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 Sobre a Deficiência Visual

 

A Cegueira e o Saber

Afonso Romano de Sant'Anna
 

Manto and Tiresias - Henry Singleton, 1792

Homer and his Guide Glaucus - William-Adolphe Bouguereau, 1854

Édipo e Antigona - Peter Krafft Johann, 1809

Manto e Tiresias
Henry Singleton,
1792
Homero com o seu
guia Glaucus

W-A. Bouguereau, 1854
Édipo e Antigona
Peter Krafft Johann, 1809


I

Primeiro esta lenda: "Era uma vez uma praga que atingiu os mongóis. Os saudáveis fugiram, deixando os doentes e dizendo: 'Que o Destino decida se eles vivem ou morrem'. Entre os doentes havia um jovem chamado Tarvaa. O seu espírito deixou o corpo e chegou ao lugar dos mortos. O governante daquele lugar disse a Tarvaa: 'Por que deixaste o teu corpo enquanto ainda estava vivo?'. 'Eu não esperei que tu me chamasses', respondeu Tarvaa, 'simplesmente vim'.

Comovido com a presteza com que o jovem obedeceu, o Khan do Inferno disse: 'A tua hora ainda não chegou. Deves retornar. Mas podes levar daqui o que quiseres'. Tarvaa olhou em volta e viu todas as alegrias e todos os talentos terrenos: riqueza, felicidade, riso, sorte, música, dança. 'Dá-me a arte de contar histórias', disse ele, pois sabia que as histórias podem congregar as outras alegrias.

E assim retornou ao seu corpo e constatou que os corvos já lhe haviam arrancado os olhos. Como não podia desobedecer ao Khan do Inferno, reentrou no próprio corpo e viveu cego, porém conhecendo todos os contos. Passou o resto da vida viajando pela Mongólia, contando contos e lendas e trazendo às pessoas alegria e saber".

Sintomaticamente essa lenda começa mencionando "uma praga que atingiu os mongóis" e termina revelando como o herói se tornou exemplar contador de histórias. A exemplo de "O Decameron", de Bocaccio, várias narrativas se referem às pestes que antecederam o surgimento dos contadores de história. No caso da narrativa italiana, um grupo de jovens se refugia num determinado lugar por causa da peste e para passar o tempo eles começam a contar histórias. Narrar é uma forma de sobreviver e afastar a morte. Igualmente em "As mil e uma noites", as peripécias que Sherazade vai desfiando noite após noite é o seu estratagema para postergar a sua morte.

No caso da lenda mongol, além da peste como elemento disparador dos fatos, há um dado singular: como todo personagem mítico, o herói Tarvaa transita entre a vida e a morte, como se não houvesse separação entre elas. É o herói mágico que vive no limiar, na fronteira entre dois mundos. Adentrou-se na morte, mas estava vivo. Não esperou que o chamassem para o outro lado ― "simplesmente vim", diz ele, como se isso lhe fosse natural. E como uma espécie de prêmio ou reconhecimento é-lhe conferido o direito de escolher o que quiser do mundo sobrenatural. Mas à semelhança de outros heróis míticos, ele recusa as riquezas e opta por algo bem mais modesto, algo que aparentemente é nada: contar histórias.

Em dois outros extremos, um religioso e outro literário, poderíamos estabelecer um paralelo, com Cristo recusando tudo, toda a aparência de poder e brilho que o demônio lhe ofereceu do pináculo do templo ou, no episódio poético e metafísico da "Máquina do mundo" que apareceu ao poeta (Drummond) oferecendo-lhe também a solução de todos os enigmas. Nesses episódios, igualmente, há a recusa das aparências, do falso poder e do falso saber. E assim como na mítica biografia do Rei Salomão, que ao ser indagado, ainda jovem, o que mais queria, respondeu "sabedoria", o herói mongol optou também por um tipo de saber & poder imponderável : viver no fabuloso imaginário.

Mas nosso herói, como nos mitos, por ter se apressado, como se tivesse cometido uma infração, é também punido. Enquanto dialogava com o Khan do Inferno, do lado de cá onde havia largado seu corpo, os corvos comeram-lhe os olhos. Mesmo assim ele reassume sua forma e seu papel no drama, pois sendo cego ele conhecia já "todos os contos" e levava às pessoas "alegria e saber". Ele não necessitava mais ver o exterior, a sabedoria iluminava sua vida interior.

A cegueira e o conhecimento são dois termos que pontuam inúmeros mitos. Ao invés de se anularem, esses dois termos se potencializam. Édipo, por exemplo, na tragédia  Rei Édipo de Sófocles, nos dá dois elementos importantes para esta análise. Primeiro a peça se inicia descrevendo, a exemplo do mito mongol, o misterioso flagelo, "a pavorosa peste" que se abateu sobre a cidade. Em segundo lugar, um dos pontos altos da tragédia é quando ao "ver" que possuiu a própria mãe depois de ter matado o pai, Édipo cega-se assombrosamente. Dir-se-ia que cegou-se para não ver. Mas numa interpretação ultra-sofisticada de Heidegger, Édipo é aquele que se cegou para melhor ver a sua patética situação.


Cegueira e (pré)visão.

Do Cego Aderaldo repentista no sertão nordestino à Grécia esses termos se complementam: "Furaram os óio do assum preto prá ele assim cantar melhor", diz Luiz Gonzaga.

Homero, diz-se, era um bardo cego. E é comum aqui e ali encontrar o profeta, o sacerdote, o xamã ou o pajé, sempre cegos, que de dentro de sua cegueira enxergam melhor que a corte ou toda a tribo. É assim que Tirésias, o adivinho que aparece em várias peças de Sófocles, sendo cego é o que pode narrar e pre-ver. É ele quem revela a Édipo o que, antes de cegar-se, Édipo ignorava.

Tome-se agora esse extraordinário livro Meu nome é vermelho (Companhia das Letras) do escritor turco Orhan Pamuk. A cegueira e a sabedoria são dois temas fortes dessa obra, que estabelece o confronto entre a maneira renascentista de pintar e o modo de conceber figuras e miniaturas nos impérios persa, mongol e turco. Aí, como se estivessem revivendo mitos, os pintores cultivavam a cegueira como forma de aperfeiçoar sua pintura. Assim, "a cegueira não era um mal, mas a graça suprema concedida por Alá ao pintor que dedicara a vida inteira a celebrá-lo; porque pintar era a maneira de o miniaturista buscar como Alá vê este mundo, e essa visão sem igual só pode ser alcançada por meio da memória, depois que o véu da cegueira cair sobre os olhos, ao fim de uma vida inteira de trabalho duro. Assim, a maneira como Alá vê o seu mundo só se manifesta por meio da memória dos velhos pintores cegos". Por isto no Islã antigo pintores apressavam sua cegueira pintando sobre uma unha ou grão de arroz, ou fingiam-se de cegos, pois só os sem talento precisavam dos olhos.

Talvez, por aí, se possa começar a entender a opção que faz o artista entre o mundo imaginário, para ele mais real que o real, e o que os demais denominam como realidade.

É preciso depois de ver, desver para que o real se realize.

 

II

Do "Ensaio sobre a Cegueira", romance de José Saramago, o leitor tem memória recente. Ele narra que num dia qualquer um cidadão diante do sinal de trânsito fica desesperadamente cego. E começa, então, uma epidemia de cegueira narrada longamente. Ao final do livro e do mergulho na escuridão os personagens começam a emergir de novo para a visão recuperada. É uma parábola de fundo ético, sobre os nossos tempos, com laivos de esperança, como o próprio romancista assinalou em algumas entrevistas. Na última página, usando aquela estranha pontuação o texto indaga: "Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem".

Na mitologia e na literatura há vários textos sobre o intrigante tópico da cegueira e do (não) saber. Ainda agora recebo "Manual de instruções para cegos" (7Letras/Funalfa), de Marcus Vinícius, um bem-elaborado livro de poemas que atravessa essa questão. E a contadora de estórias Christina Zembra me lembra o recente "Vozes do Deserto" (Record), de Nélida Piñon, em que a escrava Jasmine vai ao mercado de Bagdá ouvir histórias do derviche cego, que, à maneira daquele herói mongol Tavaar, ao ficar cego pediu a Alá que lhe desse algum dom que o fizesse sobreviver.

No entanto, um dos mais fortes e intrigantes textos sobre o tema que estamos abordando é o conto de H.G. Wells, escrito em 1899, "A Terra dos Cegos", que pode ser encontrado em "Contos fantásticos do século XIX escolhidos por Italo Calvino" (Cia das Letras). Curiosamente, lembro-me de um jantar aqui no Rio em que, indagado por Marina Colasanti, Saramago revelou que não conhecia o texto de Wells. Todavia, um estudo comparativo entre ambos seria enriquecedor.

H.G. Wells (1866-1946) conta que, nos Andes, na região do Peru, havia uma Terra de Cegos. Como em outras narrativas, a exemplo do mito mongol e o "Édipo" de Sófocles, aos quais já me referi, a cegueira sobreveio como uma peste, como punição para os "pecados da comunidade". Surgindo aos poucos, a cegueira foi se manifestando nos habitantes daquela região até que, ao cabo de 14 gerações, estavam todos sem visão e não tinham mais sequer memória que um dia algum antepassado pudesse ter visto alguma coisa. Porém, adestrados para sobreviverem, acabaram por se movimentar normalmente nas montanhas, cultivavam seus alimentos e se reproduziam. Como em muitos mitos, no entanto, um dia surge um forasteiro. Ah! O forasteiro, esse que vem de fora, vendo o que a comunidade já não mais vê? Pois esse forasteiro literalmente despencou ali na Terra de Cegos ao cair de uns trezentos metros numa encosta gelada. Recuperando-se do acidente, estava pasmo, admirando a espetacular natureza e o milagre de sua sobrevivência, quando percebeu estranhas pessoas que, aos poucos, descobriu, eram cegas. Vem-lhe à mente a expressão: "Em terra de cego quem tem um olho é rei". E o que se desenrola a seguir é, em parte, para provar (ou não) os limites dessa assertiva.

O forasteiro é levado ao ancião da tribo. Estabelece-se o confronto cultural-biológico. Eles não entendiam o que ele queria dizer quando usava a estranha palavra "ver". Decididamente possuía uma anomalia ― a visão ― que tinha que ser curada. Estranhavam que ao guiá-lo pelos caminhos ele afirmasse que não se preocupassem porque podia ver com os próprios olhos. " Não existe a palavra 'ver' ― disse o cego. ― Pare com essa loucura e siga o som de meus pés". Mas o forasteiro retruca ao cego: "Nunca lhe disseram que em terra de cego quem tem um olho é rei?". E o outro responde: "― O que é cego?"

Faltava-lhes a visão e a palavra correspondente. Mas, espantosamente, os cegos tinham lá sua sabedoria, sua filosofia, sua religião. E o fato é que o estranho, o "outsider", tentou se adaptar, esforçou-se por "ver" junto com os cegos, alongando os sentidos para que um compensasse e ampliasse o outro. Diante das dificuldades de adaptação à cegueira, dizia "Há coisas em mim que vocês não entendem" e passava a descrever a beleza do mundo que conhecia, porém os cegos negavam aquilo tudo. Há até uma cena de ameaça de luta usando pás entre aquele que vê e os que não sabem que não vêem. A partir daí, o estrangeiro "começou a perceber que não se pode nem lutar com ânimo contra criaturas que estão numa situação mental diferente da sua". Há uma primeira tentativa de fuga, de abandono daquela situação. Mas o herói volta para dar a si e aos cegos nova chance. Decide tornar-se um deles. Aceitar a cegueira para sobreviver. Começa a namorar uma bela índia. Mas os nativos se preocupam que ele vá, com sua visão, corromper a raça. Dizem-lhe que tem que ser operado. E o ancião lhe afiança que a cirurgia é "bem fácil" e pode extrair-lhe "esses corpos irritantes" ― os olhos.

Na véspera de abrir mão de sua visão, foi ao local de sacrifício para despedir-se da pradaria, dos narcisos brancos, "mas enquanto andava ergueu os olhos e viu a manhã, manhã como um anjo em armadura dourada, descendo pelos picos. Pareceu-lhe que, diante desse esplendor, ele, e esse mundo cego no vale, e seu amor, e tudo, não eram mais do que um poço de pecado. Viu sua beleza infinita, e sua imaginação cresceu a partir do gelo e da neve para as coisas lá longe, às quais iria renunciar para sempre". E depois de descrever a riqueza do mundo fora da Terra dos Cegos, o texto descreve o estado de graça do personagem: "ficou bastante quieto por ali , sorrindo como se estivesse satisfeito simplesmente por ter fugido do vale dos cegos, no qual tinha pensado ser rei. O brilho do pôr-do-sol passou, a noite chegou, e ele ainda estava quieto, deitado, em paz e contente sob as estrelas frias e claras".

 

III

Aconhecida lenda de Hans Christian Andersen "A nova roupa do imperador" é uma variante do tópico que estamos estudando. Aqui não se trata da cegueira biológica, senão da incapacidade de ver e do medo de enfrentar o real. O conto de quatro páginas e meia tem tal força simbólica que incorporou-se ao inconsciente coletivo da modernidade. Por isto, essa história é dada como pertencente a vários folclores, como o português, onde o menino que denuncia a nudez do rei é substituído por um estranho-estrangeiro-negro. Seja como for, quando as pessoas dizem "o rei está nu" estão denunciando o embuste em várias situações. Em relação à arte de nosso tempo essa metáfora é a mais usual. Não há estudo sobre a arte atual que não recorra a essa lenda. Por quê? Seria assunto para uma instrutiva pesquisa. Diz a história de Andersen (1805-1875) que houve um imperador que gostava tanto de roupas novas que passava mais tempo experimentando-as do que cuidando das outras coisas do reino. (Já na abertura aparece este tópico curioso, que podemos batizar de neofilia: a paixão pela coisa nova, pela moda, pelo aspecto superficial, exterior, que fazia com que o imperador se desinteressasse da realidade de seu reino). Isto propiciou que dois espertalhões surgissem em suas terras dizendo que produziam uma roupa que não apenas tinha cores deslumbrantes, mas que possuía uma qualidade única: só pessoas muito especiais poderiam vê-la e que apenas pessoas destituídas de inteligência, que não estavam aptas para ocupar cargos no reino, iam dizer que a roupa era invisível ou que não existia.

Assim, estabeleceu-se um processo de seleção, quase um rito de iniciação pelo qual o imperador poderia testar a inteligência de seus auxiliares, pois só os escolhidos eram capazes de ver a roupa invisível que ninguém via. Os falsos tecelões simulavam tecer panos no tear e iam exigindo dinheiro e fios de ouro em troca. E como o monarca quisesse já testar a inteligência de seus auxiliares, pediu ao velho ministro que fosse ver como andavam as coisas. Lá chegando, o principal auxiliar do imperador ficou perplexo, porque os teares estavam vazios. "Não consigo ver nada!". Mas, temeroso de expressar seu sentimento, começou a ouvir a descrição que os falsos costureiros faziam do tecido maravilhoso. E ele se dizia: "Será que sou tão estúpido? Não vejo nada! Vai ver que sou inapto para o cargo que ocupo". E como temesse perder o cargo e os tecelões do nada cobrassem dele a visão que eles tinham, acabou declarando: "É maravilhoso! Que padrões! Que cores! Vou dizer ao imperador que fiquei encantado".

Além da trapaça financeira, observe-se que a palavra ocupa o lugar da coisa, o conceito no lugar da obra. Não só o imperador acreditou, desde o princípio, na palavra dos arrivistas, como também o ministro, por medo e insegurança, abriu mão da sua palavra (ou visão) em benefício da palavra (ou visão) dos ilusionistas. E a cena se repete quando o imperador, para testar outro conselheiro, pede que ele faça a visita ao ateliê do nada. A reação foi a mesma. Ele não via nada. Pensou em dizer que não estava vendo nada, mas receoso de passar por estúpido e perder o emprego, partiu para os elogios a inventar verbalmente o inexistente tecido. E o mesmo vai ocorrer com o imperador quando decide ir ver a tal roupa fabulosa. Ao defrontar-se com coisa nenhuma, pensou igual ao velho ministro e ao conselheiro ― "Estão me fazendo de idiota!" ― mas para não passar publicamente por imbecil, já que dois de seus principais auxiliares viam no vazio coisas fascinantes, passou a exclamar "lindo, maravilhoso, excelente".

Assim fechou-se o circuito de invenção verbal da coisa inexistente. Ao qual se incorporou o resto da corte quando auxiliares tiveram que fingir carregar o manto invisível no dia de sua exibição no palácio. A ousadia dos falsários leva o imperador admirar-se diante do espelho. Então, consuma-se a alucinação: "o imperador diante do espelho admirava a roupa que não via". Assim, toda a corte passou a se curvar diante do inexistente com a anuência do imperador e seus auxiliares. "Nenhum deles queria admitir que não estava vendo nada, pois se alguém o fizesse estaria admitindo que era estúpido ou incompetente. Nunca uma roupa do imperador fez tanto sucesso". E como termina a história? No folclore português, ao invés de auxiliares competentes da versão de Andersen, só os "filhos legítimos" poderiam ver a roupa invisível do rei. Seria, como em outros mitos, a senha da legitimidade para sucessão no trono. Desta feita quem denuncia o embuste é um estranho-estrangeiro-negro. Na lenda de Andersen é uma criança ― essa espécie de olhar estranho e virgem ― que, descompromissada, grita em meio à multidão: "Ele está sem roupa!". O povo começa a abrir os olhos e concordar com a visão do garoto. Enquanto a multidão gritava, o imperador acuado pensava: "Tenho que levar isto até o fim do desfile. E continuou a andar orgulhoso e, com ele, dois cavaleiros e o camareiro real seguiram e entraram numa carruagem que também não existia". É um belo final irônico, em aberto. Noutras versões menos instigantes, que até circulam na internet, o rei ficou envergonhado de ter se deixado levar pela vaidade, arrependeu-se e desculpou-se, enquanto os falsos tecelões foram enganar outros em outros reinos, até serem presos e condenados.

Essa é uma lenda sobre um pacto de não-ver, onde toda uma comunidade brinca de avestruz enquanto alguém lucra com a cegueira estimulada. E porque todos têm medo da opinião (ou visão) do outro, todos deixam de ver (e ter opinião). É um caso de cegueira social. Isto ocorre, visivelmente, nas agremiações políticas e religiosas: a produção de um discurso que ordena o que deve ser visto ou não. No caso de grande parte da arte contemporânea isto é um caso de voluntária cegueira artística, próximo do que La Boetie chamava "servidão voluntária". Pode-se perguntar: mas afinal, já que tanta gente é capaz de descrever as sutilezas da inexistente veste real, o rei está ou não está nu? Está e não está. Como diria Nathalie Heinich, "o rei está vestido pelo olho do outro". A linguagem pode ocultar ou desvelar. E esse é um jogo difícil e perigoso de se jogar.

 

IV

Antes de virar marca de chocolate, Lady Godiva era uma lenda que ilustra uma das variantes do tema que estamos tratando. Aí ressurgem as questões do ver e do não-ver, porém envoltas com o problema da transgressão e da punição. Diz a lenda que entre os anos 968-1057, na Inglaterra, na região de Coventry, havia um rei, Leofric III, que cobrava pesados impostos de seu povo. Sua mulher, Lady Godiva, implorava ao marido que fosse mais humano com seus súditos. Ele não cedia. E um dia, como ela tornasse a insistir, ele fez uma contraproposta, evidentemente, para humilhá-la e mostrar uma vez mais seu poder sobre o povo. Que ela desfilasse nua sobre um cavalo pela cidade e ele aboliria os impostos excessivos. Pois a Lady aceitou o desafio. O marido, aparentemente liberal, era, no entanto, ciumento, e botou uma condição: ninguém poderia vê-la desfilar nua, todas as portas e janelas deveriam estar trancadas. Pode-se imaginar como essa nudez se tornava logo mais erotizada não só pela presença desse cavalo em pêlo onde ela ia peladíssima, "vestida" apenas de sua longa cabeleira, mas a interdição tornava a cena ainda mais erótica. E no dia ansiado, lá estava Lady Godiva sobre o cavalo ondeando suas formas, oferecendo sua nudez real e imaginária, posto que ninguém deveria ou poderia vê-la. Mas como em toda lenda, há um transgressor; e um certo Peeping Tom resolveu fazer um buraco na janela de sua casa para ver a nudez real passar. Dizem que é daí que veio a expressão "peeping tom" em inglês, significando o voyeurista, o que sente prazer sexual em ver as intimidades alheias.

O fato é que o cidadão curioso foi punido com a cegueira. Ele viu o que não deveria ver. Nem sempre a autoridade permite que se veja o que ela não quer que seja visto. Se alguém insiste em ver o interditado deve ser cegado, para que a autoridade e o sistema permaneçam. É interessante, no entanto, observar duas coisas. Primeiro que, apesar deste incidente, o rei aboliu os impostos. E, em segundo lugar, um detalhe que não pode passar em branco na seqüência de histórias que estamos analisando: o voyeurista, aquele que quis ver a nudez da Lady Godiva era um alfaiate. Não deve ter sido por acaso que a lenda se constituiu deste modo incluindo aí um alfaiate, da mesma maneira que não é à toa que naquela lenda de Andersen que citei noutra crônica os dois tecelões( variantes do alfaiate) tecem a roupa inexistente para o rei.

Ao contrário da lenda de Andersen e de seus tecelões charlatães, aqui o alfaiate, que sabia cobrir o corpo alheio com as roupas mais apropriadas, é aquele que ousa ver a anti-roupa, ou melhor, a roupa original, a Lady vestida pelo esplendor de sua nudez. Portanto, aquele que por profissão cobre a nudez do corpo é o mais curioso para ver a Lady Godiva nua, desvestida. Essa lenda tem sua parte de verdade, pois esses personagens são reais, há a sepultura da Lady na Trinity Church, e desde 1678 realiza-se um desfile lembrando o episódio. Uma lenda sobrevive na medida em que expressa conteúdos do imaginário coletivo.

Freud interessou-se por essa história ao estudar o "Conceito psicanalítico das perturbações psicogênicas da visão" (1910). Ele estava interessado em analisar a cegueira histérica estudada por Charcot, Janet e Binet. Nos hospitais e clínicas constatara que a histeria provocava a cegueira. Em circunstâncias de estresse e trauma, uma pessoa pode fabricar, psicologicamente, sua própria cegueira. O que faz com que em algumas sessões religiosas alguns desses histéricos voltem até a enxergar de novo, destraumatizados pela fé. Mas há também os casos da cegueira provocada psicologicamente por outra pessoa, quando um hipnotizador, por exemplo, torna um cliente sonâmbulo ou faz que veja, como reais, alucinações puras surgidas do comando do hipnotizador. Líderes carismáticos podem provocar a cegueira histérica numa comunidade e levar todo um país a horrores sem precedentes. É o caso de hipnose social e histórica. Histórica e histérica. Hitler, Stalin, Mao são alguns exemplos recentes. E a cegueira em que anda tanto o povo americano atualmente como os comandados pelos fanáticos talibãs e por certos aiatolás são exemplos complementares. Mas na lenda de Lady Godiva, Freud destaca o que lhe interessava ― a questão da interdição. Estavam todos proibidos de ver a nudez da senhora. E como os interditos sociais e psicológicos são muito mais fortes do que pensamos, a quebra do pacto do não-ver por aquele que quer ver é punida com a cegueira. É como se o expulsassem da comunidade. No viés erótico freudiano o analista diz: "por haver querido fazer o mal uso de teus olhos, utilizando-os para satisfazer tua sexualidade, mereces ter perdido a vista". Ocorre a lei do Talião, paga-se o crime na mesma moeda, perde a vista quem tentou ver. "Na bela lenda da Lady Godiva", diz Freud, "todos os vizinhos ficam reclusos em suas casas e fecham as janelas para fazer menos penosa à dama a sua exibição, nua sobre o cavalo, pelas ruas da cidade. O único homem que espia através das madeiras de sua janela a passagem da beleza nua perde, como castigo, a vista". A complementariedade de significados entre "A nova roupa do rei" de Andersen e a Lady Godiva é instigante. Se na primeira era o rei que estava nu, aqui é a Lady ― variante da rainha, que exibe sua nudez. O rei fingia estar vestido, a rainha sabia-se nua. E em ambos os casos é alguém de fora da corte que consegue ver o que os demais não podem ou não querem ver. Ver é uma ousadia. Fazer falar o que se viu ou desmistificar a cegueira alheia é ousadia dupla.

 

V

As histórias policiais clássicas, seja em Agatha Christie ou Sherlock Holmes, mostram que o detetive é aquele que vê "melhor" que os outros as pistas do crime. Esse olhar nos surpreende. Depois que nos desvenda os fatos, então nos dizemos, é claro, por que não percebi isto antes? Mas o conto de Edgar Allan Poe (1809-1849) "A carta roubada", que pode ser encontrado no livro de mesmo título (editora L&PM), mostra que o olhar policial, enquanto olhar oficial, às vezes não consegue resolver um enigma. Assim é necessário que um outro olhar fora do sistema venha revelar o que estava oculto. Naquela história de Poe, o chefe de polícia de Paris procura um certo Auguste Dupin para que o ajude a esclarecer o roubo de uma carta. O curioso é que o policial sabe quem a roubou. Foi um ardiloso ministro do rei que se apoderou do documento, substituindo-o por outro semelhante. E esse ministro, tendo em seu poder tal carta, chantagearia a personagem ― provavelmente a rainha , a quem a carta comprometedora se dirigia. Como o chefe de polícia procura e revira tudo e não encontra a missiva, pede ajuda a Dupin. Este aceita o desafio. Prontamente descobre e devolve a carta ao policial que, pasmo e humilhado, pede que lhe explique como realizou tal façanha. Em grande parte, o conto é a explicação de como o policial não viu o óbvio. A carta roubada tinha sido posta num lugar bem evidente pelo ladrão, e exatamente por estar tão evidente não era vista.

Esse o paradoxo que interessa à análise. Sintomaticamente o texto de Poe começa por uma epígrafe, uma frase de Sêneca: "Nada é tão prejudicial à sabedoria como a excessiva sagacidade". Eis uma das linhas condutoras da história: a denúncia da "excessiva sagacidade" do olhar que, por querer ver demais, não vê o essencial, coisa que se dá em diversos campos do conhecimento humano. Com efeito, o chefe de polícia confessa que havia procurado em "todas" as partes, desmontado móveis, perfurado cadeiras, aberto gavetas, vasculhado espelhos, chapas de vidro, assoalhos, porões, fendas de tijolos, argamassas, encadernações de luxo, usado microscópios e nada encontrara. Por isto, Dupin, ao ouvir-lhe a narrativa vai logo advertindo que "talvez o mistério seja um tanto simples 'demais', evidente 'demais'". Como não lembrar uma vez mais a lenda do rei nu? Na narrativa de Andersen é um menino, alguém também de fora, que aponta a nudez dos fatos e no conto de Poe o narrador diz "que muitos meninos de escola conseguem raciocinar melhor" que o policial. O olhar excessivo, o hiperolhar da corte (e de certos críticos e analistas) vê "demais".

Já diziam os chineses: "o homem inteligente é o que descobre o óbvio". Ou, Guimarães Rosa: "sujeito muito lógico, o senhor sabe: cega qualquer coisa". E ilustrando essa dificuldade que temos de não ver o óbvio, Dupin dá um exemplo: aquele jogo em que uma pessoa escolhe uma palavra num mapa e o adversário tem que dizer qual é ela. A tendência é o desafiado ir procurando a menor palavra e que está mais escondida, quando às vezes a palavra escrita em letras imensas e espaçadas, por ser visível, é ignorada. A metáfora da visão é muito explorada no conto. Primeiro Dupin, contrariando a lógica meridiana da polícia, diz que é melhor examinar certas coisas "no escuro". É como se estivesse zerando nosso olhar, reinventando o primeiro olhar, desviciando a maneira de ver. E a seguir, quando vai ao gabinete do ministro que surrupiou a carta, chega aí com estranhos "óculos verdes", queixando-se de problemas de visão. É um álibi às avessas. É como se se disfarçasse de cego para ver melhor. Assim se a incapacidade do chefe de polícia de achar a carta confirma que o pior cego é aquele que não quer ver, o investigador Dupin mostra que o melhor "cego" é aquele que sabe ver. Por isto, no "escuro", com seus "óculos verdes" percebe que a carta tão procurada, na verdade, está à vista, num porta-papéis barato pendurado por uma fita azul e ensebada dentro de um envelope amassado e sujo. O esperto larápio da carta sabia que iriam procurá-la em lugares secretos, por isto a colocou num lugar à vista. Ao percebê-la, Dupin, espertamente, troca a carta por outra, usando da mesma tática do ministro quando trocou a carta verdadeira na mesa real também por outra. Nessa história, verdadeiro "jogo de cartas", Dupin afirma que o policial conduziu a investigação erradamente porque não acreditou na inteligência e astúcia do ministro, pois achava que o ministro era "tolo porque adquiriu a fama de poeta". E na alma do policial "todos os idiotas são poetas". Neste ponto, Poe, que era poeta e construía seus textos matematicamente, faz algumas considerações sobre "poetas" e "matemáticos", revelando uma das chaves do mistério. Expõe a tese de que o raciocínio matemático em si não leva ao conhecimento se não estiver associado a algo mais, como a poesia. E porque aquele que era investigado era ao mesmo tempo "matemático e poeta", Dupin não poderia usar de um raciocínio lógico trivial, mas teria que desenvolver diversas astúcias, sendo também "poeta e matemático".

Jacques Lacan em seus "Escritos", com aquele seu estilo meio esotérico e apesar de algumas frases machistas, analisa esse conto levantando outras questões. Refere-se ao primeiro "olhar que não vê nada", ao segundo "olhar que vê que o primeiro não vê nada" e ao "terceiro que desses dois olhares vê o que eles deixam a descoberto". Refere-se ainda a alguns personagens que mereceriam um estudo particular: ao prestidigitador ou ilusionista, que nos engana com seus gestos e palavras, e ao nos convencer que o falso é verdadeiro nos transforma num ser de sua ficção. E ironicamente refere-se também àqueles que, como "avestruzes", enfiam a cabeça na areia não querendo ver a realidade enquanto outros depenam-lhe o traseiro exposto.
 

FINAL

Leio notícia que foi inaugurado em Paris um restaurante onde as pessoas têm a oportunidade de viver a experiência da vida de um cego, pois aí os clientes comem no mais completo escuro. Chama-se, apropriadamente, "Dans le noir" ("No escuro"). Os garçons são cegos, e não apenas servem, mas atuam como guias levando os fregueses até suas mesas. O restaurante está na moda. Situa-se ali perto do Beaubourg e até o primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin foi experimentar comer no escuro. A coisa ocorre assim: "antes de entrar na sala totalmente escura, os clientes deixam em armários com cadeados, no bar do restaurante, relógios, isqueiros, celulares e qualquer outro objeto que emita a mínima luz. Os pratos também são escolhidos antes de entrar no recinto. Entre as opções, há ainda o 'menu surpresa', que só será descoberto quando o garfo for levado à boca". A experiência supera qualquer instalação. As pessoas passam por três ambientes com cortinas nos quais a luz vai rareando até a sala escura, onde há muito barulho, pois para compensar a falta de visão as pessoas falam alto. A surpresa aumenta quando o cliente descobre que tem outras pessoas à sua mesa. Foi um ex-banqueiro e consultor de marketing social quem teve essa idéia. E diz a matéria veiculada num site da BBC e mandada pela médica brasileira Mônica Campos, residente nos Estados Unidos, que alguns clientes acham-se ridículos durante a experiência, outros têm crise de choro e angústia, mas o fato é que o restaurante está sempre lotado. As pessoas pagam para não ver. É pitoresco, mas repito: as pessoas pagam para não ver, pagam para comerem no escuro.

Não deixa de ser sintomático que se abra um restaurante onde os que vêem vão experimentar a cegueira, exatamente numa cultura de hipervisualização. Como se estivéssemos fatigados de ver, agora queremos não-ver. Que seja por algumas horas, não importa. É como se a poluição visual tivesse chegado a tal extremo, que se sentisse a necessidade de recuperar outros sentidos, experimentando o desver para, quem sabe?, ver de novo.

Tomo esse restaurante como uma metáfora paradoxal de nossa época. A modernidade que descobriu e aperfeiçoou a fotografia, e que tendo conseguido essa façanha mobilizou-a criando o cinema, e logo a seguir instalou a televisão dentro de nossas casas para que víssemos o mundo e o universo vinte e quatro horas por dia; a mesma modernidade que vem com essa enxurrada de letras e palavras em camisetas, vitrines, anúncios luminosos, que nos manda imagens dos planetas mais distantes e detalhes das guerras e misérias mais horrendas; essa modernidade que é um constante espetáculo de "strip-tease", no qual o público e o privado, ou melhor, a sala de visitas e a privada se acoplaram, essa modernidade de tanto ver, já não vê. O mundo é projetado como um clipping de imagens esfaceladas acompanhadas por um ruído ou ritmo qualquer. E, de repente, na "cidade-luz", pagamos caro para comer no escuro.

Nesta série de lendas, mitos e textos literários que comentamos nas cinco crônicas precedentes várias coisas se destacaram. Há cegos, como o adivinho Tirésias, que interpretam melhor os fatos do que os que enxergam. Há, por outro lado, a comunidade dos cegos arrogantes, dos que negam que se possa ver, como no conto de H.G.Wells. Há a cegueira que sobrevem a uma comunidade como uma praga temporária, uma doença, uma ideologia, como no "Ensaio sobre a cegueira" de Saramago. Há a visão excessiva com sua racionalidade irritante, que não enxerga o óbvio, como em "A carta roubada" de Poe. Há, na história de Lady Godiva, o ato de ver como forma de desafiar a interdição instaurada pela autoridade, que ordena não ver. Ver a nudez das coisas é já transgredir. E há, como na lenda "A nova roupa do rei", de Andersen, a denúncia do pacto social da comunidade que faz um acordo em torno do não-ver. Em vários desses casos é o estrangeiro, o forasteiro, o menino, alguém não comprometido com o sistema que denuncia a cegueira alheia.

"Homem cego" ( "Blind man") é o nome da revista que Marcel Duchamp lançou em 1917 para criar polêmica sobre o urinol que mandou para a exposição de vanguarda em Nova York, e que foi recusado pelo júri, também de vanguarda. Esse título é significativo. Ele vem do homem que decretou a morte da pintura, da gravura, do desenho e de outras artes a que chamava de "retinianas", porque careciam do olho para existir. Em sua ojeriza à "arte retiniana", Duchamp não reconhecia nem a fotografia nem o cinema como arte, senão como "um meio mecânico de fazer alguma coisa". Dizia: "Não acredito no cinema como meio de expressão" e fazia um jogo de palavras: "CINEMA/ANEMIC". Propunha uma arte conceitual, na qual a idéia era mais importante que a execução da obra pelas mãos do artista. Daí a sua série de "ready-made" ou "object trouvé", objetos industriais que ele expunha como obra de arte. Com isto ele "deixava de ver" ou "negava-se a ver" toda a arte do passado e cegava o artista moderno deixando-o com um só olho na direção de um pretenso futuro. Duchamp é o genial profeta da cegueira artística do século XX. Paradoxalmente ele pretendia despertar uma nova maneira de ver o mundo e as coisas. Achou que interditando o olhar se veria melhor. Mas pode-se perguntar: será cegando o passado que veremos melhor o futuro?


A Fonte - Marcel Duchamp, 1917 (A Fonte é um urinol de porcelana branco, considerado uma das obras mais representativas do dadaísmo na França, criada em 1917, sendo uma das mais notórias obras do artista Marcel Duchamp.)
A Fonte - Marcel Duchamp, 1917


Segundo notícias nos jornais, o urinol de Duchamp acaba de ser escolhido como a obra icônica da modernidade. Isto é um fato sintomático. Isto explica as contradições do século XX. Duchamp é uma figura complexa. Acertou e errou. Errou porque o século XX, século do cinema, foi o século da hipervisualidade. Acertou porque o século XX foi também o século de uma visualidade cega. Não apenas na cegueira trazida por Stalin, Mao e Hitler, mas outras formas de cegueira na arte, que é necessário rever. O desafio é ver com novos olhos, com um terceiro olhar o século XX e analisar aí as astúcias do "homem cego" que, paradoxalmente, pretende ter um ultra-olhar, mas que não vê o óbvio. Esse homem que prefere comer no escuro, porque passar por cego virou moda.

FIM

 

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A CEGUEIRA E O SABER
Afonso Romano de Sant'Anna
Jornal O GLOBO
Novembro e Dezembro de 2004
fonte: intervox

 


 

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[12.Set.2012]
Publicado por MJA