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O Cego na ponte - Gainsborough (1727-1788).
Ah, meu Deus, meu Deus, como poderei contar todo esse horror se tenho a boca
seca como se tivesse engolido um punhado de areia e se as minhas mãos estão
geladas como as mãos dos afogados?! É a realidade ou um pesadelo? Desde quando
estou assim rodando desgovernado feito um pião com as palmas das mãos
comprimindo com força os meus olhos — espera, eu disse os meus olhos?…
Espera, calma, um pouco de calma e saberás tudo, vamos pelo começo, foi há dois
meses que assim tateante e apoiado numa bengala cheguei a esta ponte, um cego
mas um cego orgulhoso, nunca quis ter aquele cão-guia que vai indo assim na
frente silencioso e triste, ah! querem tanto se libertar e a libertação dos
guias e dos cegos só pode ser a morte.
Naquele dia, tomado por uma alegria quase
insuportável consegui chegar a esta ponte e fiquei ouvindo as águas tumultuadas
do rio correndo lá embaixo e que me chamavam, Vem!… Para não despertar a atenção
dos passantes eu pousei a minha bengala no chão, segurei no gradil de ferro e
cheguei a sorrir tão feliz como naquela minha última noite em que vi a minha
estrela branca pela última vez, palpitando lá no céu, estava tão próxima que se
estendesse a mão poderia segurá-la, ah! era linda essa última visão antes de
mergulhar nesta treva. Dormi feliz e quando acordei não enxerguei mais nada e
então comecei a gritar, Estou cego, estou cego! E as pessoas em redor pensando
que eu tinha enlouquecido, antes fosse loucura mas era mesmo a cegueira. Fui
levado para o hospital e durante um ano os médicos tão atônitos quanto eu mesmo
tratando deste cego sem solução e sem explicação, os dias, os meses correndo e
aquele espanto, aquela perplexidade… Então pensei, Não quero isto, não quero! e
de repente resolvi fugir. Lembrei-me daquele rio correndo tumultuado e que seria
a minha libertação. Fugi do hospital e perguntando e tateando pelas ruas quase
gritei de alegria quando a voz do rio foi ficando mais próxima, mais próxima e
me chamando, Vem!
Poucos passantes na ponte e assim tentei fazer uma cara tranquila quando pousei
a bengala no chão e me agarrei ao corrimão de ferro, Agora, já! sussurrei
crispado como um gato antes de saltar. Foi então que alguém me agarrou pelo
braço. Voltei-me enfurecido, e então?!… Quem vinha se intrometer, quem?!… O
desconhecido — era um homem — apanhou a bengala no chão e disse com voz
tranquila, Boa tarde! Crispei a boca, baixei a cabeça. Não respondi e ele ainda
me segurando, ah! mas o que significava isso? Respirei de boca aberta, calma!
fiquei repetindo a mim mesmo. E se ele resolvesse chamar a polícia? Deve ser
proibido se matar, hein?! A mão que me segurava era forte, vigorosa. Levantei a
cabeça e tentei sorrir, Quer ter a bondade de me soltar? eu pedi. Ele afrouxou a
mão e em voz baixa, para não chamar a atenção dos passantes disse que eu adiasse
o suicídio, era possível adiar o suicídio? Dilatei as narinas e pensei, ele
devia ser um médico, cheirava a hospital.
— Médico?
— Doutor Ormúcio — ele respondeu baixando o tom de voz. — Há quanto tempo está
cego?
Ah! meu Deus, meu Deus, quer dizer que ia começar tudo de novo?! Ele tinha
aquele mesmo tom obstinado dos médicos lá do hospital, ah, sim, eu conhecia bem
essa raça, melhor ir com calma, decidi e devo ter sorrido porque senti que ele
sorriu também.
— Faz um ano, doutor. Pela última vez vi no céu uma estrela e depois dormi e
quando acordei não vi mais nada. Fui levado para o hospital e lá fiquei
internado, especialistas me trataram, me viraram do avesso e nada, nada,
continuava cego. Então eu pediria agora que seguisse seu caminho e me deixasse
em paz, agradeço a intervenção mas largue do meu braço, por favor, e me deixe. É
pedir muito?
— Mas há quanto tempo?…
— Estou cego? Há mais ou menos um ano, está satisfeito? Agora adeus, doutor.
Siga o seu caminho e seguirei o meu, gratíssimo e adeus!
Ele aproximou-se mais. Falou com a boca quase encostada ao meu ouvido.
— Acontece que andei fazendo algumas descobertas importantes, está me escutando?
Você não tem nada a perder, é jovem ainda, quantos anos?
— Trinta e dois.
— Ótimo! Se o meu tratamento falhar, voltará aqui, as águas esperam, este rio
não vai desaparecer… O tratamento não será dolorido, isso eu prometo. E não
precisará me pagar, serei belamente recompensado com o sucesso dessa operação…
Está claro?
— Claríssimo — eu sussurrei.
Ele fez uma pausa. Senti seu olhar atento. Tentei relaxar, Calma! pedi a mim
mesmo. O intruso parecia bem-intencionado, era melhor relaxar e assim quem sabe
ele me deixaria em paz.
— Tem família? — perguntou.
— Não. Sou só, não tenho nada a não ser a solidão e esta treva. Agradeço de
coração a sua proposta, vou pensar nela e agora, se me permite eu me despeço
muito grato pelo seu interesse doutor…
— Doutor Ormúcio. Moro só com o meu empregado. Venha comigo e conversaremos
melhor, não vai se arrepender, a morte pode esperar, concorda?
Deixei-me levar como uma criancinha. Esta é a minha casa, e este é o meu
empregado, ele disse quando chegamos. O empregado era um homem ainda jovem, de
voz mansa. Parecia estar habituado às singularidades do patrão porque não
demonstrou nenhuma surpresa quando Ormúcio pediu-lhe que preparasse o quarto
para o hóspede.
Foram dias calmos, eu estava indiferente, apático e foi sem nenhuma emoção que
ouvi Ormúcio me dizer depois de um prolongado exame que eu estava em condições
de ser operado. Ah, é uma operação? eu disse. Ormúcio confirmou e daí por diante
não estivemos mais juntos, ele passava o tempo todo no consultório ou no
hospital e eu já pensava em fugir quando certa manhã ele entrou no meu quarto.
— Hoje vamos para o hospital.
Nesse instante a ideia de enxergar novamente sacudiu-me com violência. Poderei
descrever aquele tempo que antecedeu à operação? Não me faça perguntas, Ormúcio
ordenava. E eu obedecia, verdadeiro autômato nas mãos daquele homem que ora se
me afigurava um deus, ora um demônio, impenetrável como a própria escuridão. Fui
um desses bonecos de mola esquecido num canto e que de repente alguém se lembrou
de dar corda e a corda foi excessiva, tudo se embaralhou e me descontrolei numa
volúpia de movimentos que já era uma alucinação. No meu peito arfante o
desespero e a esperança num rodízio enlouquecedor, às vezes eu me sentia rolando
no espaço sem direção e sem socorro. Mas de repente um jorro de luz me inundava
e eu me preparava para “aquilo” com o entusiasmo de um menino a se aprontar para
uma festa. Já nem fazia mais ideia há quanto tempo estava internado à espera
quando de repente, numa madrugada — devia ser madrugada — Ormúcio aproximou-se.
— Venha comigo.
Obedeci em silêncio, habituado a fazer o que me ordenavam sem perguntar “por
quê”. Conduziu-me por um longo corredor que achei frio e deteve-se diante de uma
porta. Segurou no meu braço.
— Ele sabe que vai morrer logo, falência múltipla dos órgãos — sussurrou-me e
pela primeira vez notei um leve tremor na sua voz. — Creio que não passa de
amanhã… Ele me pediu para falar com você, antes ele quer falar com você.
— Ele quem?
Silêncio. Comecei a tremer porque de repente senti que alguma coisa terrível ia
ser revelada e assim todo o meu ser se inteiriçava na expectativa “daquilo” que
meus sentidos pressentiam. Estaquei resfolegante como à beira de um abismo.
— Ele quem? — repeti num sopro de voz. — Quem é que quer falar comigo antes de
morrer?
— Ele… O homem de quem você vai herdar os olhos.
Encostei-me à porta para não cair. Então era isso, era isso. Meus olhos iam ser
arrancados e nos buracos seriam colocados os olhos daquele homem que estava
morrendo. O moribundo me fazia presente dos olhos, eu ia herdar um par de olhos!
Desatei a rir e logo o riso se transformou em soluços.
— Vamos, nada de cenas, acalme-se! — Ormúcio ordenou a sacudir-me com força. — É
um mendigo, há meses está internado aqui. Naquela tarde em que impedi seu
suicídio eu já estava pensando nele, nos olhos dele que são perfeitos e que
poderiam servir para alguém. Nem eu nem ele, nós não queremos nada em troca, ele
se contenta em lhe ceder os olhos e eu serei pago com o sucesso da operação.
Compreendeu agora?
Fiz que sim com a cabeça. Compreendia tudo e estava de acordo com tudo, como não
havia de estar de acordo? Eu queria enxergar, não era isso? E para enxergar,
usaria de todos os meios, fossem quais fossem. Enxuguei o suor que me empastava
os cabelos e entrei no quarto. No silêncio, só se ouvia uma respiração ansiosa.
Inclinei-me. Senti um hálito fétido.
— É este? — uma voz áspera perguntou voraz. Era tão asqueroso o bafo que vinha
daquelas cobertas e tão desagradável aquela voz que instintivamente recuei.
— Sim, ele é bem jovem! — prosseguia a voz sem esperar pela resposta. Havia
nessa voz um tom de insuportável alegria. — Quer dizer que viverei muitos anos
ainda! Muitos anos!
Continuei calado, voltando o rosto para não sentir mais o bafo que vinha em
lufadas do meu benfeitor. Ah, benfeitor, benfeitor!… Se eu soubesse, meu Deus!
Que ridícula soa agora esta palavra, benfeitor! Decerto ele está delirando,
pensei e só mais tarde aquelas frases voltaram cheias de sentido, verdadeiras
hienas a devorarem a paz do meu coração.
— Se você não fosse tão jovem eu não lhe daria meus olhos — exclamou o moribundo
apertando avidamente a minha mão. — Meus cabelos caíram, meus dentes caíram,
minha carne murchou, de toda esta ruína, só os olhos se salvaram. Pois fique com
eles e bom proveito!
Ormúcio impeliu-me para o corredor e fechou apressadamente a porta do quarto mas
ainda pude ouvir atrás a voz triunfante:
— Continuarei em você! Continuarei!
Fomos para o jardim. Ormúcio acendeu um cigarro e colocou-o entre meus dedos.
— Não imaginei que ele começasse a delirar justamente na hora em que você…
Enfim, passou — disse Ormúcio secamente.
Deixei cair o cigarro e aspirei o perfume fresco da folhagem orvalhada. A voz
medonha, o hálito repugnante, tudo aquilo parecia agora pertencer a um pesadelo.
— A última coisa que meus olhos viram foi uma estrela branca cintilando no céu,
a minha estrela! Da cama, eu a via sempre pela janela aberta. Naquela noite ela
se apagou. Aceito tudo para vê-la novamente.
Dessa operação e dos dias que se seguiram nada poderei dizer porque minha
memória partiu-se em mil pedaços assim como um espelho. Sei que certa manhã ouvi
a voz sussurrante de Ormúcio segredar a um colega: Amanhã saberemos!
Um tremor violento sacudiu-me todo. E quando veio a enfermeira da noite avisando
que as bandagens seriam retiradas, pedi-lhe que saísse um pouco do quarto, eu
queria ficar só para rezar. Ela obedeceu. Então sentei-me na cama e
freneticamente fui arrancando as gazes, arrancando tudo… A princípio, ainda o
negrume! E eu já ia desabar sobre mim mesmo dilacerando-me quando aos poucos um
armário branco, um crucifixo, uma cadeira começaram a emergir das sombras,
vagamente, meio dissolvidos como os destroços de um naufrágio. Vieram à tona, à
tona… dançaram na minha frente indecisos sob um véu de lágrimas. Depois foram se
firmando. E se fixaram.
Sufoquei um grito. E delirando de alegria, saltei do leito e escancarei as
janelas, era noite, era noite. E a minha estrela? quis saber, erguendo a cara
para o céu, queria vê-la de novo, branca e cintilante, ela que se tornara
cinzenta, onde estará, onde?
Foi nesse instante que o horror começou, ah, mas de que modo explicar a
hediondez da minha descoberta? Ergui a face para o céu, ergui a face mas os
olhos… os olhos não obedeciam. Quero olhar a estrela, a estrela! repeti mil
vezes num esforço desesperado. E os olhos baixavam obstinados para o jardim como
se fios poderosos os dirigissem para o lado oposto daquele que minha vontade
ordenava. Como descrever o horror que senti? Como explicar minha cólera ao
verificar que fora enganado, miseravelmente enganado porque nunca aqueles olhos
seriam meus! Que me adiantava tê-los herdado, ter-lhes dado vida se eram
independentes, se não me obedeciam? Penso que jamais poderei reproduzir as
tentativas alucinadas que fiz naquelas horas para arrancá-los da força medonha
que os mantinha na direção oposta daquela que eu determinava, insolentes,
livres. Tentei fechá-los, mas esbugalhados como se quisessem saltar, eles
rodaram nas minhas órbitas como dois piões num rodopio enlouquecedor e agora se
divertiam à minha custa, riam-se de mim naquela brincadeira infernal. Corri para
o espelho. Na minha cara pálida e encovada, só os olhos do morto pareciam ter
vida, tão brilhantes quanto cruéis. E se deliciavam em me examinar com uma
expressão triunfante, gozando o contraste que faziam com o meu rosto retorcido
pelo horror. Eu continuarei em você! não foi o que disse o monstro asqueroso?
Cobri a cara com as mãos. Ormúcio triunfara porque a operação fora um sucesso, o
morto também triunfara porque continuava vivendo dentro das minhas órbitas, mas
e eu?!
Sorrateiramente, antes que o sol raiasse fugi do hospital saltando pela janela.
Ormúcio ficaria na dúvida, era esta a minha paga, ele não saberia jamais se
fracassara ou não. E do morto, como vingar-me dele?
Aqui estou no mesmo lugar de onde Ormúcio me arrastou para a sua experiência.
Agora os olhos ficaram obedientes, me atendem, ah! eles me obedecem, vejo o que
quero, estas águas que são mais escuras e turbulentas do que eu imaginava, vejo
as nuvens, vejo uma criança correndo lá longe… Eis que agora os olhos me
obedecem apavorados porque descobriram meu plano, sabem por que fugi do hospital
e por que vim a esta ponte, eles sabem! E já não zombam de mim, não, não zombam
mais, sabem que me sepultarei no negrume das águas, desaparecerei como a minha
estrela sepultada no negrume do céu, ela e eu teremos o mesmo destino. Agora não
posso deixar de rir, de gargalhar até perder o fôlego porque tudo está sendo
muito engraçado! O morto queria viver à minha custa, dono de mim! Só que ele não
contava com isso, agora sou eu que me rio dele e ainda estarei rindo até o
instante em que os seus olhos monstruosos se dissolverem nas águas como duas
miseráveis bolotas de miolo de pão.
FIM
-
Sobre
Lygia Fagundes Telles e 'Um Coração Ardente' por
IVAN MARQUES
Os contos foram escritos em épocas diversas, da década de 1950, quando a autora
afirmou seu talento no gênero, até o começo dos anos 1980. É possível perceber
ao longo do tempo como a chama da vida e seus correlatos (desejo, paixão, busca
da beleza, ânsia de liberdade) se convertem em motivos recorrentes e
estruturantes, que atravessam toda a obra literária de Lygia Fagundes Telles.
Alma sedenta (contemplativa, sonhadora, espiritualista), a escritora possuiria
ela mesma “um coração ardente”. Daí a inclinação para devaneios, delírios e
disparates, matéria-prima das narrativas que o leitor tem em mãos.
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Observe-se, porém, nessas histórias, o contraste significativo que há entre a
busca do sonho e seu desvirtuamento, isto é, a irrupção — tanto na linguagem
como na composição da intriga — de um inesperado realismo a interpor toda sorte
de desenganos e obstáculos no caminho das personagens. De um lado, acumulam-se
suicídios e mortes trágicas. É o despenhadeiro para o qual se dirigem, numa
carreira desabalada, várias das personagens apresentadas pela autora. [...] De
outro lado, ocorre a intromissão decisiva do realismo quase microscópico, que se
volta obsessivamente para os pormenores do cotidiano, contrapondo ao ardor do
delírio o acanhamento da “vida menor”, para usar uma expressão de Carlos
Drummond de Andrade.
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As personagens de Lygia Fagundes Telles são espíritos famintos que gostariam de
tocar as estrelas e a própria “face de Deus”. Entretanto, esse impulso para o
ardente e o iridescente é contrariado por uma espécie impura e rebaixada de
lirismo, cuja matéria vem a ser exatamente a pequenez da qual, no primeiro
movimento, a alma sequiosa pretendia escapar. Poderíamos chamar esse lirismo de
poesia das coisas. Para realizá-lo, a autora utiliza uma linguagem natural e
comunicativa, beneficiando-se das lições de uma importante tradição que se
formou no Brasil, especialmente após o modernismo, de escritores praticantes da
simplicidade. O conto “A Estrela Branca” foi originalmente publicado em Mistérios (1981).
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conto
'A Estrela Branca' (1981)
Lygia Fagundes Telles
in
Um Coração Ardente
(contos)
Companhia das Letras, 2012
[1.Set.2015]
Publicado por
MJA
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