
O Cego
e a Filha - Alfonso
Castelao (aguarela - início do
séc. XX)
-
RESUMO | Reflexões sobre as dificuldades e estratégias dos pais cegos, quando
cuidam de seus filhos. As situações referiam-se a amamentar, banhar, alimentar,
acidentes domésticos e dar remédio, e o tato, audição e olfato e a rede social
contribuindo para sua autonomia.
INTRODUÇÃO
No processo de desenvolvimento do ser humano, os atributos do cuidar são fundamentais e
não há pessoa melhor para falar, demonstrar e dedicar-se ao cuidado dos filhos que os pais. Esses
exercem uma forma de cuidado especial e, muitas vezes, essa se torna sua razão existencial e essencial
para o desenvolvimento dos filhos(1). Contudo, deficiências podem interferir no cuidado dos filhos e
é importante que os profissionais de saúde avaliem como se sentem esses pais, quais suas dificuldades
e que auxílios necessitam(2).Para subsidiar a reflexão, realizou-se entrevista em profundidade, técnica dinâmica e
flexível, útil para a apreensão de uma realidade, tendo como questão norteadora: fale sobre sua experiência,
como cego, no cuidado dos seus filhos. Os sujeitos foram pais que tiveram filhos após a cegueira e que
aceitaram participar do estudo após assinar termo de consentimento livre e esclarecido, aprovado no
Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Ceará (COMEPE), sob o nº 345/05.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Seleccionou-se um pai e uma mãe cegos, identificados como Maria e José. Maria, 28 anos,
casada, dona de casa, estudante do ensino fundamental, mãe de quatro filhos. José, 53 anos,
casado, pai de duas filhas, servidor público. A partir da leitura exaustiva das entrevistas procedeu-se a
recortes agrupados em dificuldades e estratégias encontradas para cuidarem dos seus filhos. No interior
das tabelas há categorias temáticas para melhor visualização.
Tabela 1 -
Dificuldades encontradas pelos
pais cegos para cuidar dos seus filhos
Maria
Alimentação: ... não sabia amamentar, segurar, colocar para
arrotar...
Higiene: ... não sabia dar banho, tinha medo da criança
cai r, beber água do banho....não cuidava do umbigo, o curativo me deixava preocupada...
Cuidados de
saúde: ... o remédio líquido... não tem uma marquinha no copo que possa me orientar...
Acidentes: ... o remédio líquido... não tem uma marquinha no
copo que possa me orientar... |
José
Papel de pai:
... que os filhos não se sintam responsáveis por
nós... cegos que tiveram filhos de visão normal e
que largaram bengala, largaram braille e ficaram
dependentes das crianças...
Acidentes: ... cuidados com remédio...marcar em braile...
|
Amamentar requer ajuda para ser feito corretamente e prevenir problemas na mama
puerperal e o desmame precoce(3). Uma boa pega é fundamental para prevenir problemas na mama e
propiciar vínculo afetivo(4). Maria referiu dificuldade no banho, insegurança sobre a temperatura da água,
ocorrência de acidentes, aos produtos a serem utilizados na higiene da criança. Utilizar o tato e olfato
ao cuidar da criança, a disposição dos utensílios e medidas de segurança transmitem autoconfiança à
mãe e preservam o bem-estar da criança.
Para administrar medicamentos líquidos, os pais adotam copo com dosagem única, o que permite
perceber quando está cheio por meio do toque.
Acidentes domésticos são prevenidos mantendo em
local adequado materiais de limpeza, produtos tóxicos e cáusticos e as crianças longe do fogão, de janelas
e escadas. A prevenção de acidentes faz parte da habilitação das pessoas cegas nas atividades da vida
diária e os primeiros socorros podem ser ensinados com tecnologia educacional adequada(5-6).
José destaca sua responsabilidade como pai
e manifesta repúdio aos que delegam esse papel e se apoiam no filho vidente, em um momento da vida
em que a criança mais precisa dele. Apesar disso, os pais cegos encontram estratégias para cuidar dos
filhos.
Tabela 2 -
Estratégias encontradas pelos pais cegos
para cuidarem dos seus filhos
Maria
Aprendizagem: ... fui cuidando sozinha... mas tudo o que eu fazia tinha que pegar... pra gente que não enxerga ter
que pegar...
Alimentação: ... amamentar fui aprender com o tempo... depois fui dando outras coisas, frutas, sopinha, eu
mesma fazia...
Higiene: ... comecei a trocar uma fralda... minha irmã... me ensinô a banhar, cuidar do umbigo, trocar,
vestir... eu colocava a água com a mão sabia a temperatura... os outros três fui eu que cuidei...
Cuidados de
saúde: ... levava pra vacinar, olhava a temperatura do corpo... pezinhos e nos braços... sinal de febre,
gotas... boto o dedo sinto e conto as gotas...
Acidentes: ... tinha um pano pegando fogo... a menina de seis anos apagou porque ela enxerga... se você
conversar, elas vão guardando aquilo e não vai teimar... |
José
Aprendizagem:
... a gente procurou criar nossos próprios recursos, nossos próprios métodos para poder
lidar com o problema...
Alimentação: ... consegue tomar conta da casa, das crianças ...questão da alimentação...
Cuidados de
saúde:
... remédios, a gente faz marca em braille ou com o nome do remédio... dos cuidados que todo pai
tem que ter nós tivemos, criando nossos filhos...
Acidentes: ... organizar... sempre no mesmo lugar... tatear
ou cheirar... tudo marcado...
Papel de pai:
... com a minha bengala para que eu dependesse da minha bengala e não das filhas... alguém
disse: "tome conta do seu pai" ... eu disse: "não é ela que está comigo, sou eu que estou com ela,
eu é que sou responsável"
A cegueira: ... as filhas convivem bem com a minha
cegueira... percebem que para eu ver eu tinha que pegar... na mente delas eu conseguia ver tudo
com a mão... a mão na fotografia ... a tela da televisão... |
As estratégias adotadas pelos pais cegos para cuidarem dos seus filhos apoiam-se nos sentidos
remanescentes, o tato, o olfato e a audição. Usar redes de apoio é fundamental para o auxílio no cuidado
pela mãe cega que as associou com estratégias independentes de cuidar. Maria foi apoiada pela irmã
que a ensinou a alimentar, banhar. Contou com a solidariedade da vizinha que a socorria nas situações
de imprevisto, quando levava a criança à pediatra, recebia instruções como identificar febre e secreção
em ferimentos.
Para alimentar seu filho com colher, segura a cabeça da criança para ter noção da posição da
boca. As porções sólidas são oferecidas com a colher em pequena quantidade e as líquidas, em copo. A
palavra-chave usada foi o pegar, ou seja, tocar a criança, palpar o alimento, sentir a temperatura da
pele e da água. A organização dos objetos é fundamental para a execução de cuidado com os
filhos. A autonomia foi evidenciada, mesmo tendo sido enfatizada a procura de apoio de outras pessoas.
Ao administrar medicações em gotas, sentem
nos dedos as gotas caírem. Apesar de a legislação prever a identificação dos medicamentos em braille,
isso ainda não foi plenamente adotado. As receitas médicas transcritas para o braille também é direito
do cego(7). Os profissionais de saúde admitem não dominar habilidades para assistir essas pessoas,
relatam não saber se comunicar com pessoas cegas e surdas(8).
A ocorrência de acidentes domésticos mostra que o domicílio e as medidas preventivas não são
adequados(5). As atividades da vida diária a serem realizadas pelos cegos incluem cozinhar, lavar, passar,
limpar a casa e fazem parte da habilitação recebida em escolas especiais(9). Os cegos utilizam meios não
visuais para estabelecerem relações com as pessoas e com os objetos que os cercam. Jamais se deve
privá-los de uma experiência real, pois elas maximizam seu ajustamento social(10). O depoimento
de José é um exemplo de ajustamento, seguro de si
e com boa autoestima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pôde-se constatar a complexidade de situações vivenciadas pelos pais cegos quando
amamentam, alimentam, banham e administram medicamentos. O pai cego destaca o relacionamento social, a mãe cega enfatiza o cuidado biológico.
Desenvolvem estratégias criativas no cuidado com
os filhos com o uso do olfato e do tato, o apoio de familiares e vizinhos. Os profissionais de saúde,
especialmente os enfermeiros, devem estar mais próximos a essas pessoas e produzir conhecimento
para esse grupo tão pouco contemplado em nossa sociedade.
REFERÊNCIAS
-
1. Grossmann K, Grossmann EK. Maternal sensitivy. In:
Crittenden PME, Claussen AH, editors. The organization of
attachment relationship: maturation, culture and context. New
York: Cambridge University; 2003. p. 13-37.
-
2. Behl DD, Akers JF, Boyce MJ, Taylor MJ. Do mothers interact
differently with children who are visually impaired? J Visual
Blindness 1996; (90):501-11.
-
3. Swanson V, Power KG. Initiation and continuation of
breastfeeding: theory of planned behaviour. J Adv Nurs 2005
May; 50(3):272-82.
-
4. Handa S, Takahasi C, Morimoto M. The management of
puerpera by visiting midwives one month after delivery. Stud
Health Technol Inform 2006; 122:940.
-
5. Pagliuca LMF, Costa NM. Deficiente visual: avaliação de
risco para acidente doméstico. Esc Anna Nery Rev Enferm
1999; 3(2):97-106.
-
6. Pagliuca LMF, Costa EM, Costa NM, Souza KM. Desenvolvendo
tecnologia para prevenção e tratamento de emergências
domésticas para cegos. Rev Bras Enferm 1996; 48(1):83-4.
-
7. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta
as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá
prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e
10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas
gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade
das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade
reduzida, e dá outras providências [on line] [ Acesso 2007
fev 13]. Disponível em:
-
8. Macedo KNF, Pagliuca LMF. Características da
comunicação interpessoal entre profissionais de saúde e
deficientes visuais. Rev Paul Enferm 2005; 23(3/4):221-6
-
9. Pagliuca LMF. A arte da comunicação na ponta dos dedos
- a pessoa cega. Rev Latino-am Enfermagem 1996 abril; 4
(n. especial):127-37.
-
10. Fonseca V. Educação especial. Porto Alegre: Artes
Médicas; 1995.
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Pais cegos: experiências sobre o cuidado dos seus filhos
Autoras:
Lorita Marlena Freitag Pagliuca [Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora Titular]
Renata Sarmento Uchoa [Enfermeira]
Márcia Maria Tavares Machado [Enfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora Adjunta]
Pesquisa: Projecto Saúde Ocular - Universidade Federal do Ceará, Brasil
Publicação: Revista Latino-Americana de Enfermagem 2009 Março-Abril; 17(2)
Δ
3.Março.2011
publicado
por
MJA
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