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Metal, elástico, mãos habilidosas, e ela começa a surgir. É magrela, comprida e
roliça, com uma proteção plástica na ponta que toca o chão. Primeiro, ela se
encontra com outras iguais a ela.
— Você já sabe quem vai ser seu dono?
— diz uma bem pequena.
— Ainda não, mas ouvi dizer que vamos viajar para longe. Estão montando as
caixas em que vão nos embalar.
Todas estão excitadas, doidas para ganhar o mundo. Como bengalas que são, não
querem ficar paradas; querem ganhar mundo, pois para isso foram feitas.
— Cada uma numa bolsa com outros materiais
— diz o gerente aos operários.
Bernadete é colocada em uma bela sacola, depois de despedir-se das amigas.
—
Para onde será que elas vão? — pensa curiosa.
Na bolsa, durante a viagem, ela descobre amigos: dois punções e uma reglete, que
servem para escrever; um tal de sorobã, que vive dizendo: «matemática é com o
bom aqui!»; um pequeno engraçadinho, que tem o nome importante de «Guia de
assinatura», mas que gosta mesmo de ser chamado de «assinador». Todos falam o
tempo todo e estão doidos para trabalhar.
Chegando à mão do dono, que surpresa! Quando ele abre a bolsa e tira tudo de
dentro, Bernadete descobre as amigas. Todas foram para o mesmo lugar. Eram
vários jovens cegos, aliás, crianças ainda. Todos com bolsas cheias de materiais
novos e curiosos para experimentar tudo.
— Legal! Minha bengala é do jeito que eu imaginei!
— diz uma menina, tirando a
sua bolsa e já testando como andar com ela — ela vai se chamar Bianca.
Os outros riram.
— Por que Bianca?
— Porque bengala tem que ter nome com B.
A brincadeira pegou, e nossa heroína foi batizada com o nome que já conhecemos:
Bernadete.
Durante um tempo, ela ficou mais dentro da bolsa do que fora. Às vezes, quando o
menino abria a bolsa para tirar punção, reglete ou sorobã, ela dava um impulso,
saltava e se esticava toda. Todo mundo achava que era por causa do elástico
novo, mas que nada. Era muita vontade que Bernadete tinha de correr mundo. Mas o
menino a desarmava, dizendo:
— Caiu de novo.
E guardava outra vez. Quando ele ameaçava pegá-la realmente para ir a algum
lugar, a mãe, ou o pai, ou a avó logo dizia:
— Guarda isso aí! Não precisa, eu vou te levar.
E lá ia Bernadete de novo para a bolsa. Já estava ficando deprimida. Pelas
conversas que conseguia ouvir, sabia que suas amigas estavam andando por aí,
vendo praias, parques, casas, entrando e saindo de ônibus, e ela não conhecia
nada.
Um dia, no vestiário, depois da aula de natação, chegou o grande triunfo de
nossa heroína. Seu dono foi informado de que não haveria a aula de informática
por falta de luz, e um colega propôs:
— Por que, em vez de avisar em sua casa, você não vem comigo? Desço dois pontos
depois da sua casa e posso te ensinar o caminho. Se você não fizer isso, nunca
vão te deixar sair sozinho.
O colega tinha razão. Ele já tinha 18 anos e, apesar das insistentes conversas
dos professores, os pais prometiam, mas não deixavam que saísse usando a
bengala. Teria que ser no susto. Bernadete saiu da bolsa ardendo por trabalhar.
O caminho era fascinante!: árvores, carros, muros, e ela ia ajudando o jovem a
desviar de tudo.
— Que susto, menino! Como é que você veio parar aqui sozinho?!
— perguntou a mãe
quando o viu chegando.
— Sozinho não, mãe; com a bengala — disse ele se matando de rir.
Daquele dia em diante, Bernadete passou a trabalhar de verdade!: festas, casas
de amigos, cursos, escola, banco, casa de parentes… Todos os roteiros se
tornaram conhecidos para ela. Reviu amigas, conheceu outras colegas, entrou em
buracos perigosos, de onde o dono a tirava com cuidado para que não quebrasse.
— Eca! « Caquinha de cachorro!» Era complicado desviar de tudo. Às vezes, ficava
arrasada, quando o rapaz batia num orelhão, por exemplo, pois neste caso ela não
podia fazer nada. Mas, com o tempo, aprendeu que isso era normal, fazia parte da
vida, e que seu dono levava até com bom humor a situação toda.
O tempo passou e havia dias em que Bernadete ficava até cansada de tanto andar,
mas não reclamava. Correspondia sempre da melhor maneira. Seu dono, agora,
andava engravatado, frequentava tribunais e a guardava numa pasta elegante, mas
não abria mão dela.
Um dia, conheceu outra bengala num canto de uma casa, onde estava rolando a
maior festa e, pela maneira como seu dono e a dona da outra bengala chegaram
rindo para busca-las, entendeu que ainda se veriam muitas vezes. Acertou.
Durante três anos se encontravam muito, as duas, até que um dia passaram a viver
na mesma casa, habitando a mesma prateleira do armário quando não estavam sendo
usadas.
— Não confunda. Esta é a minha Bernadete. Ela tem nome desde que eu a ganhei
—
reclamou ele um dia quando a mulher quase pegou a bengala errada. Ele a
reconhecia em qualquer lugar.
— Nem notei que ela era muito grande para mim — disse a moça rindo.
Depois de algum tempo, a responsabilidade de Bernadete aumentou: se ela
falhasse, se não funcionasse a contento, o bebê podia cair dos braços do pai, ou
da mãe que, às vezes, o marido conduzia, e ela levava isso muito a sério.
Um dia, porém, um acidente sério impediu Bernadete de continuar sua nobre
tarefa: um buraco mais estreito, e a coitadinha ficou completamente torta.
— Vou comprar outra bengala!
— disse o rapaz, decidido.
Bernadete entrou em crise. Achou que ia acabar no ferro-velho. Mas, quando a
bengala nova chegou, o rapaz tomou uma decisão:
— Vou usar a nova, mas não vou me desfazer da minha primeira bengala. Foi com
ela que me tornei independente. Ela me ensinou o quanto eu era capaz de andar
sozinho. Preciso guardá-la.
Poucas vezes nossa personagem saía da prateleira; mas, quando isso acontecia,
era para mostrar a algum dos filhos ou a quem conversasse com ele sobre
autonomia e sobre sua vida, como Bernadete havia sido importante, e ela se
sentia orgulhosa e valorizada.
FIM
ϟ
BERNADETE
autora: Professora Carla Maria de Souza, Instituto Benjamin Constant.
fonte: «Pontinhos» n.º 354, julho / setembro de
2015
'Pontinhos' é uma revista trimestral infanto-jovenil editada pelo Instituto Benjamin Constant,
no Rio de Janeiro
[15.Out.2016]
Publicado por
MJA
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