Quando os olhos não vêem…
Qualidade de vida familiar, satisfação com a vida e apoio social
percebido na deficiência visual
excerto
A Terra dos Cegos - H. G.
Wells (xilogravura de Clifford Webb, 1939)
-
Desde o século XX que é possível verificar um aumento do
diagnóstico de doenças crónicas, passando estas a ocupar um lugar de
destaque na investigação ligada às áreas da saúde, pelo seu caráter duradouro
e persistente, comum a qualquer faixa etária (Chiquelho, Eusébio, & Sousa,
2007; Fagulha, Duarte, & Miranda, 2000; Sousa, Mendes, & Relvas, 2007).
Associadas a estas doenças poderão estar limitações físicas e psicológicas
que marcam não apenas o indivíduo doente, como também, não raras vezes,
os restantes elementos da família e da rede de suporte que assistem às
restrições próprias do desenvolvimento da doença, atormentados pela
incapacidade de proporcionarem um futuro mais saudável ao seu doente
(Falvo, 2005; Sousa et al., 2007).
No que concerne à deficiência visual, Silveira e Sequeira (2002)
evidenciam os benefícios de uma maior investigação científica junto desta
população. De acordo com estes autores, o alcance de um melhor
entendimento sobre as potencialidades e as incapacidades inerentes às
pessoas portadoras de deficiência visual permitirá uma intervenção mais
eficaz e inclusiva ao nível da saúde mental. É, portanto, necessário ter
presente a noção do impacto que a deficiência visual tem, atendendo ao seu
caráter crónico, com implicações não apenas a nível individual, como
também familiar, comunitário e no próprio sistema de saúde (Sousa et al.,
2007). Neste sentido, Fagulha e colaboradores (2000) enfatizam a
importância de estudar a qualidade de vida em diferentes populações
atendendo a dimensões como a satisfação com a vida e o apoio social,
alcançando, deste modo, uma avaliação que engloba fatores cognitivos,
afetivos e sociais.
Torna-se, assim, importante averiguar a existência de semelhanças ou
diferenças na qualidade de vida familiar, satisfação com a vida e apoio social
percebido entre pessoas portadoras de deficiência visual, pessoas
normovisuais da população em geral, e familiares normovisuais de adultos
com deficiência visual. É no seguimento desta perspetiva que o presente
estudo pretende dar uma nova leitura sobre a deficiência visual enquanto
doença crónica – termo complexo, que entrou na vida destas famílias para
ficar.
A doença crónica, por oposição à doença aguda, tende a acompanhar o
tempo de vida do doente, uma vez que o avanço da medicina ainda só
consegue assegurar, nos dias de hoje, uma intervenção médica de
manutenção e controlo da sintomatologia, em vez da sua cura (Sousa et al.,
2007). Alguns doentes crónicos, tal como acontece com a deficiência visual,
mostram dificuldade em ajustar as suas próprias expectativas às limitações
impostas pelo seu estado de saúde, construindo uma narrativa negativa sobre
si próprio, mas em concordância com o estigma alimentado pela sociedade
sobre ser “cego” (Cimarolli & Boerner, 2005; Falvo, 2005; Silveira &
Sequeira, 2002). Nem sempre são bem-sucedidas as tentativas de “colocar a
doença no seu lugar”, o que faz com que as próprias pessoas se coloquem à
margem da comunidade, na sombra de um estigma associado a um
diagnóstico que não escolheram (Silveira & Sequeira, 2002; Sousa et al.,
2007). Sobre este aspeto, mostra-se útil e fundamental abordar, ainda que
sem entrar no ramo da fisiologia e da medicina, o conceito de deficiência
visual e as suas principais características.
Qualquer desvio da visão normal é considerado deficiência visual
(Falvo, 2005). A Organização Mundial de Saúde (OMS) (WHO, 2012b)
descreve a deficiência visual como causadora de limitações na capacidade de
as pessoas executarem as tarefas do quotidiano, com consequências
negativas para a qualidade de vida. De acordo com a Classificação
Estatística Internacional das Doenças e Problemas Relacionados com a
Saúde – Décima Revisão (CID-10, 2006, citado por WHO, 2012a), existem
três níveis de função visual, sendo eles a visão normal, a baixa visão
(deficiência visual moderada e grave) e a cegueira (cf. Anexo A). De um
modo geral, a baixa visão caracteriza-se pela incapacidade visual que
permite ainda realizar algumas tarefas para as quais a visão é fundamental,
não ficando funcional após intervenção médica especializada, enquanto a
cegueira é a incapacidade de ver (WHO, 2013).
A OMS (WHO, 2013) refere alguns aspetos relativamente ao impacto
socioeconómico da deficiência visual, entre os quais se destacam três. Em
primeiro lugar, deparamo-nos com o facto de 90% dos casos de deficiência
visual estarem localizados em países de médio e baixo desenvolvimento
económico, o que inviabiliza o acesso a tratamentos médicos especializados
a grande parte da população afetada e, por conseguinte, reduz a possibilidade
de uma vivência com condições condignas de qualidade de vida (WHO,
2013). Em segundo lugar, encontramos os desafios sociais por que passam
pessoas com deficiência visual e respetivas famílias, uma vez que esta
incapacidade interfere de forma nem sempre evidente com atividades
rotineiras, reduzindo a sua participação social, e diminuindo as
possibilidades de inserção dos adultos com deficiência visual no mercado de
trabalho (WHO, 2013). Neste sentido, o estudo realizado por Cavenaugh e
Giesen (2012) corrobora este facto, evidenciando que jovens portadores de
deficiência visual encontram mais obstáculos na transição do ensino para o
mercado de trabalho, tal como aponta a revisão da literatura realizada por
Goertz, van Lierop, Houkes e Nijhuis (2010) sobre a empregabilidade de
adultos com deficiência visual. Todavia, ambos os estudos referem a
existência de programas para potenciar capacidades desejáveis pelos
empregadores, ainda que nenhum tenha resultado efetivamente em postos de
trabalho (Cavenaugh, & Giesen, 2012; Goertz, et al., 2010). Em terceiro
lugar, colocam-se os custos relacionados com a perda de autoestima e de
estatuto social associados a limitações físicas e psicossociais da deficiência
visual, que afetam a qualidade de vida tanto de pessoas portadoras de
deficiência visual como dos seus familiares (WHO, 2013). Assim, o estudo
realizado por Silveira e Sequeira (2002) acerca da saúde mental de pessoas
cegas que procuram reinserirem-se socialmente, mostra que aspetos mais
relacionados com a perda de controlo sobre o meio físico, social e
económico poderão condicionar negativamente a saúde mental dos
indivíduos, mais do que propriamente a privação do sentido da visão.
Procurando encontrar um novo entendimento sobre o impacto e os
desafios trazidos pela doença crónica à vida do indivíduo e da família,
Rolland (1987a, 1987b, 1994, 1995) desenvolveu o paradigma sistémico da
doença crónica, abrindo o leque de visões do modelo biomédico, para uma
componente psicológica e social. À luz deste paradigma passou a ser
possível descrever a cegueira aguda, de acordo com a classificação de
doenças crónicas da tipologia psicossocial (Rolland, 1987a, 1994), como
uma doença: a) com começo agudo, uma vez que as mudanças afetivas e
instrumentais por que passam as famílias com uma pessoa cega ocorrem
dentro de um curto período de tempo; b) de curso constante, dando lugar a
uma estabilização da evolução biológica da doença após o momento inicial
em que esta ocorre, adquirindo uma limitação funcional mais ou menos
acentuada; c) de resultado não fatal; e d) incapacitante ao nível sensorial
com a consequência mais óbvia da perda de visão total ou parcial nos seus
diferentes graus, podendo estar inerente uma grande ativação emocional.
É dentro destes indicadores que se torna pertinente atualizar o
entendimento sobre a deficiência visual – ou seja, baixa visão e cegueira –
integrando-a na classificação de tipologia psicossocial de doenças crónicas.
Quer a baixa visão, quer a cegueira trazem limitações ao nível
socioeconómico, educativo e profissional que merecem a atenção dos
investigadores e profissionais das ciências sociais, humanas e da saúde, para
que no futuro possam ser construídos programas de apoio e inclusão desta
população e dos seus familiares. No fundo, pode dizer-se que “ter uma
doença crónica quer dizer que a pessoa tem que continuar a viver com a sua
doença no mundo da saúde” (Sousa et al., 2007, p. 12).
A deficiência visual e a qualidade de vida familiar
No final da década de 60, em contexto de pós-guerra, começaram a
surgir as primeiras investigações sobre a temática da qualidade de vida,
sendo este conceito mais utilizado a partir da década de 80 para designar o
bem-estar das pessoas em termos de interesse político e socioeconómico
(Ribeiro, 1994). No entanto, este construto nem sempre foi avaliado da
mesma forma, ora focando mais o caráter material, ora mais o espiritual,
mais individualizado ou mais objetivo (Ribeiro, 1994).
Destaca-se a importância do estudo da qualidade de vida no extenso
leque de doenças crónicas existentes, uma vez que os sintomas e as
limitações que lhes são inerentes estendem-se pelo tempo de vida do
indivíduo (Fagulha, et al., 2000; Ribeiro, 1994), com implicações na vida
familiar (Hu, Summers, Turnbull, & Zuna, 2011). Todavia, parece existir alguma
dificuldade em estabelecer-se uma definição de qualidade de vida
abrangente e esclarecedora, pois várias vezes este conceito mistura-se ou
confunde-se com o de saúde (Ribeiro, 1994). Assim, numa tentativa
explicativa do significado de qualidade de vida, Ribeiro (1994) descreve-a
como parte de um paradigma integrando quatro aspetos caracterizadores: “é
multifactorial, é uma medida de percepção pessoal, varia com o tempo e é
subjectiva” (p. 185).
Mais especificamente, a qualidade de vida familiar permite avaliar a
perceção e a interação da família como um todo (Hu et al., 2011) através de
componentes emocionais, cognitivas e sociais que permitem a construção e
manutenção de redes de apoio social, contribuindo para uma melhor inclusão
da família e seus elementos na realidade comunitária (Olson et al., 1982). A
possibilidade de avaliar a qualidade de vida familiar pode tornar-se, assim,
uma ajuda valiosa na construção de políticas públicas de saúde que
providenciem serviços adequados de apoio e informação aos familiares (Hu
et al., 2011), podendo ainda estar positivamente correlacionada com o
sucesso do processo de reabilitação de pessoas com deficiência visual
(Stelmack, 2001).
Com efeito, o estudo realizado por Bittencourt e Hoehne (2006)
procurou averiguar a qualidade de vida numa amostra de 16 adultos com
deficiência visual que frequentavam um programa de reabilitação de um
serviço de uma Universidade no Brasil. A amostra era composta por 10
sujeitos com baixa-visão e seis cegos, sendo oito sujeitos do sexo feminino.
Os resultados apontaram para uma boa ou muito boa perceção da qualidade
de vida por parte de 68% dos sujeitos, principalmente ao nível do bem-estar
psicológico e do bem-estar físico. Não foram encontradas diferenças
estatisticamente significativas entre cegos e pessoas com baixa-visão, nem
ao nível da variável sexo (Bittencourt & Hoehne, 2006).
Por outro lado, no estudo de Langelaan, De Boer, Van Nispen,
Wouters, Moll e Rens (2007) procurou proceder-se a uma descrição genérica
da qualidade de vida relacionada com a saúde e o nível de saúde de pessoas
com deficiência visual, bem como comparar a qualidade de vida relacionada
com a saúde com os resultados normativos da população geral da Holanda e
com doentes com outras condições crónicas. Foi utilizada uma amostra de
128 sujeitos adultos com deficiência visual, sendo a maioria dos
participantes do sexo feminino. Dos resultados deste estudo, destaca-se um
impacto tendencialmente negativo da deficiência visual na qualidade de
vida. Quando comparada com outras doenças crónicas, os resultados obtidos
indicam que a deficiência visual proporciona um maior impacto negativo na
qualidade de vida do que a diabetes tipo II, a síndrome coronária e a
deficiência auditiva, e um menor impacto do que a esclerose múltipla, a
síndrome de fadiga crónica ou a perturbação depressiva major (Langelaan et
al., 2007).
Por sua vez, o estudo elaborado por Holbrook, Caputo, Perry, Fuller e
Morgan (2009) pretendeu determinar os níveis de atividade física, e
perceção da qualidade de vida numa amostra de 25 adultos portadores de
deficiência visual, maioritariamente do sexo masculino. Das análises realizadas
não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas
em relação à interação entre o grau de severidade da deficiência visual
(estabelecido através da CID-10) e a qualidade de vida percebida. Por outro
lado, os resultados indicaram uma tendência para os valores obtidos por
mulheres ao nível da qualidade de vida serem relativamente mais baixos do
que os homens (Holbrook et al., 2009).
Dada a inerente ligação teórica entre a perceção que o sujeito tem da
sua qualidade de vida e a dimensão da satisfação com a mesma (Fagulha et
al., 2000), revela-se pertinente a apresentação de uma breve contextualização
teórica acerca da investigação relacionada com a satisfação com a vida na
deficiência visual.
A deficiência visual e a satisfação com a vida
O conceito de satisfação com a vida surge na tentativa de encontrar
definições para outros conceitos como o de bem-estar subjetivo (Simões,
1992) ou de qualidade de vida (Fagulha et al., 2000). Esta é uma dimensão
que pretende avaliar o grau de satisfação com a própria vida de acordo com a
perceção pessoal de cada sujeito (Fagulha et al., 2000; Neto, 1999; Simões,
1992).
A satisfação com a vida representa, portanto, um fator cognitivo do
bem-estar subjetivo (Fagulha et al., 2000; Neto, 1999; Simões, 1992),
fundamental pela possibilidade de precaver eventuais distúrbios de caráter
físico ou psicológico que possam estar envolvidos com comportamentos de
risco para com a própria vida (Fagulha et al., 2000). A avaliação da
satisfação com a vida poderá ainda ser útil na construção de uma intervenção
psicoterapêutica, focalizada na promoção de uma ação funcional mais
adaptativa para o sujeito (Fagulha et al., 2000).
Deste modo, Boerner e Cimarolli (2005) realizaram um estudo com o
intuito de verificar a importância da existência de diferentes objetivos de
vida em sujeitos adultos com deficiência visual em idade ativa, e em que
medida é que a deficiência visual interfere com esses objetivos. Recorreram
a uma amostra de 83 sujeitos com deficiência visual, que maioritariamente
usufruiu de serviços de reabilitação. Os resultados desta investigação
indicaram que os sujeitos que relataram uma maior interferência da
deficiência visual nos seus objetivos de vida mostravam uma maior
tendência para obter valores mais elevados na avaliação dos sintomas
depressivos (Boerner & Cimarolli, 2005).
Paralelamente, outros autores como Cimarolli e Wang (2006)
conduziram estudos na área do bem-estar psicológico na população com
deficiência visual. Assim, pretenderam explorar a dimensão de bem-estar
psicológico (depressão, ansiedade e satisfação com a vida) em sujeitos
empregados e desempregados numa amostra composta por 97 adultos. Os
resultados permitiram verificar que os sujeitos empregados registavam um
nível mais baixo de sintomas de ansiedade, e níveis significativamente mais
elevados de satisfação com a vida do que os sujeitos desempregados, não tendo
sido registadas diferenças estatisticamente significativas ao nível dos
sintomas depressivos (Cimarolli & Wang, 2006).
Por sua vez, o estudo realizado por Good, LaGrow e Alpass (2008)
procurou analisar os níveis de atividade, independência e satisfação com a
vida de adultos com idade avançada (isto é, idade igual ou superior a 65
anos), com ou sem deficiência visual. Para averiguar a satisfação com a vida,
estes autores utilizaram a Satisfaction With Life Scale (SWLS). Good e
colaboradores (2008) verificaram que os adultos normovisuais com idades
entre os 65 e os 74 anos obtiveram pontuações mais elevadas na SWLS,
registando-se valores progressivamente mais baixos à medida que a idade
dos participantes aumentava. Pelo contrário, e apesar dos valores mais
baixos obtidos na SWLS pelos participantes adultos com deficiência visual
entre os 65 e os 74 anos, os resultados eram superiores na SWLS à medida
que a idade destes sujeitos aumentava, chegando mesmo a ultrapassar os
resultados dos participantes normovisuais entre os 85 e 100 anos. Obteve-se,
assim uma diferença estatisticamente significativa relativamente ao status
visual na satisfação com a vida (Good et al., 2008).
Pela importância de relacionar a perceção da satisfação com a vida do
sujeito com o suporte que este sente como oferecido, Cimarolli e Boerner
(2005), pretenderam analisar a perceção do apoio positivo e negativo
recebido, de modo a estabelecer uma relação entre os dois polos de apoio
recebido e o bem-estar psicológico numa amostra de 86 adultos com
deficiência visual. Nas análises foram constituídas quatro categorias para
combinar trocas positivas e negativas de apoio, avaliadas através de duas
questões de resposta aberta: “ausência de apoio”, “apenas apoio positivo”,
“apenas apoio negativo”, e “apoio positivo e negativo”. As médias dos
resultados obtidos na SWLS mostraram que o grupo “apenas apoio positivo”
obteve o nível mais elevado de satisfação com a vida, seguido do grupo
“apoio positivo e negativo”. O grupo “apenas apoio negativo” registou o
valor mais baixo ao nível da satisfação com a vida (Cimarolli & Boerner,
2005).
Recentemente, e na mesma linha de pensamento, Guerette e Smedema
(2011) procuraram averiguar a relação entre o apoio social percebido e os
múltiplos indicadores de bem-estar (e.g., satisfação com a vida). A amostra
consistia em 199 adultos portadores de deficiência visual, maioritariamente
do sexo feminino, solteiros e desempregados. Com base em análises de
regressão parcial verificaram que as variáveis idade, atividade laboral e
suporte social estão significativamente associadas de forma positiva à
satisfação com a vida. Por outras palavras, há medida que a idade
aumentava, os sujeitos em situação de empregabilidade obtinham resultados
mais elevados na sua perceção da satisfação com a vida (Guerette &
Smedema, 2011).
Evidenciada a relevância do estudo da qualidade de vida familiar e da
satisfação com a vida em pessoas portadoras de deficiência visual, importa
focar a nossa atenção na terceira dimensão avaliada neste estudo: o apoio
social percebido.
A deficiência visual e o apoio social percebido
De alguma forma, pode suceder que famílias com elementos doentes
crónicos se isolem socialmente, acabando por optar não ativar a sua rede de
suporte social ou institucional, pelo que Góngora (2002) alerta para três tipos
de suporte que uma família pode necessitar: o apoio emocional, a prestação
de informação sobre a doença crónica e as suas implicações, e a ajuda
instrumental.
Assim sendo, o apoio social abrange um conjunto de recursos
alcançados em contexto de relações sociais, a que os sujeitos podem aceder
em situações que provocam stress (Moreira & Canaipa, 2007). No caso
específico da deficiência visual, Bauman e Yoder (1970, citados por Silveira
& Sequeira, 2002) enfatizam a influência positiva do apoio psicológico e
social proveniente do grupo onde se insere o indivíduo com deficiência
visual, conotando este apoio como algo de uma importância semelhante ao
próprio surgimento da perda de visão.
Deste modo, o estudo levado a cabo por McIlvane e Reinhardt (2001)
pretendeu verificar a existência de uma relação entre o apoio prestado pela
família e o apoio prestado pelos amigos na adaptação de pessoas idosas com
deficiência visual crónica, numa amostra de 241 sujeitos, maioritariamente
do sexo feminino. As autoras utilizaram a Social Provisions Scale (SPS)
para avaliar a qualidade do apoio social percebido, tendo sido solicitado aos
participantes que respondessem tendo em conta a sua relação atual com os
seus familiares mais próximos e com amigos mais chegados, de forma
independente. Verificou-se a presença de diferenças estatisticamente
significativas entre a qualidade do apoio familiar e o bem-estar psicológico,
onde idosos com pontuações altas na qualidade de apoio familiar mostraram
uma tendência para pontuar alto na dimensão de bem-estar psicológico, não
tendo sido verificadas diferenças significativas em relação à qualidade do
apoio proveniente dos amigos mais próximos. Constataram, ainda, que os
participantes com um resultado mais elevado no apoio de amigos
apresentavam-se mais adaptados à perda de visão. Finalmente, os resultados
mostraram que os sujeitos com maior apoio de familiares e amigos
expressaram menos sintomas depressivos (McIlvane & Reinhardt, 2001).
Em jeito de conclusão, La Grow, Alpass, Stephens e Towers (2011),
conduziram um estudo com o objetivo de averiguar de que modo é que
alguns aspetos (e.g., provisões sociais, isolamento social, saúde física e
mental, ou satisfação com a vida) poderiam relacionar-se com a qualidade de
vida e consequente impacto na qualidade de vida percebida. A amostra de
2.482 idosos com deficiência visual, continha mais de metade dos
participantes de sexo feminino e casados. Os resultados apontam para uma
diferença estatisticamente significativa ao nível da satisfação com a vida,
isto é, sujeitos que obtêm resultados mais elevados na sua perceção sobre a
satisfação com a vida tendem a obter resultados superiores ao nível da
qualidade de vida percebida. No que respeita ao apoio social percebido não
foi encontrada qualquer relação (La Grow et al., 2011).
O diagnóstico de uma doença crónica envolve, não raras vezes, um
impacto imediato frequentemente stressante nos restantes membros da
família do doente, não sendo a deficiência visual um caso de exceção
(Bambara et al., 2009b). É, por isso, essencial olhar para a doença crónica, e
para a deficiência visual, como um quadro que engloba doente e família,
implicando alterações na auto-organização do sistema e na distribuição de
papéis e funções (Bambara et al., 2009b ; Couto, 2009; Falvo, 2005; Sousa
et al., 2007), já que as famílias, biológicas ou por afinidade, proporcionam,
entre outros, proteção, interação com o meio social e suporte instrumental e
emocional (Bambara et al., 2009b; Cimarolli & Boerner, 2005; Falvo, 2005).
No que diz respeito à deficiência visual, Bambara e colaboradores
(2009b) consideram que a família vai tendo tendência para se centrar na
realidade que a envolve, enfrentando os desafios e as mudanças inerentes à
deficiência visual, à medida que os diferentes membros se vão adaptando.
Podem, porém, ser comuns algumas dificuldades por que passam as famílias
de doentes crónicos com deficiência visual, criando constrangimentos, por
exemplo, ao nível da sua atividade profissional ou da sobrecarga do cuidador
informal (Bambara et al., 2009b; Falvo, 2005; Sousa et al., 2007).
McGoldrick (1995) defende que são maioritariamente as mulheres a
desempenhar e a assegurar as funções de cuidador informal, cuidando de
várias gerações de familiares, apesar de haver um cada vez maior
investimento e valorização da carreira profissional pelo sexo feminino.
O impacto da doença crónica no sujeito e nos elementos mais
próximos, como os familiares, relaciona-se com determinados aspetos, de
entre os quais a idade em que é diagnosticada a doença de caráter crónico
(Falvo, 2005) e a etapa do desenvolvimento individual e do ciclo vital da
família. Não obstante, a revisão da literatura apontou para a escassa
existência de estudos sobre o impacto da doença crónica no seio familiar
(Rolland, 1995), notando-se o mesmo no caso particular da deficiência
visual em adultos (Bambara et al., 2009a; Bambara et al., 2009b; Klerk &
Greeff, 2011; Moore, 1983), e em crianças (Day & Kleinschmidt, 2005;
Dote-Kwan, Chen, & Hughes, 2009; Leyser, Heinze, & Kapperman, 1996;
Ulster & Antle, 2005). Nenhum dos estudos encontrados na pesquisa
bibliográfica abordava o impacto da deficiência visual no seio familiar do
ponto de vista da qualidade de vida familiar, da satisfação com a vida e do
apoio social percebido.
De acordo com Rolland (1987a, 1995) o sistema familiar onde surge a
doença crónica tende a reagir face à mesma em concordância com os
padrões de resposta que apreenderam com as respetivas famílias de origem,
mesmo que esse modelo não venha a mostrar-se como o mais adequado. No
caso específico da deficiência visual, por vezes, os familiares podem assumir
sentimentos de culpa, tendendo a reagir ao diagnóstico de acordo com dois
polos: superproteção ou rejeição (Bauman & Yoder, 1970, citados por
Silveira & Sequeira, 2002; Cimarolli & Boerner, 2005; Cimarolli, Reinhardt,
& Horowitz, 2006). Torna-se, portanto, vantajoso que os profissionais (e.g.,
saúde, reabilitação) consigam fazer uma leitura do papel da família que vá
para além do seu papel enquanto fonte de suporte emocional e instrumental
(Bambara et al., 2009b; Chiquelho et al., 2007), prestando atenção ao stress
a que estão sujeitos e ao seu sofrimento (Sousa et al., 2007), já que, como
afirma Rolland (1994), as dificuldades sentidas pelos familiares do doente
crónico podem trazer implicações negativas para o seu próprio bem-estar.
FIM
-
Resumo
Nas últimas décadas, em Portugal, têm sido realizados estudos
para compreender o impacto da deficiência visual no indivíduo, ainda que
sejam insuficientes os estudos sobre o seu impacto na vida familiar. O
objetivo da presente investigação consistiu na análise da qualidade de vida
familiar, da satisfação com a vida e do apoio social percebido na deficiência
visual em dois estudos. O primeiro pretendeu comparar estes construtos
numa amostra de sujeitos adultos com deficiência visual (n = 52) e de
população normovisual (n = 52); no segundo procedeu-se à comparação dos
mesmos aspetos numa amostra de sujeitos portadores de deficiência visual (n
= 21) e de familiares (n = 21), recorrendo-se ao Qualidade de Vida (QOL;
Versão NUSIAF-SISTÉMICA; Adaptado, 2007; Validado, 2008), Escala de
Satisfação com a Vida (SWLS; Simões, 1992), e Escala de Provisões Sociais
(EPS; Moreira & Canaipa, 2007). Os resultados obtidos no primeiro bloco
de estudos indicam uma boa consistência interna dos itens do QOL, SWLS e
EPS na amostra de sujeitos com deficiência visual. Verificam-se diferenças
estatisticamente significativas nos fatores Tempo, Emprego (resultado
superior no grupo com deficiência visual), e Mass Media (resultado mais
elevado no grupo de comparação) do QOL. Não foram encontradas
diferenças estatisticamente significativas em relação à satisfação com a vida,
e a subescala Vinculação da EPS revelou resultados mais elevados no grupo
de comparação. Obteve-se uma correlação estatisticamente significativa
moderada positiva no grupo de sujeitos com deficiência visual entre a
qualidade de vida familiar e a satisfação com a vida (r = .53, p < .001), tal
como no grupo de comparação (r = .63, p < .001). Da análise do impacto de
variáveis sociodemográficas na qualidade de vida familiar, satisfação com a
vida e apoio social percebido resultaram diferenças estatisticamente
significativas para as variáveis sexo, idade, escolaridade e situação
profissional. Por sua vez, o segundo bloco de estudos apontou para
diferenças estatisticamente significativas entre o grupo de sujeitos com
deficiência visual e seus familiares no fator Mass Media do QOL (resultado
superior nos familiares) e na satisfação com a vida (resultado mais elevado
nos familiares na SWLS). Não foram encontradas diferenças
estatisticamente significativas em termos do apoio social percebido. Apesar
do contributo deste trabalho, são necessários mais estudos para clarificar o
impacto da deficiência visual na vida familiar e do próprio sujeito,
estimulando a discussão acerca de novas estratégias de reabilitação que
passem pelo envolvimento da rede de apoio destes sujeitos.
ϟ
excerto de:
«Quando os olhos não vêem… Qualidade de vida familiar, satisfação com a vida e apoio social percebido na
deficiência visual» Inês Marina
Simões Grilo Dissertação de Mestrado em Psicologia, na área de especialização em Psicologia
Clínica e da Saúde, subárea de especialização em Sistémica, Saúde e Família sob
a orientação da Doutora Sofia Major. Universidade de Coimbra Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
Δ
10.Dez.2016
publicado
por
MJA
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