Selma Fraiberg

Juntei neste capítulo observações dos nossos estudos longitudinais
feitos a crianças cegas desde o nascimento, que descrevem os elementos de comunicação
entre o bebé e a mãe cuja origem se deveria situar num vocabulário não visual de
sinais e gestos. Antes de descrever a nossa amostra, os nossos métodos e as nossas
observações às mães e às suas crianças cegas, proponho-rne introduzir o problema em
questão, escolhendo em primeiro lugar um quadro de referência neutro: observações
sobre mim própria, observações feitas a si próprios pelos membros da equipa e
observações de visitantes do nosso projecto reagindo aos bebés cegos.
Compreensivelmente, surgirão questões conforme formos apresentando as
nossas descobertas. Uma mãe que acabou de dar à luz um bebé cego ou que acabou de saber
que o seu bebé é cego tem de se debater com uma enorme dor e desespero. Quando
descrevemos as particularidades dos problemas de um bebé cego e da sua mãe para
encontrar um vocabulário de sinais, como podemos saber o que faz parte da supressão dum
sistema visual de sinais e o que pertence à dor psicológica, como incapacidade da mãe
em ler os sinais?
A auto-observação do investigador e as observações de visitantes do
nosso projecto poderão oferecer algumas indicações sobre o sentido da cegueira num
adulto para quem a mesma näo é uma tragédia pessoal.
Auto-observações
Comecei o estudo do desenvolvimento de crianças cegas há 12 anos. Tomei
gradualmente consciência das muitas diferenças no meu comportamento perante as crianças
cegas quando o comparei ao tido com as crianças normovisuais. Mantenho muitas dessas
emoções que me surpreendem. No entanto, penso que tenho poucos preconceitos perante os
cegos e tanto quanto posso julgar, as minhas emoções não têm sido impedimento ao meu
trabalho.
As primeiras descobertas na minha auto-observação surgiram em New
Orleans quando eu e o David Freedman começámos o estudo de uma criança cega com 5 meses
chamada Toni. Estávamos a visitar a Toni já há seis meses quando nos foi solicitado por
um serviço social a avaliação de outra criança cega, Lennie, de 9 meses de idade.
Marcámos uma visita à sua casa. Alguém tinha cometido um erro. O Lennie não era cego.
Encontrámos uma criança negligenciada, vivendo num berço sujo.
Ao examinarmos, notávamos breves olhares para os nossos rostos e
capacidade de seguir com os olhos. Foi a ausência de fixação que levou alguém a
acreditar que o Lennie era cego quando tinha três meses de idade. Tinha sido criado desde
então como se fosse cego e o indesejado décimo quarto filho de uma família empobrecida.
Depois de concluído o nosso exame e de uma longa conversa com a mãe, comecei a tomar
notas para o encaminhamento de serviço social. Conforme as observações foram sendo
organizadas tomei nota das condições que indicavam atenção visual. Estava a descrever
as respostas do Lennie à minha voz quando me dei conta de algo estranho. Era o meu
rnonólogo. Mas eu falo sempre com os bebés, disse para mim própria. Não. Eu não falo
sempre com os bebés. Eu não falo com a Toni da mesma maneira.
Tentei lembrar-me, era verdade. Falava muito pouco quando estava com a
Toni. Este facto preocupou-me. A Toni era uma criança comunicativa e afectuosa. Lennie
deprimia-me. Gostava de pegar na Toni. Tinha que ultrapassar alguns sentimentos de repulsa
quando pegava no Lennie. Mal falava com o Lennie. O que é que era gratificante? Quando
falava tempo suficiente com o Lennie poderia notar breves momentos de fixação visual na
minha cara e um encontro de olhos. Quando mantinha tempo suficiente a sua fixação eu via
qualquer coisa como um sorriso.
Mais tarde, pude fazer uso desta auto-observação quando estava com a
Toni. Falava-lhe mais frequentemente, mas tinha sempre a sensação que [altava qualquer
coisa, algo que deveria vir dela. Não havia, claro, fixação no meu rosto. E faltava
qualquer coisa. Embora a Toni sorrisse frequentemente em resposta à voz da mãe,
raramente sorria às vozes dos observadores. Mais tarde, com a passagem dos anos, aprendi
mais sobre os estímulos que provocam o sorriso no bebé cego. A voz, mesmo a voz da mãe,
não provoca automaticamente o sorriso no bebé cego. Era isto que faltava na Toni. Ainda
sinto falta desta resposta nos bebés cegos e os membros da minha equipa partilham comigo
este sentimento.
Doze anos mais tarde ainda tenho algumas surpresas. Há poucos meses Karen
de 5 anos, que é cega, foi visitar o nosso serviço. Vi a Karen a brincar numa das nossas
salas e parei para falar com ela. As suas costas estavam viradas para mim. Quando me ouviu
falar com ela parou de brincar por momentos e escutou. Não se voltou imediatamente.
Conforme fui falando a Karen foi-se voltando até estar virada para mim. Tive um momento
de choque. As palavras surgiram-me na cabeça. "Ela é cega!". Mas eu sabia há
quase 5 meses que a Karen era cega.
Certas vezes quando temos profissionais que visitam o projecto para
visionarem filmes ou videotapes, ainda espreito os seus rostos quando a criança aparece
no ecrã. Com as crianças normovisuais é sempre interessante ver a reacção às
situações na cara dos espectadores. Sorrimos quando o bebé sorri no filme, ficamos
sérios quando o bebé está aflito. Rimos com simpatia quando o bebé olha indignado para
os truques do observador. Franzimos o sobrolho quando o bebé faz o mesmo porque o
brinquedo desapareceu. Se deixa cair o brinquedo olhamos por debaixo do ecrã para o
ajudar a encontrá-lo. Mas, a criança cega não desperta espontaneamente estes
sentimentos no espectador. Geralmente o visitante permanece sério. Isto é parcialmente
uma reacção à cegueira em si. Mas é também mais alguma coisa. Há um grande
vocabulário de comportamento expressivo que não existe no bebé cego. A ausência de
sinais diferenciados na face do bebé reflecte-se no rosto do observador.
Numa tarde, há pouco tempo, a nossa equipa dedicou uma sessão à
discussão das auto-observações nas relações com bebés cegos. O nosso consenso, como
equipa de investigadores e clínicos que tinham trabalhado com crianças cegas muitos
anos, foi que nunca tínhamos ultrapassado este sentimento de que faltava alguma coisa
importante na troca social. Ainda assim as recompensas recebidas das crianças cegas têm
sido grandes. Todos os membros da equipa têm fortes laços com crianças que conhecemos
desde o primeiro ano de vida. Com raras excepções, os bebés transformaram-se em
crianças de idade pré-escolar saudáveis, activas, com boa mobilidade, brincalhonas, bem
apresentadas e atraentes. Entre nós, falamos delas como pais orgulhosos. Nunca nos
apercebemos que alguma coisa faltava na resposta até à visita de uma criança
normovisual.
Quando uma criança com visão normal nos visita verifica-se uma harmonia
espontânea e demonstramos o nosso reportório de mímica com bebés. Voltamos ao sistema
tribal onde o bebé representa o seu jogo social e nós o nosso. Para alguém que trabalha
durante muito tempo com bebés cegos, como nós trabalhamos, o encontro com uma criança
normovisual parece-se absurdamente com a experiência de encontrar um compatriota no
estrangeiro depois de uma longa estadia num país onde a língua e os costumes são
diferentes. Um compatriota, que pode ser um perfeito desconhecido pedindo informações,
é tratado como um amigo. O seu sotaque regional e idioma são agradáveis e com mais nada
do que um continente em comum dois estranhos podem iniciar uma troca social em que quase
todos os sinais tribais são compreendidos e interpretados correctamente.
Sentimos que falta no bebé cego, a parte dos olhos que não vêem, um
vocabulário de gestos e sinais que forneçam o mais elementar e vital sentido de fala
muito antes das palavras terem significado. Neste capítulo, descrevo através das nossas
observações alguns dos problemas específicos do bebé cego e da sua mãe ao tentar
encontrar um vocabulário de sinais.
A amostra
A informação contida neste relatório proveio de um estudo longitudinal
de 10 bebés, 5 rapazes e 5 raparigas. Tanto quanto possível os bebés começariam a ser
estudados logo após o nascimento mas a idade na primeira observação era desde os 23
dias aos 7 meses em oito crianças e duas que foram vistas respectivamente aos 9 e 11
meses. Dentro dos limites da certeza médica seleccionámos bebés que eram desde o
nascimento cegos totais ou que tinham só percepção de luz mas sem qualquer outro
problema. A nossa amostra é assim altamente selectiva e as nossas descobertas não podem
ser generalizadas a toda a população dos bebés cegos. (Uma população típica de cegos
inclui crianças com visão útil que são também legalmente classificados como
"cegos" e ainda crianças que têm outros "handicaps'' sensoriais ou
motores e lesões neurológicas.) Os nossos bebés estão assim em vantagem numa
população de crianças cegas porque possuem os outros sistemas intactos e estão em
desvantagem por pertencerem a um grupo padrão com nenhuma visão . (Estes critérios
restritivos deram-nos uma população muito pequena embora nos tivéssemos baseado nos
dados dum grande centro médico). É importante fazer notar que oferecemos serviços de
orientação e de educação a todos os bebés durante o programa de investigação.
Sabemos que as primeiras fases de desenvolvimento dos bebés cegos são
cheias de riscos. Na população geral de crianças cegas existe uma alta incidência de
desvios, personalidades não diferenciadas e desenvolvimento reprimido do cego (mesmo
quando excluímos os casos de lesão cerebral e de múltiplas deficiências que são
também comuns neste tipo de população). Conforme fomos progredindo na investigação,
fomos sempre capazes de estabelecer a ligação entre alguns obstáculos ao
desenvolvimento e o quadro clínico observado em crianças cegas mais velhas
(Fraiberg, 1968; Fraiberg e Freedman, 1964).
Assim que tivemos acesso a estas descobertas, elas foram transformadas num
programa de prevenção e educação. Sentimos que nenhum benefício para a investigação
poderia justificar a retenção deste conhecimento e começámos a organizar um programa
educativo domiciliário que tem sido altamente eficaz na promoção e desenvolvimento dos
nossos bebés cegos (Fraiberg, 1971; Fraiberg, Smith e Adelsom, 1969).
Assim podemos dizer que as observações deste relatório foram feitas a
partir de um grupo de crianças saudáveis ou de crianças intactas. As famílias
representam um bom leque de condições sócio-económicas, as mães eram pelo menos
adequadas e em quatro casos avaliadas como superiores. O desenvolvimento destes bebés foi
provavelmente beneficiado pela nossa intervenção. Veja no quadro abaixo as
características da amostra.
Metodologia de observação
Observadores: Para cada bebé foi criada uma equipa de 2 observadores. É
responsável pela observação o membro da equipa mais qualificado que está presente em
todas as visitas.
Características da Amostra
Critérios:
- Cegueira total desde o nascimento ou percepção luminosa mínima
- Desconhecimento de outras deficiências ou de problemas neurológicos
- Menos de 1 ano de idade
- Residente num raio de 50 milhas do nosso serviço
Descrição:
- Sexo: 5 rapazes e 5 raparigas
- Idade do início do atendimento: 1 a 11 meses
- Idade na última visita: 2 a 6 anos
Posição na família:
- Único 5
- Primeiro de dois 1; de três - 1
- Segundo de dois 1
- Ouinto de cinco 1
- Sexto de seis 1
Diagnóstico:
- Hipoplasia do nervo óptico 3
- Fibroplasia retrolenticular (prematuro 6 meses) 3
- Glaucoma infantil 2
- Oftalmia neonatal 1
- Reabsorção do humor vítreo - 1
Classes sociais a partir da ocupação do pai:
- Gestores - 1
- Estudante Universitário - 2
- Especializado - 2
- Semi-especializado - 3
- Não especializado - 2
Métodos
O bebé é visitado em casa 2 vezes por mês em sessões de 1 hora e meia.
(Saímos num raio de 100 milhas para cobrir as visitas domiciliárias). Tentamos marcar as
visitas de modo a coincidirem com o período da manhã ou da tarde em que a criança
acorda e ainda tentamos que a observação se adeque à rotina normal daquele momento.
Quase toda a informação necessária ao nosso estudo pode ser obtida através da
observação da alimentação, banho, brincadeiras com a mãe, mudança de fraldas ou de
roupa e o período de ocupação sozinho com ou sem brinquedos. Uma pequena parte do tempo
em cada sessão pode ser empregue pelo técnico para fazer testes nas áreas da preensão
e conceito de objecto.
Os observadores gravam uma narrativa contínua com pormenores descritivos.
Uma vez por mês fazemos uma amostra de 15 minutos em filme de 16mm ou vídeo que cobre a
interacção mãe-criança, preensão e desenvolvimento motor global para análise cuidada
por parte da equipa.
Porque áreas que estamos a estudar não foram anteriormente investigadas
as nossas formas de coligir informação tinham que assegurar a cobertura de centenas de
"items" que possibilitassem o estudo comparativo; necessitavam também de ser
abertas, flexíveis, ricas nos detalhes para o estudo qualitativo. O nosso estudo sobre as
ligações humanas foi, claro, uma das áreas centrais deste estudo. Como nada era
conhecido no que diz respeito às características das ligações humanas no bebé cego,
tivemos que desenhar um estudo que lhe permitisse ensinar-nos que tipo de informações
sensoriais usa quando dá respostas selectivas à sua mãe, ao seu pai, e a outras pessoas
conhecidas. Como diferencia mãe e estranho, como reage à separação da mãe e como
demonstra afeição, alegria, dor, zanga e o leque de emoções que normalmente revela a
qualidade dos laços humanos durante os primeiros 18 meses.
Assim. as nossas observações cobriram respostas diferenciadas (sorriso,
vocalização e respostas motoras) à voz humana, ao contacto, ao pegar e aos jogos de
colo com pessoas conhecidas ou desconhecidas com a mãe presente e quando apropriado para
o teste, com a mãe ausente. A informação cobrindo os primeiros 18 meses de
vida foi classificada, produzindo-se 25 categorias que foram empregues para
a análise de respostas diferenciadas.
A ausência de linguagem dos olhos
Já descrevi algumas das reacções de observadores profissionais na
relação com bebés cegos. Os olhos cegos que não se cruzam com os nossos, que não
olham para os nossos rostos, tem um efeito no observador que nunca é totalmente
ultrapassado. Quando os olhos não encontram os nossos tendo conhecimento da nossa
presença, é uma sensação estranha parecida com a rejeição. As mães atribuem com
certeza, o "conhecer" e o "reconhecer" ao olhar atento que o bebé
mantém para o rosto, muito antes de ele poder de facto descriminar ou reconhecer faces. E
isto unicamente porque o cruzar do olhar faz parte do código universal da fraternidade
humana e é lido como uma saudação e um reconhecimento do "outro'' muito antes de
ter qualquer significado para a criança.
É um sinal muito poderoso. Robsom (1968) descreve o papel do contacto dos
olhos nos olhos como provocador de respostas maternais à criança. Neste trabalho as
mães falam dos primeiros sentimentos de amor e do sentido do bebé se tornar uma
"pessoa" como resposta ao fixar da face pelos bebés. Roskies ( 1972) no seu
trabalho com as mães dos bebés vítimas da Talidomida, descreve duas mães que estavam a
pensar internar os seus bebés deformados logo após o nascimento. Os olhos do bebé
"olhando para trás", os olhos "falando" com a mãe eram momentos
recordados pelas duas mães como constrangedores. A decisão de ficar com o bebé era
lembrada pelas duas como dentro deste contexto do contacto dos olhos.
Ele provoca a troca social através do sorriso automático em resposta ao gestalt
da face humana. Aos 5 meses de idade a criança estende ou levanta os braços num gesto de
"pega-me" ou ''levanta-me" o que a maior parte das mães acham
irresistível ou mesmo imperativo. Mas a criança cega tem um reportório pobre dos
comportamentos que possam iniciar a troca social e para além de expressões vocais de
necessidade e aflição não tem virtualmente qualquer vocabulário de sinais que provoque
uma resposta automática da mãe. Pelo contrário, a ausência de contacto visual dá o
sinal negativo de "desinteresse". A ausência do sorriso, em resposta ao
aparecimento da face humana, tem o valor negativo de "não amigável". O
sorriso, a voz da mãe, que consta no reportório do bebé cego, não é um sorriso
automático e não é empregue para iniciar a troca social. O gesto "pega-me",
"levanta-me" não aparece mesmo nos nossos bebés cegos mais adequados até ao
fim do primeiro ano, altura em que a voz da mãe provoca um esforço direccional e este
esforço torna-se um gesto significativo para a mãe.
Os nossos registos documentam os enormes problemas que uma mãe tem para
ler a linguagem de sinais não visuais da criança cega. Somente duas mães do nosso grupo
de 10 o conseguiram sem a nossa ajuda. Eram duas mães extraordinárias e tinham lido
muita experiência com bebés.
As outras mães do nosso grupo, incluindo aquelas que tinham outras
crianças disseram-nos por altura do nosso primeiro encontro que achavam os seus bebés
cegos desconcertantes e "indiferentes", e que era difícil saber o que
"queriam". E com isto não estamos a fazer críticas. Uma criança com visão
não precisa de uma mãe fora do normal para fazer as ligações humanas vitais e para
encontrar os caminhos de desenvolvimento na infância. Ajudamos bastante os pais das
nossas crianças cegas. Conforme fomos ganhando experiência na compreensão do
vocabulário não visual das crianças cegas e nos bloqueios do desenvolvimento, fomos
sendo capazes de ser tradutores entre os bebes e os seus desconcertados pais. Quando a
mãe aprendeu a linguagem a gratificação foi enorme para o bebé e os seus pais.
A linguagem do sorriso
As nossas observações sobre o sorriso nos bebés cegos forarn descritas
num artigo anterior (Fraiberg 1971). O material que se segue é um sumário.
Com quatro semanas já temos observações de crianças cegas que
respondem à voz da mãe e do pai com um sorriso. As nossas descobertas mostram uma
correspondência muito grande com as de Wolf (1963), que demonstra que o bebé com visão
apresenta um sorriso selectivo ao som da voz da mãe com somente quatro semanas de vida.
Nesta idade, tal como Emde e Koenig (1969) mostraram, a voz familiar, tal
como uma série de outros estímulos podem provocar, irregularmente, um sorriso na
criança com visão.
É impressionante ver como um bebé cego pode responder selectivamente às
vozes da mãe e do pai, mas devemos notar que não é uma resposta automática ou regular.
Conforme foi aumentando o número de bebés da amostra foi aparecendo um padrão claro das
diferenças entre as características do sorriso nos bebés cegos e normovisuais.
Aos 2 ou 2 meses e meio, quando para um bebé com visão os estímulos da
face humana provocam um sorriso automático com um alto grau de regularidade não há
equivalente na experiência do bebé cego. Embora o sorriso do bebé cego se torne mais
frequente e o padrão de sorrisos selectivos seja progressivamente evidente em favor da
mãe, mesmo a sua voz não provoca regularmente um sorriso. Não existem no terceiro mês
ou mais tarde estímulos que verdadeiramente possam ser equivalentes ao "gestalt"
da face humana na experiência da criança com visão.
Para a mãe do bebé cego, o sorriso selectivo de resposta à sua voz
significou "conhecer" e "preferência" e, os seus primeiros temores de
"como me reconhecerá ele?" diminuíram ao aparecimento deste sinal universal.
Quando os observadores tentaram experimentalmente provocar um sorriso em resposta às suas
vozes só raramente conseguiram; usamos os nossos fracassos para ajudar a mãe a ver o
sorriso como "especial" para ela e o começo do "reconhecer".
Mas o sorriso não era automático. Nos nossos registos e em filmes vemos
a mãe a tentar provocar o sorriso. Algumas vezes eram necessárias muitas repetições da
sua voz para que o sorriso aparecesse. Era claro que era necessário alguma coisa e que
não era dado automaticamente.
Nos registos feitos deste período, começamos então a ver que o
estímulo mais seguro para despertar urn sorriso ou riso no bebé cego era a
estimulação táctil e quinestésica global. Como observadores ficamos
inicialmente confusos e preocupados com o número de balanceamentos, sacudidelas, cócegas
e aninhamentos em que todos os nossos pais sem excepção se envolviam com os bebés.
Em vários casos, entendemos que este tipo de estimulação era excessivo
relativamente a qualquer padrão. Entre os pais de crianças com visão e na mesma
quantidade de lares era muito raro esta tão grande dependência da estimulação global
do corpo. Começamos a compreender que estes jogos forneciam um estímulo quase seguro
para um sorriso enquanto que apenas as vozes dos pais provocavam no melhor dos casos um
estímulo irregular.
A necessidade que os pais têm do sorriso como resposta, que está
normalmente garantido na criança normovisual desta idade, leva-os a estas alternativas
nas quais o sorriso pode ser provocado com um alto grau de confiança.
Quando excluímos a visão como factor na socialização do sorriso,
surgem outras diferenças no sorrir. Quando ouve uma voz familiar o bebé cego pode
responder sorrindo, mas näo começa o contacto através do sorriso. O sorriso como
começo, a saudação automática, é largamente mediado através de sinais visuais e é
normalmente reforçado através de recompensas visuais (a devolução ou troca de sorriso
do parceiro).
Isto conduz-nos à observação de que os nossos bebés cegos não sorriem
tão frequentemente como fazem os bebés com visão (isto é consenso de toda a nossa
equipa e de um grande número de observadores independentes que visionaram filmes connosco
ao longo dos anos). E mesmo quando temos todos os critérios para uma relação
mãe-criança mutuamente satisfatória, o sorriso do bebé cego atinge-nos como um sorriso
mudo. O alegre e enlevado sorriso que vemos no bebé saudável e com visão é
comparativamente uma ocorrência rara entre os bebés cegos. Isto sugere que o sorriso na
face do "outro" é um poderoso reforço, mesmo na infância do nosso próprio
sorriso.
Os eleitos no parceiro humano de um bebé que não saúda com um sorriso,
que não sorri frequentemente e previsivelmente ao estímulo social apresentado, são
melhor observados nos julgamentos feitos à personalidade do bebé cego e ao seu estado,
tanto pelos clínicos como pelos leigos que não tenham tido experiência com bebés
cegos.
"Ela parece deprimida", diz um visitante observando em filmes
uma das nossas crianças cegas. "Não há sentimento! A cara é tão branda. Não há
expressão". O visitante interroga-se se a mãe está a dar ao bebé estimulação
suficiente. O bebé em questão é uma menina cega (17 meses) que demonstrou em filme a
sua ligação e preferência à mãe, as suas aprendizagens de locomoção próximas das
normais e a exploração extasiada de um novo brinquedo com as suas sensíveis pontas dos
dedos. A quantidade de "estimulação" dada pela mãe deve ser avaliada como
adequada para produzir este tipo de investimento em pessoas e coisas num bebé cego desta
idade. No entanto, compreendemos o que sente o visitante. Sente falta dos sinais de
afectividade. de investimento, da resposta social que se regista na face do bebé com
visão e que são automaticamente traduzidos por nós. Só quando vemos um bebé cego é
que percebemos totalmente que a maioria destes sinais são diferenciados através da
visão.
A ausência de sinais faciais diferenciados
Dentro do leque do prazer e desprazer, podemos ler para uma criança cega
os sinais nos dois extremos da curva. Um bebé cego que sorri "parece feliz". Um
bebé cego que chora por um jantar atrasado "parece infeliz". Mas entre os
estados contrastantes que todos podem ler, existe um enorme percurso de sentimentos e
atitudes diferentes que são normalmente diferenciados pelos padrões humanos através de
sinais faciais expressivos. Em qualquer raciocínio a diferenciação deve existir para os
bebés cegos com estádios de sentimento mas não podemos lê-los facilmente examinando o
rosto.
Se fizermos um breve inventário de sinais faciais expressivos na criança
com visão aos 6 meses de idade, podemos ver imediatamente como os olhos da criança nos
conduzem e nos dão os sinais que lemos como "afecto", "investimento"
e "atenção.
1. "Ele parece atento" (a atenção foi inferida da fixação do
olhar)
2. "Um olhar de desejo" (pode ser lido através da prolongada fixação visual
do bebé e de posturas visualmente orientadas)
3. "Ele parece curioso" (exploração visual de um fenómeno estranho)
4. "Ele parece em dúvida"' (inspecção visual com emoções positiva e
negativa em simultâneo)
5. ''Um olhar tímido" (um jogo visual de esconde-esconde: agora estamos aqui, agora
não estamos)
6. "Ele está chateado" (procura inquieta ou não localizada com os olhos)
Pode-se fazer esta lista para uma criança com visão antes de ela fazer
os seis meses de idade. No terceiro e quarto trimestres começam a entrar sinais
imitativos no reportório da criança com visão (Piaget, 1962) dando estilo pessoal à
face e aumentando o vocabulário diferenciado da expressão facial, Tudo isto está vedado
aos cegos.
O bebé cego, por contraste, tem um reportório empobrecido de sinais
faciais. O bebé cego não parece "atento", "curioso", em
"dúvida" ou "tímido". Ele não tem nenhum objecto de fixação
visual que possa provocar estes sinais diferenciados. Isto leva a mãe não conhecedora ou
o observador a sentir o mesmo que os nossos visitantes, "ele parece deprimido",
"nada Ihe interessa". A ausência de sinais é enganadora. Não temos qualquer
razão para acreditar que, por exemplo, o estado afectivo de desejo, não exista no bebé
cego saudável, mas a expressão motora correspondente a esse desejo que é lido por nós
através da prolongada fixação visual (e posturas visualmente orientadas) não está ao
seu alcance. Posto que normalmente lemos os estados afectivos através de sinais faciais
expressivos, a ausência de sinais diferenciados na face do bebé cego é interpretado
como "inexistência de afecto".
[Claro que existem bebés cegos que são, de facto, deprimidos, retraídos
e apáticos. Mas para fazer o diagnóstico clinicamente válido, precisamos muito mais do
que a leitura da face].
Para os bebés cegos saudáveis e adequadamente estimulados, existem
registos de estados afectivos com expressão motora. Mas temos que afastar os nossos olhos
da face para os descobrir. Fazer isto é tão estranho ao raciocínio humano normal que
podemos não ter descoberto os outros sinais se não tivermos feito uma procura diferente.
A linguagem da mão
As nossas observações do desenvolvimento incluíram o estudo da
preensão nos bebés cegos. Desde o princípio do nosso trabalho vimos que o comportamento
adaptativo da mão seguia outra via nos bebés cegos. Não houve substituição adaptativa
do ouvido em relação aos olhos no que diz respeito ao alcançar ou agarrar um objecto
aos 5 meses de idade. A nossa pergunta era "como consegue o bebé cego a
coordenação do ouvido e da mão que lhe permita a localização no espaço de um objecto
com som levando-o a orientar-se para ele e agarrá-lo?". Concluímos que
"alcançar a partir do som" não era conseguido por nenhum bebé do nosso grupo
até ao quarto trimestre do primeiro ano (Fraiberg, 1968; Fraiberg, Siegel e Gibsom,
1966).
Tornámo-nos "observadores da mão". Para examinar os modelos
sequenciais no comportamento adaptativo da rnão, analisámos muitos milhares de metros de
filme num projector de velocidade variável, visionando a um terço da velocidade. As
nossas provas de percepção em filme foram registadas em circunstâncias que incluíram
não só a experiência do bebé com parceiros humanos mas também com objectos.
Observando as mãos do bebé, descobrimos aquilo que procurávamos e muitas coisas
que não procurávamos. Começámos a ver sinais motores expressivos nas próprias mãos.
Começámos a ler, "Eu quero" e intencionalidade através de sinais motores
fugazes e pouco visíveis, nas mãos. O visionamento dos filmes pela equipa assumiu um
aspecto curioso. Quando examinávamos a reciprocidade mãe-criança, olhávamos para a
face da mãe e mãos do bebé. (A face do bebé dizia-nos pouco). Quando estudávamos o
investimento ou preferência por um brinquedo, olhávamos para as mãos do bebé. Quando
examinávamos reacções emocionais e separações momentâneas da mãe ou a perda de um
brinquedo, olhávamos para as mãos. Era, e ainda é, uma experiência estranha para nós
ler mãos em vez de faces de modo a percebermos o significado da
experiência emocional. (Como médica de crianças com visão observo normalmente a face
para ver sinais de emocionalidade. Só procurava, em alternativa, pistas de emocionalidade
nas mãos quando o rosto ocultava qualquer expressão dessa natureza).
Conforme nos fomos tornando sensíveis às expressões motoras das mãos.
começámos a lê-las como sinais e a responder-lhes como sinais. Vimos que podíamos
ajudar facilmente a mãe a fazê-lo e algumas tornaram-se tão boas como os observadores,
a ler e a traduzir a linguagem da mãe do bebé. Posto que nos foi necessário um tempo
considerável como observadores para "ler as mãos" podíamos agora compreender
o dilema da mãe de um bebé cego que não tem apoio técnico. Na ausência de um
reportório de sinais expressivos da face a mãe do bebé cego não tem vocabulário de
sinais diferenciados no qual os estados afectivos intermédios ou os desejos fossem
registados e do qual derivassem respostas adequadas da mãe. E porque muitos dos sinais do
bebé não podiam ser "lidos" pela mãe, a sua própria experiência em
conseguir respostas especificas a necessidades estava muito restringida aos estudos
elementares de necessidade. "Zanga", "satisfação",
"agitação", "raiva" e "sonolência" podiam ser entendidos
pela mãe, mas a totalidade do leque de expressões afectivas que se torna socializada no
primeiro ano não podia ser explorada até que os sinais fossem lidos pela mãe. Alguns
exemplos deste problema:
A Toni tem 10 meses de idade. A sua mäe (muito experiente, com 5 filhos
mais velhos) diz-nos: "Ela não está nada interessada nos brinquedos".
Reunimos um grupo de brinquedos da Toni, animais e bonecos e convidámos a
mãe a dá-los a Toni um por um. Cada vez que um deles é colocado nas suas mãos a face
de Toni fica imóvel. Ela dá a impressão de "estar a olhar fixamente para um
espaço remoto". Naturalmente que uma criança cega total não orienta a face para o
brinquedo nas suas mãos. Como a inspecção visual é o sinal que lemos como
"interesse" e o olhar desviado ou fixo são lidos como "desinteresse",
Toni "parece aborrecida".
Agora olhamos para as mãos da Toni. Enquanto a sua face "parece
aborrecida", os seus dedos inspeccionam cada um dos brinquedos. Um boneco é
abandonado depois de uma rápida inspecção manual. Um segundo boneco é examinado,
trazido à boca, lambido, mordido, tirado e examinado outra vez. Retiramos agora o segundo
boneco e colocamos o primeiro nas suas mãos. Um rápido exame de dedos é abandonado. Ela
faz sons de irritação com os olhos fixos no espaço.
Devolvemos o boneco nº 2 às suas mãos. Ela acalma-se instantaneamente,
agarra-o, leva-o à boca e explora os seus contornos.
Resumindo, não há qualquer mensagem na face da Toni que a mãe possa ler
como "interesse" ou "preferência". Mas o comportamento das mãos
mostram uma clara discriminação e uma exploração continuada de um brinquedo para
outro.
Exemplos como este multiplicaram-se nos nossos registos. A face imóvel,
os olhos vagos, "desinteresse", mas os dedos explorando as pequenas fendas do
guizo, o badalo do sino, a convexidade da saboneteira ou as cerdas da escova de dentes. O
problema é complexo quando a mãe necessita de ler "desejo" ou intenção no
seu bebé cego. Nenhuma mãe de um bebé de seis meses com visão tem problemas em ler
"Eu quero" a partir de um grande número de comportamentos visuais orientados.
Nesta idade a criança normovisual é muito boa a conseguir o que quer e o que está ao
alcance. Também consegue coisas que estão fora do alcance, fixando os olhos com
determinação no seu alvo, estendendo as mãos e o tronco e fazendo vocalização para o
caso de alguém não entender a linguagem de sinais. Tem de facto um vocabulário
diferenciado de sinais motores na orientação da cabeça e no estender dos braços e das
mãos o que é lido instantaneamente como "Eu quero", "Dá-me",
"Pega-me ,"Não, isso não", "Por favor". Todos estes sinais são
mediados pela visão (por exemplo: olho e mão) e dependem da fixação visual do alvo e
de uma expressão motora significando querer ou súplica para uma leitura rápida da
intenção por parte do adulto. Se, por exemplo, estivéssemos na situação pouco
provável em que um bebé normovisual de seis meses fizesse o sinal motor de
"Dá-me" e não fixasse o alvo, nós não seríamos capazes de ler a intenção.
Isto significa, evidentemente, que mesmo quando o bebé cego revela os
seus desejos ou intenções através da expressão motora das suas mãos, o sinal exige
uma leitura muito particular.
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Fonte: FRAIBERG, Selma Blind infants and their mothers: an
examination of the sign system,
in "The effect of the infant on its caregiver" - cap. 10
- Michael Lewis e outro ed., New York, John Wiley, 1974, pág. 215-232.
Julho de 1984
Revista Margem
Δ
publicado
por
MJA
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