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La Celestina - quadro de Picasso, 1903
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto
arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos
pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;
unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre
o
branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser
áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço
longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados.
O seu aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não
tanto pela sua altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha
um defeito horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera
mirrada, deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente
porejante.
Era essa pinta amarela sobre o fundo denegrido da olheira, era essa
destilação incessante de pus que a tornava repulsiva aos olhos de toda a gente.
Morava numa casa pequena, paga pelo filho único, operário numa
oficina de alfaiate; ela lavava a roupa para os hospitais e dava conta de todo
o serviço da casa inclusive cozinha. O filho, enquanto era pequeno, comia
os pobres jantares feitos por ela, às vezes até no mesmo prato; à proporção
que ia crescendo, ia-se-lhe a pouco e pouco manifestando na fisionomia a
repugnância por essa comida; até que um dia, tendo já um ordenadozinho,
declarou à mãe que, por conveniência do negócio, passava a comer fora...
Ela fingiu não perceber a verdade, e resignou-se.
Daquele filho vinha-lhe todo o bem e todo o mal.
Que lhe importava o desprezo dos outros, se o seu filho adorado lhe
apagasse com um beijo todas as amarguras da existência?
Um beijo dele era melhor que um dia de sol, era a suprema carícia para
o seu triste coração de mãe! Mas... os beijos foram escasseando também,
com o crescimento do Antonico! Em criança ele apertava-a nos bracinhos e
enchia-lhe a cara de beijos; depois, passou a beijá-la só na face direita,
aquela
onde não havia vestígios de doença; agora, limitava-se a beijar-lhe a mão!
Ela compreendia tudo e calava-se.
O filho não sofria menos.
Quando em criança entrou para a escola pública da freguesia, começaram logo
os colegas, que o viam ir e vir com a mãe, a chamá-lo ― o filho da
caolha.
Aquilo exasperava-o; respondia sempre.
Os outros riam-se e chacoteavam-no; ele queixava-se aos mestres, os
mestres ralhavam com os discípulos, chegavam mesmo a castigá-los ― mas
a alcunha pegou, já não era só na escola que o chamavam assim.
Na rua, muitas vezes, ele ouvia de uma ou de outra janela dizerem: o
filho da caolha! Lá vai o filho da caolha! Lá vem o filho da caolha!
Eram as irmãs dos colegas, meninas novas, inocentes e que, industriadas
pelos irmãos, feriam o coração do pobre Antonico cada vez que o viam passar!
As quitandeiras, onde iam comprar as goiabas ou as bananas para o
lunch, aprenderam depressa a denominá-lo como os outros e, muitas vezes,
afastando os pequenos que se aglomeravam ao redor delas, diziam, estendendo
uma mancheia de araçás, com piedade e simpatia:
― Taí, isso é pra o filho da caolha!
O Antonico preferia não receber o presente a ouvi-lo acompanhar de
tais palavras; tanto mais que os outros, com inveja, rompiam a gritar,
cantando em coro, num estribilho já combinado:
― Filho da caolha, filho da caolha!
O Antonico pediu à mãe que o não fosse buscar à escola; e, muito
vermelho, contou-lhe a causa; sempre que o viam aparecer à porta do colégio
os companheiros murmuravam injúrias, piscavam os olhos para o Antonico
e faziam caretas de náuseas!
A caolha suspirou e nunca mais foi buscar o filho.
Aos onze anos o Antonico pediu para sair da escola: levava a brigar com
os condiscípulos, que o intrigavam e malqueriam. Pediu para entrar para
uma oficina de marceneiro. Mas na oficina de marceneiro aprenderam
depressa a chamá-lo ― o filho da caolha, a humilhá-lo, como no colégio.
Além de tudo, o serviço era pesado e ele começou a ter vertigens e
desmaios. Arranjou então um lugar de caixeiro de venda; os seus ex-colegas
agrupavam-se à porta, insultando-o, e o vendeiro achou prudente mandar o
caixeiro embora, tanto que a rapaziada ia-lhe dando cabo do feijão e do arroz
expostos à porta nos sacos abertos! Era uma contínua saraivada de cereais
sobre o pobre Antonico!
Depois disso passou um tempo em casa, ocioso, magro, amarelo,
deitado pelos cantos, dormindo às moscas, sempre zangado e sempre bocejante!
Evitava sair de dia e nunca, mas nunca, acompanhava a mãe; esta
poupava-o: tinha medo de que o rapaz, num dos desmaios, lhe morresse nos
braços, e por isso nem sequer o repreendia! Aos dezesseis anos, vendo-o mais
forte, pediu e obteve-lhe, a caolha, um lugar numa oficina de alfaiate.
A infeliz mulher contou ao mestre toda a história do filho e suplicou-lhe que
não deixasse os aprendizes humilhá-lo; que os fizesse terem caridade!
Antonico encontrou na oficina uma certa reserva e silêncio da parte dos
companheiros; quando o mestre dizia: Sr. Antonico, ele percebia um sorriso
mal oculto nos lábios dos oficiais; mas a pouco e pouco essa suspeita, ou esse
sorriso, se foi desvanecendo, até que principiou a sentir-se bem ali.
Decorreram alguns anos e chegou a vez de Antonico se apaixonar. Até
aí, numa ou outra pretensão de namoro que ele tivera, encontrara sempre
uma resistência que o desanimava, e que o fazia retroceder sem grandes
mágoas. Agora, porém, a coisa era diversa: ele amava! amava como um louco
a linda moreninha da esquina fronteira, uma rapariguinha adorável, de olhos
negros como veludo e boca fresca como um botão de rosa. O Antonico voltou
a ser assíduo em casa e expandia-se mais carinhosamente com a mãe; um dia,
em que viu os olhos da morena fixarem os seus, entrou como um louco no
quarto da caolha e beijou-a mesmo na face esquerda, num transbordamento
de esquecida ternura!
Aquele beijo foi para a infeliz uma inundação de júbilo! tornara a
encontrar o seu querido filho! pôs-se a cantar toda a tarde, e nessa noite,
ao
adormecer, dizia consigo:
― Sou muito feliz... o meu filho é um anjo!
Entretanto, o Antonico escrevia, num papel fino, a sua declaração de amor
à vizinha. No dia seguinte mandou-lhe cedo a carta. A resposta fez-se esperar.
Durante muitos dias Antonico perdia-se em amarguradas conjeturas.
Ao princípio pensava:
― "É o pudor". Depois começou a desconfiar de outra causa; por fim
recebeu uma carta em que a bela moreninha confessava consentir em ser sua
mulher, se ele se separasse completamente da mãe! Vinham explicações
confusas, mal alinhavadas: lembrava a mudança de bairro; ele ali era muito
conhecido por filho da caolha, e bem compreendia que ela não se poderia
sujeitar a ser alcunhada em breve de ― nora da caolha, ou coisa semelhante!
O Antonico chorou! Não podia crer que a sua casta e gentil moreninha
tivesse pensamentos tão práticos!
Depois o seu rancor voltou-se para a mãe.
Ela era a causadora de toda a sua desgraça! Aquela mulher perturbara a
sua infância, quebrara-lhe todas as carreiras, e agora o seu mais brilhante
sonho de futuro sumia-se diante dela! Lamentava-se por ter nascido de
mulher tão feia, e resolveu procurar meio de separar-se dela; considerar-se-ia
humilhado continuando sob o mesmo teto; havia de protegê-la de longe,
vindo de vez em quando vê-la à noite, furtivamente...
Salvava assim a responsabilidade de protetor e, ao mesmo tempo,
consagraria à sua amada a felicidade que lhe devia em troca do seu consentimento
e amor...
Passou um dia terrível; à noite, voltando para casa, levava o seu projeto
e a decisão de o expor à mãe.
A velha, agachada à porta do quintal, lavava umas panelas com um trapo
engordurado. O Antonico pensou: "A dizer a verdade eu havia de sujeitar
minha mulher a viver em companhia de... uma tal criatura?" Estas últimas
palavras foram arrastadas pelo seu espírito com verdadeira dor. A caolha
levantou para ele o rosto, e o Antonico, vendo-lhe o pus na face, disse:
― Limpe a cara, mãe...
Ela sumiu a cabeça no avental; ele continuou:
― Afinal nunca me explicou bem a que é devido esse defeito!
― Foi uma doença, ― respondeu sufocadamente a mãe ― é melhor
não lembrar isso!
― E é sempre a sua resposta: é melhor não lembrar isso! Por quê?
― Porque não vale a pena; nada se remedeia...
― Bem! agora escute: trago-lhe uma novidade: o patrão exige que eu
vá dormir na vizinhança da loja... já aluguei um quarto: a senhora fica aqui
e eu virei todos os dias a saber da sua saúde ou se tem necessidade de alguma
coisa... É por força maior; não temos remédio senão sujeitar-nos!...
Ele, magrinho, curvado pelo hábito de costurar sobre os joelhos,
delgado e amarelo como todos os rapazes criados à sombra das oficinas, onde
o trabalho começa cedo e o serão acaba tarde, tinha lançado naquelas palavras
toda a sua energia, e espreitava agora a mãe com um olho desconfiado e
medroso.
A caolha levantou-se e, fixando o filho com uma expressão terrível,
respondeu com doloroso desdém:
― Embusteiro! o que você tem é vergonha de ser meu filho! Saia! que
eu também já sinto vergonha de ser mãe de semelhante ingrato!
O rapaz saiu cabisbaixo, humilde, surpreso da atitude que assumira a
mãe, até então sempre paciente e cordata; ia com medo, maquinalmente,
obedecendo à ordem que tão feroz e imperativamente lhe dera a caolha.
Ela acompanhou-o, fechou com estrondo a porta, e vendo-se só,
encostou-se cambaleante à parede do corredor e desabafou em soluços.
O Antonico passou uma tarde e uma noite de angústia.
Na manhã seguinte o seu primeiro desejo foi voltar à casa; mas não teve
coragem; via o rosto colérico da mãe, faces contraídas, lábios adelgaçados
pelo ódio, narinas dilatadas, o olho direito saliente, a penetrar-lhe até o
fundo
do coração, o olho esquerdo arrepanhado, murcho ― e sujo de pus; via a
sua atitude altiva, o seu dedo ossudo, de falanges salientes, apontando-lhe
com energia a porta da rua; sentia-lhe ainda o som cavernoso da voz, e o
grande fôlego que ela tomara para dizer as verdadeiras e amargas palavras que
lhe atirara no rosto; via toda a cena da véspera e não se animava a arrostar
com o perigo de outra semelhante.
Providencialmente, lembrou-se da madrinha, única amiga da caolha,
mas que, entretanto, raramente a procurava.
Foi pedir-lhe que interviesse, e contou-lhe sinceramente tudo que
houvera.
A madrinha escutou-o comovida; depois disse:
― Eu previa isso mesmo, quando aconselhava tua mãe a que te dissesse
a verdade inteira; ela não quis, aí está!
― Que verdade, madrinha?
― Hei de dizer-te perto dela; anda, vamos lá!
Encontraram a caolha a tirar umas nódoas do fraque do filho ― queria
mandar-lhe a roupa limpinha. A infeliz arrependera-se das palavras que
dissera e tinha passado toda a noite à janela, esperando que o Antonico
voltasse ou passasse apenas... Via o porvir negro e vazio e já se queixava
de si! Quando a amiga e o filho entraram, ela ficou imóvel: a surpresa e a alegria
amarraram-lhe toda a ação.
A madrinha do Antonico começou logo:
― O teu rapaz foi suplicar-me que te viesse pedir perdão pelo que houve
aqui ontem e eu aproveito a ocasião para, à tua vista, contar-lhe o que já
deverias ter-lhe dito!
― Cala-te! ― murmurou com voz apagada a caolha.
― Não me calo! Essa pieguice é que te tem prejudicado! Olha! rapaz,
quem cegou tua mãe foste tu!
O afilhado tornou-se lívido; e ela concluiu:
― Ah, não tiveste culpa! eras muito pequeno quando, um dia, ao
almoço, levantaste na mãozinha um garfo; ela estava distraída, e antes que
eu pudesse evitar a catástrofe, tu enterraste-lho pelo olho esquerdo! Ainda
tenho no ouvido o grito de dor que ela deu!
O Antonico caiu pesadamente de bruços, com um desmaio; a mãe
acercou-se rapidamente dele, murmurando trêmula:
― Pobre filho! vês? era por isto que eu não queria dizer nada!
FIM
-
Júlia
Valentina da Silveira Lopes de Almeida
-
contista, romancista, cronista, teatróloga, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 24 de setembro de 1862. Foi, ainda na infância para Campinas aonde acabou
estreando na imprensa em 1881, quando as mulheres mal iniciavam carreira literária em jornais no Brasil, publicando no semanário A Gazeta de Campinas. Na sua volta para o
Rio de Janeiro fez conferências e colaborou em vários periódicos do Rio e de São Paulo, entre eles Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Ilustração Brasileira, A
Semana, O País, Tribunal Liberal. Casou com o poeta e teatrólogo português Filinto de Almeida, com quem dividiu a autoria do romance ‘A Casa Verde’. Seus livros
retratam costumes da época e expõem idéias favoráveis à República e à abolição, se destaca sobretudo pela simplicidade, o que a tornou bem aceita pelo público e pela
crítica. Com uma linguagem simples, Júlia Lopes Almeida revela em sua obra a atmosfera suave do ambiente tipicamente familiar. Em seu livro ‘A Árvore’ (1916), defende com rigor o
ambiente natural, afirmando que "cortar uma árvore é estrangular um nervo do planeta em que vivemos", preocupação inusitada para a sua época. Brilhante e sensível,
contestava, ainda que de maneira delicada e sutil, a discriminação contra a mulher. A autora vem sendo considerada uma das maiores figuras entre os romancistas de sua
época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária de mais de 40 anos, como pelo êxito que conseguiu, com os críticos e com
o público. Faleceu no Rio de Janeiro em 30 de maio de 1934. [in
pt.shvoong]
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Obras: A Casa Verde (1898-1899); A Intrusa (1905-1906); A Árvore (1916)
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A Caolha Júlia Lopes de Almeida 1.ª publicação: 1903
in Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século Organização: Italo Moriconi, 2000 Editora Objetiva ― Rio de Janeiro, 2001
[8.Mar.2013]
Publicado por
MJA
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