfeita como uma conchinha da praia, e nada mostrava que ela não ouvisse a voz do mar, nem que lá dentro tudo fôsse silêncio.

Portanto, Ruth acarinhava em segredo uma esperança, e o coração segredava-lhe: "Tudo está bem, a criança vai bem. Ela olhará para ti e ver-te-á; escutará a tua voz e ouvir-te-á; com a sua vozinha ainda há-de falar-te, e isso dar-te-á uma grande alegria. E então, uma imensa serenidade se lhe espalhava pelo rosto, transfigurando-a.

Mas, quando chegou à idade em que as crianças começam a ver, já familiarizadas com a luz, olhando para as mãozitas, fitando os dedinhos, agarrando-se ao berço para olhar em volta numa investigação calma e hesitante de tudo o que as rodeia - ainda os olhos da filha de Ruth não começavam a ver, antes ficavam inertes e vagos.

Quando chegou a idade em que as crianças começam a ouvir a cada instante, a doce tagarelice da carinhosa mãe; quando começam a repetir as palavras, balbuciando sons-os ouvidos da filha de Ruth nada ouviam, e a sua boca continuava muda.

Ruth perdeu a coragem; mas o anjo do céu ainda voltou com palavras de esperança, segredando-lhe:

- Espera, Ruth! Tem esperança por mais algum tempo. "

Por isso Ruth reteve as lágrimas, e de novo se curvou sobre o berço da filha, espiando se um sorriso viria responder ao seu, escutando um balbuciar daqueles lábios. Mas nunca um som humano quebrou o silêncio entre as palavras que, trémula, ela própria pronunciava; e nunca na face da filha passou o reflexo do seu lacrimoso sorriso.

Fazia dó ver o seu sofrimento, e ainda mais os seus esforços para o esconder. Todos os dias, ao meio-dia, trazia a criança para o pátio, e espreitava se a criança pestanejava com a luz do sol; e se, por acaso, Israel se aproximava, curvava a cabeça e dizia:

-"Que dia tão agradável está hoje, e como é bom sentar-se ao Sol! "

- "É verdade - respondia ele - é verdade!

Também, quando algum pássaro cantava na figueira que crescia no pátio, pegava na criança, aproximava-se com ela o mais possível para ver se ela ouvia; mas, se Israel a surpreendia, começava a rir - com um riso estridente como um grito - e tapava a cara envergonhada.

- Como estás alegre, meu amor! dizia ele, e entrava em casa.

Durante algum tempo, Israel tentou ser condescendente, fingindo não ver o que via, nem ouvir o que ouvia. Mas todos os dias o seu coração sangrava ao ver Ruth, e sentindo que não podia suportar por mais tempo essa situação, porque a sua alma sofria, exclamou:

- "Acaba com isso, Ruth! acaba com isso, pelo amor de Deus! A criança é uma alma sem vida, é um espírito cativo: Os olhos são escuridão, como a dum túmulo; e os ouvidos são silêncio, como o das campas. Nunca ela sorrirá a um sorriso da mãe, nunca ela responderá às palavas do pai. O primeiro som que ela ouvirá será o das trombetas celestiais, e o primeiro ser que ela verá será Deus...."

Ao ouvi-lo, Ruth atirou-se ao chão, chorando desesperadamente. A esperança que acalentava morrera. Israel já não podia consolá-la, porque o seu coração se empedernira. Soltou um fundo suspiro, e dirigiu-se para a Cidadela, onde fazia o seu trabalho maldito.

A criança viveu, e cresceu. Conforme já tinham combinado antes dela nascer, deram-lhe o nome de Naomi, o que, como ela não o pudesse conhecer, parecia troça.

Com quatro anos, era uma criança duma belesa fina e delicada. Apesar da sua origem judaica, era loura como o dia, e fresca como a aurora. Se nos seus olhos reinavam as trevas, havia luz na sua alma; se, para os seus ouvidos só existia o silêncio, havia música no seu coração. Era mais clara do que o sol que não podia ver, e mais doce do que as canções que não podia ouvir. Era tão alegre como um passarinho na sua pequena gaiola, sem nunca se queixar das grades que o prendiam. E, como o pássaro que canta de noite - a sua alma risonha cantava em plenas trevas.

Um único som saía de seus lábios: era o riso. com ele se deitava à noite e se levantava de manhã. Ria enquanto a penteavam, e ria ainda quando, de madrugada, saía do seu quarto, dançando.

Duas únicas luzes alumiavam o seu espírito: o tacto e a faculdade de sentir. Só com elas - parecia notar a diferença entre o dia e a noite, perceber quando o sol brilhava ou quando o céu escurecia. Conhecia a mãi pelo tocar carinhoso de suas mãos, e o pai pelo picar da barba. Conhecia as flores que nasciam nos campos, fora das portas da cidade, e colhia-as, guardando-as no regaço, como faziam as outras crianças e levando-as consigo para casa. Quási parecia conhecer também as cores das flores, porque as que escolhia para engrinaldar os cabelos eram vermelhas, e as que punha ao peito eram brancas. E, na verdade, ela própria era uma flor, à qual só o vento podia segredar e só o sol podia falar.

Eram comoventes os esforços que ela fazia, às vezes, para se aproximar das pessoas que a rodeavam. O seu coração era o de uma criança, e ela não conhecia maior prazer que o de brincar com outras crianças. Mas a casa de seu pai era amaldiçoada e nenhum filho dos vizinhos tinha licença para atravessar o limiar da sua "porta; por isso ela só encontrava alguma criança quando saía pela mão da mãe, a passear pelos campos.

Ruth percebeu isto - e só então, pela primeira vez, teve consciência do isolamento em que tinha vivido, desde que casara com Israel.

Ela ainda tinha como companheiro e camarada o marido, mas a sua pequenina Naomi estava dupla e até triplamente isolada: primeiro, como filha única; depois, como uma criança cujos pais não têm relações com pais de outras crianças; e finalmente porque era cega e surda.

Mas Israel também percebeu esta situação e, um dia, trouxe para casa um pretinho da Cidadela, com uma cara meiga e muito redonda e com uns grandes olhos inocentes como os dum anjo. O garoto chamava-se Ali, e tinha quatro anos. O pai matara a mãe, porque ela lhe fora infiel, e abandonara o filho; que, não tendo ninguém que o resgatasse, fora executado nesse mesmo dia, O pequeno Ali tinha ficado só no mundo, e por isso Israel tomou conta dele.

Ruth recebeu bem o rapaz, e adoptou-o. Ele era Maometano pelo nascimento, mas ela educou-o em segredo como Judeu.

Durante alguns anos ela não fez diferença alguma, visível a olhos estranhos, entre ele e a sua própria filha. Comiam, passeavam, brincavam e dormiam juntos, e a negra cabecita do garoto repousava na mesma almofada branca que a loura cabeça da rapariga.

Que estranhas e patéticas eram as relações entre estes dois exilados da humanidade! Nem se sabia se, ao vê-los, se deveria rir ou chorar.

Ali sentia um certo espanto e confusão quando dizia a Naomi - " Vem. " e ela não ouvia; quando lhe perguntava - Porquê?" e ela não respondia; quando lhe dizia - Olha! e ela não via, embora ele visse os olhos azues dela fitarem-no. Depois admirava-se e divertia-se ao sentir os deditos nervosos sempre a tocar-lhe nos braços, nas mãos, no pescoço ou na garganta. Todavia, muito antes de ter percebido que Naomi era diferente dele, que a natureza lhe dera olhos, mas que estes não viam como os dele; ouvidos que não ouviam como os seus, língua que não falava como a dele - já a própria natureza tinha galgado as barreiras que os separavam. Viu que Naomi conseguia compreendê-lo, fizesse o que fizesse, bem como quási tudo o que, na sua infantilidade, dissesse. E assim, brincava com ela como brincaria com qualquer outra criança, rindo os dois, chamando-a, e fazendo diante dela toda a casta de brincadeiras próprias da sua idade. Contudo, parecia que uma misteriosa intuição o fazia compreender que tinha o dever de olhar por ela. Quando a sua garotice de rapaz o levava a fugir de casa, e a aventurar-se pelas ruas com Naomi, iam encontrá-lo nos lugares mais concorridos, às vezes atrás das mulas e dos burros, com a mão de Naomi apertada entre as suas, lutando para afastar as pessoas da frente deles, e gritando com uma vozita de falsete: "Arre! Ar-re! Ar-r-re! Para Naomi, a vinda do pretito fora um motivo de enorme prazer. Tudo o que Ali fazia, ela queria fazer. Se ele corria, ela corria; se ele se sentava, ela sentava-se também; e ria com o coração cheio de alegria, embora não ouvisse o que ele dizia, não visse o que ele fazia, nem percebesse o que ele queria dizer.

No tempo das colheitas, quando Ruth os levava para os campos, ela ia às cavalitas de Ali, tentava agarrar as espigas de cevada, saltava e ria - embora não visse as louras espigas, não ouvisse as cantigas dos segadores nem os gritos de Ali que a. correr lhe ia gritando, esquecendo-se com a brincadeira que ela o não percebia.

À noite, quando Ruth os ia deitar, Ali ajoelhava voltado para os lados de Jerusalém, Naomi ajoelhava-se junto dele cheia de seriedade, deixando de rir. Enquanto ele rezava a sua oração, a boquita dela movia-se, como se também rezasse, punha as mãos e levantava os olhos ao alto. E Ali dizia:

- Que Deus abençoe o Pai, a Mãe, Naomi e toda a gente.

A pequenita tocava-lhe nas mãos e na garganta, passava-lhe os dedos pela cara, descendo das pálpebras aos lábios, e imitava-o, parecendo com o seu silêncio responder-lhe.

Que cenas tão belas e dignas de compaixão! Quem poderia vê-las sem lágrimas ? Havia uma coisa evidente: se a alma da criança estava prisioneira, o facto é que vivia; se estava manietada, todavia não podia morrer; era imortal, estava pura, e só esperava a sua hora para ser ligada a outras almas pela palavra.

Os dias passaram. Naomi foi crescendo em beleza e em doçura - mas nenhum anjo desceu do céu para abrir aquelas janelas fechadas, que eram os seus lindos olhos, nem aqueles pesados reposteiros que lhe cerravam os ouvidos...


Morte de Ruth

Apesar de toda a sua alegria e belesa, Naomi representava um pesado encargo, que só o amor podia suportar. Pensar nela durante o dia; sonhar com ela durante a noite; nunca se aproximar dela sem ter que lamentar aquela sua desgraça; nunca a abandonar sem o receio de qualquer desastre que tão facilmente lhe podia suceder; ver, ouvir e falar por ela - era realmente um fardo tremendo e tirânico.

Ruth não conseguiu resistir-lhe.

Durante sete anos foi ela os olhos de sua filha, os ouvidos de seus ouvidos, a voz da sua garganta. A vista começou a turvar-se-lhe, e o ouvido a enfraquecer. Era quási como se os tivesse gasto com Naomi, num sacrifício de amor e de piedade.

Pouco depois as forças começaram a abandoná-la e percebeu então que a sua hora soara, e que tinha de abandonar para sempre aquela pesada tarefa. Mas esta tinha-se-lhe tornado querida, e sentia-se presa a ela.

Quando olhava para a filha pensava que tendo dispendido as suas forças com o amor que lhe dedicara desde a primeira hora - tinha agora que a deixar entregue ao amor e aos cuidados de outrem.

Passou a viver num quarto do andar superior, ordenando a Fátima e a Habeeba que não deixassem lá ir Naomi, pois não queria revoltar-se, vendo a filha a cuja infelicidade não podia valer.
 

*

Era ao pôr do sol, e os últimos raios, que agora iluminavam o rio, os laranjais e as planícies ondulantes, entravam pelo quarto dentro, numa faixa de luz dourada, através da janela que olhava para o poente, e vinham bater em cheio na cara pálida e desfeita de Ruth.

Pela outra janela do quarto, que olhava a cidade, via-se o mercado até à Mesquita e ao Forte da colina; subia das ruas, já escuras, o ruído do palmilhar da multidão e do seu vozear.

Os Judeus de Tetuão voltavam todos juntos para o seu pequeno bairro para que os Mouros, a quem ele pertencia, os pudessem encerrar na Mellah durante a noite.

Naomi já estava na cama, e por isso Fátima trouxe-a em camisa de dormir. Parecia perceber para onde a levavam, porque se riu quando Fátima lhe pegou na mão, e foi dançando pelo caminho. Mas, quando chegou à porta, deixou repentinamente de rir, tomando uma expressão triste, como se alguma coisa naquele quarto em que havia tanto sofrimento, tivesse perturbado os sentidos que lhe restavam.

O maior desgosto que um cego e surdo pode sofrer é, talvez, o de nunca poder sentir as boas-vindas que lhe são dirigidas.

Quando Naomi parou no limiar da porta, Israel, em silêncio, pegou-lhe na mão e conduziu-a à cabeceira da cama onde a mãe descansava; igualmente em silêncio, Ruth estreitou sua filha contra o peito. Por um momento, Naomi pareceu indecisa. Tocou nos dedos de sua mãe, mas eles tinham mudado, estavam mais magros e longos. Tocou-lhe então na cara, e sentiu que também estava diferente: era agora engelhada e fria.

E, abandonando a pressão dos dedos e o sorriso da face, inclinou a cabeça para o lado, como alguém que escuta atentamente, e depois, suavemente, soltou-se dos braços que a enlaçavam.

Ruth, que a observava com os olhos marejados de lágrimas, começou a soluçar.

- "A minha filha não me conhece! exclamou ela. Não te tinha eu dito que isto me despedaçaria o coração?"

- Experimenta outra vez", disse Israel. "Experimenta outra vez".

Ruth, contendo as lágrimas, chamou Fátima, dizendo-lhe que lhe trouxesse novamente a criança. Então, desapertando o colar que lhe pendia do pescoço, pô-lo no de Naomi, e tirando também os braceletes que tinha nos pulsos, pô-los nos de sua filha. Fez isto, para que Naomi pudesse lembrar-se das mãos que sempre tinham sido carinhosas para ela.

A criança, logo que se sentiu enfeitada com um colar e pulseiras, obedecendo a um irresistível instinto feminino, não pensou mais em Ruth, que a observava, e esperava carícias de agradecimento e beijos de alegria, e, saltando para o meio do quarto, começou a rir e a dançar.

A luz do sol poente, que pousara na cara transtornada de Ruth, refulgia nas jóias da criança e batia nos seus olhos cegos, dourando os seus cabelos louros, e dando um tom avermelhado à sua camisa de noite - enquanto ela dançava e ria, como que festejando a morte de sua mãe.

Da morte nada sabia, menos ainda que o próprio Adão antes de Abel ser assassinado - e mais parecia que um diabo fugido do Inferno se tinha apossado daquele coração inocente, para o fazer escarnecer da morte da maior amiga que tinha no mundo.

Continuou a dançar desordenadamente, não com o passo incerto duma criança cuja fala é também ainda incerta, mas desvairada e delirantemente.

No quarto, que escurecia rapidamente, ainda passava junto aos pés da cama a faixa avermelhada da luz do sol, no meio da qual a figurinha de Naomi saltava e ria.

Soltando um grito horrível, Ruth caiu para trás, voltando-se para a parede. A escrava negra baixou a cabeça para não ver. E Israel escondeu a cara com as mãos, gemendo na sua agonia sem lágrimas.

- Oh! Senhor Deus! Tens-me castigado a chicotadas, mas agora castigas-me com escorpiões !

Ruth voltou rapidamente a si.

- "Tragam-ma aqui outra vez !" gemeu ela. E de novo Fátima trouxe Naomi para junto da cama.

Então, abraçando-a e beijando-a, Ruth parecia esquecer no meio da sua perturbação que Naomi não a podia ouvir, e exclamou:

- "Sou a tua mãe, querida, ainda que tão doente e tão mudada! Não a conheces, Naomi? Sou a tua mãe, meu amor, a tua querida mãi que tanto te ama e que tem agora que te deixar para nunca mais te ver!"

Só Deus poderia dizer o que naquele terrível instante conseguiu, finalmente, impressionar a consciência da criança.

Primeiramente, empalideceu ao sentir o abraço que a retinha; depois, corou; em seguida, com os deditos nervosos, agarrou de novo as mãos da mãe; os lábios começaram a tremer-lhe, e finalmente, atirando-se para os braços de Ruth, aninhou-se neles. Ruth caiu sobre o travesseiro, mas agora com um grito de alegria; a escrava negra chorava voltada para a parede, e Israel incapaz de se dominar por mais tempo, sentiu-se abatido e sem forças. O sol desaparecera, o quarto escurecia rapidamente, porque o crepúsculo naquelas regiões é de curta duração; as ruas estavam silenciosas, e o Mueezzin, no minarete próximo, bradava no meio do silêncio:

- Deus é grande ! Deus é grande! " Passados momentos a pequenita adormeceu nos braços de sua mãe; ao ver isto, Fátima quis levantá-la e levá-la para a sua cama, mas Ruth não consentiu:

- Não, deixem-ma, deixem-me tê-la junto de mim enquanto eu puder.

- Ninguém ta tirará" sossegou Israel. Ruth olhou para a criança e suspirou:

- "É duro deixá-la sem nunca lhe ter ouvido a voz !

- "Essa é a maior amargura, concordou Israel.

- "Eu não voltarei para perto dela", continuou Ruth, "mas ela virá ter comigo e então talvez - quem sabe? - talvez depois da Ressurreição eu consiga ouvi-la".

Israel não respondeu.

Ruth tornou a contemplar a filha e exclamou:

- "Meu infeliz amor! Quem tomará conta de ti quando eu partir?"

- "Descansa, descansa e dorme", disse Israel.

- "Ah! Sim! Eu sei" - tornou Ruth - "é uma loucura; és o seu pai e também a amas. Ainda assim, promete-me... promete..."

- "Nunca lhe faltará o amor e o carinho", interrompeu Israel. "E agora fica sossegada, minha querida; sossega e dorme".

Ruth estendeu-lhe a mão: - "Sim, era o que eu queria dizer", murmurou sorrindo. E uma nuvem de tristeza sombreou-lhe a face. "Mas quando eu tiver partido", disse ela, "Naomi saberá alguma vez que a sua mãi que já morreu a prejudicou ?"

- "Nunca a prejudicaste", contestou Israel. "Mas acaba com isso".

- "Deus castigou-nos pela nossa oração, meu amigo", continuou Ruth.

- "Paz! Paz!" respondeu Israel.

- "Mas Deus é bom - insistiu Ruth, "e não afligirá certamente a nossa filha por muito mais tempo".

- "Cala-te! Cala-te, que vais acordá-la!" disse Israel, sem mesmo pensar o que dizia. "Agora sossega e dorme, querida. Também estás fatigada".

Enquanto houve luz, Ruth ficou sossegada olhando a sua filha adormecida, e quando escureceu por completo, escutando o seu brando suspirar. Depois murmurou, dirigindo-se à filha com alegria infantil:

- "Sim! Sim! Teu pai tem razão; tua mãe deve ficar sossegada, muito sossegada, para que a sua pequena Naomi possa dormir muito, por muito tempo, e acordar de manhã, muito feliz e contente. Que linda então estará! Tão fresca e rosada!..."

Parou por um momento. O seu respirar tornou-se mais apressado:

- "Mas estarei eu aqui para a ver? Estarei?" Parou novamente e, como que querendo afastar
aquela idea, começou a cantar-a cantar em voz tão baixa que mais pareciam gemidos. Depois deixou de cantar e voltou a falar, mas desta vez num murmúrio entrecortado:

- "Como o seu cabelo é sedoso e brilhante. Oxalá Fátima se lembre de o lavar todos os dias! Deve enrolá-lo nos dedos para lhe conservar estes lindos caracóis... Oh! Porque é que Deus fez tão bonita a minha filha?... Valha-me Deus, o vestido que trazia de manhã precisava de ser cosido nas mangas ; será bom que Habeeba repare nisso. Há ainda a catnisita... Será ela sempre surda, cega e muda? Poderá ser que veja quando eu... Dizem que os anjos são mandados... Sim! Sim! É isso; quando eu estiver lá irei ter com Deus e dir-lhe-ei: - Oh Senhor ! A minha filhinha que ficou lá em baixo é... Não podeis imaginar, oh Senhor, quantas coisas podem acontecer a alguém como ela... Deixai-me, deixai-me ir olhar por ela.. Oh Senhor! Deixai-me ser a sua..."

A fraqueza dominara-a, e finalmente ficou mais calma. Israel sentou-se silenciosamente junto à cama. O coração parecia saltar-lhe fora do peito. A escrava negra estava a um canto, encostada à parede. Passou-se algum tempo: Ruth acordou. Estava numa grande excitação.

- "Israel! Israel! gritou num tom quási alegre. Tive uma visão. Era Naomi, que já não estava cega, nem muda, nem surda... Era já mulher, mas eu logo a reconheci. Ainda nem era bem uma mulher, mas uma jovem tão bela, tão linda! Sim! E falava, via e ouvia!"

Israel julgou que Ruth delirava, e experimentou sossegá-la, mas a sua agitação não era de molde a ser dominada.

- "O Senhor viu finalmente as nossas lágrimas", clamou ela. "Esqueceu o nosso pecado. Estamos perdoados. A nossa filha ainda será feliz..."

Israel nem tentou contradizê-la, e ante aquela alegria, que ele via tão bela mas que julgava inútil - não pôde, por fim, reter as lágrimas. Novamente Ruth tornou a adormecer e, pouco depois, voltou a acordar:

- "Agora estou pronta", disse num suspiro, "perfeitamente preparada, meu Deus, - sim, perfeitamente preparada".

Então, com a mão que tinha livre, tateou na escuridão, procurando Israel e, tocando-lhe na testa, acariciou-lha, dizendo docemente:

- "Adeus, meu bom amigo!" E Israel respondeu:

- "Adeus!..."

- "Boa noite", suspirou ela.

Israel, pegando-lhe na mão, levou-a da testa aos lábios e, soluçando, disse ainda:

- "Boa noite, minha querida!"

Então ela beijou com os seus lábios descorados os olhos cegos da filha; nesse instante o Espírito de Deus caiu sobre ela, chamou-a a Si - e ela morreu.

Trouxeram luz para o quarto e Fátima, vendo que chegara o fim, quis arrancar Naomi dos braços de Ruth, mas a criança acordou quando lhe tocaram e, lançando os bracitos ao pescoço da mãe já morta, cobriu-lhe a boca com beijos. E, quando percebeu que aqueles lábios não respondiam aos seus beijos, e que os braços que a rodeavam já não a estreitavam, mas a tinham largado - abraçou-se ainda com mais força, e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
 

*

Só Espírito

Foi fielmente cumprida a promessa que Israel fez a Ruth à hora da morte: que a Naomi nunca faltaria amor e carinho. Desde esse momento, ele tornou-se o pai e a mãe daquela criança.

Ao tomar sobre si esse encargo, analisou a situação, e achou-a pior do que se pode imaginar, e do que palavras podem traduzir. Era fácil dizer que ela era cega, surda e muda, mas era bem difícil avaliar a realidade que tão grande desgraça implicava. Ela era como uma irmãzinha vivendo no seio da família, mas muito afastada dela... Tão afastada, como se vivesse noutro planeta. Nenhuma simpatia humana se lhe podia demonstrar, quer na alegria, quer na dor, quer na tristeza. Não tinha qualquer" papel a desempenhar na vida. No meio dum mundo cheio de luz, ela vivia imersa em escuridão, e envolvida em completo silêncio, no meio dum universo cheio de vozes. Era uma alma enterrada viva.

E que conhecia Israel daquela alma ?

Sabia que ela tinha memória, porque Naomi se lembrava da mãe; sabia-a capaz de amar, porque sentira a falta da mãe. Mas de que valia memória e amor, sem fala e sem vista? Era como que um íman fechado numa caixa: inútil em absoluto.

Pensando nestas coisas, Israel viu bem, pela primeira vez, como era horrível a desgraça da sua pobre filha, sem a mãe. Ser cega, era já uma desgraça; ser cega e surda, não era ser desgraçada duas vezes, mas mais de cem mil; e ser cega, surda e muda, não era ser desgraçada três vezes, mas mais do que qualquer número que se possa imaginar.

Ainda que Naomi fosse cega, se ela pudesse ouvir, o pai poderia conversar com ela, poderia consolá-la quando sofresse dores, partilhar das suas alegrias e, finalmente, neste mundo que Deus fez tão belo, tão cheio de coisas dignas de serem contempladas e amadas, ele poderia ser a vista daqueles olhos que não viam.

Por outro lado, se Naomi fosse surda, mas pudesse ver, seu pai poderia comunicar com ela por meio da luz dos seus olhos, e se sofresse, ele vê-lo-ia, se sentisse prazer, ele percebê-lo-ia - e os homens, o mundo, o mar e o céu, seriam para ela livros abertos em que poderia ler.

Mas, sendo simultaneamente cega e surda e, para cúmulo, muda - que palavras haverá para descrever a sua desolação, o vácuo perfeito do seu isolamento, estando à parte, aparada, afastada, encerrada, prisioneira, algemada, alma que não comunicava com as outras, alma viva mas, contudo, sem vida?

Israel, analisando assim a triste situação em que Naomi se encontrava, devido à sua grande infermidade, foi levado a pensar no modo como poderia comunicar com aquela alma obscura e silenciosa. E começou por tratar de saber quais os dons que lhe tinham sido deixados, para os desenvolver com vantagem para a filha, aperfeiçoando-os para sua consolação e alegria. Mas nenhum dom lhe pôde descobrir, excepto os que lhe tinha reconhecido desde o princípio: o sentido do tacto e a faculdade de sentir. Com este pouco, ele tinha que levá-la a ver - pois doutra forma ela estaria sempre na escuridão; e levá-la a ouvir - ou o silêncio seria para sempre o modo de se exprimir. Lembrou-se então que, quando vivia em Inglaterra, ouvira falar de coisas extraordinárias sobre o modo dos surdos falarem, ainda que sem ouvir, e sobre o modo dos cegos e dos surdos perceberem e responderem. Assim, mandou vir de Inglaterra muitos livros que versavam as maneiras de tratar essas infelizes crianças e, depois de os receber, estudou-os minuciosamente, ficando entusiasmado com os trabalhos maravilhosos que descreviam. Porém, quando quis aplicar os princípios que estudara, desanimou, porque os obstáculos eram enormes. Uma e mais vezes experimentou, mas sempre sem resultado, atingir com um simples raio de luz a alma invisível de Naomi, através do seu envólucro de carne e osso. Nem o mais simples pensamento, nem o mais pequeno elemento duma idea pôde chegar até àquele espirito, de tal forma eram espessas as paredes que o envolviam. "Sim" era um mistério que se lhe não podia revelar; e "Não" um problema de resolução superior ao seu entendimento. Sorrisos ou uma cara zangada, não serviam para a ensinar. Não havia método aplicável ao seu espírito ou ao seu coração. A não ser fisicamente, era impossível dominá-la. Só por impulsos se dirigia.

Israel não desanimou. Se num dia estava desanimado, no dia seguinte sentia-se forte. Por fim, já conseguira, depois de muito pensar e de muito trabalhar, que Naomi compreendesse que quando ele lhe acariciava a testa era sinal que aprovava o que ela fizera e, quando lhe tocava na mão, era para concordar com o que ela pretendia fazer. Nesta altura cessou, repentinamente, o seu trabalho. A sua esperança não esmorecera, nem lhe faltara a energia, mas tinha-se-lhe arreigado a convicção de que tais esforços, neste caso, iam ofender a Deus.

Naomi não era só uma criatura enferma, produto da mão esquerda da Natureza, - era também um ser castigado pela mão direita de Deus. Era um monumento vivo do pecado que, aliás, não era seu. Tornava-se inútil prosseguir. A criança devia ser deixada tal como Deus a fizera.

Todavia, se a Naomi faltavam os sentidos que teem todos os seres humanos, parecia comunicar com a natureza por meio de outros órgãos que eles não tinham. Era como se o próprio espírito a tivesse ensinado, e nessa fonte ela tivesse bebido o poder que tinha. Contar tudo o que ela sabia fazer para guiar os seus passos, dirigir os seus divertimentos e mostrar as suas afeições - seria ir além dos limites fixados ao que é crível. Realmente, era como se Naomi, cega, pudesse ver uma luz que mais ninguém via, e sendo surda, pudesse ouvir vozes que mais ninguém ouvia.

Assim, quando passava saltando pelo corredor, ela percebia quando alguém se aproximava, porque estendia as mãos e parava. Ainda mais: ela também conhecia quem era, tão bem como se os seus olhos e os seus ouvidos lho indicassem, porque, sempre que era o pai, estendia as mãozitas para lhe agarrar a mão esquerda e encostá-la à sua cara; sempre que era o pequeno Ali, curvava os braços para o abraçar pelo pescoço; sempre que era Fátima, saltava-lhe para o colo; e sempre que era Habeeba, passava adiante.

Se ia com Ali pelas ruas, distinguia a porta da Mellah, da da cidade, e as ruas estreitas, do amplo Sôk. Se passava pela imponente Mesquita, no largo do mercado, diferençava-a das lojas baixas que se aninham aos lados, por detrás e em volta. Se uma caravana de mulas e camelos se aproximava, distinguia-a dum ajuntamento de gente; e, se passava por uma encruzilhada de ruas, parava e voltava-se para uma e para outra.

Com o decorrer do tempo, ela chegou a conhecer tudo, dentro e em redor de Tetuão - a cidade dos Mouros, a Mellah dos Judeus, a Cidadela e a estreita ladeira que para lá conduzia, o forte sobre a colina e o rio sob os muros da cidade, os montes que formavam o vale, e até mesmo alguns dos seus desfiladeiros rochosos. Podia seguir o seu caminho entre estas coisas sem auxílio nem guia, e nenhuma vigilância se lhe podia impor, a-fim-de a resguardar dum caminho perigoso.

Enquanto Ali era pequeno, era o seu companheiro inseparável, sempre pronto para qualquer aventura que o espírito irrequieto lhe pedisse; mas, depois dele crescer, mandavam-no à escola de manhã e à tarde, e ela vaguearia sozinha, se não tivesse uma cabrinha branca, que o pai lhe tinha comprado para ser companheira das suas brincadeiras.

Como o dom de sentir era a sua vista, e o tacto o seu ouvido, a testa sentia o vento, e as plantas dos pés a relva dos campos; preferia andar de cabeça descoberta, quer o sol escaldasse quer o ar estivesse fresco, e descalça, desde o romper da manhã até as estrelas brilharem. Assim, lançando para longe as chinelas e o grande chapéu de palha que as raparigas judias usam, embrulhada no seu chalé branco, que caía negligentemente em dobras graciosas, acompanhada da cabrinha que a precedia, embora não a vendo nem a ouvindo, ela trepava à colina para além do forte e ficava de pé no cume, como um espírito pairando no ar.
 

*

Naomi nada conhecia de Deus, não tendo nenhum modo de comunicar com os homens. Deus condená-la-ia por isso, e expulsá-la-ia para sempre? Não, não, Deus não lhe podia exigir boas obras naquela mudez, nem trabalho naquelas trevas. Ela não tinha olhos para ver o mundo, lindo como Deus o criara, nem ouvidos para escutar a sua palavra sagrada. Deus tinha-a criado tal como ela era, e não ia destruir o que tinha feito. Antes olharia com amor e piedade para a sua filha, que tão longa e cruelmente sofrera no mundo, e destiná-la-ia certamente a ser uma santa, abençoada no céu.

Israel tentava consolar-se com estas ideas, mas em vão. Era um Judeu, no mais íntimo do seu ser, e dizia para consigo que tinha sido o seu desejo criminoso, e não a vontade de Deus, que tinha trazido Naomi a este mundo tal como ela era. E então, no dia do juízo final, como poderia ele responder pela sua alma?

E via diante de si as infindáveis expiações pela alma daquela que não conhecia Deus. Eram estes os mais cruéis terrores das suas noites passadas em claro, mas por fim sossegou, porque viu qual era o dever que tinha a cumprir. Era seu dever para com Naomi falar-lhe de Deus, e revelar-lhe a palavra do Senhor! Que importava que ela não pudesse ouvir ? Conquanto ela tivesse tanta compreensão como as areias do mar, pelo caminho da luz só Deus a podia conduzir. Que importava que ela não pudesse ver?  Com os olhos da alma é que se vê Deus, e nunca nenhum homem o viu com outros.

Por isso, todos os dias, daí por diante, ao pôr do sol, Israel levando Naomi pela mão, subia a um quarto do andar superior, o mesmo em que Ruth tinha morrido, tirava dum armário a Bíblia, lia-lhe os mandamentos de Deus ditados por Moisés, e falava-lhe dos Profetas e dos Reis. Enquanto ele lia, Naomi sentada a seus pés, segurava nas suas a mão que o pai tinha livre, encostando a cara às mãos.

O que a pobre rapariga pensava deste novo hábito, o mistério que era para ela, só os olhares que mergulham na treva o poderiam alcançar; mas por fim, logo que o sol se punha - porque ela conhecia quando o sol estava posto - a própria Naomi pegava na mão do pai, e levando-o para o quarto de cima, ia buscar o livro e punha-lho nos joelhos.
 

*

E assim, grande na sua fé, Israel todas as noites lia para Naomi. Quando o seu espírito estava magoado pelas muitas afrontas que suportara durante o dia, a sua voz era rouca, e lia então a lei que diz: "Não amaldiçoarás o surdo, nem porás nenhum obstáculo diante do cego."
 

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E assim, durante noites seguidas, quando o sol já tinha desaparecido, Israel lia as Leis e cantava os Psalmos para Naomi, para sua filha, que era cega e surda. E apesar de Naomi não ouvir, nem ver, nas horas silenciosas que passavam juntos, havia sempre mais alguém no quarto com eles, e esse alguém era Deus.

 

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A Visão do Bode Expiatório

Aconteceu naquela noite, depois do pôr do sol, quando Naomi, conforme o costume, levou o pai ao quarto de cima, e foi buscar a Bíblia ao armário da parede, para a pôr sobre os joelhos do pai, que este leu uma passagem onde as páginas se abriram por si mesmo, mal sabendo o que ia ler quando começou, porque tinha o espírito angustiado pelas barbaridades praticadas naqueles dias. A passagem onde o livro se abrira era a seguinte:

Aarão tirou à sorte dois bodes, um para o Senhor e outro para ser o bode expiatório.

Então ele matará o bode que é sacrificado pelos pecados, que são de todo o povo, e porá o sangue dentro de um vaso. E ele fará um sacrifício no lugar santificado, por causa da impureza dos filhos de Israel, e por causa das ofensas de todos os seus pecados... E quando tiver acabado a purificação do lugar santificado, do tabernáculo da congregação, e do altar, irá buscar o bode vivo; e Aarão imporá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ela confessará todos os pecados dos filhos de Israel, e todas as ofensas dos seus pecados, descarregando-as sobre a cabeça do bode e mandá-lo-á, levado por um homem escolhido para esse fim, para o deserto: E o bode carregará assim com todos aqueles pecados para uma terra desabitada.

Naquela mesma noite Israel teve um sonho. Tinha adormecido, e acordara num lugar desconhecido. Er um vasto deserto árido. Cinzas em toda a volta; um sol abrasador caindo-lhe em cima; nem uma gota de água a brilhar. Israel olhou lentamente através da luz do sol resplandecente, e pôde descortinar umas paredes brancas, sem telhado, como ruínas de um pequeno estábulo. "São túmulos"-pensou ele, "isto é um Mukabar - um cemitério árabe - o lugar mais desolador neste mundo de Deus". Afirmando-se, viu que paredes sem teto cobriam o chão até perder de vista, e veio-lhe a ideia que esta planície deserta era a própria terra, e que toda a vida tinha acabado no mundo. Então, de repente, na imobilidade daquele deserto, um ser solitário moveu-se. Era um bode que se arrastava sobre a cinza quente com a cabeça pendurada e a língua de fora. "Água!" parecia gritar, apesar de não se ouvir nenhum ruído. E os seus olhares estendiam-se pela planície fora, como se quisessem fazer brotar uma nascente daquele deserto. Israel sentia-se cheio de febre, a delirar. O bode aproximou-se e olhou para ele, e ele viu-o de frente. Deu um grito e acordou. É que o focinho do bode parecia ter feições humanas - era a cara de Naomi.
 

*

Então o Senhor disse a Israel, "Olha agora para Naomi, tua filha, ela é sacrificada à expiação dos teus pecados, para expiar as tuas ofensas, para asexpiar por ti e pelos teus, e por isso ela é muda para tudo o que seja voz, e cega para tudo que seja vista, é uma alma algemada e um espírito encarcerado, porque, olha: ela é como aquele sobre quem recaiu a sorte lançada pela justiça e pelo Senhor".

E Israel gemeu na sua agonia, exclamando, "melhor fora que essa sorte tivesse caído sobre mim, Senhor, para que pudesses ser exacto quando falas, e justo quando julgas, porque só eu é que sou o culpado perante Ti".

Então o Senhor disse a Israel, "Sobre ti, também, caiu a sorte, e foi a sorte do bode expiatório dos inimigos do povo de Deus".

Israel tremeu de medo, e o Senhor tornou a chamá-lo, dizendo, "Israel, assim como o bode expiatório carregou com as iniquidades do povo, tu arrastas as iniquidades do teu amo, Ben Aboo, e de sua mulher, Catarina; e assim como o bode leva os pecados do povo para o deserto, assim, na ressurreição, tu levarás os pecados desse homem e dessa mulher para uma terra que ninguém ainda conhece".

Israel já não discutia com o Senhor, mas suava como se fosse sangue, e exclamou, "Que devo fazer, Senhor" ?

E Deus respondeu, "Deixa-te aí estar até romper a manhã, então levanta-te e dirige-te aos arredores de Meknez, e ali procura o homem de quem ouviste falar, e ele te indicará o que tens a fazer".

Então Israel chorou de alegria, e perguntou;. "Viverá a minha alma? Ficarei livre da má sorte que caiu sobre mim, e da que caiu sobre Naomi, sobre a minha filha" ?

Mas o Senhor retirara-se, a luz avermelhada desapareceu dos pés da cama, e tudo em volta ficou nas trevas.

Desde esse momento até à última hora do último dia da sua vida, Israel juraria sobre os Evangelhos que tinha tido aquela aparição, que tinha ouvido aquela voz, não em sonhos enquanto dormia, mas estando acordado, tendo pleno conhecimento de todas as coisas vulgares que o rodeavam - o quarto, a cama, o docel que a cobria. E ao levantar-se de manhã ao alvorecer, tinha tão presente o sentimento do que vira e ouvira, e era tão forte a impressão colhida, que ele imediatamente começou a cumprir as ordens recebidas por aquele meio, sem discutir a sua realidade, ou duvidar da sua autoridade.

Portanto, entregando o governo da sua casa ao cuidado do preto Ali, que crescera e era agora um robusto adolescente, o seu braço direito e o seu ajudante, Israel começou por mandar dizer ao Governador que tinha que estar dez dias ausente de Tetuão, depois mandou pedir à Cidadela um soldado e um guia, e em seguida buscar mulas ao mercado.

Então Israel partiu para a sua viagem.
 

*

O Baptismo do som

O que sucedera em casa de Israel durante a sua ausência, conta-se em poucas palavras. No dia da partida, Naomi andou de quarto para quarto, parecendo procurar quem não podia encontrar, e à tarde as escravas pretas foram dar com ela no andar de cima, onde o pai costumava ler-lhe a Bíblia à hora do pôr do sol, ajoelhada junto à cadeira do pai, com o livro nas mãos.

"Olhem para ela, pobre criança", disse Fátima.

"Olhem, pensa que ele há de vir como costumava. Deus abençoe a sua santa inocência"!

No dia seguinte Naomi fugiu de casa para a cidade, dirigindo-se à Cidadela, e Ali foi encontrá-la nos quartos da mulher do Basha, que a tinha achado, quando ela andava à toa no pátio, vagueando entre o Tesouro e a Sala da Justiça, a porta das prisões. No dia seguinte não tentou sair, e não vagueou pela casa, mas sentou-se, sempre no mesmo sítio, parecendo estar à espera de qualquer coisa, cheia de paciência. Estava pálida, sossegada, e não ria; não dava as gargalhadas do costume, mas tinha um olhar de submissão que muito comovia.

"Agora até os santos estão com pena desta linda jóia", disse Fátima, "por quanto tempo terá ela de esperar, pobre amor?"

Na manhã do dia seguinte o sossego foi substituído pela inquietação, e a palidez por um rubor ardente na cara. Tinha as mãos a escaldar, a cabeça febril, e os seus olhos cegos estavam raiados de sangue.

Era agora evidente que a pequena estava doente, e que os receios de Israel ao partir tinham realmente uma justificação. Ali, vendo o estado de Naomi, foi chamar o único médico que havia em Tetuão - um boticário espanhol que residia na rua entre muros por onde se ia ter à porta ocidental. Este pobre homem veio examinar Naomi, tomou-lhe o pulso, pôs-lhe a mão na testa a escaldar, viu-lhe a língua com dificuldade e declarou que a doença era febre. Deu algumas indicações caseiras relativas ao tratamento a seguir - porque perdeu a coragem de dar remédios a quem era como ela - e prometeu voltar no dia seguinte.

A meio da noite Naomi delirou, Fátima conservou-se constantemente ao pé da cama, banhando-lhe a testa escaldante com água e vinagre, Habeeba dormiu numa cadeira a seus pés, e Ali estendeu-se num canto, do lado de fora da porta.

O boticário voltou de manhã, como tinha prometido, mas nada havia a fazer, e ele com gravidade, abanou a cabeça, e disse, "Voltarei daqui a mais dois dias, que é quando a febre deve estar no auge,  e trarei comigo um famoso médico de Tânger."

Entretanto, o delírio de Naomi continuava. O seu espírito estava tranquilo, mas sucedia um caso extraordinário naquela sua inconsciência - é que, tendo sido muda durante o tempo em que o espírito, na escuridão em que vivia, era o seu único guia, agora falava sem cessar, e assim foi durante todo o tempo que durou a ausência da razão. Não que a língua nesta sua doença falasse de forma a seguir-se e a compreender-se o que ela dizia, mas ouvia-se um balbuciar incessante de sons sem significação, com inflexões exprimindo sentimentos variados, umas vezes de alegria, às vezes de tristeza, outras de censura e ainda outras de súplica.
 

*

Era um velho negro encarquilhado aleijado pelo reumatismo, que estivera surdo como uma porta e que ainda o era bastante, meio cego reputado como tendo só metade de são juízo, escravo fôrro oriundo do Sahara, mal sabendo ler o Alcorão e o Torah. Mas ensinando um e outro de boa vontade e com imparcialidade, de acordo com o que sabia. Como não sendo Judeu nem Muçulmano, tinha um pouco de cada um, como ele mesmo costumava dizer não tendo aliás muito nem dum nem doutro. Para um tal ser híbrido, numa terra de intolerantes, não deveria haver lugar, a não ser nas masmorras da Cidadela, mas a verdade é que este indescriptível indivíduo tinha privilégio, porque todos gostavam dele.

No seu subterrâneo escuro, numa ladeira junto à Grande Mesquita no Metámar, sentava-se desde o romper da manhã até ao sol posto, dias seguidos durante trinta anos, no chão coberto de junco, entre gerações sucessivas de rapazes; e todas as noites que Deus dava, ele ia visitar os doentes e os moribundos, levando a consolação de palavras bondosas, e as vezes alguma coisa de comer e de beber, tirado à sua parca subsistência.

Tal era o outro herói de Ali, depois de Israel, a quem agora, na ausência deste, e na grande aflição em que estava, se apressava a procurar.

- "Pai", disse o rapaz, "nos bons livros não se diz que as orações dum homem justo valem de muito?"

- "Diz-se, sim, meu filho", respondeu o Taleb, "falas verdade. O que há?"

- "Então, se orares por Naomi, ela curar-se-á", disse Ali.

Era um pedido delicado, feito com uma fé simples. O velho Taleb mandou embora os alunos, fechou a porta com um cadeado, e foi a manquejar até ao pé da cama de Naomi vestido com o seu selham branco e esfarrapado. Olhou para ela através dos grandes óculos encavalitados no grosso nariz de preto, e então, com uma névoa a flutuar entre os olhos e os óculos, e num soluço que o sufocava, ajoelhou-se e rezou, enquanto Ali e as duas pretas se ajoelhavam a seu lado.

A oração do preto era infantil. Contava tudo a Deus; ia narrando os factos ao Pai Celeste, como a alguém que morasse muito longe, e de nada soubesse: a menina estava doente de morte, tinha estado três dias e três noites sem conhecer ninguém, não comendo nem bebendo nada; era cega, muda e surda; o seu pai amava-a, e todo se concentrava nela. Era a sua única filha; a mulher morrera, e ele estava só.

Andava agora por longe, e se, ao voltar, a filha tivesse partido e estivesse perdida - se estivesse morta e enterrada - o seu coração forte partir-se-ia de dor, e a sua própria alma ficaria em perigo.

Tal foi a oração do Taleb, e tal era a cena - o anjinho mudo, branco e corado, voltando-se e agitando-se na cama, numa auréola de cabelos louros espalhados, e os quatro negros de volta dela, ansiosos e suplicantes, com os olhos fechados e a boca aberta, implorando dos Céus a graça de Deus, que só o espírito pode ver.

Estavam assim, mas por força do acaso ou da Providência (o que ninguém se atreveu a resolver), nesse mesmo momento, enquanto os quatro pretos estavam de joelhos ao pé da cama, os movimentos e a agitação da cabeça de Naomi pararam de repente, ficando sossegada no travesseiro.

O rubor desapareceu das faces, as feições, que estavam alteradas, voltaram ao natural, e as mãos, que tinham estado sempre a mexer-se, ficaram quietas sobre a coberta.

O bom velho Taleb tomou isto como uma resposta às suas orações, e exclamou: "El hamdu lIllah! (Louvores a Deus! ), enquanto lágrimas grossas como punhos corriam pelas rugas fundas do seu rosto.

E então, como para completar o milagre, e justificar a fé do velho pela sua realização, sucedeu uma coisa estranha e maravilhosa: primeiro, um líquido espesso correu dum dos ouvidos de Naomi, depois, ela levantou-se encostada ao cotovelo. Tinha os olhos abertos como se visse; tinha a boca entreaberta como se fosse sorrir; deu um longo suspiro como alguém que tivesse dormido sossegado" durante a noite inteira, e tivesse acabado de acordar pela manhã.

Enquanto os pretos sustavam a respiração no primeiro momento de surpresa e alegria, da boca entreaberta de Naomi soltou-se um som. Era uma gargalhada - um eco fraco, quebrado, falhado, do seu velho riso feliz. E logo a seguir, quási antes que os outros tivessem ouvido os sons, e quando ainda vinham a sair da boca, levantou a mão livre e cobriu o ouvido, e pelo rosto passou-lhe uma impressão de medo.

Tinha sido tão rápida a mudança, que as escravas não a tinham visto, e estavam exclamando "Aleluia! " em coro, só pensando que aquela que estava morta, voltara de novo à vida. Mas o velho Taleb gritou com vivacidade, "Calem-se! meus filhos, calem-se! O que está a chegar é uma coisa maravilhosa! Eu sei o que é - quem o sabe tão bem como eu? - Já uma vez estive surdo, meus filhos, e agora ouço. Escutem! A criança teve febre - uma febre cerebral. Já se foi; desapareceu. Agora ela vai ouvir. Escutem, porque sou eu que o sei - quem há que o saiba tão bem como eu? - Sim, ela não continuará a ser surda. Vão-se abrir os seus ouvidos. Ela ouvirá. Dantes ela vivia na terra do silêncio; agora vai entrando no mundo dos sons. Abençoado seja Deus, porque fez esta maravilhosa obra! Deus é grande! Deus é poderoso! Louvemos para sempre Deus misericordioso! El hamdu Illah!".

Por maravilhoso e inacreditável que parecesse ser o que o velho Taleb dizia, contudo parecia que se ia realizar, porque quando ele falava, começando por um murmúrio, que se ia elevando em rapidez e altura, Naomi voltava a cara de frente para ele; e quando as escravas, na sua fácil fé, se uniram nas exclamações de louvor, ela também voltou a cara para elas; e fosse de que lado fosse que no quarto soasse uma voz, ela inclinava a cabeça nessa direcção, como alguém que quisesse avaliar donde vinha, e também como alguém a quem esses sons assustavam.

Mas, não vendo o seu ar de sofrimento, não sabendo senão uma coisa, que era aquela maravilhosa e extraordinária mudança de quem fora surda e agora ouvia, de quem nunca ouvira falar e agora ouvia as vozes dos que falavam em sua volta, Ali, numa arrebatada alegria, rindo e chorando ao mesmo tempo, com os dentes brancos a brilhar, e com a negra cara bochechuda luzidia de lágrimas, principiou a gritar, a cantar, e a dançar em volta da cama, na grande satisfação pelo milagre que Deus fizera, em resposta à oração do seu velho Taleb. Não prestou atenção nenhuma aos conselhos do mestre, mas continuou a dançar, e nem as escravas viam os braços levantados do velho e as palavras com que as mandava calar, tão dominadas elas estavam pelo seu contentamento, tão espantadas e como embriagadas de alegria. De repente acima desse tumulto soou uma série de gritos lancinantes. Eram os gritos de Naomi no seu terror cego e repentino, ao ouvir os primeiros sons da voz humana que jamais a tinham impressionado. Estava pálida, as pálpebras tremiam-lhe, com os beiços a mexer, as narinas a palpitar, parecendo toda ela subjugada por uma vertigem de medo; e na terrível desordem de todas as sensações, o seu cérebro, ao acordar do doloroso sono de três dias de delírio, sentia-se vacilante e incerto ao chegar com felicidade ao mundo dos sons.

Então Ali acabou de repente a sua dança frenética, as escravas calaram-se num momento, e um silêncio absoluto reinou no quarto depois daquele barulho todo.

Foi nesse instante impressionante que Israel, voltando da viagem, vestido com o jellab dum mouro, bateu, como um estranho, ao portão da sua casa. Quando entrou no quarto, ainda roto e esfarrapado, demasiadamente excitado para despir o triste fato que lhe tinham dado no caminho, Naomi estava a descansar encostada às colunas da cama. Então reparou que o seu aspecto tinha mudado, e que parecia escutar com todas as feições do rosto.

Já não se parecia com um cordeirinho inocente e alegre, nem tinha a cara duma criança pacífica e feliz; mas estava afogueada e hesitante. Lia-se-lhe no rosto o medo, a admiração e o espanto; e como Fátima estivesse a seu lado, dizendo-lhe palavras carinhosas para a animar, parecia não sentir nenhuma alegria, mas só susto, pois que se afastava quando Fátima falava, como se o som daquela voz lhe ferisse os ouvidos, aterrorizando-a. Tudo isto foi percebido por Israel num momento, mas a vista turvou-se-lhe, o coração bateu apressadamente, um espesso nevoeiro pareceu-lhe cobrir tudo, e através da densa atmosfera duma semi-inconsciência, ouvia o sussurrar da voz baixa de Fátima chegando aos seus ouvidos como se viesse de muito longe: "Minha linda Naomi! Meu lindo coraçãozinho! Minha doce jóia de ouro e prata! Não é nada! Nada! Olha! Vê! O pai voltou! O querido pai voltou para junto dela!

Pareceu-lhe que o quarto deixava de andar à roda, e sentiu que os braços de Naomi o abraçavam, que os seus próprios braços a enleavam, e que tinha a cabeça dela muito encostada ao seu peito.

Sim, era ela! Era Naomi! Ali tinha-lhe dito a verdade! Estava viva! Estava curada! Podia ouvir! A velha esperança que tinha alegrado a sua alma estava justificada, e o querido e delicioso sonho tinha-se tornado em realidade ! Oh ! Deus era grande, Deus era bom, Deus tinha-lhe concedido mais do que ele pedira ou merecia!

Assim ficou por alguns minutos imóvel, abençoando o Deus de Jacob, sem soltar uma palavra, porque o seu coração estava cheio de mais para falar; apenas conservava Naomi muito junto a si, enquanto as lágrimas caíam sobre a cabeça da sua ceguinha. E os pretos que estavam no quarto choravam ao ver a cena, pois que não era mais muda, naquela hora de grande alegria, Naomi que assim tinha nascido, do que aquele em cuja casa Deus tinha operado tão maravilhosa obra.

Israel ainda não tinha reparado nos sinais de ansiedade da fisionomia de Naomi, alegre entre os mais alegres. Quando ele a tomou nos braços, ela reconheceu-o, e tinha-se-lhe abraçado na alegria da surpresa. Mas quando continuou a ficar encostada ao seu peito, não era só por ele ser seu pai e ela lhe ter amor, nem só por o ter perdido e tornado a achar, mas também porque ele era a única pessoa silenciosa de todos os que a rodeavam.

Quando ele o compreendeu, o seu coração humilhou-se; mas percebeu o receio dela, pois que, saindo do mundo do grande silêncio, onde a voz humana nunca se ouvia, onde a atmosfera era sem canções como a dos sonhos, e obscura como um túmulo, a alma dela iludia-a, e o seu espírito estremecia num mundo novo de sons estranhos. Porque o que era o ouvido se não um pequeno quarto escuro, um subterrâneo, uma masmorra dum castelo, onde a alma passava constantemente para dentro e para fora, recebendo impressões do mundo exterior?
 

*

Enquanto estavam assim ele desejou falar-lhe, a ver se ela, pela expressão da sua cara mostrava que ouvia. Bastava que fosse só uma palavra, uma só, para que ela pudesse conhecer a voz do pai - que ela nunca tinha ouvido - respondendo-lhe com um sorriso.

"Filha! Minha querida! Meu amor!"

Só isto, nada mais. Só estas únicas palavras suaves, cheias de toda a ternura silenciosa que, como um rio sem escoante, tinha estado durante dezassete anos retida no seu coração. Mas não, não podia ser. Não devia falar para que não se alterassem as feições dela, nem se retirassem dele os seus braços. O coração despedaçava-se-lhe se tal acontecesse. Não obstante lutou com a tentação; foi terrível. Não se arriscou, e assim continuou sentado na cama, silencioso, mal se mexendo, quási sem respirar, cheio de poeira, vestido com um jeitão roto, tendo Naomi nos braços.

*

O Grande Dom de Naomi

Com a vinda do dom do ouvido, os outros dons que Naomi possuía quando surda, e as graças com que tinha sido dotada, pareciam tê-la abandonado de repente, como se abandona um vestido que se despe.

Era como se o seu antigo sentido do tacto tivesse ficado perturbado com o novo sentido do ouvido. Perdia-se na casa de seu pai, e podendo agora ouvir os passos, não percebia de quem eram. Levaram-na à rua, ao Feddán, ao caminho entre muros que conduz à grande porta, às íngremes arcarias que sobem para a Cidadela. Nunca, como anteriormente, tornou a abrir caminho entre a multidão, como quando parecia vê-la com todas as feições e a saudava com o riso da sua linda boca, mas ia caminhando para a frente em passo incerto. Levaram-na à colina por cima do forte, e ela arfava ao subir aquele caminho familiar, e ao chegar ao cimo não tornou a exultar por ter chegado a ponto tão alto, nem a beber vida nova nas rajadas violentas dos ventos que a cercavam, mas tremeu como uma criança cheia de medo, quando se voltou para a cidade, que aliás não podia ver, situada abaixo dela, e ouviu as vozes que dali se levantavam; e ouvindo ciciar a brisa que banhava as suas faces, lhe pareceu agora que gritava aos seus ouvidos. Puseram-lhe a harpa de Ali nas mãos, a mesma em que ela tocara tão estranhamente na Cidadela, quando do casamento de Ben Aboo; mas nunca mais, como naquele dia, ela dedilhou as cordas em rapsódias selvagens de sons como nunca ninguém até então ouvira, nem mesmo podia compreender, e apenas as tocou e apalpou com dedos inexperientes de quem não sabia música.

Perdeu as antigas faculdades de distinguir o seu caminho, de dirigir as suas brincadeiras, e de amar as ; suas afeições. Parecia que não comunicaria com a Natureza mais do que por meio dos órgãos que o resto da humanidade possue. Já não era mais uma rapariga de espírito radiante e alegre, mas apenas uma linda jovem, cega, uma doce irmã dos homens, fraca e débil.
 

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O que Deus estava então a preparar naquele espírito adormecido, só Ele o sabia; mas chegou a hora do acordar, e com ela chegou a Israel o primeiro prazer causado pelo novo dom que Deus tinha concedido a Naomi.

Para revigorar o espírito e despertar a memória, Israel tinha-a levado a passear ao campo, fora da cidade, onde ela gostava de brincar na sua meninice - os lugares silvestres, cobertos de hortelã-pimenta, cravos, tomilho, mangerona, e giesta branca, onde ela colhia flores nos tempos idos, quando era só Deus que lhas indicava. O tempo estava agradável, na frescura da manhã o ar era suave, e o vento fraco; debaixo das árvores umbrosas, os abrigos formados pelos canaviais estavam tranquilos. E para onde quer que Naomi desejasse andar, eles lá iam sem destino.

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O regato murmurava a seus pés; uma velha oliveira por cima da cabeça, rumorejava com a infinidade das suas folhas; a pequena família dum esquilo chiava a seu lado, e um dos mais pequeninos da ninhada trepava-lhe pelo vestido; um tordo balouçava-se num dos ramos mais baixos da oliveira e cantava ao mesmo tempo, e uma ovelha de aspecto grave - magra, feia e velha - estava a saltar por detrás dela. As abelhas zumbiam, os gafanhotos zuniam, o vento ligeiro murmurava, e vacas mugiam ao longe. A atmosfera deste suave lugar nesta hora tão doce, estava cheia da música dos delicados sons do céu e da terra, e fragrante com todos os perfumes silvestres do bosque.
 

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Era o acordar da sua alma para a musicalidade, e a partir desse dia ela achou prazer em ouvir todos os sons agradáveis, quaisquer que eles fossem - vozes de crianças a brincar - balidos da cabrinha - passos dos que ela amava - o chiar da roda da velha roca, da sua mãi, que ela agora sabia manejar-a harpa de Ali, quando ele a tocava no pátio durante as horas frescas da tarde.
 

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Enquanto que antes de receber o seu grande dom, todas as suas faculdades se concentravam no tacto, e ela parecia sentir materialmente o pôr do sol, o céu, o trovão e o relâmpago, agora a sua expressão era toda de quem somente ouve. Parecia ouvir por todo o seu corpo, era como uma alma com vida a flutuar num mar de sons.

Assim, dias e dias, viveu no silêncio e na escuridão, a arquitectar noções sobre os homens e sobre o mundo, servindo-se do novo dom que Deus lhe concedera. Mas as coisas estranhas que foram então para ela a terra, o sol com o seu calor, o mar com o seu bramido, as feições dos homens, os olhos da mulher, ninguém o sabia, nem ela mesma o podia dizer, porque a sua alma não estava ligada a outras almas - alma a alma - pelo encadeamento da linguagem.
 

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Apesar de fugir à tentação de abandonar a si mesma a alma de Naomi, ainda às vezes o seu coração o iludia. Via que quando lhe falava lhe parecia ser como um homem que vai gritar à boca duma caverna, e que só ouve como resposta o eco da própria voz. Se lhe falava do céu, que é tão grande como o mar, que podia ela saber de grandes profundidades para as avaliar? Se lhe falava do mar, tão verde como os campos, que conhecimento tinha ela da relva para lhe distinguir a cor ? E às vezes, quando lhe falava, vinha-lhe de-repente à idea que as próprias palavras que ele costumava pronunciar, não valiam para Naomi mais do que as notas que Ali tirava da sua harpa inerte, ou o balido da cabrinha deitada a seus pés.

Não obstante, a sua fé era grande, e pensava "Deus encontrará o caminho para chegar até ao seu espírito".
 

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Já tinham passado três semanas depois do seu regresso, e o calor abrasador continuava. O temporal que tinha rebentado sobre a cidade não dera nenhum resultado enquanto a frescura ou humidade, porque o solo estava muito ressequido, e a chuva tinha sido pouco duradoura e rápida demais para o penetrar. Todas as folhas e arbustos verdes que não se tinham mirrado com o calor, tinham sido queimados por uma geada mortal. Os gafanhotos tinham passado havia pouco vindos do sul e do leste, em número que excedia tudo quanto se possa imaginar, milhões de milhões, tornando denso o ar à sua passagem, e escurecendo o céu azul. Tinham devastado toda a. verdura daquelas terras, deixando atrás de si um rasto de desolação. A relva desaparecera, a casca das oliveiras e das amendoeiras tinha sido destruída, e as árvores despidas lembravam o inverno.

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Israel em Sháwan

Depois de voltar da sua jornada, Israel seguiu os preceitos do jovem Mahdi de Meknês. Analisando a sua situação, viu que, pela dureza do seu coração nos primeiros tempos, e mais tarde pela sua vil submissão à vontade de Catarina, mulher cristã do Caid, tinha enchido o país de miséria. Agora não se poupava a despesas para restituir o que injustamente tinha extorquido.

Assim, àquele que tinha pago taxas em dobrado, restituía agora o dobro - metade pela própria taxa e outro tanto pelo respectivo excesso; e se algum homem tivesse sido injustamente sobrecarregado pelos tributos do Caid, tendo hipotecado as terras pelas dívidas, e preso na Cidadela, tivesse ali morrido sem as resgatar, então pagava quatro vezes mais aos filhos - o dobro pelas terras e o dobro pela morte. Israel fazia isto constantemente, sem dizer nada a Ben Aboo, pagando tudo da sua algibeira, a ponto de, homem rico que era, dentro de um mês passar a ser pobre, porque, que valia a riqueza de um homem, no meio de tantos outros que nada possuíam ?

Não ganhou no entanto nenhumas simpatias, mas unicamente dó e desprezo, porque o povo que recebia o seu dinheiro agradecia-o ao Caid, o qual, segundo o que eles supunham, tinha mandado Israel reparar o mal que tinha feito.

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Naomi era a sua esperança e salvação. A sua fé em Deus resultava do seu amor pela filha. Ele estava como que a subornar Deus para que se amerceasse dela. Bem percebia, enquanto viajava dirigindo-se assim à prisão de Sháwan, atrás das mulas carregadas de pão que levava para os prisioneiros, que embora muito lhes devendo, por ter sido ele uma das causas da sua miséria, que a caridade que agora lhes mostrava era como uma caridade feita a si próprio. Assim, quanto mais se aproximava, mais abaixava a cabeça, como se até o sol que tão violentamente lhe caía em cima, tivesse olhos para espreitar para dentro do seu coração que o estava a iludir.

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A Reunião no Sôk

A-pesar-de Israel não o saber, e na ansiedade em que vivia o seu coração, dar tudo para o saber, a verdade é que, se alguém pudesse ver dentro do escuro envólucro onde o espírito de Naomi tinha vivido durante dezassete anos em silêncio, teria visto, que sendo a criança tão querida do pai, muito mais querido e necessário era o pai àquela filha. Desde que a mãe morrera ele tinha sido para ela a vista dos seus olhos, e o ouvido dos seus ouvidos, tocando-lhe na mão para dizer que sim, acariciando-lhe a testa para aprovar, adextrando-lhe os dedos a fazer sinais.

Assim Israel era para Naomi mais que qualquer pai para a filha, mais do que mãe, irmã, irmão ou parente, porque era o único caminho para o mundo em que ela vivia, a única estrada onde o seu espírito vagueava, a chave que abria a porta fechada daquela alma; e sem ele, nem o mundo chegaria até ela, nem ela podia comunicar com o mundo.

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Quando Israel se preparava para ir a Sháwan, Naomi agarrou-se a ele para lhe impedir a partida, como se se lembrasse da longa ausência que fizera quando fora a Fez, parecendo ligá-la com a doença que a afligira durante aquela ausência; ou como se visse, com aqueles olhos cegos para as coisas do mundo, o que estava para lhe suceder antes dele voltar.

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A Cegueira de Naomi

Apesar de Naomi, na escuridão e mutismo em que vivia, ter aprendido a conhecer e diferençar as vozes humanas, o que fazia desde que recebera o dom de ouvir, e querer pronunciar as palavras, repetindo-as e servindo-se delas, não passava contudo de uma verdadeira criança, ignorando a sua significação exacta. Enganava-se, balbuciava e atrapalhava-se: teve que aprender a falar como uma criança quando começa a crescer, mas com mais rapidez, não só porque lhe era mais necessário, mas também porque já era uma rapariga crescida. Percebendo a sua incompetência, e envergonhando-se dela, notando a paciência com que o pai esperava quando ela hesitava nas conversas com ele, e ainda mais, humilhada pelo auxílio impetuoso de Ali quando ela estropeava alguma sílaba, tornou a ser silenciosa.

Era difícil conseguir que ela falasse; alguns dias depois da noite em que a sua língua, soltando-se, salvara Israel dos seus inimigos no Sôk, ela apenas dizia "Sim" ou Não" apesar das insistentes perguntas de Ali, das bênçãos lacrimosas de Fátima, das invocações incessantes de Habeeba, e não obstante a fome e a sede do coração do pai.
 

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Israel não tinha agora por onde escolher. Tinha que entristecer o espírito desse ente de alegria, para que o corpo se conservasse a salvo de perigos. Naomi não era mais que uma criancinha, levada só por impulsos, mas sujeita a maiores perigos vindos de si própria do que qualquer outra criança, pois que fora privada de dois dos seus sentidos até ser crescida, e nenhum meio havia de a vigiar.

Israel por fim fez um esforço para executar o seu mais que doloroso dever, e numa tarde em que Naomi estava sentada com ele no terraço ao pôr do sol, a ouvir-se nas ruas o ruído dos Judeus a chinela no seu regresso à Mellah, ele disse-lhe que ela era cega. Esta declaração, ao princípio, não a impressionou. Já a tinha ouvido antes, e não lhe tinha ligado mais importância do que a qualquer ruído desconhecido. Era cega de nascença, e portanto não podia realizar o que era ter vista. Tornar compreensível a terrível verdade, era difícil, e Israel sentia remorsos enquanto o estava fazendo.

Naomi riu-se quando ele lhe pôs os dedos nos olhos para a fazer compreender. Tornou-se a rir quando ele lhe perguntou se ela via a gente que só podia ouvir. E mais uma vez se riu quando, já posto o sol, tendo o Muezzin saído da Grande Mesquita no Metámar, Israel lhe perguntou se ela via aquele velho cego no minarete a clamar, Dus é grande! Deus é grande! " Podes vê-lo, filha?" disse Israel.

"Vê-lo?" respondeu Naomi, "porque não, querido paizinho, com certeza que o vejo. Escuta! disse ela, parando de rir, levantando um dedo, e inclinando a cabeça para o lado "escuta: Deus é grande! Deus é grande! - Pronto, eu vi-o".

"Isso foi só ouvi-lo, Naomi - ouvi-lo com os teus ouvidos, com este ouvido, e ainda com mais este. Mas podes vê-lo, amorzinho?"

Quereria o seu pai perguntar-lhe se ela sentia o Muezzin no minarete situado muitas jardas acima deles ? Mais uma vez inclinou a cabeça, e depois de uma pausa, exclamou num impulso:

"Ah, eu estou a perceber; mas meu Paizinho tonto, como posso eu fazê-lo se ele está lá tão longe".

Então deitou os braços ao pescoço de Israel e beijou-o.

"Pronto", exclamou ela, no tom de alguém que quer marcar uma diferença. "Eu assim, pelo menos, posso ver o meu pai.

Era duro de contrariar a sua alegria, mas Israel tinha que o fazer. Disse-lhe, em palavras abafadas, que ela não era como as outras meninas, - nem como seu pai, nem como Ali, Fátima ou Habeeba; que ela era um ser castigado por Deus; que havia alguma coisa que ela não possuía, alguma coisa que não podia fazer, um mundo que ela ignorava, de que nem sequer tinha sonhado até então.

A escuridão era mais do que frio e quietação, e a luz mais do que calor e barulho. Uma coisa era o dia - regulado pelo ardente sol no céu - outra coisa era a noite, alumiada pela lua pálida e pelas brilhantes estrelas.

A face do homem e os olhos da mulher eram mais do que feições palpáveis, tinham espírito e alma, que se sentiam, se seguiam e se amavam, sem que ninguém lhes pudesse tocar com a mão.

"Há um vasto mundo em tua volta, minha filha" disse Israel, "que tu nunca viste, apesar de o ouvires, de o sentires, de lhe falares. Sim, é verdade, Naomi, isto é a verdade. Tu nunca viste as montanhas com os seus perigosos abismos e suas encostas alcantiladas. Nunca viste o poderoso oceano, e as tempestades que o cavam e o agitam. Nunca viste um homem, uma mulher, ou uma criança. Não achas extraordinário, minha filha? Ouve: tua mãe morreu há nove anos, e tu nunca a viste. O teu pai está a pôr-te as mãos na cabeça, mas tu nunca viste as feições dele. E se as espessas cortinas que te não deixam ver caíssem dos teus olhos, e o pudesses ver; agora. não o distinguirias de outro homem, de uma mulher ou de uma árvore, - és cega, Naomi, és cega". Naomi escutava atentamente.

As feições contraíram-se-lhe, os dedos pousaram nervosos no seio, os olhos abriram-se de espanto, e encheram-se de lágrimas. Israel estava comovido. Dizer-lhe isto tudo, ainda que precisasse de o fazer para segurança da filha, era como estar a censurá-la pela sua cegueira. Mas por agora era só a comoção da voz do pai, que alcançara o âmbito cerrado do espírito de Naomi. A horrível e esmagadora consciência da sua cegueira, só mais tarde a sentiria, tornada sensível e até imposta, por mão mais frágil e mais leve.

Ela tinha sempre gostado dos pequeninos, e desde que ouvia gostava cada vez mais deles.

Apreciava o seu balbuciar, as suas palavras mal pronunciadas, muito simples, as suas ideas infantis, todas adequadas à sua tenra idade, porque ela realmente não era mais que uma criança, a-pesar de já ser uma formosa adolescente. De todas as crianças, das que gostava mais, não era dos filhos dos Judeus, nem mesmo dos filhos dos Mouros da cidade, mas preferia as crianças rotas, descalças, pretas ou cor de azeitona, que vinham a Tetuão com os Árabes e Berberes nas manhãs de mercado. Eram mais inocentes, as suas falas eram mais engraçadas, e mais cheias de alegria e de admiração por tudo. E assim ela colhia-as às duas, às três e às quatro, às quartas e sábados, às portas das tendas armadas no Feddán, e trazia-as para casa pela mão.

No pátio, Ali tinha armado um balouço com uma corda de cânhamo, suspensa de uma trave lançada entre os parapeitos dos terraços, e ali Naomi divertia-se com os pequenos. Balouçava-se no meio deles, com uma pretita delgada sentada a seu lado, com um pretinho de grande barriga e cabeça rapada agarrado à corda por detrás, e um valente Mourito vestido com um reduzido jellab branco a puxar-lhe os pés pela frente; todos a rir ao mesmo tempo, a cantar quando o balouço subia, e ela a ouvir, de cabeça posta à banda, com o seu lindo cabelo louro espalhado pelas costas abaixo e em volta do pescoço, a sorrir com o rosto branco de neve inclinado sobre o ombro.

Era uma linda cena de luminosa alegria, mas foi assim que veio a primeira grande sombra na sua vida de ceguinha.

Aconteceu um dia que uma das pequenas - uma mulherzita delgada - trouxe a Naomi do mercado um presente, tirado do cesto da mãe. Era uma flor de uma espécie rara, que só crescia nos longínquos montes onde vivia a pretita. Naomi passou os dedos por cima da flor, e não a reconheceu. O que é isto?" perguntou. "É uma flor azul, disse a pequena. "O que é azul" disse Naomi.

"Azul - não sabes? - é azul - respondeu a pequena.

"Mas o que é o azul?" Tornou a perguntar Naomi, segurando a flor nos seus dedos inquietos."

Que pergunta, minha querida! não vês - é igual - é a flor, bem o sabes", disse a criança na sua linguagem ingénua.

Ali estava perto naquela ocasião, e pensou em correr em auxílio de Naomi. "Azul é uma cor", disse ele.

"Uma cor?" interrogou Naomi.

"Sim, como - como o mar, acrescentou ele.

"O mar? Azul? Como?" perguntou Naomi.

Ali experimentou outra vez.

"Como o céu", disse simplesmente.

Naomi parecia perplexa. "E com que é que se parece o céu?" perguntou.

Naquele momento o seu lindo rosto estava voltado para Ali, e os grandes olhos azues, imóveis, pareciam fixar os de Ali. O rapaz estava atrapalhado, e não pôde reter a resposta que lhe saltou pela boca fora. "Como", disse ele. "Como..."

- "Então?"

- "Como os teus olhos, Naomi!"

Pelo velho hábito de se servir do tactear dos dedos nervosos, cobriu os olhos com as mãos, como se o sentido do tacto lhe podesse mostrar o que os outros sentidos lhe não ensinavam.

Mas o solene mistério tinha finalmente alvorecido no seu espírito. Ela não era como as outras, faltava-lhe alguma coisa que todos os outros possuíam, que as crianças que brincavam com ela conheciam, e que ela nunca podia conhecer; era uma doente, uma desgraçada, vivia aparte; havia um estranho mundo, formoso e luminoso em volta dela, onde todos os outros podiam brincar e divertir-se, mas que era vedado ao seu espírito, porque ela vivia fora desse mundo, separada pela poderosa mão de Deus.

Desde essa ocasião tudo parecia querer recordar-lhe a sua inferioridade; parecia ouvir constantemente uma voz a dizer-lho, envenenando-lhe a vida.

Mesmo os seus sonhos, embora sem pesadelos, eram cheios de vozes que lho lembravam. Se um passarinho cantava por cima da sua cabeça, levantava para o céu os olhos cegos; passeando na cidade nas manhãs de mercado, se ouvia o alarido da multidão - os gritos dos vendedores, o "Balaio dos condutores de camelos, os "Arre!" dos arreeiros, o som agudo da gaita dos charlatães, - suspirava, e deixava cair a cabeça.

Escutando o vento, perguntava se ele tinha olhos ou se era cego; ouvindo falar das montanhas cujos cimos cheios de neve penetravam nas nuvens, perguntava se elas eram cegas, e se conversavam umas com as outras lá nos céus.

A terrível revelação que era cega transformou-a, deixou de ser criança para ser mulher.

Na semana seguinte aprendeu mais do mundo, do que nos anos anteriores da sua vida. Deixou de ser . um irrequieto raio de sol, um descuidado espírito cheio de alegria, para ser uma jovem fraca, paciente, cega, consciente da sua grande enfermidade, humilhada e envergonhada de a ter.
 

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Israel percebeu a vergonha de Naomi. A cegueira, que para ela era uma humilhação, tornou-se para ele um mal corrosivo.

Tinha pedido a Deus que desse a fala a Naomi, tinha prometido contentar-se.

"Dai-lhe a fala, Oh meu Senhor!" tinha ele exclamado, "a fala que a erguerá acima dos animais, pois só pela fala é que ela poderá perguntar e responder". Mas o que era a fala para ela, que fora sempre cega? O que era o mundo todo para quem nunca o tinha visto? Apenas o que o Paraíso é para o homem, que mal pode sonhar com as suas glórias.

Israel renovou a sua oração. Havia coisas que era preciso saber e que as palavras não diziam. Agora estava Naomi como se fosse cega pela primeira vez, não sendo já muda. Dai-lhe vista, Senhor! " exclamou ele, "abri-lhe os olhos, para que ela veja; concedei que ela veja a beleza do Teu mundo para o conhecer! E ela terá a vida salva, o coração feliz, a sua alma será Tua, e então o Teu servo ficará finalmente contente e satisfeito!


A Importante resolução de Israel


Já tinham passado vinte-e-seis dias depois da reunião nocturna no Sôk, e ainda não tinha caído nem um pingo de chuva.

Os ovos dos gafanhotos deviam estar chocados de um momento para o outro. Então os bichinhos sem asas, iriam espalhar-se à superfície da terra como neve, e os pobres e delgados talos do trigo e da cevada, que vinham a romper a terra muito verdinhos, murchariam por causa deles.

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Durante estes vinte-e-seis dias perguntava a si mesmo o que era justo e necessário que fizesse. Por fim concluiu que o seu dever era abandonar o cargo que desempenhava sob as ordens do Caíd.

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Preparou-se, mas não levou muito tempo: já não tinha dinheiro, nem as jóias da esposa. Resolvera ficar com a casa, que não seria mais que um abrigo para Naomi (porque ele devia-lhe conforto material tanto como bem estar moral) mas para isso os móveis e outros pertences eram muito luxuosos, mais do que as suas necessidades requeriam, ou que o seu estado actual permitia.

Assim, vendeu a um negociante israelita da Mellah, as camas e boas cadeiras que comprara em Inglaterra, os tapetes de Rabat, os cortinados de seda de Fez, e os dóceis de púrpura da cidade de Marrocos. Quando já nada restava, senão os simples capachos e as esteiras, que são tudo de que se precisa na casa de um pobre num país como aquele, em que o céu é clemente, chamou ao pátio, onde estava sentado, os seus criados - Ali e as duas escravas - porque resolvera que também se devia apartar deles, e deixar seguir cada um o seu caminho.

"Meus bons amigos", disse, "vocês foram meus criados leais e fiéis durante muitos anos - tu, Fátima, e tu também, Habeeba, já antes de eu me ter casado, - e tu também Ali, meu rapaz, desde que, crescendo, te tornaste forte e prestável. Mal pensava eu que nos separaríamos antes de chegar o meu último dia; mas a minha vida na nossa pobre Berbéria já está acabada, e amanhã já serei o mais ínfimo de todos os homens de Tetuão. Eis o que eu resolvi fazer: tu, Fátima, e tu, Habeeba, tendo-me sido dadas por escravas pelo Caíd, nos antigos tempos em que o meu poder, que agora é pouco e sem importância, era grande e necessário - pertencem-me ; bem, eu dou-vos a liberdade. Os vossos documentos são passados em nome de Ben Aboo, selei-os com o seu próprio selo - foi a última vez, fora ainda mais uma outra, em que eu o empreguei. Aqui estão ambos os documentos. Levem-nos de manhã ao Caíd, depois das orações, e ele os ratificará. Ficarão depois escravas libertas para sempre".

As pretas tinham, por mais de uma vez, interrompido as palavras de Israel com exclamações de surpresa e de consternação. "Allah!" "Bismillah!" "Deus do Céu! " Pelas barbas do Profeta!" E quando finalmente ele lhes entregou os títulos de emancipação, caíram em ataques histéricos de choro, em altos gritos. "Enquanto a ti, Ali, meu filho", continuou Israel, "não te posso dar a liberdade, porque nasceste um homem livre. Foste para mim um filho durante estes catorze anos. Tenho para te dar um outro encargo - um trabalho de perigo, um dever solene - e quando estiver feito, nunca mais te tornarei a ver. Meu corajoso rapaz, terás que ir longe, mas nada receio por ti. Depois de partires, pensarei em ti; e se algumas vezes então pensares neste teu velho amo, que não te podia conservar, nós não nos poderemos considerar sempre separados".

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O perigoso encargo reservado a Ali era o de ir a Sháwan, e libertar os adeptos de Absalão, os quais, menos felizes que o seu Chefe, cuja alma forte estava em repouso, continuavam presos, mas sem estarem abatidos pelas misérias que sofriam. Tinha que realizar isto pelo poder dum alvará dirigido ao Caid de Sháwan, e autenticado pelo selo do Caid de Tetuão.
 

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O Milagre da Vista

" Basha" disse Israel - falando em voz baixa e sossegada, numa calma forçada- "Basha, tendes que procurar outra mão para esse trabalho - esta minha mão não selará nunca tal documento".

"Essa agora, homem", murmurou Ben Aboo. "Que espécie de bicho te mordeu ? Sou ou não sou eu o Caid ? Não te posso fazer meu Califa ?"

Israel tinha o rosto fatigado e pálido, mas os olhos brilhavam com a chama da grande decisão que tomara.

Basha " repetiu calmamente "se fôsseis o Sultão e me podésseis nomear Vizir, eu mesmo assim não o faria".

"Porquê?" exclamou Ben Aboo, "porquê, porquê ?

Israel respondeu: "Porque eu estou agora aqui para vos entregar o vosso selo".
 

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"Sou o seu bode expiatório, Basha", disse Israel com uma calma de arripiar, "o seu bode expiatório, que carrega com as suas iniqiiidades aos olhos do seu povo. O seu bode expiatório, que peca contra o povo e o oprime, que o reduz a pó à custa das maiores torturas, e que até o leva à morte. Isso é o que eu sou, Basha, e fui-o durante longo tempo, para minha vergonha! E enquanto eu ando lá por baixo, furioso, pelas ruas, no meio do povo-odiado, ultrajado, desprezado, cuspido, banido - vós estais cá em cima na Cidadela, numa esfera superior, respeitado, satisfeito, e rico, amado por um equívoco por toda a gente."
 

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Aqui está o selo. Está tinto com o sangue vermelho do vosso infeliz povo, vertido durante estes vinte e cinco anos que passaram. Não posso conservá-lo por mais tempo. Aqui o tem."
 

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"Entrega as tuas chaves - as chaves da tua casa!"

Israel hesitou, e depois disse: "Deixai-me lá ir um minuto - é tudo o que peço".

Ao ouvi-lo, a mulher riu-se histèricamente. "Ah! sempre lá deixou alguma coisa!" exclamou.

Israel voltou os olhos vagarosamente para ela e disse: "Sim, senhora, sempre lá deixei alguma coisa".

Não prestando atenção à resposta, Catarina dirigiu-se de novo a Ben Aboo, exclamando, "El Arby, faze com que ele entregue a chave daquela casa. Tem lá um tesouro!"

"É verdade, Senhora", disse Israel, "é verdade que tenho lá um tesouro. A minha filha - a minha Naomi, a ceguinha."

"É tudo?" exclamaram ao mesmo tempo Catarina e Ben Aboo.

"É tudo", respondeu Israel, "mas é quanto basta. Deixem-me ir buscá-la".

"Não o consintas!" gritou Catarina.

A cara de Israel mostrou os seus sentimentos. Lutava para os vencer. "Tirem-me a casa, se quiserem", disse, "expulsem-me da vossa cidade como um pobre, mas deixem-me ir buscar a minha filha".

"Ela não to agradecerá", exclamou Catarina.

"Ela tem-me amor", respondeu Israel. "Estou a fazer-me velho, estou já a contar os passos para a morte. Preciso da sua alegre juventude a meu lado nesta minha idade caduca. E depois, ela é uma infeliz, é cega, é o meu bode expiatório, Basha, como eu sou o vosso, e ninguém a não ser seu pai..."

"Ah! Ah! Ah!"

Israel tinha falado com calor, e Catarina estava a rir-se mofando das mais ternas expressões de sentimento que finalmente ele fora levado a manifestar. "Acreditem-me" disse ela, "eu sei o que são filhas. As raparigas gostam de outras coisas melhores. Não, eu vou dar-lhe o que será mais a seu gosto. Ela viverá aqui comigo".

Israel endireitou-se a toda a sua altura e respondeu: "Senhora, eu antes a quero ver morta a meus pés".

Ben Aboo interrompeu-o, dizendo: "Não levante a voz para a sua ama, senhor".

"A vossa ama, Basha", disse Israel, "não a minha".

Catarina, ao ouvir estas palavras, com expressão diabólica e a cara afogueada, precipitou-se sobre Israel, batendo-lhe com o leque na testa. Ele não se moveu nem disse uma palavra. A pancada cortara a pele, e uma gota de sangue corria da testa para as faces. Houve uma pausa curta e penosa. O silêncio, sob aquela forte tensão, foi então quebrado por um grito abafado. Veio do lado de trás, do lado da entrada: era a voz duma rapariga.

Na perturbação do momento, estando todos os olhares fitos nos dois actores daquela cena, ninguém reparara que tinha entrado alguém no pátio. Era Naomi. Ninguém sabia há quanto tempo ela ali estava, e como, sem ninguém dar por isso, ela tinha atravessado os corredores desde a porta da rua.

Seria difícil alguém dizê-lo com clareza - mesmo passado o tempo necessário para pôr em ordem os pensamentos confusos do Makhazui, o guarda-portão. Ela estava debaixo do arco, com uma das mãos sobre o peito, que visivelmente palpitava de emoção, e a outra mão aberta contra a porta chapeada de ferro, como a pedir auxílio e guia para o caminho a seguir. Tinha a cabeça levantada, a boca entreaberta, e os olhos cegos e imóveis, pareciam fitar com insistência Tinha ouvido as palavras de cólera. Tinha ouvido o som da pancada que se seguira. Tinham batido no seu pai! No seu pai! No seu pai!. Foi então que ela soltou o grito que se ouvira. Todos os olhares se voltaram para ela. A tremer, a cambalear, quási a cair, atravessou o pátio titubeando. A alma e os sentidos pareciam lutar uns com os outros naquela face. O que significava aquilo tudo? O que se estava a passar? Os seus olhos fixos fitavam, como se fossem rebentar as ligações que os prendiam, para olhar, para ver, para saber! Nesse instante Deus fez uma obra extraordinária, uma alteração maravilhosa, tal como Ele só duas ou três vezes obrou desde que há homens que nasceram cegos no Seu mundo de luz. Num momento rápido como o pensamento, num clarão espontâneo, como se a alma da rapariga tivesse rasgado as escuras cortinas que tinham pendido durante dezassete anos sobre as janelas dos seus olhos, Naomi viu!

Logo todos o perceberam. Pareceu-lhes que todas as feições se tinham concentrado nos olhos da rapariga. Como se a expressão dos lábios, das sobrancelhas, das narinas, tivessem nascido dos olhos; como se o seu rosto, tão cheio de sentimentos hesitantes, tivesse sido até então apenas um papel em branco. Mais, parecia que a viam agora pela primeira vez. Agora, sim, era ela!

E para Naomi também, este momento, era quási como se ela tivesse acabado de nascer para a vida. Finalmente encontrava-se com o mundo, frente a frente, olhos nos olhos. Para dentro da sua câmara escura, que nunca tinha conhecido a luz, tudo tinha entrado de roldão - o branco esplendor do sol, o céu azul, o pátio de tijolo, as caras do Caíd, da mulher e dos soldados, e também a do velho pai, com as lágrimas por enxugar ainda suspensas da franja das pestanas. Não podia atingir a interpretação da maravilha. Ignorava o que era ver. Não tinha aprendido a olhar. A sua alma trémula tinha saído do seu envólucro de escuridão, e encontrado a poderosa luz ao expandir-se.

Oh! Ohl! exclamou, e ficou desorientada sentindo-se sem apoio. A visão do mundo parecia tê-la subjugado; e cobriu os olhos com as mãos, para a abolir por completo.

Israel viu tudo. "Naomi!, exclamou em voz sufocada, e estendeu-lhe os braços. Então ela tirou as mãos dos olhos, olhou, parou e hesitou.

"Naomi", exclamou outra vez, dando um passo para ela. Ela tornou a tapar os olhos, como para esconder o vulto estranho que eles lhe mostravam, e para unicamente ouvir a voz que tão bem conhecia; e lançou-se nos braços do pai.
 

*

"Guardas, levem-nos ambos. Ponham o homem a cavalo num burro, a rapariga que vá adiante dele descalça, e que um pregoeiro vá gritando a seu lado. - Assim se fará a todo o homem que for inimigo do Caid, e a toda a mulher que seja mentirosa e mistificadora! - E que assim atravessem as ruas da cidade por entre o povo até chegarem a uma das suas portas, por onde serão expulsos como leprosos e como cães!"
 

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A Nova Linguagem da Vida


Dois dias depois de terem sido expulsos de Tetuão, Israel e Naomi estavam instalados numa pequena casa a um dia de jornada do norte da cidade, pouco mais ou menos a meio caminho entre a aldeia de Semsa, e a estalagem situada na estrada de Tânger. Desde o momento em que as portas se tinham fechado nas suas costas, tudo lhes correra bem. Os camponeses acampados na charneca, tinham-nos rodeado e tinham-lhes dado provas de bondade. Uma velha mulher Árabe, vendo a vergonha de Naomi, viera pelas costas sem dar palavra, e lançara-lhe uma manta sobre a cabeça e sobre os ombros. Depois uma rapariga dum rancho de Berberes trouxera umas chinelas, e calçara-as nos pés de Naomi. A mulher não usava manta, e a rapariga andava sempre descalça. Toda aquela gente estava magra, esfomeada, tinha os olhos encovados, mas os corações comoviam-se, por verem o homem poderoso na hora amarga da sua desgraça. Allah tinha-o escrito, murmuravam, mas mostravam-se mais clementes do que imaginavam que o seu Deus era.

Assim, sentindo uma compaixão silenciosa e ouvindo bênçãos de paz, saudados por palavras de bondade, reconfortados, tendo de beber e de comer, Israel e Naomi tinham vagueado por aquelas terras, de aldeia em aldeia, até que à noitinha, uma hora depois do pôr do sol, encontraram a cabana onde se instalaram. Era uma casa pobre e miserável nem era uma tenda redonda, como as que os Berberes das montanhas constróem, nem um macisso rectangular de pedra branca, com o seu jardim no meio dum pátio, como os Mouros lavradores edificam para habitar, mas apenas um abrigo oblongo, coberto de caniço e folhas de palmeira, como uma cabana Irlandesa. E, realmente, tinha sido a cabana dum deportado Irlandês, que, tendo fugido em Gibraltar do navio que o levava para Sidney, navegara num veleiro Genovês para Ceuta, internando-se pela terra dentro até chegar àquele isolado lugar, perto de Semsa. Diferente da maior parte dos seus patrícios, fora homem de costumes solitários e temperamento melancólico; enquanto vivo, os vizinhos evitavam-no, e depois dele morrer a casa ficara abandonada. Foi assim, que Israel e Naomi chegaram à sua posse, não só por ser uma habitação pobre, como por não ter sido reclamada nunca por ninguém.

Contudo, ainda que privada da maior parte das coisas que o homem produz e aprecia, aquele cantinho era rico dalgumas daquelas riquezas que só provém da mão de Deus. Assim, a manjerona, o jasmim, os cravos e as rosas floresciam junto dos muros, e foram essas flores suaves que primeiramente atraíram o olhar de Israel. Porque de-repente, através da confusão do seu espírito, onde naquele momento todas as percepções eram indistintas, parecia sentir uma recordação vaga e confusa da casa abandonada como se as coisas que os seus olhos agora viam, tivessem já sido realmente vistas antes. Israel não poderia dizer como isto podia ser, visto que anteriormente nunca, que ele se recordasse, passara nas suas viagens a Tânger, tão perto de Semsa. Mas interrogando-se de novo, veio-lhe à memória, como luz penetrando numa câmara escura, que realmente nunca nas suas viagens vira aquele recanto, mas que o vira num sonho, na noite em que dormia no chão no pobre albergue dos judeus, em Wazzan.

Era esta, portanto, a casa em que sonhara que vivia com Naomi; era ali que ela parecia ter olhos para ver, ouvidos para ouvir e língua para falar; era a visão da sua mulher, e era a que, quando acordara na manhã do dia daquela sua viagem, lhe parecera ser a ilusão vã dum sonho; agora via-o realizado, era verdadeiro, era um facto. O coração de Israel trasbordava, e estando então disposto a ver o Céu a dirigi-lo em tudo, também o viu naquele facto; e assim, sem fazer mais que pedir as necessárias informações que eram indispensáveis, instalou-se com Naomi no lugar para onde o acaso os levara.

Ali, durante alguns meses seguidos, desde o meio do verão até ao fim do inverno, viveram juntos, em paz e contentamento, faltando-lhes muitas coisas, mas de nada precisando, e privados de muita coisa que se julga tornarem felizes os homens, mas sentindo-se contudo gratos e agradecendo sempre a Deus.

Israel estava pobre, mas não sem dinheiro. Salvos do naufrágio da sua fortuna, depois de ter vendido o melhor do recheio da casa, possuía cerca de trezentos dólares no bolso do seu cinturão quando fora expulso da cidade. Empregara-os em ovelhas, cabras e bois. Arrendou também terras a um súbdito do Basha, e mandou vender lã e leite ao mercado de Tetuão, por mão de um vizinho. As chuvas continuaram, os ovos dos gafanhotos foram destruídos, a relva reverdeceu os terrenos, e Israel arranjou pão para ambos. com uma lavoura tão simples, numa tal casa, não pensando no futuro, passaram dias seguidos com alegria e conforto.


*

E pairando muito mais alto do que a alegria, com que Israel se lembrava constantemente de que Naomi fora cega e agora podia ver, que fora surda e agora podia ouvir, que fora muda e agora podia falar, estava o pensamento solene que tudo o que acontecera era apenas um sinal e um símbolo da vontade de Deus, e a certeza para o seu coração, que a má sorte de ser um bode expiatório já findara.

Mas maior satisfação para o seu coração ansioso de homem, era o delicioso prazer da vida nova para Naomi. Era como uma criatura que acabasse de nascer, um ente radioso e alegre que tivesse acordado de súbito num mundo de estranhas visões.

Mas não fora logo de entrada que Naomi mergulhara nesse prazer. O que lhe acontecera fora, afinal, bem simples. Nascida com cataratas nos dois olhos, a violenta comoção na Cidadela, quando a vida do pai parecia estar mais uma vez em perigo, tinha como o faria uma queda ou uma pancada - deslocado o cristalino e dado luz às pupilas. Foi isto apenas. Durante todo o dia em que ela recebera o último dos grandes dons dos sentidos, no dia em que foram expulsos de Tetuão, e enquanto caminhavam de mãos dadas pelos campos, até encontrarem a sua casa, tinha ela conservado os olhos constantemente fechados.

A luz assustava-a; penetrando entre as pálpebras delicadas, magoava-a. Quando por um momento, levantou os olhos e viu as árvores, estendeu a mão como para as empurrar; e quando viu o céu, levantou os braços como a querer aguentá-lo. Parecia que tudo lhe impressionava a vista; os raios de sol pareciam feri-la. Enquanto não caiu a noite, não passaram os seus receios e não se sentiu animosa. Durante todo o dia seguinte esteve sempre sentada na sombra do canto mais escuro da casa.

Mas isto foi apenas o seu baptismo de luz ao sair dum mundo de escuridão, exactamente como o seu medo das vozes da terra e das do céu tinham sido o seu baptismo de som, ao sair dum mundo de silêncio. Passados três dias o terror foi dando lugar à alegria; e desde então o mundo encheu-se de maravilhas aos seus olhos, que agora podiam ver. Eram doces e belos, mais que todos os sonhos da sua imaginação, a admiração e o prazer por tudo o que a rodeava - a relva, as plantas, as mais pobres flores que desabrochavam, até ao móvel mais rústico da casa, e às pedras vulgares que trabalhavam a moer o grão. Tudo já há muito familiar para os seus dedos, mas novo e estranho para os seus olhos, e tudo maravilhoso, como se um anjo os tivesse deixado cair do céu.

Durante muitos dias depois de ter o sentido da vista, continuou a reconhecer os objectos pelo apalpar e pelo som. Assim, numa das primeiras manhãs que passaram na cabana, logo de manhã cedo, depois de Israel a ter beijado nos olhos para a acordar ela abrira-os e fixara o pai que estava inclinado sobre ela. Olhou espantada por um momento, pois ainda estava mergulhada nas névoas do sono, e só depois de ter fechado os olhos outra vez, e estendido a mão para lhe tocar, é que o rosto se lhe iluminou ao reconhecê-lo, e que pronunciou o seu nome: "Meu pai, murmurou, "meu pai".

Nesse mesmo dia, passados minutos, voltou a correr para casa vinda do campo de relva que estava em frente, com uma flor na mão, fazendo um ror de perguntas insistentes a respeito da flor, naquela sua voz balbuciante, ciciante e encantadora. Porque é que ninguém lhe dissera que havia flores que viam? Ali estava uma, que enquanto ela a mirava, abrira um grande olho muito lindo, e lhe sorrira "O que é?" perguntou, "O que é?"

"É uma margarida, minha filha", respondeu Israel.

"Uma margarida!" exclamou ela com admiração; e durante o curto silêncio e o arfar apressado da sua respiração que se seguiram a esta exclamação, fechou os olhos e passou os dedos nervosos rapidamente sobre o círculo de pequenas pétalas orvalhadas, dizendo então suavemente, com a cabeça posta de lado como envergonhada: " Ah! sim, é isto mesmo; é apenas uma margarida".

Contar como voaram estes primeiros dias em que Naomi viu, qual o seu prazer ao ter sempre novas surpresas, qual a sua alegria ao ver novas maravilhas, seria um trabalho demorado, ainda que encantador. Vivendo a algumas milhas da costa, da pequena colina próxima podiam ver o mar Distintamente; e num dia em que Naomi tinha ido até àquela altura com seu pai, levantou-se de repente do seu lado, e exclamou num tom abafado de terror:  O céu! o céu! Olhe! Caiu sobre a terra!

"Aquilo é o mar, minha filha", disse Israel.

"O mar! exclamou ela, e então fechou os olhos e escutou, depois abriu-os e corou, dizendo, enquanto as suas sobrancelhas se distendiam e voltava graciosamente a cara para o lado: "É isso mesmo sim, é o mar".

Durante todo o dia e toda a noite que se seguiram, o seu espírito revivia a maravilha daquela visão, e na manhã seguinte subiu sozinha ao cume da colina, para tornar a ver o mar. Dali, caminhando para a frente, através dos campos, onde crescia a alfazema e florescia a camomila, sempre a caminhar, como levada pelo encanto do poderoso abismo que estava ao longe brilhando ao sol, chegou finalmente à borda dum profundo barranco da costa. A maravilha das águas ainda a encantava, mas outra maravilha lhe feria agora a vista. A costa abria-se num lugar deserto, só habitado por inúmeras aves marítimas. Lá do alto dos rochedos, e lá muito ao fundo do abismo, de cada buraco que havia dum e doutro lado, saíam elas voando, com asas brancas e negras, cinzentas e azues, e soltavam tais gritos no ar que ecoavam na quebrada, que até parecia ser ela mesma a gritar com um estridor que ensurdecia. Era meio dia quando Naomi chegou àquele lugar, lá passou, sentada, mais de uma hora, cheia de medo e de pena. Quando voltou para o pé do pai contou-lhe histórias pavorosas de demónios que viviam aos milhares no mar, que combatiam no ar, e se matavam uns aos outros. "E olhe!" acrescentou "veja isto, e isto, e mais isto!"

E então Israel olhou para os destroços que ela trouxera da luta diabólica que presenceara, e disse, levantando-os um a um: "Isto, é a pena duma ave aquática; e isto, é um ovo duma ave marítima; e isto, é o corpo morto duma delas."

Mais uma vez Naomi carregou as sobrancelhas, fechou os olhos, e tateou as coisas familiares em que a sua vista a enganara. "Ah, sim", disse ela com meiguice, olhando para o seu pai a sorrir-se, "afinal são apenas as coisas que me dizeis." E acrescentou muito pausadamente, como falando consigo mesma: "Como se leva tempo a aprender a ver!

FIM

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Hall Caine

Sir Thomas Henry Hall Caine (14 de maio de 1853 - 31 de agosto de 1931), normalmente conhecido como Hall Caine , foi um romancista, dramaturgo, contista, poeta e crítico britânico do final do século XIX e início do século XX. A popularidade de Caine durante sua vida foi sem precedentes. Ele escreveu quinze romances sobre assuntos de adultério , divórcio, violência doméstica , ilegitimidade , infanticídio , fanatismo religioso e direitos das mulheres , tornou-se uma celebridade literária internacional e vendeu um total de dez milhões de livros. Caine foi o romancista mais bem pago de sua época. A Cidade Eterna é o primeiro romance a vender mais de um milhão de cópias em todo o mundo. Além de seus livros, Caine é autor de mais de uma dúzia de peças e foi um dos dramaturgos de maior sucesso comercial de sua época Hall Caine - https://pt.qaz.wiki/wiki/Hall_Caine
Caine viajou para Tânger , Marrocos , por três semanas em março de 1890, pesquisando a vida muçulmana e judaica . Desconsiderando o conselho dos funcionários consulares britânicos, Caine explorou o Kasbah sozinho a pé em todas as horas do dia e da noite. Retornando a Tânger na primavera de 1891 para pegar a cor local para seu próximo romance O bode expiatório , ele sofreu um ataque de febre da malária. A Expiação |  The Scapegoat foi escrita em Hawthorns imediatamente após Caine voltar para casa do Marrocos, enquanto ele ainda estava com malária. Publicado pela primeira vez no The Illustrated London News entre julho e outubro de 1891, e depois no The Penny Illustrated Paper entre outubro de 1891 e janeiro de 1892. Na história, a pequena Naomi é surda, muda e cega. Sua mãe está morta. Ela mora com o pai, na casa de Israel. Enquanto Israel muda seus caminhos para se tornar uma pessoa melhor, Naomi começa a recuperar seus sentidos perdidos. O romance foi publicado em dois volumes em setembro de 1891 por William Heinemann, e simultaneamente na Europa, América e Canadá. Passado em Marrocos nos últimos anos do sultão Abd er-Rahman , ele expôs a perseguição anti-semita e foi descrito como uma 'acusação contundente da tirania marroquina'. O livro foi elogiado pelos "membros mais inteligentes e influentes da respeitável comunidade judaica de Londres". As conexões de Caine com a comunidade judaica britânica se estendiam desde a juventude de Caine. O romancista Israel Zangwill alistou Caine no movimento sionista.

FIM
 

 

Título: A Expiação
Autor: Hall Caine
- excerto -
título original: The Scapegoat (1890)
tradução de: J. C. de Barros
edição: Clássica Editora, Lisboa, 1934.
 

 

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8.Mar.2021
Maria José Alegre