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Le Gondolier - foto de Andre
Kertesz, 1927
Uma mulher mantém sem cálculo um
intervalo de segurança entre a pluma de seu chapéu e os objetos
que poderiam estragá-la, ela sente onde está a pluma
assim como nós sentimos onde está a nossa mão.
Se tenho o hábito de dirigir um carro, eu o coloco em uma rua e vejo
que "posso passar" sem comparar a largura da rua com a
dos pára-choques, assim como transponho uma porta sem
comparar a largura da porta com a de meu corpo. O chapéu
e o automóvel deixaram de ser objetos cuja grandeza e
cujo volume determinar-se-iam por comparação com os outros
objetos. Eles se tornaram potências volumosas, a exigência
de um certo espaço livre. Correlativamente, a porta do
metrô, o caminho tornaram-se potências constrangedoras e
aparecem de um só golpe como praticáveis ou impraticáveis
para meu corpo com seus anexos.
A bengala do cego deixou
de ser para ele um objeto, ela não mais é percebida por si
mesma, sua extremidade transformou-se em zona sensível,
ela aumenta a amplitude e o raio de ação do tocar, tornou-se
o análogo de um olhar. Na exploração dos objetos, o comprimento
da bengala não intervém expressamente e como meio termo:
o cego o conhece pela posição dos objetos, antes que
a posição dos objetos por ele. A posição dos objetos está imediatamente
dada pela amplitude do gesto que a alcança e no
qual está compreendido, além da potência de extensão do braço, o raio de ação da bengala. Se quero habituar-me a uma
bengala, eu tento, toco alguns objetos e, depois de algum tempo,
eu a "manejo", vejo quais objetos estão "ao alcance"
ou fora do alcance de minha bengala. Não se trata aqui de
uma estimativa rápida e de uma comparação entre o comprimento
objetivo da bengala e a distância objetiva do alvo
a alcançar. Os lugares do espaço não se definem como posições
objetivas era relação à posição objetiva de nosso corpo,
mas eles inscrevem em torno de nós o alcance variável de nossos
objetivos ou de nossos gestos. Habituar-se a um chapéu,
a um automóvel ou a uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente,
fazê-los participar do caráter volumoso de nosso
corpo próprio. O hábito exprime o poder que temos de
dilatar nosso ser no mundo ou de mudar de existência anexando
a nós novos instrumentos. Pode-se saber datilografar
sem saber indicar onde estão, no teclado, as letras que
compõem as palavras. Portanto, saber datilografar não é conhecer
a localização de cada letra no teclado, nem mesmo ter
adquirido, para cada uma, um reflexo condicionado que ela
desencadearia quando se apresenta ao nosso olhar. Se o hábito
não é nem um conhecimento nem um automatismo, o
que é então? Trata-se de um saber que está nas mãos, que
só se entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir
por uma designação objetiva. O sujeito sabe onde estão as
letras no teclado, assim como sabemos onde está um de nossos
membros, por um saber de familiaridade que não nos oferece
uma posição no espaço objetivo. O deslocamento dos seus
dedos não é dado ao datilografo como um trajeto espacial que
se possa descrever, mas apenas como uma certa modulação
da motricidade, distinta de qualquer outra por sua fisionomia.
Freqüentemente se coloca a questão como se a percepção
de uma letra escrita no papel despertasse a representação
da mesma letra que, por sua vez, despertaria a representação
do movimento necessário para alcançá-la no teclado. Mas esta linguagem é mitológica. Quando percorro com os olhos
o texto que me é proposto, não existem percepções que despertam
representações, mas conjuntos compõem-se atualmente,
dotados de uma fisionomia típica ou familiar. Quando me sento
diante de minha máquina, sob minhas mãos estende-se um
espaço motor onde vou bater aquilo que li. A palavra lida
é uma modulação do espaço visível, a execução motora é uma
modulação do espaço manual, e toda a questão é saber como
uma certa fisionomia dos conjuntos "visuais" pode pedir um
certo estilo de respostas motoras, como cada estrutura "visual"
finalmente se dá sua essência motora, sem que se precise
soletrar a palavra e soletrar o movimento para traduzir
a palavra em movimento. Mas esse poder do hábito não se
distingue do poder que temos em geral sobre nosso corpo:
se me ordenam tocar minha orelha ou meu joelho, levo minha
mão à minha orelha ou ao meu joelho pelo caminho mais
curto, sem precisar representar-me a posição de minha mão
no ponto de partida, a de minha orelha, nem o trajeto de uma
à outra.
Dizíamos acima que, na aquisição do hábito, é o corpo
que "compreende". Essa fórmula parecerá absurda se
compreender for subsumir um dado sensível a uma idéia e
se o corpo for um objeto. Mas justamente o fenômeno do hábito
convida-nos a remanejar nossa noção do "compreender"
e nossa noção do corpo. Compreender é experimentar o acordo
entre aquilo que visamos e aquilo que é dado, entre a intenção
e a efetuação — e o corpo é nosso ancoradouro em
um mundo. Quando levo a mão ao meu joelho, a cada momento
do movimento experimento a realização de uma intenção
que não visava meu joelho enquanto idéia ou mesmo
enquanto objeto, mas enquanto parte presente e real de meu
corpo vivo, quer dizer, finalmente, enquanto ponto de passagem
de meu movimento perpétuo em direção a um mundo.
Quando a datilografa executa os movimentos necessários
no teclado, esses movimentos são dirigidos por uma intenção, mas essa intenção não põe as teclas do teclado como localizações
objetivas. É verdade, literalmente, que o sujeito que
aprende a datilografar integra o espaço do teclado ao seu espaço
corporal.
O exemplo dos instrumentistas mostra melhor ainda como
o hábito não reside nem no pensamento nem no corpo
objetivo, mas no corpo como mediador de um mundo. Sabe-se que um organista experiente é capaz de servir-se de um
órgão que não conhece e cujos teclados são mais ou menos
numerosos, as teclas dispostas diferentemente do que aquelas
de seu instrumento costumeiro. Basta-lhe uma hora de trabalho
para estar em condição de executar seu programa. Um
tempo de aprendizado tão curto não permite supor que reflexos
condicionados novos substituam aqui disposições já estabelecidas,
salvo se uns e outros formem um sistema e se a
mudança é global, o que nos faz sair da teoria mecanicista,
já que agora as reações são mediadas por uma apreensão global
do instrumento. Diremos então que o organista analisa
o órgão, quer dizer, que ele se dá e conserva uma representação
das teclas, dos pedais, dos teclados e de sua relação no
espaço? Mas, durante o curto ensaio que precede o concerto,
ele não se comporta como o fazemos quando queremos armar
um plano. Ele senta-se no banco, aciona os pedais, dispara
as teclas, avalia o instrumento com seu corpo, incorpora
a si as direções e dimensões, instala-se no órgão como nos
instalamos em uma casa. O que ele aprende para cada tecla
e para cada pedal não são posições no espaço objetivo, e não
é à sua "memória" que ele os confia.
Durante o ensaio, assim
como durante a execução, as teclas, os pedais e os teclados
só lhe são dados como as potências de tal valor emocional
ou musical, e suas posições só lhe são dadas como os lugares
onde esse valor aparece no mundo. Entre a essência musical
da peça, tal como ela está indicada na partitura, e a música
que efetivamente ressoa em torno do órgão, estabelece-se uma relação tão direta que o corpo do organista e o instrumento
são apenas,o lugar de passagem dessa relação. Doravante
a música existe por si e é por ela que todo o resto
existe. Não há aqui lugar para uma "recordação" da localização
das teclas e não é no espaço objetivo que o organista
toca. Na realidade, seus gestos, durante o ensaio, são gestos
de consagração: eles estendem vetores afetivos, descobrem
fontes emocionais, criam um espaço expressivo, assim como
os gestos do augúrio delimitam o templum.
Aqui, todo o problema do hábito é o de saber como a
significação musical do gesto pode aniquilar-se em uma certa
localidade, a ponto de que, estando inteiramente ao dispor
da música, o organista alcance justamente as teclas e os
pedais que vão realizá-la. Ora, o corpo é eminentemente um
espaço expressivo. Eu quero pegar um objeto e, em um ponto
do espaço no qual eu não pensava, essa potência de preetysão
que é minha mão já se levanta em direção ao objeto. Movo
minhas pernas não enquanto elas estão no espaço a oitenta
centímetros de minha cabeça, mas enquanto sua potência
ambulatória prolonga para baixo a minha intenção motora.
As principais regiões de meu corpo são consagradas a ações,
elas participam de seu valor, e trata-se do mesmo problema
saber por que o senso comum põe o lugar do pensamento na
cabeça e como o organista distribui as significações musicais
no espaço do órgão. Mas nosso corpo não é apenas um espaço
expressivo entre todos os outros. Este é apenas o corpo
constituído. Ele é a origem de todos os outros, o próprio movimento
de expressão, aquilo que projeta as significações no
exterior dando-lhes um lugar, aquilo que faz com que elas
comecem a existir como coisas, sob nossas mãos, sob nossos
olhos. Se nosso corpo não nos impõe, como o faz ao animal,
instintos definidos desde o nascimento, pelo menos é ele que
dá à nossa vida a forma da generalidade e que prolonga nossos
atos pessoais em disposições estáveis. Nesse sentido, nossa natureza não é um velho costume, já que o costume pressupõe
a forma de passividade da natureza. O corpo é nosso
meio geral de ter um mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários
à conservação da vida e, correlativamente, põe em
torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus
primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido
figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de
significação: é o caso dos hábitos motores como a dança. Ora
enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios
naturais do corpo; é preciso então que ele se construa um instrumento,
e ele projeta em torno de si um mundo cultural.
Em todos os planos ele exerce a mesma função, que é a de
emprestar aos movimentos instantâneos da espontaneidade
"um pouco de ação renovável e de existência independente". O hábito é apenas um modo desse poder fundamental.
Diz-se que o corpo compreendeu e o hábito está adquirido
quando ele se deixou penetrar por uma significação nova,
quando assimilou a si um novo núcleo significativo.
O que descobrimos pelo estudo da motricidade é, em suma, um novo sentido da palavra "sentido". A força da psicologia intelectualista, como a da filosofia idealista,
provém do fato de que elas não tinham dificuldade em mostrar que a percepção e o pensamento têm um sentido intrínseco e não podem ser explicados pela associação exterior
de conteúdos fortuitamente reunidos. O Cogito era a tomada de consciência dessa interioridade. Mas através disso mesmo toda significação era concebida como um ato de
pensamento, como a operação de um Eu puro, e, se o intelectualismo prevalecia facilmente ante o empirismo, ele mesmo era incapaz de dar conta da variedade de nossa
experiência, daquilo que nela é não-sentido, da contingência dos conteúdos. A experiência do corpo nos faz reconhecer uma imposição do sentido que não é a de uma
consciência constituinte universal, um sentido que é aderente a certos conteúdos. Meu corpo é esse núcleo significativo que se comporta como uma função geral e que
todavia existe e é acessível à doença. Nele aprendemos a conhecer esse nó entre a essência e a existência que em geral reencontraremos na percepção, e que precisaremos
então descrever mais completamente. [...]
Uma certa experiência tátil do braço
significa uma certa experiência tátil do antebraço e dos ombros,
um certo aspecto visual do mesmo braço, não que as
diferentes percepções táteis, as percepções táteis e as percepções
visuais participem todas de um mesmo braço inteligível,
como as visões perspectivas de um cubo da idéia do cubo,
mas porque o braço visto e o braço tocado, como os diferentes
segmentos do braço, fazem, em conjunto, um mesmo
gesto.
Do mesmo modo que acima o hábito motor esclarecia
a natureza particular do espaço corporal, aqui o hábito em
geral permite compreender a síntese geral do corpo próprio.
E, do mesmo modo que a análise da espacialidade corporal
antecipava a análise da unidade do corpo próprio, agora podemos
estender a todos os hábitos o que dissemos dos hábitos
motores. Na verdade, todo hábito é ao mesmo tempo motor
e perceptivo, porque, como dissemos, reside, entre e percepção
explícita e o movimento efetivo, nesta função fundamental
que delimita ao mesmo tempo nosso campo de visão
e nosso campo de ação. A exploração dos objetos com uma
bengala, que há pouco apresentávamos como um exemplo de
hábito motor, também é um exemplo de hábito perceptivo.
Quando a bengala se torna um instrumento familiar, o mundo
dos objetos táteis recua e não mais começa na epiderme
da mão, mas na extremidade da bengala. E-se tentado a dizer
que, através das sensações produzidas pela pressão da bengala
na mão, o cego constrói a bengala e suas diferentes posições,
depois que estas, por sua vez, medeiam um objeto à
segunda potência, o objeto externo. A percepção seria sempre
uma leitura dos mesmos dados sensíveis, ela apenas se
faria cada vez mais rapidamente, a partir de signos cada vez mais claros. Mas o hábito não consiste em interpretar as pressões da bengala na mão como signos de certas
posições da
bengala, e estas como signos de um objeto exterior, já que
ele nos dispensa de fazê-lo. As pressões na mão e a bengala
não são mais dados, a bengala não é mais um objeto que o
cego perceberia, mas um instrumento com o qual ele percebe.
A bengala é um apêndice do corpo, uma extensão da síntese
corporal. Correlativamente, o objeto exterior não é o geometral
ou o invariante de uma série de perspectivas, mas uma
coisa em direção à qual a bengala nos conduz e da qual, segundo
a evidência perspectiva, as perspectivas não são índices,
mas aspectos. O intelectualismo só pode conceber a passagem
da perspectiva à própria coisa, do signo à significação
como uma interpretação, uma apercepção, uma intenção de
conhecimento. Os dados sensíveis e as perspectivas seriam,
em cada nível, conteúdos apreendidos como (aufgefasst ais) manifestações
de um mesmo núcleo inteligível9. Mas essa análise
deforma ao mesmo tempo o signo e a significação; ela separa
um do outro, objetivando-lhes o conteúdo sensível, que
já é "pregnante" de um sentido, e o núcleo invariante, que
não é uma lei mas uma coisa; ela mascara a relação orgânica
entre o sujeito e o mundo, a transcendência ativa da consciência,
o movimento pelo qual ela se lança em uma coisa
e em um mundo por meio de seus órgãos e de seus instrumentos.
A análise do hábito motor enquanto extensão da existência
prolonga-se portanto em uma análise do hábito perceptivo
enquanto aquisição de um mundo. Reciprocamente,
todo hábito perceptivo é ainda um hábito motor, e ainda aqui
a apreensão de uma significação se faz pelo corpo. Quando
a criança se habitua a distinguir o azul do vermelho, constata-
se que o hábito adquirido a respeito desse par de cores beneficia
todas as outras. Será então que através do par azulvermelho
a criança percebeu a significação "cor", que o momento
decisivo do hábito está nessa tomada de consciência, nesse advento de um "ponto de vista da cor", nessa análise intelectual que subsume os dados a uma categoria? Mas,
para
que a criança possa perceber o azul e o vermelho sob a
categoria de cor, é preciso que esta se enraíze nos dados, sem
o que nenhuma subsunção poderia reconhecê-la neles — primeiramente
é preciso que, nos painéis "azuis" e "vermelhos"
que lhe apresentam, se manifeste esta maneira particular de
vibrar e de atingir o olhar que chamamos de azul e de vermelho.
Com o olhar, dispomos de um instrumento natural
comparável à bengala do cego. O olhar obtém mais ou menos
das coisas segundo a maneira pela qual ele as interroga,
pela qual ele desliza ou se apoia nelas. Aprender a ver as cores
é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo
próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal. Sistema
de potências motoras ou de potências perceptivas, nosso
corpo não é objeto para um "eu penso": ele é um conjunto
de significações vividas que caminha para seu equilíbrio.
Por vezes forma-se um novo nó de significações: nossos movimentos
antigos integram-se a uma nova entidade motora,
os primeiros dados da visão a uma nova entidade sensorial,
repentinamente nossos poderes naturais vão ao encontro de
uma significação mais rica que até então estava apenas indicada
em nosso campo perceptivo ou prático, só se anunciava
em nossa experiência por uma certa falta, e cujo advento reorganiza
subitamente nosso equilíbrio e preenche nossa expectativa
cega. [...]
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FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO autor: Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) título original: PHÉNOMÉNOLOGIE DE LA PERCEPTION. Éditions Gallimard, 1945 tradução: Carlos Alberto Ribeiro de Moura Editora:
Livraria Martins Fontes, 1994
[12.Abr.2014]
Publicado por
MJA
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