Clara Gonçalves

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- > Reflexões sobre as dificuldades específicas da disciplina
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- > Dificuldades em aspectos específicos do programa
e na prática laboratorial.
Os dois aspectos estão interligados, dado o carácter experimental que reveste o
ensino destas disciplinas e as dificuldades encontradas prendem-se com questões e
dúvidas, tais como:
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Poderá um aluno com handicap visual ser capaz de descobrir e compreender
princípios científicos como resultado de um trabalho experimental?
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Como poderão ver as mudanças de cor ocorridas nas reacções?
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Poderão os alunos cegos fazer, com segurança, uso de aparelhos e técnicas
potencialmente perigosos nos trabalhos experimentais?
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Haverá necessidade de adquirir aparelhos especiais para os alunos participarem
activamente nas experiências?
O ensino da Física e da Química, bem como o de qualquer ciência, a um aluno cego
integrado no ensino regular é um desafio que tem de ser encarado com optimismo e com a
convicção de que não se sairá derrotado.
A Física e a Química ajudam a compreender o mundo que nos rodeia, permitindo tomar
consciência do que não pode ser facilmente representado. Assim, a aquisição e
compreensão dos conhecimentos básicos inerentes a estas disciplinas é de grande
importância e a sua omissão traduz uma lacuna na informação e formação do aluno
deficiente visual. O seu ensino não terá como objectivo transformar os alunos em
cientistas, mas fazer com que compreendam alguns factos da vida diária.
Actualmente, em vários países, os cegos estudam programação ou fisioterapia,
desempenhando, posteriormente, as suas funções sem problemas. O estudo da Física e da
Química e outras ciências abre-lhes perspectivas no campo da escolha de profissões.
Não há razão para que um cego não seja capaz de trabalhar num laboratório químico
tão eficientemente como um fisioterapeuta num hospital.
Para tal, deve dominar as bases do conhecimento e método científico e há necessidade
de equipamento especial, mínimo, bom espaço de laboratório, paciência e
autoconfiança. Na realidade da escola em que se trabalha não existirão as condições
ideais no laboratório, mas as dificuldades poderão ser diluídas se todos estiverem
empenhados.
As condições particulares do aluno devem ser tomadas em consideração e o professor
deve saber que vai encontrar:
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experiências e conhecimentos antecipados incompletos (medo de trabalhar com líquidos,
fogo, gás, vidro, máquinas, etc.);
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possibilidades de observação diferentes:
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menos motivação das observações e desenvolvimento das técnicas;
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dificuldades na apreciação da quantidade e qualidade dos produtos.
Por outro lado, o professor deve considerar outras possibilidades reveladas pelos
alunos: aptidões para reconhecer situações físicas e químicas e compreender factos
naturais; conhecimento das substâncias e suas propriedades, graças a um manuseamento
frequente; possibilidade de utilizar correctamente os aparelhos e utensílios; aptidão
para substituir ou compensar a falta de visão, fazendo intervir os outros sentidos, com
possibilidade de interpretação; estar preparado para tomar atenção e seguir as regras
de segurança.
Portanto, incutir confiança ao aluno cego é importante, como também é importante
transmitir-lhe a noção de que para o êxito de um trabalho experimental há regras de
segurança a respeitar e há potenciais situações de perigo a evitar. De resto, numa boa
prática laboratorial é uma necessidade fundamental trabalhar com confiança com todos os
alunos.
Precauções adicionais podem reduzir o risco da casualidade:
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armários e gavetas ou áreas de armazenamento podem ser assinaladas com etiquetas em
Braille;
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todos os aparelhos devem estar no mesmo local, para deste modo os alunos saberem onde os
encontrar e desenvolverem o hábito de os arrumar, depois do seu uso;
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deve assegurar-se um espaço de trabalho suficiente, para nele se poderem mover
facilmente, para poderem ter a percepção de ruídos que uma experiência pode ter
associada;
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se houver necessidade de acesso a algum aparelho e que este exija um percurso maior, é
preferível recorrer a um colega que se encarregue desta tarefa: reduz os riscos e dá
confiança ao aluno cego.
Deve haver uma atmosfera confiante e sossegada no laboratório, para que as perguntas
possam ser respondidas e instruções ou avisos possam ser claramente ouvidos. Para tal,
há que envolver toda a turma na obtenção de tais pré-requisitos.
A aproximação entre o professor e os seus alunos, em especial o aluno cego, é
essencial e muitas vezes o grau de progresso desse aluno depende da personalidade do
professor.
Os alunos devem ser encorajados a usar as informações que recebem através dos outros
sentidos, para compensar a falta de visão.
O olfacto pode distinguir diferentes substâncias; o material de laboratório pode ser
mostrado através do tacto; a audição permite obter informações várias, como a
libertação de um gás.
Os outros sentidos, estando bastante mais treinados, permitem realizar um número
enorme de investigações.
Adaptação de material
Existem muitos trabalhos práticos que podem ser realizados por alunos cegos; outros
há que é completamente impossível. Não é, contudo, boa estratégia começar por
aquilo que é impossível fazer, mas sim com o que é possível! Também, uma experiência
que falha é tão importante como aquela que resulta, porque só assim se consegue mostrar
ao aluno os pontos em que poderá ter errado.
A maioria dos problemas criados, na tentativa de fazer trabalhos práticos e
demonstração de experiências a alunos cegos é óbvia. Regra geral, não há ajuda
especial, nem aparelhos especiais construídos. Em alternativa, podem fazer-se algumas
modificações simples, nos aparelhos normais de laboratório nalguns aspectos básicos.
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Para obter medidas de comprimento, podem utilizar-se réguas em plástico, assinalando
os 1/2 cm em Braille. As pessoas cegas não conseguem distinguir os mm, regra geral.
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Métodos semelhantes de marcação são utilizados para fazer graduações de volumes
compreensíveis a cegos.
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Nas balanças, podem ser adaptadas fitas com escalas em Braille; a posição do ponteiro
será determinada pelo tacto. Para balanças de precisão, tal já não é possível, na
prática, pois iria causar erros de leitura.
Uma grande parte das experiências pode ser feita com o mínimo de modificações ou
até sem nenhuma. Quando houver necessidade de algum equipamento adaptado para o uso do
aluno cego, deverá ser analisado com ele o tipo de adaptação, a eficácia da mesma, bem
como com o resto da turma, para que todos se sintam empenhados no bom funcionamento da
aula.
Equipamentos específicos
Há pequenos equipamentos específicos que facilitam o trabalho do aluno, no
laboratório, como por exemplo:
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Balança com escala graduada, em relevo.
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Indicador de nível de líquidos. É composto por uma célula fotoeléctrica que
permite, mediante som, detectar o nível que se pretende que alcance um líquido vertido
num recipiente.
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Termómetro de ambiente: termómetro adaptado, que emite sons audíveis ou vibrações
tácteis. Um conjunto de sensores permite medir a temperatura ambiente e de líquidos.
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Avisador de luz: instrumento cilíndrico e ponta cónica, provido de uma célula
fotoeléctrica para captar a luz num espaço fechado, emitindo um som, cuja intensidade
varia em função da luminosidade.
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Detector de contrastes com gravador: indica o lugar onde se encontra a fonte de luz,
assim como a origem da mesma. Distingue objectos com diferente contraste, tanto de dia
como de noite.
Trabalho de grupo
Pequenos grupos de trabalho podem, contudo, ser de grande utilidade para situações
difíceis ou impossíveis de "visualizar" a alunos cegos.
Normalmente, o trabalho experimental aos pares ou em grupos pequenos é vantajoso
quando as dificuldades dos diferentes participantes são clarificadas desde o início e a
tentativa de resolução exige colaboração mútua, partilhando ideias e ajudas.
Trabalhando com um colega, o aluno cego pode recordar e confrontar dados, fazer
cálculos, tomar notas, enquanto o seu colega se encarrega de tarefes onde ele não pode
colaborar.
É importante que, tal como os outros alunos, o aluno cego tenha, no início da aula, a
informação escrita dos objectivos do trabalho experimental, do material e substâncias a
utilizar, bem como a integração dos conhecimentos teóricos no aspecto prático.
Instruções claras, em Braille ou em cassetes, devem estar preparadas para o aluno saber
como proceder. As dificuldades, por ele encontradas na prática devem ser detectadas e
resolvidas.
Em resumo:
Muitas experiências podem ser feitas por um aluno cego; outras não! Experiências
há, em Química, tão perigosas para os cegos como para os normovisuais. Regra geral,
poder-se-á reter:
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Os aparelhos poderão ser modificados e/ou adaptados quando necessário e as
modificações serão tão simples quanto possível.
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As modificações devem ser igualmente aceitáveis para o uso de toda a turma.
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Equipamentos especiais devem utilizar-se, no mínimo.
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Os professores devem pensar e imaginar bases práticas para os alunos perceberem por
eles próprios o trabalho experimental.
Aspectos específicos do programa
A teoria não é mais difícil para um estudante cego do que para aquele que vê. É
baseada na estrutura electrónica da matéria e um átomo descrito verbalmente ou
representado por esferas não é tirado da realidade visível.
Uma equação química em Braille não será tão explícita como em negro, mas a
inteligibilidade é a mesma.
As maiores dificuldades no ensino da Física e Química, para além das já mencionadas
na parte laboratorial, residem nos seguintes factores:
Encontrar maneiras e meios de criar e estimular interesse na disciplina.
Conseguir eficiente comunicação de informação de outra forma, sem ser através da
comunicação visual.
Os livros de texto são a solução parcial mais comum. Contudo, nem todos os livros
editados se encontram feitos em Braille.
Os livros, próprios para estes alunos, parecem ser menos atractivos que os outros que
têm fotografias estimulantes, cores, diagramas e, para além disso, um livro para um
estudante normovisual pode corresponder a vários volumes de Braille para um estudante
cego.
Contudo, o uso de livros de texto, para referência ocasional e tempo individual de
leitura bem como guia de revisão, é vantajoso.
Como alternativa, muitas vezes, há que usar notas ditadas, mais do que o desejado.
Cada aluno guardará as suas notas, como livro de texto auxiliar.
Diagramas
Os diagramas são uma ajuda inestimável para a compreensão da literatura científica.
Estes são cada vez mais usados em Braille e, com materiais acessíveis, podemos obter e
utilizar com o aluno cego representações que permitam a compreensão de determinados
conceitos. font-family:Arial">Isto é um grande auxílio e muitas vezes compensa a
impossibilidade de usar o quadro, como ajuda comum visual. Há que ter a certeza de que os
diagramas estão bem representados, sem grandes quantidades de informação.
Os alunos têm de ser cuidadosamente introduzidos na técnica de ler diagramas e às
vezes alguma ajuda na interpretação dos mesmos é necessária com cada diagrama novo.
Mesmo circuitos eléctricos mais complexos, com símbolos usuais, podem ser lidos através
da sua representação. Na maioria dos casos, as dificuldades sentidas pelos alunos cegos
desaparecem desde que tenham todo o material necessário em devido tempo, tenham adquirido
e consolidado conhecimentos na grafia Braille e dela tenham o treino suficiente.
Modelos em Relevo
Para tentar explicar alguns conceitos e estruturas químicas, os modelos em relevo são
úteis, mas isso traria algumas desvantagens:
- Os modelos vão sendo úteis até determinado momento, mas, a partir de determinado
nível de conhecimento, há que ultrapassar essa ajuda e passar a uma representação e
escrita simbólica, própria da disciplina.
- Os conhecimentos adquiridos pelos alunos cegos não poderão ser diferentes: deverão
ser idênticos e com o mesmo grau de exigência dos alunos normovisuais.
O ensino da Química exige uma simbologia Braille própria. Com as várias
soluções gráficas que apresenta, permite que os alunos possam escrever e reproduzir
todos os modelos que os outros alunos escrevem a negro.
Poderá parecer às pessoas com visão que um esquema em relevo das fórmulas químicas
seria compreensível para o cego. Mas, enquanto a visão é um sentido sintético, em que
a forma é apreendida na sua globalidade antes de ser analisada em pormenor, o tacto é um
sentido analítico que exige sempre um grande esforço de abstracção e síntese; logo,
não permite "ver" em perspectiva.
Para alunos com conhecimentos mais avançados e já depois de ter uma experiência
vasta na exploração de modelos que interpretam a posição dos átomos nas moléculas,
uma representação em relevo feita no plano pode ser explícita. No entanto, antes deve
ser ensinado a fazer a transposição da representação a 3 dimensões para a
representação a 2 dimensões, por abstracções sucessivas.
Tudo se passa de modo idêntico aos restantes alunos, que têm que aprender a
interpretar a representação de moléculas mais ou menos complexas, feitas no plano.
Dado que átomos e moléculas são de reduzidas dimensões e as partículas
constituintes, como os electrões, núcleos atómicos, são ainda de dimensões inferiores
às dos átomos, estando em constante movimento, a possibilidade que existe é a de
definir estatisticamente zonas onde é mais provável encontrar os electrões e as
posições de equilíbrio dos núcleos atómicos. Assim, todas as fórmulas químicas
existentes não sugerem a realidade e limitam-se a ser imagens de realização material
possível, adoptadas e concebidas pelo Homem.
Do mesmo modo, também a representação química em Braille é a tradução
esquemática dessas imagens, num código diferente do visual - código adaptado ao tacto.
A grafia química braille
A grafia química Braille permite, igualmente, a escrita da representação de:
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átomos ou grupos de átomos que constituem as moléculas;
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indicação do tipo de ligação entre átomos ou grupos de átomos;
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a escrita de equações químicas que representam reacções químicas;
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a explicação da estrutura dos grupos funcionais.
Enfim, um bom conhecimento da grafia Braille, permite a qualquer aluno cego adquirir
todos os conhecimentos que qualquer outro aluno normovisual obtém.
O ensino das disciplinas de Física e Química é difícil, dado a sua especificidade e
as limitações dos alunos inerentes à sua deficiência, mas não impossível.
Com as sugestões apresentadas a nível de adaptação de materiais, de planificação
e preparação de material prévias para as aulas, duma boa preparação e domínio da
grafia Braille, poderá ser gratificante o ensino e a aprendizagem destas disciplinas.
Ξ
"Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns."
"Impressão Digital" - in Poesias Completas, António
Gedeão
ϟ
Clara Gonçalves
Agosto1995
Δ
publicado
por
MJA
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