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Velha cega com lenço | Paula Modersohn-Becker, 1903
Elas constituíam como que o centro de cada lar, o eixo de cada família e o tempo
corria-lhes mais rápido do que a chuva sobre os telhados. Elas tinham de forçar
a imaginação para obter alimentos baratos, de forma a que todos comessem dentro
da exiguidade dos salários e, no Inverno, isso era-lhes mais difícil. Elas
tinham de vestir os filhos, cortando, adaptando, remendando velhas roupas; e à
faina doméstica, todos os dias igual, juntavam, muitas vezes, trabalhos para as
fábricas.
Júlia disputava cada minuto de luz diurna para esbicar um corte de fazenda. O
tecido estava sobre um cavalete, a "banca", e ela, com umas pinças, ia-lhe
arrancando as impurezas, os últimos resíduos vegetais que a lã conservava,
teimosamente, através de todas as outras operações que sofria. Os industriais
pagavam pouco por esse labor, mas Júlia considerava que, sem esse pouco, não
poderia, só com o salário do marido e o abono de família que recebia nos últimos
tempos, dar governo capaz à vida de sua casa.
Em frente de Júlia, vizinhando o lume, sentava-se a mãe de Ricardo a senhora
Francisca, com seus oitenta anos, sua surdez e semicegueira, era como um traste
da casa, uma estátua tosca, dramática pela expressão e grotesca pelos trapos que
vestia. De cabeça descaída sobre o peito e o gato aninhado no regaço, decorriam
horas em que nela se via apenas o movimento do rosário passando entre as suas
engelhadas mãos. Se deixava as contas era para acariciar o gato, a sua maior
ternura.
Nem aos netos ela parecia querer tanto. Os seus olhos viam-nos de contorno
diluídos, quase esfumados, e esses corpos imprecisos quando ela estendia, para
eles, as mãos descarnadas fugiam-lhe aos afagos. O gato, pelo contrário,
mostrava-se passivo, nestes dias de Inverno em que o regaço da velha lhe
oferecia grato calor.
A senhora Francísca trabalhara quase cinquenta anos na ultimação dos tecidos,
quando era solteira, depois de casada e depois de viúva. Fora "metedeira de
fios", cerzindo orifícios e eliminando outros defeitos que os teares deixam, por
vezes, nos panos. E só cessara de trabalhar quando a luz dos seus olhos estava
quase extinta. Nesse dia, Ricardo e Julia começaram a sentir a presença da velha
como um peso morto, uma despesa apenas, na sua vida.
Júlia passara a trabalhar
mais do que até aí. Levantava-se ainda no negrume da noite e, quando o marido, o
filho mais velho e Horácio acabavam de se vestir para ir para a fábrica, já ela
tinha o caldo pronto e concluídas outras lidas domésticas. Agarrava-se, então, à
peça de fazenda e, de pé, junto à banca, as suas pinças nervosas iam, que nem
bico de ave faminta, arrancando todas as matérias estranhas à lã. Júlia fora,
como a sogra, metedeira de fios, mas, por vontade do marido, passara a
esbicadeira, para defender um pouco mais a sua vida.
Ricardo obtivera, também,
que a fábrica onde ele trabalhava lhe confiasse tecidos para Júlia os esbicar em
casa, acumulando ela, assim, como outras mulheres locais, o labor industrial com
a trafega do lar. O seu esforço era, porém, constantemente interrompido pelos
filhos, que traquinavam no casebre, que berravam de quando em quando, criando
conflitos e aplicando, eles próprios, castigos entre si. Júlia enerváva-se e, às
vezes, praguejando, esbofeteava um deles, deixando-o a carpir-se a um dos
cantos. Logo, ela volvia ao seu trabalho, ciosa do tempo que perdera; mas, pouco
depois, tinha novamente de intervir, tinha novamente de se interromper. Só a
senhora Francisca, naqueles foscos dias de Inverno, com todas as crianças
metidas em casa, continuava impassível, graças aos seus esclerosados ouvidos. Se
os netos, durante as suas lutas, embatiam nos joelhos dela ou, fugindo às iras
maternas, atrás do seu corpo buscavam protecção, a velha ainda abria a
desdentada boca e perguntava:
O que é ? Que é que vocês estão fazendo, seus marotos ?
Mas ninguém lhe respondia, por serem inúteis as palavras.
FIM
Ferreira de Castro (1898-1974)
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A Lã e a Neve | «Os homens passavam os dias e as noites dentro das fábricas só saindo aos Domingos, para esquecer o cárcere. Já não viam as ovelhas, nem ouviam o melancólico tanger dos seus chocalhos nos pendores da serra, ao crepúsculo; viam apenas a sua lã, lã que eles desenrugavam, que eles lavavam, cardavam, penteavam, fiavam e teciam, lã por toda a parte.»
Um jovem pastor sonha tornar-se operário fabril para melhorar as suas condições sociais. É neste ambiente de pobreza e vida hostil que se desenvolve a acção de
A Lã e a Neve,
publicado em 1947. Como em toda a obra de Ferreira de Castro, sobressai neste romance o sentido social e as preocupações pelas miseráveis condições de vida dos mais humildes. Um dos melhores romances de Ferreira de Castro.
FNAC
«A Senhora Francisca»
excerto de:
"A Lã e a Neve"
de Ferreira de Castro
(1947)
5.Abr.2017
Publicado por
MJA
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