
-excerto-

Na
tentativa de converter a sua família dissoluta, uma rapariga
cega lê a Bíblia com os dedos - George Smith, 1865
-
INTRODUÇÃO
PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO
CAPÍTULO I: CEGUEIRA
1. A CEGUEIRA AO LONGO DO TEMPO |
2. O CONCEITO NA ACTUALIDADE |
3. CLASSIFICAÇÕES DE CEGUEIRA |
4. CAUSAS
CAPÍTULO II: DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA VIDENTE E DA CRIANÇA CEGA CONGÉNITA
1. DESENVOLVIMENTO SENSORIAL |
2. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO |
3. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL |
4. DESENVOLVIMENTO MOTOR |
5. DESENVOLVIMENTO SOCIAL |
6. A VARIABILIDADE INDIVIDUAL |
7. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS
CAPÍTULO III: REPRESENTAÇÕES
MENTAIS
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO |
2. O CONCEITO NA ACTUALIDADE |
3. CARACTERÍSTICAS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS |
4. CASOS PARTICULARES: ALUCINAÇÕES, SONHOS E FALSAS MEMÓRIAS |
5. O ESTUDO DA ATIVIDADE CEREBRAL COMO CAMINHO PARA COMPREENSÃO DA CEGUEIRA E
DAS EPRESENTAÇÕES MENTAIS |
6. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM VIDENTES |
7. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM CEGOS CONGÉNITOS
|
8. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS DO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS (cap. VI)
1. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA
|
2. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR
|
3. RELAÇÕES ENTRE AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA E
AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR
CONCLUSÕES
(cap. VII)
Desde o início da década de noventa do século passado, assistimos a um interesse
crescente pela educação das crianças categorizadas como apresentando
Necessidades
Educativas Especiais (NEE) e suas modalidades, nomeadamente a inclusão (UNESCO,
1994) na escola regular. Efetivamente, podemos considerar este período como uma
referência no que a este tema diz respeito, nomeadamente com a realização pelas
Nações
Unidas da Conferência Mundial de Educação Especial, da qual resultou a célebre e
celebrada Declaração de Salamanca.
A atualidade não é, nem será nunca em matéria de Educação, o destino final. Terá
de assumir-se, certamente, como mais uma passagem, mas uma passagem de exigência
pedagógica, social e humana. A Sociedade e as suas instituições, nomeadamente a
Escola,
deverão proporcionar as condições essenciais à construção pessoal do bem-estar
físico,
emocional e social, de acordo com o conceito de saúde estabelecido pela
Organização
Mundial de Saúde (Andrade, 1995; Tones, 1987). De acordo com o pensamento de
Fernandes (2006), entendemos que a missão da Escola é contribuir para o
desenvolvimento
de todos os alunos (com e sem NEE), a nível cognitivo, emocional, físico e
social,
potenciando dessa forma um projeto de vida e uma vivência assente no bem-estar.
Nas
suas palavras: “com manutenção de um continuado estado de bem-estar em todas as
dimensões da sua individualidade, o que o fará funcionar de modo integrado e
orientado
para o desenvolvimento e concretização de suas potencialidades individuais”
(Fernandes,
2006, p. 20). Para ajudar a Escola a cumprir esta missão, é necessário
aprofundar o
conhecimento acerca dos alunos, mobilizando esse conhecimento para a preparação
adequada dos professores, assim como para o estabelecimento de pontes de
intercomunicação entre a escola e a família. Um Currículo historicamente
centralizado
como o nosso (Roldão, 1999), apesar das brechas que vai abrindo à flexibilização
e à
diferenciação, é pensado em função da norma, do aluno médio. Em consequência, os
professores conhecem melhor o aluno médio e, no essencial, foi para trabalhar
com ele que
foram formados. É nesta realidade que emergem (ou submergem) as crianças com
NEE: O
que sabemos acerca destas crianças?; O que importa investigar para aprofundar o
conhecimento acerca delas?; Como mobilizar este conhecimento para formar
adequadamente pais, professores, auxiliares de acão educativa e a própria
Sociedade?; Como educar as crianças com NEE?; De que forma, um currículo homogéneo, pensado
no
abstrato em função do aluno médio, pode valorizar e educar na diferença?
Neste contexto, o nosso trabalho de doutoramento pretende ser um contributo para
a clarificação deste tema, nomeadamente a Educação das crianças cegas
congénitas,
procurando responder ao seguinte problema de investigação:
Ao frequentarem o mesmo contexto de aprendizagem no Ensino Básico da
Escola Regular, a representação mental da realidade em crianças cegas
congénitas é semelhante à representação mental da realidade em crianças
videntes?
Neste problema emergem dois conceitos cujas relações procuramos estudar, o
conceito de condição visual dos sujeitos e o conceito de representação mental.
No que
respeita à condição visual constituímos dois grupos de sujeitos com condições
visuais
diferentes, um grupo de sujeitos cegos congénitos e um grupo de sujeitos
videntes, grupos
estes equivalentes em termos de idades, géneros, anos e ciclos de escolaridade,
inseridos
num mesmo contexto de aprendizagem, o EBER (Ensino Básico da Escola Regular). No
que respeita à representação mental da realidade, estudámos a representação
mental da
realidade física e a representação mental da realidade social em contexto
escolar. No nosso
trabalho, a construção teórica deste conceito assentou em dois modelos
explicativos: a
Teoria do Processamento Dual 1 proposta por Allan Paivio e o modelo de
Convergência–Divergência proposto por António Damásio. Uma vez que ambos os modelos preveem a
possibilidade das representações mentais serem traduzíveis em descrições
verbais, a nossa
recolha de dados incidiu essencialmente na aplicação de entrevistas, nas quais e
perante
condições pré-determinadas solicitámos aos sujeitos que nos relatassem oralmente
as suas
representações mentais. Para o estudo das representações mentais da realidade
física
apresentámos de forma aleatória e um de cada vez, vários estímulos com os quais
pretendíamos evocar essas mesmas representações. Estes estímulos podem
agrupar-se, de
acordo com a sua natureza, em (i) palavras abstratas, (ii) palavras concretas,
(iii) objetos
tridimensionais, (iv) figuras em relevo e (v) sons. Para o estudo das
representações mentais
da realidade social, recorremos ao questionário sociométrico junto dos sujeitos
cegos
congénitos e dos seus pares videntes da turma. Na realização da entrevista e
após recolhermos as representações mentais acerca da realidade física, colocámos
algumas
questões abertas acerca da integração social das crianças cegas congénitas, com
o intuito
de completar as informações acerca das representações da realidade social
escolar. Para a
análise dos dados recolhidos através da entrevista recorremos a uma análise de
conteúdo de
natureza quantitativa (análise lexical e sintática e análise temática
frequencial) e a uma
análise de conteúdo de natureza qualitativa (análise da enunciação). Os dados
recolhidos
através do questionário sociométrico foram analisados através do cálculo dos
índices
sociométricos recomendados e descritos na literatura.
As razões que sustentam o presente problema radicam na própria evolução dos
modelos explicativos da mente humana e do seu funcionamento. Com o advento das
teorias construtivistas da aprendizagem, da sua assimilação e implementação
graduais ao
nível das conceções e práticas dos professores, com particular ênfase a partir
dos anos 80
do século passado, rejeitam-se as ideias de matriz behaviorista, segundo as
quais a mente
das crianças é um balde vazio ou uma tábua rasa, que compete à escola encher ou
preencher, se depois de cheia continuarem a existir espaços vazios (Pereira e
Duarte,
1992). Assim, as teorias construtivistas, as quais adotamos, assumem que:
“… o sujeito não se limita a acumular passivamente as informações. Pelo
contrário, tem um papel ativo no processamento da experiência e da
informação, determinado pelo seu quadro referencial teórico preexistente. A
realidade é, deste modo, apercebida e construída de forma pessoal por cada
observador…” (Pereira e Duarte, 1992, p. 65).
Percebe-se, assim, a necessidade de investigar sobre a lógica e a origem das
representações mentais que crianças e jovens (antes, durante e após o ensino
formal)
constroem dos fenómenos e situações concretas dos seus quotidianos escolares e
não
escolares, de forma a conceber e implementar estratégias pedagógicas adequadas
(Cachapuz, 1997, Veiga et al., 2000). Desde os anos 80 do século passado que se
vem
construindo um corpo teórico vasto, assente nos resultados de numerosas
investigações
sobre as representações das crianças ditas normais, como demonstram as revisões
da
literatura efetuadas por Pereira e Duarte (1992) e por Santos (1991). No
entanto, o interesse
pelas representações mentais das crianças com NEE tem sido incipiente e de pouca
relevância, ou como afirmam Veiga et al. (2000), as investigações nesta área são
“praticamente inexistentes” (p. 35). Uma vez que o conceito de NEE representa
múltiplas
situações, resulta proporcionalmente uma escassez ainda mais notória, quando
pensamos
no caso concreto das crianças com cegueira congénita a frequentar o EBER.
Esperamos
ajudar a minorar esta carência, fazendo luz sobre algumas das representações
mentais das
crianças cegas congénitas, as quais poderão constituir uma ferramenta de
trabalho para os
profissionais da Educação, ajudando a conceber e implementar estratégias
pedagógicas
adequadas ao desenvolvimento destas crianças.
O próprio estudo das representações mentais das crianças ditas “normais” tem
assente, maioritariamente, numa conceção reducionista do conceito de
representação
mental. Essa conceção reducionista assenta, tradicionalmente, nas relações das
representações mentais com a memória e os processos mnemónicos (Almaraz, 1997;
Paivio, 1971). Tem assumido particular relevância a investigação acerca da
memorização
de listas de palavras (abstratas ou concretas), de objetos, imagens, sons, etc.
Os objetivos
visados com a maioria destas investigações visam, essencialmente, o sucesso ou
não na
retenção e evocação destes materiais, não incidindo nas representações enquanto
(re)construções mentais da realidade, de natureza complexa, dinâmica e
multimodal 2,
assim como nos significados que os sujeitos lhes atribuem. Se me é permitido,
passo a
relatar um episódio vivenciado por mim e que pode ilustrar essa natureza
complexa,
dinâmica e multimodal das representações mentais, muito além da memorização de
palavras, objetos ou símbolos. Hoje de manhã, enquanto me barbeava e sem que
nenhum
estímulo em particular me tivesse afetado, diria portanto quase sem
intencionalidade,
assomaram-me à mente memórias da minha infância. Conscientemente, a primeira
imagem
de que tive consciência foi de quando eu, o “tio” 3 Coelho e o seu filho levámos
a mula
deles a pastar, imagem visual entremeada com imagens tácteis do pêlo do animal.
Seguiuse,
quase de imediato e sem qualquer esforço intencional da minha parte, a imagem
visual
de uma arrecadação onde o “tio” Coelho guardava as batatas, entremeada com
imagens
olfativas características destes locais, imagens tácteis de quando ajudava a
retirar os
renovos 4 das batatas e imagens sentimentais de felicidade vivida naquele tempo.
Tal como
anteriormente, de forma quase imediata e sem qualquer esforço intencional da
minha parte,
surgiu-me a imagem visual imaginada de um acontecimento que, na época, foi
vivido pelo
meu avô materno junto dessa arrecadação e por ele me foi relatado verbalmente,
de quando
ele ali se deparou com uma cobra. Quase sem pensar surgiu-me uma representação
de
natureza simbólico-verbal, na qual e através da minha linguagem interior me
questionava
sobre a minha idade na época, colocando hipóteses e refletindo sobre as mesmas
(cinco,
seis anos?). São representações como estas que pretendemos estudar e com o
desenho de
investigação que nos propusemos seguir, procurámos ir de encontro às
representações
mentais evocadas nos sujeitos através dos vários estímulos evocadores, enquanto
(re)construções mentais desses estímulos plenas de significados pessoais. Um
outro lado
reducionista das investigações acerca das representações mentais está
relacionado com a
sua centração excessiva nas representações mentais de natureza visual. A par do
sentido da
visão (Ballesteros e Heller, 2006), também a investigação das representações
mentais tem
privilegiado a natureza visual das mesmas, em detrimento das representações
mentais de
natureza táctil, auditiva, olfativa, gustativa e propriocetiva. No nosso
trabalho, ao
recorrermos a estímulos de naturezas diferentes (tácteis, auditivos e verbais),
pensamos
estar a contribuir, modestamente, para a correção desta desfasagem.
A defesa social e política pela implementação da integração de crianças com NEE
na escola regular assenta, geralmente, na ideia de que resultam exclusivamente
ganhos para
estas crianças e de forma quase automática. Em consequência, não se questiona(m)
o(s)
modelo(s) utilizado(s) e não se ponderam os modelos alternativos, nomeadamente e
a título
de exemplo, o adotado no Centro Infantil Helen Keller e descrito em Dias (1995).
No
modelo comummente adotado, a criança com NEE é integrada num grupo de crianças
ditas
normais, na convicção de que esta vivência irá ajudá-la a desenvolver
competências
sociais, indispensáveis à vida em Sociedade. Ao pretendermos estudar as
representações da
realidade social, procuramos colocar à prova estas convicções, muitas vezes
assentes em
ideias do senso comum ou meramente economicistas. Por outras palavras,
procuramos
analisar a distância que separa o otimismo do currículo enunciado e a
articulação teórica e
de alguns documentos de política educativa, da inadequação, frequente, do
currículo
implementado, uma vez que, como afirma Doll (1986), é dentro da escola que o
currículo
acontece. Estamos convictos, que o nosso estudo irá contribuir para um melhor
conhecimento dos processos de aprendizagem e pensamento das crianças cegas
congénitas,
assim como da sua integração na escola regular. De acordo com Canário (1999):
«…Isto significa romper com a visão desvalorizada das comunidades e das
crianças, presente nas políticas oficiais, e pelo contrário privilegiar a
visibilidade dos pontos de vista dos aprendentes…» (p. 30).
Por outras palavras, a realidade experienciada pelas crianças e pelos jovens nos
contextos educacionais não poderá ser completamente compreendida através de
inferências
ou assumpções feitas pelos adultos, ou seja, os significados que as crianças e
os jovens
atribuem às suas experiências não estão necessariamente em sintonia com as dos
seus
professores e dos seus pais (Lloyd-Smith e Tarr, 2000).
Em consonância com as ideias anteriores, é nossa intenção tentar ver o mundo com
os olhos das crianças cegas que são, para além dos restantes sentidos, a mente.
Este
conhecimento poderá contribuir para uma cuidadosa identificação e avaliação das
necessidades e potencialidades da criança com NEE, a fim de potenciar a
organização de
um programa adequado, integrador e integrado no sistema educativo regular.
Assim, os
resultados deste estudo, contribuindo para a compreensão dos processos de
aprendizagem e
pensamento das crianças cegas congénitas, poderão constituir-se como uma
mais-valia para
a prática pedagógica dos professores regulares e de apoio, ajudando-os a adequar
ou
mesmo a conceber metodologias de trabalho mais adequadas a estas crianças. Por
outro
lado, ao estudar o processo de integração na perspetiva dos sujeitos cegos
congénitos e dos
seus pares videntes, ajudará a compreender as relações sociais que se
estabelecem entre
estes dois grupos, pelo que poderá contribuir para guiar a intervenção dos
professores, no
sentido de incrementarem e/ou melhorarem as relações sociais entre alunos cegos
e
videntes. A este propósito, Correia, Cabral e Martins (1999) afirmam que “os
alunos ditos
«normais» podem constituir um fator fundamental para o êxito da integração
através das
interações positivas que desenvolvem com os seus colegas, ajudando-os e
assumindo o
papel de tutores e amigos” (p. 167).
Ao estudarmos a integração das crianças categorizadas como possuindo NEE,
recolhendo e analisando as suas próprias perceções, poderemos também contribuir
para o
Desenvolvimento Curricular, com alguma clarificação e compreensão acrescidas
deste
processo, tantas vezes mal compreendido, alvo que é de fundamentalismos a seu
favor ou
contra si. Com a desmistificação destes fundamentalismos, poderemos compreender
melhor
o momento atual do processo de integração, em termos teóricos e práticos,
ajudando a
delinear os caminhos possíveis para o futuro. Os resultados deste trabalho, ao
contribuírem
para um melhor conhecimento das crianças cegas congénitas, nomeadamente das suas
necessidades e potencialidades, poderão constituir uma mais-valia no momento de
pensar,
desenhar e implementar uma matriz curricular adaptada a estas crianças. Como
afirma
Jiménez (1997), “as adaptações curriculares são a mais importante estratégia de
intervenção na resposta às necessidades educativas especiais” (p. 15). Também
para
Correia e Rodrigues (1999), não será possível atender à complexidade e
diversidade das
NEE, sem adaptar e diferenciar o Currículo Escolar a cada situação concreta.
Estes autores
acrescentam que o professor deverá “tomar em consideração, na elaboração de
adaptações
curriculares para alunos individualmente considerados, aqueles aspetos que a
investigação
e a prática têm posto em destaque relativamente às incidências específicas de
alguns
défices (sensoriais, motores, intelectuais, emocionais, de comportamento…) nas
aprendizagens escolares” (p. 109).
A prática, a investigação e a legislação, salientam a necessidade de encontrar
modelos de colaboração entre a Escola e a Família, particularmente no caso das
crianças
com NEE. Como afirmam Kirk e Gallagher (2002), “nas últimas décadas começamos a
entender mais a dor e o stress dos que têm uma criança deficiente e o grau de
coragem e
apoio externo necessários para que os pais mantenham o seu equilíbrio nestas
circunstâncias” (p. 11). Estes autores classificam como um passo importante a
mudança do
papel dos pais, que conduziu à sua participação significativa nos programas de
intervenção.
O Decreto-Lei nº3/2008 prevê e apela, a uma participação extensiva dos
Encarregados de
Educação nos processos de Educação Especial (EE) dos seus educandos com NEE.
Assim,
no ponto 1 do artigo 3º, refere-se que “os pais ou encarregados de educação têm
o direito e
o dever de participar activamente, exercendo o poder paternal nos termos da lei,
em tudo o
que se relacione com a educação especial a prestar ao seu filho, acedendo, para
tal, a toda a
informação constante do processo educativo” (ME, 2008, p. 155). No que diz
respeito ao
processo de avaliação, na alínea c do ponto 1 do artigo 6º afirma-se a
necessidade de
“assegurar a participação activa dos pais ou encarregados de educação, assim
como a sua
anuência” (p. 156). O artigo 30º prevê “o desenvolvimento de acções de apoio à
família”
(p. 163). Entendemos que o conhecimento mais aprofundado da criança cega
congénita por
parte dos seus pais e/ou Encarregados de Educação, poderá melhorar
substancialmente a
colaboração destes com a Escola. Os pais necessitam saber como o filho progride
na escola
e como ajudá-lo a reforçar os seus conhecimentos e capacidades (Horton, 2000).
Cremos
que este trabalho irá contribuir para aprofundar esta colaboração. Ao mesmo
tempo, poderá
ajudar a construir um ambiente familiar estimulante e construtivo, conferindo
alguma
orientação na relação da família com a criança cega congénita, nos estímulos que
lhe são
proporcionados e na Educação formal considerada mais adequada.
Numa perspetiva mais abrangente, contribuindo para conhecer melhor o mundo das
crianças portadoras de cegueira congénita, pensamos estar a contribuir, ainda
que
humildemente, para a formação de uma Sociedade com mais igualdade de
oportunidades
para estas crianças enquanto crianças que são e, futuramente, enquanto adultos e
cidadãos
de pleno direito. Para tal, é fundamental reestruturar falsas conceções que
ainda hoje
perpassam em pais, educadores e na Sociedade em geral, aprofundando e divulgando
os
vários fatores com elas relacionados (Nielsen, 1999).
No que respeita às opções teóricas e metodológicas deste trabalho, Paivio (1990)
diz-nos que saber como representamos mentalmente a informação e a utilizamos
para
interagir com o mundo de forma adaptativa, constitui um problema
extraordinariamente
difícil, talvez o mais difícil de toda a Ciência. De acordo com ele, implica
questões
relacionadas com a natureza do conhecimento e do pensamento, com os
comportamentos
observáveis, com a atividade cerebral, com o desenvolvimento, etc. Sendo um
problema
tão complexo, o autor não encontra acordo definitivo acerca da(s) forma(s) de
abordar o
problema, quer teórica quer empiricamente, sendo certo que a controvérsia está
inerente ao
próprio trabalho científico. Escolhemos uma passagem de Gregory (1979) para
ilustrar
estas ideias: “frequentemente é muito difícil estabelecer se um efeito visual
deve ser
considerado pertencente à psicologia, fisiologia ou física. Todas essas áreas
ficam muito
misturadas”. Todos estes contributos conduzem-nos a uma outra consequência, a
injustiça
de não podermos dedicar a merecida atenção a todos os novos contributos que vão
emergindo em cada uma dessas áreas científicas. Sendo as representações mentais
um
fenómeno construído no cérebro, entendemos no seguimento de Damásio (2010) que
será,
talvez, um pouco desproporcionado falar de teoria ou teorias, pois “a menos que
se
trabalhe numa escala suficientemente grande, a maior parte das teorias não
passam de
hipóteses” (p. 36). Assim, preferimos e utilizamos a expressão enquadramento
teórico
como alternativa a fundamentação teórica. Atendendo á multiplicidade de áreas de
conhecimento que contribuem para o estudo das representações mentais e à
escassez de
consensos, mesmo no seio de uma mesma disciplina, temos como arriscado e difícil
tomar
a direção de uma única corrente teórica na qual fundamentar o nosso trabalho.
Assim,
optámos por uma abordagem mais abrangente, prospetando contribuições de
diferentes
quadrantes e construindo um enquadramento teórico, procurando interligações
entre
fenómenos anatómicos e fisiológicos, comportamentais, desenvolvimentais, mentais
e
cerebrais.
-
No presente trabalho, em termos organizacionais, seguem-se os capítulos I, II e
III,
no qual apresentamos o enquadramento teórico subjacente em três partes:
Capítulo
I –
Conceito de Cegueira, Capítulo II - Desenvolvimento da criança vidente e da
criança cega
congénita, Capítulo III - Conceito de representação mental.
-
No capítulo IV – Metodologia, apresentamos as questões de investigação, os
objetivos, as variáveis e as hipóteses, os participantes, os procedimentos
éticos, os
instrumentos e os procedimentos de análise de dados .
-
Os resultados são apresentados no capítulo V, de acordo com a seguinte
sequência:
índice de riqueza vocabular, representações mentais construídas pelas crianças
cegas
congénitas e seus pares videntes, segundo a natureza do estímulo, comparação das
representações mentais construídas pelas crianças cegas congénitas com as
representações
mentais construídas pelas crianças videntes, análise das representações mentais
dos sujeitos
cegos congénitos e dos seus pares videntes, integração social das crianças cegas
congénitas
no EBER e integração no EBER e suas relações com a riqueza, a complexidade e o
total
das representações mentais.
-
No capítulo VI apresentaremos a discussão dos resultados, para de seguida nos
determos nas conclusões (capítulo VII), nomeadamente na confirmação ou na
refutação
das hipóteses, nas limitações e implicações do presente estudo, bem como nas
recomendações para futuras investigações.
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
Neste capítulo apresentamos (i) uma abordagem histórica da cegueira, (ii) o
conceito na atualidade, algumas (iii) classificações e (iv) causas da cegueira.
1. A CEGUEIRA AO LONGO DO TEMPO
Até meados do século XX, os conhecimentos acerca da visão e da cegueira eram
reduzidos e esparsos, tanto na comunidade científica como na Sociedade em geral.
Como
em muitos outros campos, o conhecimento científico acerca da visão e da cegueira
cresceu
exponencialmente e com diversos propósitos, desde os meramente teóricos aos
aplicados
na recuperação da visão de sujeitos cegos. O conhecimento da Sociedade em geral
parece
estar muito marcado pelas matrizes culturais subjacentes, evidenciando uma
evolução mais
lenta em relação ao conhecimento científico, estando muito marcado por aquilo
que Gil
(2000) chama de mitos, crendices e superstições, como é característico do
conhecimento
que se convencionou chamar de senso comum.
Na Grécia Antiga, nomeadamente em duas das suas cidades-estado mais
emblemáticas, Atenas e Esparta, o infanticídio de crianças com deficiências
notórias era
prática corrente, por razões e com base em princípios e procedimentos distintos,
tal como
defendemos noutro local (Figueiredo, 2010a). Quando, por alguma razão escapavam
da
morte, nomeadamente em Atenas onde os pais tinham o direito a proferir a
sentença final,
juntar-se-iam, certamente, aos que cegaram tardiamente, na juventude ou na idade
adulta.
Segundo Gil (2000), a cegueira representava um estigma, palavra cujo significado
se
associava à existência de sinais corporais marcadores de uma condição moral
inferior logo,
os estigmatizados deviam ser evitados, principalmente em locais públicos. A
autora
acrescenta que “a cegueira, como outras deficiências, estava entre os estigmas
denunciadores de péssimo carácter – seus portadores eram marginalizados,
excluídos do
convívio social” (p. 18). Tal conceção refletia-se na literatura e na mitologia
de então, com
Édipo a furar os próprios olhos para se castigar de ter morto o seu próprio pai
e desposado
a mãe, e Tirésias castigado por Hera com a cegueira (Oliveira, 1998). Nesta
época,
Aristóteles considerava a visão como o sentido mais importante do Homem, fonte
de um
adequado conhecimento do mundo, ideias retomadas séculos mais tarde por Locke
(Nunes,
2004). Assim, o cego era considerado como alguém incapaz de conhecer
adequadamente
quer o mundo físico, quer o mundo social, logo alguém que só poderia viver à
margem
desses mundos.
No decurso da Idade Média, a relação da Sociedade com a cegueira, não se
distanciou da relação com as demais deficiências, em suma, um castigo divino
(Gil, 2000).
Tratando-se da Idade Média, em que os clássicos foram, de alguma forma
esquecidos, não
podemos deixar de assinalar uma certa familiaridade com a Antiga Grécia. Na
Idade Média
havia apenas um Deus, misericordioso, mas para quem a cegueira continuava a ser
uma
forma de castigo. Os cegos chegaram a ser associados à imagem do diabo e a atos
de
feitiçaria e bruxaria, sendo alvo de exorcismos, perseguições, julgamentos e
execuções
(Correia e Cabral, 1999a; Jiménez, 1997). Esta associação divina perpassa ainda
hoje na
cultura popular portuguesa, de matriz vincadamente católica romana. Quando
criança
lembro-me de brincar imitando alguém coxo ou cego e de ser severamente
repreendido
pela minha avó, com o argumento de que “Deus me podia castigar”.
Certas culturas, continuando a exacerbar a diferença, fizeram-no em sentido
positivo. Como nos diz Gil (2000) “houve sociedades em que o cego era
considerado um
favorito dos deuses: com sua «visão para dentro», ele veria coisas que escapavam
aos
demais” (p. 18). Era assim considerado um ser superior, um privilegiado, mais
capaz de se
desenvolver espiritualmente, pois menos influenciável pelas ilusões mundanas
(Nunes,
2004; Oliveira, 1998). Numa revisão da literatura e tendo como contexto o
Brasil, Nunes
(2004) mostra que esta ambiguidade continua a perpassar, mesmo entre atuais e
futuros
professores. Alguns acreditam que o cego é um deficiente global com limitações
severas de
aprendizagem, enquanto outros lhes apontam uma inteligência e uma
espiritualidade
extraordinárias.
Foi no século XVIII (1787), em Paris, que se fundou a primeira escola para
cegos,
pela mão de Valentín Haüy, tendo seguido o seu exemplo Edward Rushton em
Liverpool
(1791), Johann Klein em Viena (1804), August Zeune em Berlim (1806) e José
Ricart em
Barcelona (1820) (Tallaví, 1998). Estas instituições destacaram-se pela sua
natureza
essencialmente educativa, rompendo com a tradição das instituições de natureza
essencialmente assistencialista. Anos mais tarde, em 1825 surgiu o alfabeto de
pontos
criado por Braille para os cegos, o qual viria e continua a ser adotado
mundialmente com o
nome do seu criador (Tallaví, 1998).
No que diz respeito a Portugal, o nosso país não se distanciou muito do percurso
seguido por outros países europeus, nomeadamente a França (Dias, 1995). Ainda no
século
XIX, foi criada a Associação Promotora do Ensino dos Cegos, obra de várias
personalidades, nomeadamente José Cândido Branco Rodrigues, João de Deus,
Fernando
Pereira Palha, Victoriane Sigaud Souto, entre outras (Guerreiro, 1996). Também
no século
XIX, o rei D. João VI, a pedido de José António Freitas do Rego, concede meios e
contrata
o sueco Aron Borg para a criação do Instituto de Surdos, Mudos e Cegos de
Lisboa 5, o
qual veio posteriormente a integrar a Casa Pia (Dias, 1995). A partir da última
década
desse mesmo século fundaram-se algumas escolas-asilo, obras de benfeitores e
beneméritos, alguns dos quais cegos (Dias, 1995). Na transição do século XIX
para o
século XX, um número considerável de cegos não se limitava a sobreviver da
mendicidade
ou do assistencialismo institucional. Segundo relatos da época, alguns cegos com
formação
lecionavam música ou exerciam profissão musical, outros lecionavam instrução
primária,
Língua Portuguesa e Língua Francesa, sendo que a docência ocorria,
essencialmente, em
instituições especializadas para a educação de cegos (Dias, 1995). Na nossa
vizinha
Espanha, a atividade musical constituía, também, uma das principais fontes de
sustento
para os cegos (Tallaví, 1998).
Em seguida, apresentamos os momentos mais marcantes da EE em Portugal, ao
longo do século XX, tendo por base a resenha histórica efetuada por Correia e
Cabral
(1999b). De acordo com estes autores e tendo por referência documentos do
Ministério da
Educação, as primeiras experiências de integração em Portugal consistiram na
criação de
classes especiais no Instituto Aurélio da Costa Ferreira, em 1944, destinados a
alunos com
problemas de aprendizagem e orientadas por professores especializados por esse
Instituto.
A utilização do conceito de integração neste contexto pode parecer abusiva, mas
ela
pretende sublinhar a rutura com o modelo institucional segregado e segregador,
ainda
dominante nesta época. Na década de 60, sob a orientação da então Direcção-Geral
da
Assistência, alargou-se o apoio à integração na escola regular de crianças e
adolescentes
com deficiência, promovendo programas destinados a alunos com deficiência
visual,
integrados em escolas preparatórias e secundárias das principais cidades do
país. Pela
primeira vez, os alunos com deficiência poderiam participar em pleno na classe
regular,
decorrendo o trabalho de apoio em espaços próprios, as salas de apoio. Constitui
um bom
exemplo, a integração em 1968 no ensino regular, na Escola Preparatória
Francisco
Arruda, dos primeiros alunos cegos e amblíopes, oriundos do Centro Infantil
Helen Keller
e com apoio de professores do mesmo (Dias, 1995). Esta dinâmica que se inicia em
Portugal nos anos 60 é, sem dúvida, tardia em relação aos países do norte da
Europa; no
entanto, não devemos esquecer a evolução lenta da alfabetização e da
escolarização em
Portugal para as crianças ditas “normais”. O Censo de 1960 revelou, pela
primeira vez,
taxas de frequência da escola para crianças “normais”, entre os 7 e os 9 anos,
equivalentes
às que os países do norte da Europa revelavam já no início do século XX
(Candeias e
Simões, 1999). Assim e no que diz respeito a Portugal, o início da integração
das crianças
com NEE, apesar de tardio, foi, em certa medida, atempado.
No passado como na atualidade, muitas personalidades cegas se destacaram e
destacam mundialmente em diversas áreas, o que tem contribuído para enraizar a
crença na
educabilidade e nas potencialidades das pessoas cegas e deficientes em geral. No
entanto,
importa desmistificar a existência de qualquer talento resultante diretamente da
cegueira,
como o mito de que os cegos têm um talento especial para a música, como se não
tivessem
que aprender a escala musical, conhecer e treinar um determinado instrumento,
com
maiores ou menores dificuldades, muitas vezes equivalentes às sentidas pelos
videntes em
condições semelhantes. Entre estas personalidades destacamos, sem qualquer
desprimor
para as restantes, a ensaísta Helen Keller pelo seu pioneirismo enquanto
ativista dos
direitos e da educação dos cegos, Ray Charles, Stevie Wonder, Andréa Bocelli,
Maria
Teresa von Paradis e Joaquín Rodrigo pelas suas obras musicais de divulgação
mundial,
assim como Nicholas Sauderson e Benard Morin pelas suas investigações
matemáticas.
Experimentam-se hoje novas intervenções médicas com o objetivo de recuperar,
total ou parcialmente, a visão em pessoas cegas. Além de novas técnicas
cirúrgicas, tem-se
experimentado e trabalhado em terapias genéticas e em dispositivos tecnológicos
como o
chamado olho biónico. Com sucessos pontuais, esta demanda da Medicina conta já
uma
longa história. Segundo Ninio (1994), há registos de no século XI se ter
efetuado a
primeira intervenção cirúrgica conhecida a um cego, realizada pela mão de um
cirurgião
árabe. A partir do século XVIII os registos são mais abundantes, com alguns
casos de
sucesso relatados, como o de um rapaz de13 anos que recuperou a visão, após ser
operado
pelo cirurgião inglês Cheselden.
2. O CONCEITO NA ATUALIDADE
Como todos os conceitos, o de cegueira evoluiu ao longo do tempo, de acordo com
o percurso que procurámos esboçar no ponto anterior. Em cada momento e o atual
não é
exceção, a definição de um conceito resulta da necessidade de encontrar
significados
partilhados no seio das comunidades, sejam elas constituídas por investigadores,
profissionais de diversas áreas, políticos ou cidadãos em geral. Entendido desta
forma, um
conceito assume-se como um artefacto cultural abstrato, que não depende tanto do
seu
objeto real, mas do entendimento que um conjunto de pessoas elabora acerca do
mesmo.
Efetivamente, não se trata de ser ou não ser cego, porque alguém com visão
subnormal não
vai ver mais ou menos mudando o significado de cegueira, mas do que significa
ser cego
perante uma determinada comunidade. Não é assim de estranhar, a coexistência de
diferentes definições de um conceito no interior de fronteiras mais ou menos
estabelecidas,
sendo que o conceito de cegueira não é exceção. Esta é também a posição de Zafra
(1991),
para quem os critérios para considerar uma pessoa como cega não são totalmente
claros.
Enquanto instituição de referência, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define
cegueira como a incapacidade de ver (OMS, 2011a). De acordo com as suas
indicações de
2006 patentes no International Classification of Diseases – 10 (OMS, 2011b),
devem
considerar-se quatro níveis funcionais ao nível da visão: visão normal,
incapacidade visual
moderada, incapacidade visual severa e cegueira. Os níveis de incapacidade
visual
moderada e de incapacidade visual severa podem conjugar-se numa designação
única, a de
baixa visão. Se combinarmos a baixa visão com a cegueira obtemos a incapacidade
visual
total, a qual se estima em 284 milhões de pessoas a nível mundial (39 milhões de
cegos +
245 milhões com baixa visão). Na faixa etária até aos 15 anos de idade,
estima-se que
existam 19 milhões de crianças com incapacidades visuais (2 milhões na Europa),
sendo
que 1,4 milhões serão irreversivelmente cegos (140 mil na Europa).
Numa perspetiva mais técnica:
“… A OMS considera que existe deficiência visual quando a acuidade visual
6
de ambos os olhos, com correcção, é igual a 0,3. A maioria dos países
considera cegueira quando a acuidade visual, com correcção, é igual ou
inferior a 0,1, ou se existe uma redução do campo visual 7 inferior a dez
graus…” (Martín e Bueno, 1997, p. 317).
“… Um indivíduo que seja legalmente cego tem uma acuidade visual central
de 20/200, ou menor, com correcção no olho em melhores condições, ou tem
um campo de visão muito limitado, cerca de 20 graus no ponto máximo de
afastamento. Isto significa que, mesmo com correcção, não se verifica mais
do que 10% de visão normal no olho em melhores condições, sendo o campo
de visão nunca superior a 20 graus. Um indivíduo legalmente cego, se sujeito
a correcção, vê a uma distância de 6 metros o que, em condições normais,
veria a uma distância igual ou superior a 61 metros…” (Nielsen, 1999, p. 52).
Entre a acuidade de 20/200 (1/10 ou 0,1 nas formas simplificadas) e a cegueira
total, Dias (1995) define uma linha contínua onde distingue (i) a perceção de
formas e
cores com visão de dedos a 2,5 metros, (ii) perceção de vultos com visão de
dedos a um
metro, (iii) projeção luminosa com distinção da luz e do lugar de emanação e
(iv) perceção
luminosa com distinção entre luz e escuridão.
A conceção de cegueira apresentada anteriormente radica, essencialmente, na
medicina. Com o tempo, a sua aplicação no campo educacional veio a revelar-se
pouco
satisfatória e desfasada, tendo-se constatado que sujeitos com a mesma acuidade
visual
poderiam apresentar capacidades visuais diferentes, nomeadamente quanto ao
aproveitamento funcional que faziam da visão residual quando ela existia (Nunes,
2004).
Foi para colmatar esta insuficiência da conceção médica, que se procuraram
conceções de
natureza funcional, mais adequadas ao contexto educativo. Funcionalmente, Martín
e
Bueno (1997) consideram cego, alguém que não possui resíduo visual ou
possuindo-o,
apenas permite a orientação em direção à luz, perceber volumes e cores, assim
como ler
grandes títulos, inviabilizando o uso habitual da leitura e da escrita. Para
estes autores, “as
anomalias do campo visual têm maior importância para a capacidade funcional do
indivíduo do que a própria acuidade visual, pois influem na locomoção, leitura e
possibilidade de utilizar imagens ampliadas” (p. 319). Na busca de uma
definição, também
ela funcional, Kirk e Gallagher (2002) citam Barraga (1976), que considera cegas
as
crianças com ausência total de visão ou que têm somente a perceção da luz,
necessitando
aprender Braille para ler e escrever, assim como outros meios não relacionados
com o uso
da visão. No conhecimento do senso comum subsiste a ideia de que a cegueira
equivale a
uma escuridão total. Tal não corresponde à verdade, quer porque a perceção
residual da luz
subsiste em muitos cegos, que assim são capazes de distinguir grandes manchas
brancas,
semelhantes às que os videntes sentem ao cerrar as pálpebras, quer pelo
envolvimento do
próprio cérebro nos processos da visão e da sua ausência (Nielson, 1999; Ninio,
1994). Na
verdade, Gil (2000, 2002) lembra-nos que poucos portadores de deficiência visual
são
totalmente cegos, embora muitos, nomeadamente crianças com algum grau de visão,
sejam
considerados cegos e tratados como tal, perdendo os benefícios que a utilização
da visão
residual poderia acrescentar ao desenvolvimento e à qualidade de vida.
3. CLASSIFICAÇÕES DE CEGUEIRA
Em termos funcionais e educativos, as NEE’s podem assumir um carácter
permanente ou temporário. Com base na classificação proposta por Correia e
Cabral
(1999c), considera-se a cegueira como NEE de carácter permanente, ou seja, são
necessárias adaptações estruturais do currículo, a manter durante grande parte
ou todo o
percurso escolar do aluno. Consideram-se adaptações estruturais, a necessidade
de
introduzir ou retirar áreas do saber assim como as estratégias de abordagem,
enquanto
adaptações de conteúdo estão relacionadas com os conhecimentos a tratar no
âmbito de
cada uma dessas áreas. A literatura referida nos pontos seguintes, nomeadamente
no
desenvolvimento das crianças cegas congénitas e nas implicações educativas, é
consensual
na necessidade de adaptações estruturais, como a aprendizagem da leitura e da
escrita
Braille, assim como da orientação com e sem bengala. As adaptações de conteúdo
parecem
mais dependentes das variáveis individuais associadas a cada sujeito e a cada
contexto,
podendo ou não ser necessárias.
Uma outra classificação que não colide mas complementa a anterior, estabelece
que
a cegueira pode ser adquirida, situação em que o indivíduo nasce dotado do
sentido da
visão, perdendo-o mais tarde, ou pode ser congénita, situação em que o indivíduo
nasce
cego (ACAPO, 1996; Gil, 2000; Gil, 2002; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995;
Tallaví,
1998). A lei alemã considera que uma pessoa é cega congénita total se tem
disponíveis
apenas 5% da visão normal e se cegou antes dos dois anos de idade (Knauff e May,
2005).
Na perspetiva mais aceite atualmente, crê-se que os cegos de nascimento ou que
perderam
a visão nos primeiros meses de vida não dispõem de referências visuais na sua
memória,
enquanto os portadores de cegueira adquirida em idade mais avançada, não só
conheceram
o mundo numa perspetiva visual, como puderam estabelecer relações entre a
perceção
visual e a tátil, guardando na sua memória essas imagens e relações, podendo
experienciar
imagens mentais nítidas de natureza visual (Bardisa, 1992; Gil, 2002; Heller e
Ballesteros,
2006; Knauff e May, 2005; Masini, 2003). No âmbito da classificação de cegueira
congénita, outros autores alargam o intervalo de tempo que medeia o nascimento e
a perda
de visão, considerando cegueira congénita quando a criança nasce cega ou se
torna cega
até aos cinco anos de idade (Nunes, 2004; Ormelezi, 2000). Com base na
investigação,
sustentam que até aos cinco anos não ocorre retenção de imagens visuais, ou
seja, as
memórias visuais não estão presentes e como tal, não poderão constituir-se como
referencial das representações mentais. Tal não parece ser a posição defendida
por Allan
Paivio e por Jacques Vauclair. Estes autores apresentam evidência empírica
segundo a
qual, as representações de natureza imagética ou não verbal começam a
estabelecer-se
muito mais cedo na vida da criança, por volta dos seis meses de idade, tendo já
sido
identificados fenómenos de memória episódica de curta duração (seis segundos),
em bebés
com apenas alguns dias de vida (Paivio, 1990; Vauclair, 2008). Allan Paivio
acredita que o
desenvolvimento das representações mentais ocorrerá de forma contínua desde o
nascimento, enriquecendo-se 8 em relação a objetos, pessoas, locais, melodias,
estados de
dor ou alegria e acontecimentos, segundo diferentes perspetivas e diferentes
modalidades
sensoriais. Esta falta de consenso é confirmada por Ballesteros e Heller (2006).
Nas suas
pesquisas encontraram investigadores que consideram cegueira adquirida apenas a
que
ocorre após o início da escolarização, outros a que ocorre após um ano de idade
e outros, a
que ocorre após os dez anos de idade. Perante esta profusão de intervalos
cronológicos
considerados por diferentes autores e tratando este trabalho de cegueira
congénita, torna-se
necessário balizar o intervalo de idades considerado no presente trabalho, para
a
classificação de cegueira congénita. Adotámos uma das classificações mais
restritivas, a de
cegueira congénita ser a que ocorre até a criança completar um ano de idade.
Esta opção
fundamenta-se nos dados apresentados por Mackay (2009) acerca da maturação
cerebral.
Sustenta o autor que aos seis meses de idade as crianças conseguem lembrar
acontecimentos ocorridos apenas nas últimas 24 horas, enquanto aos nove meses a
memória abarca acontecimentos ocorridos, sensivelmente, até há um mês atrás. É
na
transição do primeiro para o segundo ano de vida que ocorrem importantes
mudanças, as
quais se estendem ao longo do segundo ano e acarretam consideráveis melhorias na
memória de longa duração. Por outro lado, os adultos são incapazes de recordar
acontecimentos vivenciados ao longo dos dois primeiros anos das suas vidas,
fenómeno
conhecido como amnésia infantil (Vauclair, 2008). Congruentemente, todos os
sujeitos da
nossa amostra cegaram neste período das suas vidas, o que nos confere alguma
validade
acrescida ao minimizar a possibilidade de existirem memórias visuais.
Nem sempre a palavra cegueira significa ausência total de visão. Existem outras
formas de cegueira, como por exemplo a cegueira para o vermelho e o verde,
também
conhecida como Daltonismo, em homenagem ao histórico químico John Dalton,
portador
desta deficiência e que, em pleno século XVIII, foi o primeiro a dedicar-se ao
seu estudo.
Na atualidade, esta condição acomete, em média, um em cada doze homens, por
ausência
nos cones 9 de proteínas fotorreceptoras sensíveis ao vermelho e ao verde
(Dolgin, 2009).
Uma das razões para que esta condição tivesse passado despercebida até tão tarde
na
história da humanidade, poderá estar relacionada com a pouca importância que a
perceção
correta das cores assume no quotidiano, nomeadamente diferenças subtis de
tonalidade
(Ninio, 1994). Alguns ensaios clínicos de terapia genética efetuados em machos
de
macacos esquilo têm demonstrado a possibilidade de reverter esta situação
(Dolgin, 2009).
4. CAUSAS
Resulta do nosso problema e das nossas questões de investigação que a cegueira
congénita assume um dos papéis principais no nosso trabalho, o de variável
independente.
Assim, não poderíamos deixar de abordar as causas da cegueira em geral, com
particular
incidência nas causas da cegueira congénita. Esta abordagem assumirá a
abrangência
necessária à compreensão dos fenómenos, sem a exaustão que seria própria de um
trabalho
de natureza médica e clínica, a qual ultrapassa os nossos objetivos, mas
pugnando sempre
pela necessária correção científica.
Tendo como referência a população em geral e a nível mundial, a OMS aponta
como principais causas de cegueira (i) as cataratas (com particular incidência
nos países
subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento), (ii) o glaucoma, (iii) a
degeneração
macular relacionada com a idade, (iv) a opacidade da córnea, (v) a retinopatia
diabética,
(vi) o tracoma, (vii) a avitaminose A (particularmente sensível nas crianças) e
(viii)
tumores (OMS, 2011a, 2011c). No seu trabalho Educação da Criança Excepcional,
Kirk e
Gallagher (2002) apontam, além destas, outras possíveis causas para a cegueira
(i) doenças
infeciosas, (ii) acidentes e ferimentos, (iii) envenenamentos, (iv) influências
pré-natais
(inclusive a hereditariedade), (vi) retinopatia da prematuridade (antes
designada fibroplasia
retrolental), (vii) atrofia do nervo ótico e (viii) albinismo. A OMS salienta
que mais de três
quartos dos casos de incapacidade visual, na população em geral e a nível
mundial, podem
ou poderiam prevenir-se e tratar-se (OMS, 2011a). As múltiplas causas da
cegueira,
apontadas anteriormente, são condensadas por Nielsen (1999) da seguinte forma:
“… Esta pode resultar de degeneração do globo ocular ou do nervo óptico, ou
então de problemas nas conexões nervosas que ligam o olho ao cérebro. As
lesões cerebrais podem igualmente causar deficiência a este nível. A cegueira
é frequentemente o resultado de uma lesão ou de uma doença e ninguém está
imune a este tipo de deficiência…” (pp. 52-53).
Pelas condicionantes espaciais e cronológicas associadas a um trabalho desta
natureza, optámos por desenvolver apenas aquelas causas associadas à cegueira
dos
sujeitos da nossa amostra (ver ponto 4.2.3. do capítulo IV). Dois dos sujeitos
da nossa
amostra cegaram em consequência de retinopatia da prematuridade. Como se pode
depreender da própria designação, são os bebés prematuros os mais suscetíveis a
esta causa
da cegueira, em virtude da exposição excessiva ao oxigénio no interior das
incubadoras
(Ferreira, s/d; Gil, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Knauff e May, 2005; Ormelezi,
2000). Na
descrição de Rosane Ferreira, Mestre em Oftalmologia e membro da Sociedade
Brasileira
de Oftalmologia Pediátrica, os vasos sanguíneos da retina desenvolvem-se
centrifugamente
(do centro para a periferia), partindo do nervo ótico e atingindo a periferia
por volta da
quadragésima semana de vida. Assim, se ocorrer parto prematuro, com risco
acrescido
antes das 32 semanas de gestação, existe uma área de isquemia retiniana
periférica, ou seja,
ausência de fornecimento sanguíneo à periferia da retina, sendo que quanto mais
prematuro
for o bebé, maior será esta área. Tal situação de isquemia conduz à libertação
de um fator
que conduz à proliferação de vasos sanguíneos na retina, que na maioria dos
casos se
desenvolvem naturalmente e a doença involui espontaneamente. Quando tal
involução não
ocorre, os vasos continuam a crescer de forma errática, com hemorragias e
exsudação, que
pode levar ao deslocamento da retina e à cegueira. Como lembra Neves (2008), no
momento atual da medicina, uma vez destruída a retina, a cegueira é
irrecuperável. A
literatura aponta outros fatores que poderão desencadear ou participar
secundariamente na
retinopatia da prematuridade: transfusão sanguínea, hiperbilirrubinemia,
avitaminose E,
cardiopatias congénitas, apneia e hipocalcemia (Ormelezi, 2000). Dados de Kirk e
Gallagher (2002) referem que na década de 50 do século XX, antes de se
estabelecer a sua
causa principal, a retinopatia da prematuridade seria responsável por mais de
metade dos
deficientes visuais daquela época. Com a descoberta da sua causa, diminuiu-se a
concentração de oxigénio nas incubadoras, diminuindo significativamente a sua
prevalência, mas não na totalidade, tal como estes dois casos testemunham.
Dois outros sujeitos da nossa amostra cegaram em resultado de glaucoma
congénito, que Gil (2000) define de forma simples como atrofia ótica de natureza
hereditária ou causada por infeções virais, como por exemplo a rubéola.
Manifesta-se de
forma lenta ou rápida, pela incapacidade de drenar o humor aquoso, que ao ficar
retido
provoca a distensão do globo ocular e consequentemente um aumento de pressão no
interior do mesmo, atrofiando o nervo ótico, o que poderá conduzir à cegueira
(Dias, 1995;
Ormelezi, 2000). Constituía em 1995 a causa mais frequente de cegueira infantil
em
Portugal (Dias, 1995).
Uma das meninas cegas da nossa amostra cegou em virtude de um acometimento
do que se designa por persistência de vítreo primário hiperplásico, o qual
encerra um
amplo espectro de anomalias congénitas. Segundo Ferreira (s/d) tais anomalias
resultam de
falhas na reabsorção do vítreo primário embriológico, que persiste, assim como
dos vasos
hialóides, vindo no conjunto a formar uma placa retrolental.
CAPÍTULO II: DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA VIDENTE E
DA CRIANÇA CEGA CONGÉNITA
A literatura relacionada com o desenvolvimento infantil versa, essencialmente,
no
caso das crianças videntes, escasseando estudos congéneres baseados em crianças
cegas,
escassez ainda mais acentuada no caso da cegueira congénita. Não obstante,
procuraremos
desenvolver suficientemente este ponto, para compreender o desenvolvimento da
criança
cega congénita nos seguintes níveis: sensorial, cognitivo, emocional, motor e
social. É
nosso entendimento que as influências da cegueira congénita no desenvolvimento
infantil
dos seus portadores, a existirem, serão mais facilmente explicitadas se, em
paralelo,
abordarmos o desenvolvimento das crianças videntes. Na frase anterior, fizemos
questão
de salientar e questionar a existência de influências da cegueira congénita no
desenvolvimento infantil dos seus portadores, porque não é claro nem linear, ou
seja, não
foi ainda determinada uma relação inquestionável de causa efeito entre a
cegueira
congénita e consequências no desenvolvimento infantil. A literatura disponível e
que
apresentaremos nos pontos seguintes vem subscrever estas dúvidas, com resultados
e
interpretações diversas de estudo para estudo, o que parece conduzir-nos a um
outro fator
essencial, a variabilidade individual. Os dados expostos nos pontos seguintes
conduzemnos
a pensar que a cegueira não origina, necessariamente, problemas
desenvolvimentais
ou, pelo menos, não é evidente que eles se manifestem de forma significativa,
não obstante
os caminhos e as velocidades variarem entre sujeitos cegos e, sobretudo, entre
estes e os
videntes (Martín e Bueno, 1997; Ochaita e Rosa, 1995). A ocorrerem, esses
problemas
estarão dependentes da severidade e tipo de perda visual, da idade da criança
quando
ocorre essa perda, assim como do nível geral de funcionamento da criança
(Nielsen, 1999).
Existe mesmo alguma evidência, baseada em dados empíricos recolhidos em amostras
que
variam entre o estudo de caso individual e o estudo de dezenas de sujeitos, que
aponta
percursos de desenvolvimento mais adequados nas crianças cegas, quando
comparadas
com outras crianças com deficiências visuais menos severas, em contextos
equivalentes
(Kirk e Gallagher, 2002).
Nos pontos seguintes aprofundaremos aspetos relacionados com (i) o
desenvolvimento sensorial, (ii) o desenvolvimento cognitivo, (iii) o
desenvolvimento
emocional, (iv) o desenvolvimento motor e (v) o desenvolvimento social. A
delimitação
destas áreas, como será percetível da leitura das mesmas, é necessariamente
artificial
porque não existe na natureza nada escrito, um marcador que aponte
inquestionavelmente
o fim de uma e o início de outra. São portanto decisões tomadas com base na
racionalidade
humana e no pragmatismo que nos pareceu mais adequado aos objetivos a que nos
propusemos. Por outras palavras, estas áreas do desenvolvimento humano
interpenetram-se
a vários níveis e profundidades, pelo que acontecerá, por exemplo, no
desenvolvimento
emocional referir aspetos indissociáveis do desenvolvimento social e vice-versa.
1. DESENVOLVIMENTO SENSORIAL
O desenvolvimento sensorial inicia-se muito antes do nascimento, no período pré
natal, no qual os sistemas sensoriais, à exceção da visão, alcançam a maturidade
funcional
segundo uma ordem de desenvolvimento comum aos vertebrados: tato – equilíbrio –
olfato
e paladar – audição – visão (Vauclair, 2008).
1.1. A VISÃO
Atendendo às metas estabelecidas para este trabalho, nas quais a cegueira
congénita
se assume como variável independente, certamente será compreensível uma maior
abrangência no tratamento da visão, comparativamente aos outros sentidos. Não
deixaremos de os focar, até pela função alternativa que podem desempenhar nos
sujeitos
cegos.
A visão, a par da audição e em parte, do olfato, destaca-se pela sua
capacidade de
captar tanto os estímulos próximos como os distantes (Dias, 1995; Gil, 2000). Trata-se
de
um dos nossos sentidos físicos, uma vez que é estimulado por um fenómeno físico nas suas
várias manifestações, a luz. O órgão responsável pela captação dos estímulos luminosos
que proporcionam a visão é o olho, um sistema complexo de partes
inter-relacionadas que
importa conhecer e compreender (Figura 1).

Figura 1 - Olho humano segundo Gregory (1979, p. 50)
Vários autores têm estabelecido comparações entre o olho e uma máquina
fotográfica, as quais são consideradas por Neves (2008) como apropriadas, uma
vez que, a máquina fotográfica terá sido, segundo ele, “inventada a partir dos
conhecimentos q tínhamos da composição e funcionamento daquele órgão do corpo
humano” (p. 7). Nas palavras de Kirk e Gallagher (2002):
“… o olho humano tem um diafragma, a íris. Esta é a parte muscular colorida
que se expande e se contrai para regular a quantidade de luz admitida pela
abertura central, a pupila. Atrás da íris encontra-se a lente do cristalino, que
é
um corpo biconvexo elástico que focaliza sobre a retina a luz refletida dos
objetos em uma linha de visão. A retina é sensível à luz, e é a camada mais
interna de tecido no fundo do globo ocular. Contém os receptores neurais, que
transformam a energia física da luz em energia neural…” (p. 185).
Como evidencia a figura 1, existem no olho outros órgãos funcionalmente
imprescindíveis, como a córnea que se situa na zona anterior da camada externa
do globo
ocular e é transparente; existem os músculos ciliares responsáveis pelas
mudanças na
forma do cristalino que permitem focar os objetos a várias distâncias; existem
também os
músculos oculares externos, responsáveis pelo movimento do globo ocular na sua
cavidade
(Kirk e Gallagher, 2002; Mackay, 2009). O funcionamento defeituoso de qualquer
um
destes órgãos é passível de afetar a visão, pois compete aos olhos enviarem para
o cérebro,
via nervo ótico, informação codificada em atividade neural, ou seja, cadeias de
impulsos
elétricos as quais, pelo seu código e pelos padrões de atividade cerebral,
permitem
representar objetos (Gregory, 1979).
Muitas vezes, os olhos de alguém com deficiência visual são externamente notados
por diferenças anatómicas e funcionais, em relação aos olhos de alguém vidente.
A este
respeito, Nielsen (1999) refere que:
“… À nascença, os do bebé podem parecer vazios de expressão ou podem
mesmo apresentar alguma desfiguração. As doenças que afectam o globo
ocular podem também alterar o aspecto dos olhos. Um excesso de pressão
pode fazer com que os olhos fiquem protuberantes. Por estes factos, muitos
indivíduos cegos usam óculos. Alguns podem usá-los por razões estéticas,
enquanto outros aos quais ainda resta alguma visão útil, o podem fazer para a
melhorar um pouco (p.55).
Tradicionalmente, a perceção de padrões visuais é atribuída exclusivamente a
dois
conjuntos de células existentes na retina, os cones e os bastonetes (Gregory,
1979; Habib,
2003; Mackay, 2009), enquanto as células ganglionares da retina surgem como
responsáveis, unicamente, pela deteção da presença ou ausência de luz,
contribuindo assim
para a regulação de certas atividades cerebrais, como os ritmos circadianos. Aos
bastonetes
atribui-se a função de “captar” a imagem do objeto, enquanto os cones são
responsáveis
por “perceber” as diferentes cores (Neves, 2008). Investigações recentes,
conduzidas por
Ecker e outros (2010) em ratos, sugerem que as células ganglionares podem ser
mais
abundantes e diversificadas do que as teorias tradicionais sugerem,
projetando-se assim
num conjunto alargado de áreas cerebrais, nomeadamente naquelas responsáveis
pela
perceção visual. Numa das suas experiências, os autores criaram ratos
geneticamente
programados para não desenvolverem cones nem bastonetes, mantendo intactas as
células
ganglionares da retina. Quando sujeitos a um teste visual, estes ratos
mostraram-se capazes
de distinguir padrões, necessitando no entanto do dobro de tentativas.
Os seres humanos possuem dois olhos dotados de músculos que lhes permitem
mover-se, de forma que uma cena que é olhada se projete na zona central das
retinas,
chamadas fóveas, onde as imagens atingem a máxima definição (Jimenez, 2002). A
região
central da retina, num ângulo de 10 a 15 graus em torno do eixo ocular, trata de
forma
estática as imagens recebidas, permitindo apreciar toda a riqueza das formas e
os
movimentos lentos, enquanto a visão periférica é especializada na análise de
movimentos
rápidos, parecendo não se preocupar com a identificação das formas (Ninio,
1994).
Após o estímulo luminoso ser focado na retina, geram-se sinais neuronais
enviados
via nervo ótico do olho para o núcleo geniculado lateral do Tálamo e deste, para
o córtex
occipital, região onde a maior parte da informação visual é processada (Amedi et
al.,
2005). No córtex occipital situam-se o córtex visual primário e o secundário,
que como a
própria palavra primário indica, constrói uma primeira representação preceptiva,
função
que será continuada ao nível do lobo parietal posterior e do lobo temporal,
zonas
responsáveis por representações visuais específicas, assim como por
representações
multimodais (Farah, 1988).
Se taparmos com a mão o olho esquerdo e observarmos uma paisagem apenas com
o direito, obtemos uma imagem A. Se de seguida repetirmos o processo, mas
tapando o
olho direito e observando com o esquerdo, obtemos uma imagem A’. Sobrepondo A e
A’
poderemos perceber que não coincidem exatamente, ou seja, na verdade temos duas
imagens díspares. Felizmente, o sistema visual humano possui, em condições
normais, uma
capacidade notável, a de sintetizar as duas imagens, um tanto díspares, numa
única imagem
– visão estereoscópica, a qual é necessária para a perceção da profundidade até
aproximadamente 100 metros (Gregory, 1979; Vauclair, 2008). Quando, por alguma
razão,
o cérebro perde esta capacidade, ocorre diplopia, visão de duas imagens
simultâneas de um
mesmo objeto, uma síndrome bastante incapacitante e perturbadora. A perceção da
profundidade é considerada um desafio fundamental para o sistema visual,
particularmente
quando os sujeitos se movimentam (Nadler et al., 2008).
Desde há muito tempo, com particular ênfase nas últimas quatro ou cinco décadas,
os investigadores têm procurado identificar, compreender e explicar as
influências da
deficiência visual nas restantes funções dos sentidos, almejando, projetando e
testando
formas cada vez mais eficazes de estimular estas últimas (Kirk e Gallagher,
2002). É certo
que a visão se constitui como uma excelente fonte sensorial no desenvolvimento
da
perceção, mas esta pode atingir níveis de excelência na sua ausência,
nomeadamente em
cegos congénitos ou precoces (Heller e Ballesteros, 2006). Assim, não poderíamos
deixar
de abordar os restantes sentidos, ainda que menos exaustivamente que a visão, o
que
faremos nos pontos seguintes.
1.2. O TATO
Depois de mais de um século dedicado, essencialmente, ao estudo da visão (Posner
e Raichle, 2001), os investigadores sentem-se agora atraídos pelo estudo do
tato, sobretudo
nas duas últimas décadas, em que um número considerável de laboratórios em todo
o
mundo lhe devota atualmente esforços consideráveis (Ballesteros e Heller, 2006).
Trata-se
também de um sentido físico, sendo estimulado quer pela pressão na pele, quer
pelos
movimentos do corpo. O seu desenvolvimento ontogenético inicia-se cedo, ainda no
útero
materno, onde o feto desfruta de inúmeras interações táteis com as paredes
uteroplacentárias, suscitadas pelas deslocações do corpo materno e do seu
próprio corpo
(Vauclair, 2008).
Podemos considerar as mãos como a primeira ferramenta e a mais importante,
utilizada nos primórdios da humanidade. Ainda hoje elas são essenciais pelas
suas
múltiplas funcionalidades, sendo certo que a sua importância é
incomensuravelmente
maior para os cegos. A metáfora que nos é apresentada por Gil (2000, 2002)
ilustra bem a
importância que o tato assume para os cegos, sobretudo nos primeiros anos de
vida, em que
a linguagem se encontra num estádio incipiente, não olvidando, é claro, o seu
sentido
metafórico: “As mãos são os olhos das pessoas com deficiência visual” (p. 24).
Através das
mãos, um bebé cego pode (i) localizar, analisar, compreender e relacionar a
existência, as
formas e as funções dos objetos, (ii) identificar a forma e perceber o calor dos
rostos,
nomeadamente da mãe, (iii) adquirir conceitos espaciais e (iv) integrar o seu
esquema
corporal (Gil, 2000). No entanto, reduzir o tato às mãos é demasiado redutor,
uma vez que
o tato é, em si mesmo, uma fonte de informações multimodal. Compreende o tato
propriamente dito, por referência à pele, órgão particularmente sensível nos
dedos e em
toda a zona palmar das mãos, nos lábios, na língua e nos pés (zonas densamente
inervadas), mas também os movimentos de procura ou varredura que estas executam
e as
referências à postura corporal (Ballesteros e Reales, 2006; James et al., 2006;
Mackay,
2009; Millar, 2006).
Quando comparado com a visão, que é sintética e globalizadora, o tato permite
apenas análises parcelares, graduais e lentas, só posteriormente integradas num
todo global
(Dias, 1995; Gil, 2000; Heller e Ballesteros, 2006; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa,
1995).
Está demonstrado experimentalmente e percebemo-lo pela nossa própria
experiência, que o
tempo necessário ao tato é significativamente superior ao da visão, ou seja,
podemos
planear e executar um movimento ocular sacádico em menos de 200ms, enquanto
mover os
dedos para uma nova localização requer intervalos de tempo superiores (James et
al.,
2006). Por outro lado, o tato apenas pode percecionar os objetos situados ao
alcance das
mãos, enquanto a visão permite percecionar a grandes distâncias e
características macro
espaciais (Ballesteros e Reales, 2006; Dias, 1995; James et al., 2006; Nunes,
2004; Ochaita
e Rosa, 1995; Sathian e Prather, 2006). A visão permite outras funções não
acessíveis ao
tato, como captar a cor, a tonalidade e a luminosidade dos objetos, assim como
existem
objetos dificilmente tateáveis no seu estado natural, como sejam o fogo, uma
estrela, uma
formiga, uma montanha, um castelo ou objetos raros e/ou frágeis, entre outros
(Dias, 1995;
Heller, 2006; Horton, 2000). O tato também apresenta vantagens em relação à
visão, pois
há características microespaciais dos objetos que captará com mais precisão,
como sejam
(i) o peso, (ii) a consistência, (iii) a flexibilidade, (iv) a temperatura, (v)
a aderência
(pegajosa ou escorregadia) e (vi) a textura (Ballesteros e Heller, 2006;
Ballesteros e Reales,
2006; Bardisa, 1992; Heller, 2006; Horton, 2000; James et al., 2006; Sathian e
Prather,
2006). Para o reconhecimento tátil de um objeto, o cego explora com as mãos e
organiza
pontos de referência num mapa mental, como sejam ângulos, fendas, rugosidades ou
superfícies lisas (Ninio, 1994). Quando se trata de percecionar formas
tridimensionais, o
tato permite vantajosamente tatear, em simultâneo, as partes da frente e de trás
de um
objeto, simultaneidade que não está ao alcance da visão embora, em alguns casos,
o
observador possa contornar os objetos e obter informações visuais segundo
diferentes
pontos de observação (Ballesteros e Reales, 2006; Heller, 2006; James et al.,
2006).
Continuando a comparação entre a visão e o tato, a primeira é capaz de processar
uma
análise pouco pormenorizada através da retina periférica e simultaneamente,
processar uma
análise finamente pormenorizada através da fóvea, contrastando com o sistema
háptico,
para o qual é muito difícil processar simultaneamente uma análise pouco
pormenorizada
com as palmas das mãos ou os braços e uma análise pormenorizada com os dedos
(James
et al., 2006). Não obstante as semelhanças e as diferenças expressas neste
parágrafo, James
e outros (2006) defendem a existência de evidência sustentada de que os sistemas
visual e
háptico processam a estrutura dos objetos da mesma forma, partilhando uma mesma
representação subjacente. Esta ideia encontra suporte adicional em vários
estudos de
neuroimagem, os quais evidenciam uma sobreposição entre os processamentos visual
e
háptico ao nível do cérebro humano.
Numa das manifestações da nossa perceção multissensorial podemos, enquanto
videntes, recorrer à visão para guiar a exploração tátil, conduzindo ambos os
sentidos um
trabalho sincronizado de obtenção de informações ambientais, até certo ponto
redundantes,
mas mais completas (Heller e Ballesteros, 2006). Acrescente-se que a exposição a
objetos
reais através da visão ou, em alternativa, do sentido háptico, afeta a
identificação posterior
desses mesmos objetos, respetivamente através do sentido háptico ou da visão
(James et
al., 2006). Esta cooperação entre a visão e o tato merece dois reparos. Em
primeiro lugar,
nem sempre as informações obtidas são acrescidas de validade, porque
contraditórias. Por
exemplo, quando olhamos para uma cobra a nossa perceção visual remete-nos para
uma
textura viscosa e húmida, mas se a percecionarmos tactilmente, sentimos uma
textura fria e
seca. Em segundo lugar, esta cooperação entre a visão e o tato não está ao
alcance dos
sujeitos cegos, particularmente dos cegos congénitos, que não deixarão de
demonstrar
outras formas de cooperação sensorial, como a que pode ocorrer entre o tato e a
audição,
em que a dureza e o material de um objeto podem ser determinados com a
exploração tátil
auxiliada pela audição, daí muitos cegos percutirem os objetos quando os
exploram
tatilmente.
Vários autores (Bardisa, 1992; Ochaita e Rosa, 1995) consideram que o tato ativo
ou sistema háptico se constitui como o mais importante sistema sensorial para os
cegos.
Distinguem dois tipos de tato, o tato passivo e o tato ativo ou sistema háptico.
O primeiro
recebe informações de forma passiva ou não intencional, como sejam a sensação da
roupa
vestida ou da temperatura do ar. O segundo busca intencionalmente a informação a
receber, envolvendo não apenas os recetores cutâneos (como ocorre no tato
passivo), mas
também os recetores dos músculos e dos tendões, o que permite captar, também,
informação articulatória, motora e de equilíbrio. A exploração tátil ativa
tem-se revelado
particularmente eficiente na identificação de objetos tridimensionais e das suas
propriedades estruturais, como por exemplo a simetria (Ballesteros e Reales,
2006). Esta
identificação incrementa a sua eficiência e a sua rapidez, quando todos os dedos
podem
explorar livremente os objetos e os sujeitos podem mover livremente as mãos,
logo a
imposição experimental de restrições à exploração tátil dos objetos,
desincentiva a rapidez
e a eficácia (Ballesteros e Heller, 2006). No estudo da perceção háptica,
Bardisa (1992)
alerta para a distinção necessária entre a natureza do fenómeno em cegos
congénitos e em
videntes e cegos tardios (com cegueira adquirida). No primeiro caso, considera a
autora
estarmos face à perceção háptica pura ou autónoma, enquanto no segundo caso a
perceção
háptica dificilmente se pode divorciar da perceção visual, propondo as
designações de
háptica visual ou de optoháptica. Os padrões de perceção táctil tendem a ser
mais pobres
nos videntes, comparativamente aos sujeitos com muito baixa visão ou aos cegos
(Heller e
Ballesteros, 2006).
O Mestre em Educação Física Paulo Ferreira Pinto afirma que se tem vindo a
acumular evidência de que a perceção plantar, por referência à planta do pé, é
utilizada
pelos portadores de cegueira total congénita para o seu deslocamento. A perceção
plantar
resulta do contacto mecânico da planta dos pés com o solo, podendo proporcionar
informações acerca do tipo de piso, do que este representa ou pode representar,
sobretudo
após uma sucessão de contatos plantares (Pinto, 2001). Recomenda o autor que se
desenvolva a capacidade percetiva plantar, expandindo as oportunidades de
exploração de
pisos diferenciados.
Um aspeto que os dados apontam como particularmente sensível no tato, sobretudo
na identificação dos estímulos, é a familiaridade dos sujeitos com estes
(Ballesteros e
Reales, 2006). Tanto os cegos congénitos como os videntes de olhos vendados
manifestam
dificuldades na identificação de figuras tangíveis não familiares (Heller,
2006).
1.3. A AUDIÇÃO
Tem-se demonstrado que a audição se torna completamente funcional por volta das
24 semanas de gestação e que os fetos reagem a ruídos exteriores, assim como a
estímulos
linguísticos, a partir das 27 semanas (Vauclair, 2008).
Trata-se, à semelhança dos anteriores, de um sentido físico estimulado pela
energia
mecânica associada à vibração dos materiais, normalmente o ar. Em condições
equivalentes, os sujeitos cegos estão expostos aos mesmos sons que os videntes,
mas a
importância e os significados que estes assumem em termos cognitivos e
funcionais podem
ser muito distintos. Por exemplo, se nos preparamos para atravessar uma estrada
e uma
viatura se aproximar, a nossa primeira perceção poderá ser o som, mas a
tendência natural
será voltar a cabeça para o estímulo sonoro e avaliar visualmente a distância e
a velocidade
do mesmo e decidir conforme sobre a travessia. Nesta mesma situação, a audição
poderá
ser o único ou pelo menos, o mais fiável e seguro meio para um cego decidir
sobre o
momento adequado para atravessar a estrada. Efetivamente, a audição do som
produzido
pela viatura poderá proporcionar informação útil acerca da sua localização (à
esquerda ou à
direita), da sua distância e da sua velocidade. Não se trata assim, como a
investigação tem
demonstrado, de algum dom especial caraterístico dos cegos ou sexto sentido, mas
tão só
da seleção e processamento diferencial dos estímulos disponíveis e passíveis de
serem
captados o que, tão pouco, se processa automaticamente, implicando aprendizagem
e
prática estruturadas, orientadas e sistematizadas (Horton, 2000; Ormelezi,
2000).
Para as crianças cegas, particularmente as que o são desde os primeiros meses ou
semanas de vida, a audição poderá constituir-se como um contributo essencial
para
compreender a existência de uma realidade exterior, separada e mais ou menos
distante.
Para elas, estímulos sonoros que permitam uma identificação fiável são
particularmente
importantes, enquanto referências para a locomoção em larga escala (Millar,
2006).
Importa assim que as crianças aprendam, desde cedo, a (i) ter consciência dos
sons, (ii)
identificá-los, (iii) distingui-los, (iv) localizá-los e (v) atribuir-lhes
significados, processos
lentos e graduais (Gil, 2000; Horton, 2000). Por exemplo, ao ouvir uma porta a
bater, a
criança pode ainda não conhecer a sua forma, a sua função, nem o material que a
constitui,
mas este som poderá constituir-se como estímulo motivador para encetar
explorações táteis
e/ou solicitar informações verbais sobre a porta. Mais uma vez, a linguagem deve
assumirse,
nestas circunstâncias, como um mediador de significados por excelência.
A “visão facial” é uma competência estritamente relacionada com a audição e alvo
de particular atenção pela investigação. Nas palavras de Horton (2000):
“… É provável que já a tenha experimentado. Numa noite muito escura,
regressa a casa por um caminho ladeado de árvores ou arbustos. De quando
em quando pára, porque «sabe» que há um ramo à sua frente. Pode não o ver
mas, de algum modo, «sente» a sua presença. Estende então a mão, encontra
o ramo, passa-lhe por baixo e prossegue o seu caminho…” (p. 66).
Explica o autor que tal situação, nada encerra de mágico, apresentando a
seguinte
explicação científica:
“… chega até si um certo eco, talvez o barulho dos seus próprios passos
repercutido no ramo. É um efeito do tipo do que guia os morcegos nos seus
voos nocturnos. Certas crianças cegas têm esta aptidão consideravelmente
desenvolvida. Ao percorrerem determinado caminho podem ser capazes de
contar o número de árvores por que vão passando, sem lhes tocarem. Podem,
inclusive, dirigir-se directamente para uma parede ou um muro, e parar antes
de ir contra ele…” (pp. 66-67).
1.4. O OLFATO
Embora a sua presença e as suas manifestações sejam incontornáveis no dia-a-dia,
tanto dos cegos quanto dos videntes, o olfato, assim como o paladar (ponto
seguinte), são
tidos equivocamente como sentidos pouco importantes, porventura mesmo no seio da
comunidade científica que, não raras vezes, os exclui da literatura relacionada
com a
cegueira. Na verdade, podemos falar da existência de um fosso histórico cuja
amplitude
ultrapassa um século, no qual os investigadores estudaram, essencialmente, a
perceção
visual (Ballesteros e Heller, 2006; Paivio, 1971).
Estando as estruturas nervosas responsáveis pelo olfato (e também pelo paladar)
disponíveis a partir da 14ª semana de gestação (Vauclair, 2008), a importância
funcional do
olfato manifesta-se, desde logo, nos primórdios da vida, enquanto ferramenta
funcionalmente útil para a sobrevivência, contribuindo para o reconhecimento do
seio
materno, ao mesmo tempo que cheiros novos ou com significado, podem ser mais
atraentes
para um bebé que alguns objetos visualmente apelativos (Gregory, 1979; Ninio,
1994).
Sendo certo que o cego recorre, de forma voluntária, ao olfato e ao paladar com
menos
frequência do que ao tato e à audição, pensamos como Horton (2000) que as
informações
por eles disponibilizadas não são negligenciáveis para o conhecimento do mundo
circundante, por exemplo na identificação de locais e objetos, assim como de
alimentos
agradáveis ou impróprios para consumo. Em conformidade, o autor recomenda que se
trabalhe com as crianças, no sentido de adquirirem as seguintes competências
relacionadas
com o olfato: consciência, identificação, distinção e localização dos cheiros.
Podemos comparar o nosso nariz a uma central de identificação química uma vez
que, cheirar corresponde à deteção de certas moléculas no ar ou na água (Mackay,
2009;
Ninio, 1994).
1.5. O PALADAR
Estritamente relacionados em termos anatomofisiológicos, paladar e olfato
partilham algum do ostracismo a que o senso comum e mesmo a comunidade
científica os
tem votado. Ambos estes sentidos são designados de químicos, uma vez que são
estimulados a partir da deteção de determinadas substâncias químicas na boca e
no nariz,
respetivamente (Mackay, 2009).
J. Kirk Horton recomenda que se trabalhe com as crianças cegas no sentido destas
desenvolverem a sensibilidade às diferenças de paladar e à identificação de
alimentos
(Horton, 2000). Parece que somos dotados de células recetoras específicas para
cada uma
das classes primárias de sabores, especificidade essa que deve contribuir para a
organização do trabalho educativo em torno do paladar. De acordo com Mackay
(2009),
são seis as classes primárias de sabores: amargo, doce, salgado, ácido e umami
(palavra
japonesa que define o sabor da carne). Acrescenta este autor que outras
propriedades
gustativas, como as relativas à gordura e à água, carecem ainda de mais e
melhores
estudos.
1.6. A PERCEÇÃO
A perceção de algo, uma pessoa, um objeto ou uma paisagem, não se restringe
única e exclusivamente ao processamento de informações de natureza sensorial,
podendo
envolver informações resultantes de experiências prévias e/ou antecipadas,
envolvendo o
objeto propriamente dito ou outros, assim como pessoas ou situações
relacionadas, não
esquecendo as informações oriundas dos restantes sistemas sensoriais (tato,
audição, olfato
e paladar) (Gregory, 1979; Damásio, 2004). Como exemplo das influências
possíveis da
informação resultante de experiências prévias e/ou antecipadas, temos as
famigeradas
figuras ambíguas. Uma figura ambígua consiste num conjunto de linhas sem
significado
algum, que percecionadas numa busca ativa e induzida de objetos, podem
efetivamente
conduzir a uma representação dos mesmos. Por exemplo, ver uma jarra branca entre
áreas
pretas sem significado (rostos), torna-se possível em virtude da nossa
familiaridade com a
forma representada, a qual resulta de experiências anteriores com jarras de
formatos mais
ou menos equivalentes aos representados (Jimenez, 2002; Neves, 2008). Os
princípios
anteriores aplicam-se também aos restantes sistemas sensoriais, ou seja, as
influências das
experiências prévias e/ou antecipadas e as interações entre sistemas. No que
respeita às
interações entre sistemas, a maioria das experiências percetivas envolvem, pelo
menos,
duas modalidades sensoriais diferentes, o que se designa por perceção
intersensorial ou
intermodal (por exemplo, a visão e o som, o paladar e os odores) (Vauclair,
2008). A
perceção intermodal está relacionada com a designada transferência intermodal, a
qual
permite que informações provenientes de determinada modalidade sensorial
informem
outras modalidades, levando a que, por exemplo, possamos identificar visualmente
um
objeto, através de informações provenientes exclusivamente da sua perceção
táctil
(Vauclair, 2008). Consequentemente, a representação que nos chega do mundo, não
corresponde ao mundo tal qual ele é, pois ela está contaminada pelas referidas
experiências
prévias e/ou antecipadas. Neste sentido, Jimenez (2002) afirma que “identificar
um objecto
pressupõe uma correspondência entre informações perceptivas figurativas e uma
representação preexistente na memória” (p. 40). Para Paivio (1971), além de uma
representação disponível na memória, são necessários processos e competências
verbais
que permitam identificar o estímulo. Nos seus trabalhos, Lev Vigotski havia já
demonstrado que, mesmo nos estágios mais precoces do desenvolvimento, a
linguagem e a
perceção estão interligadas (Vigotski, 1994). Com base nesta ideia, vários
autores
(Gregory; 1979; Jimenez, 2002) sugeriram que a perceção corresponde a uma
hipótese
antecipada sobre a realidade, formulada ao nível cerebral com base (i) nas
representações
preexistentes (percetivas e culturais), (ii) no contexto e (iii) nos valores
individuais, a qual
é testada pelos dados sensoriais, processos acompanhados da atribuição de
significados,
com base em informações de natureza contextual e valorativa. Tanto as abordagens
teóricas tradicionais, como as mais contemporâneas, assumem que os processos
associados
às representações mentais interagem com e modificam a informação sensorial,
contribuindo assim para determinar a experiência percetual (Paivio, 1971). Datam
de 1951
as primeiras experiências científicas que demonstraram que “um mesmo estímulo é
tratado
tanto mais rapidamente quanto maior for a sua probabilidade subjectiva”
(Jimenez, 2002,
p. 41). Numa outra investigação de 1949, Bruner e Postman solicitaram a um grupo
de
sujeitos que observassem um baralho de cartas comum, para de seguida lhes
mostrarem
cartas em que os naipes apresentavam uma cor diferente da comum, por exemplo
copas
pretas e paus vermelhos, situação na qual os sujeitos descreveram estas cartas
como se de
cartas comuns se tratasse (copas vermelhas e paus pretos), enquanto outros
tentaram um
equilíbrio intermédio, referindo por exemplo copas roxas (Paivio, 1971). Um bom
exemplo
da perceção enquanto hipótese antecipada pode acontecer num centro comercial.
Aproximamo-nos de umas escadas rolantes que se encontram paradas, sabemos de
experiências anteriores que a nossa presença as acionará automaticamente mas,
por alguma
razão, desta vez elas continuaram paradas. Não obstante, o nosso corpo
comporta-se como
se elas tivessem iniciado o movimento, procurando manter-se equilibradamente num
mesmo degrau, procura essa que acaba por induzir algum desequilíbrio em virtude
da sua
desadequação à ausência de movimento das escadas. Um outro exemplo vem-nos da
natureza. Numa trovoada, ao vermos um relâmpago antecipamos imediatamente a
ocorrência subsequente do trovão. Em função da proximidade e da intensidade do
relâmpago, podemos mesmo antecipar a proximidade e a intensidade do trovão.
Quando
estamos a ler um texto escrito, o contexto da mensagem ajuda a probabilizar e
antecipar as
palavras mais adequadas para se seguirem, o que poderá explicar porque é tão
difícil
identificar pequenas gralhas, mesmo após várias leituras, sobretudo quando os
textos são
da nossa autoria (Jimenez, 2002). Assim, quanto mais conhecido for o texto, mais
fácil se
torna a antecipação e menor é o erro probabilístico. Em suma, a perturbação da
perceção
pelas imagens mentais está, em grande medida, dependente da coincidência entre
natureza
dos estímulos a percecionar e a natureza das imagens mentais percecionadas, ou
seja, por
exemplo, a perceção de estímulos visuais é perturbada, sobretudo, pelas imagens
mentais
de natureza visual (Paivio, 1971).
Desde há vários séculos que se debate a se a perceção é adquirida ou inata, por
outras palavras, se a aprendizagem de uma determinada forma de perceção é ou não
necessária. Tal debate focou-se essencialmente na visão e segundo Gregory
(1979), contou
com pensadores tão eminentes como Descartes, Locke, Molyneux e Berkeley. Diz-nos
o
autor que têm sido conduzidas várias investigações para tentar derramar alguma
luz sobre
esta questão, enquanto Bouvrie e Sinha (2007) acrescentam que este continua a
ser um dos
desafios fundamentais da neurociência. Alguns dos debates científicos mais
acesos e
apaixonados a propósito dos processos da visão, são os que esgrimem argumentos
entre a
sua natureza inata e a sua natureza adquirida. Autores há que rejeitam
firmemente qualquer
natureza inata no funcionamento da visão, sublinhando que quando nascemos ainda
não
sabemos ver, pelo que é imprescindível aprender a ver, algo que deve ocorrer nos
primeiros anos de vida (Gil, 2000). Algumas investigações têm incidido sobre
cegos
congénitos que recuperaram a visão em idade adulta, mas com resultados pouco
conclusivos, existindo evidências a favor e contra ambas as ideias. Numa súmula
dos
resultados obtidos com estas investigações, Gregory (1979) afirma que:
“… Alguns dos casos relatados são da natureza esperada pelos filósofos
empiristas. Os pacientes só viam pouco no início, sendo incapazes de
denominar ou distinguir até mesmo entre objectos e formas simples. Por
vezes, transcorria um longo período de treinamento antes de eles passarem a
ter visão útil, a qual, de facto, em muitos casos, nunca foi atingida. Alguns
renunciaram à tentativa e voltaram a uma vida de cegueira, frequentemente
depois de um período de sérias perturbações emocionais. Por outro lado,
alguns viram perfeitamente bem quase de imediato, sobretudo aqueles que
eram inteligentes e activos, e que tinham recebido uma boa educação
enquanto cegos…” (p. 191).
O estudo da identificação de configurações faciais por crianças cegas congénitas
e
que recuperaram a visão é, uma das áreas que tem contribuído com alguma
evidência a
favor do inatismo. Dois estudos de caso realizados por Bouvrie e Sinha (2007),
junto de
duas crianças cegas congénitas e que recuperaram a visão após sete e dez anos de
privação
visual, revelaram que a capacidade de discriminar faces visualmente e
localizá-las em
cenários complexos pode desenvolver-se, mesmo após longos períodos de privação
visual,
não sendo necessários longos períodos para desenvolver esta capacidade após a
recuperação da visão, uma vez que num dos sujeitos essa recuperação havia
ocorrido há
apenas uma semana.
Outra linha de investigação relacionada com a mesma questão tem estudado bebés
(Gregory, 1979). R. Frantz descobriu que os bebés passam o dobro do tempo com o
olhar
fixo num desenho semelhante a um rosto humano, comparativamente a um outro
desenho,
com os mesmos traços e elementos, mas distribuídos aleatoriamente. Mais uma vez,
os
resultados não apoiam, de forma inequívoca, apenas uma das possibilidades, pois
tanto
podem significar um reconhecimento inato do padrão visual geral dos rostos, como
podem
significar uma aprendizagem muito precoce, atendendo a que os rostos das mães
não foram
ocultados aos bebés, ou significar ambas as coisas. Outras investigações parecem
dar
ligeira vantagem à hipótese do desenvolvimento inato, tendo-se apurado uma
preferência
dos bebés por objetos sólidos em detrimento das representações bidimensionais
dos
mesmos, o que parece indicar alguma capacidade inata de avaliar a profundidade
(Gregory,
1979). No mesmo sentido, não é necessário ensinar uma criança a compreender o
espaço,
tal como evidenciaram procedimentos experimentais de grande elegância concebidos
por
Eleanor Gibson, em que os bebés se recusam a gatinhar por cima de uma chapa de
vidro, perfeitamente segura, mas que simulavam um precipício (Gregory, 1979; Ninio,
1994). O ser humano parece, assim, já nascer equipado para perceber visualmente a
profundidade e o perigo.
As contribuições mais recentes para este debate parecem conduzir a uma
hibridação
entre o inato e o adquirido, um percurso algo semelhante ao percorrido pelo
debate acerca da natureza da luz, corpuscular defendida por Newton ou ondulatória defendida
por
Huygens, o qual culminou na natureza dual aceite atualmente e que combina, entre
outras,
proposições válidas de ambas as teorias. Assim, Ninio (1991) afirma que algumas
perceções se encontram geneticamente programadas para acontecerem logo após a
nascença, como sejam a cor e o movimento, sendo que outras irão amadurecer fruto
da
experiência e sem educação formal, como o reconhecimento das formas e dos sons.
A
experiência diária diz-nos que não precisamos explicar a uma criança de dois ou
três anos
como reconhecer e distinguir o Noddy e o Ruca 10. Acompanhando o autor, voltamos
aos
cegos de nascença que recuperaram a visão na idade adulta, na busca de
evidências para o
que afirmamos. Assim, estes sujeitos sentem enorme dificuldade em reconhecer
formas,
consequência da falta de experiência. Por outro lado, aprendem depressa a
distinguir as
cores, apesar de não conseguirem distinguir formas a partir das mudanças de
tonalidade.
Na interpretação de Jacques Ninio, as áreas cerebrais que processam informações
sobre a
cor, apesar de nunca terem sido utilizadas, parecem funcionar perfeitamente,
pelo que
conclui que a análise da cor foi programada geneticamente com grande precisão.
Diz-nos o
mesmo autor que as dificuldades e a necessidade de aprendizagem aumentam quando
se
lida com imagens e signos criados pelo Homem, artefactos culturais com os quais
povoou
a sua realidade e que só ele, em todo o Reino Animal poderá compreender, como
sejam a
título de exemplo, a linguagem escrita ou a análise das imagens de um espelho
retrovisor.
Dedicamos considerável atenção aos sistemas sensoriais e à perceção, pois as
principais correntes teóricas no campo das representações mentais, assumem à
larga data
que estas estão relacionadas com a perceção, quer na sua origem, quer nas suas
propriedades funcionais (Bértolo, 2005; Damásio, 2003a, 2010; Denis e Cocude,
1989;
Paivio, 1971, 1990; Posner e Raichle, 2001). Dados recentes apresentados por
Belardinelli
(2004), suportam e ajudam a esclarecer a ideia geral, segundo a qual, as imagens
mentais
operam de forma similar à perceção: lesões cerebrais posteriores (córtex visual)
podem
provocar simultaneamente deficiências percetuais e imagético-mentais, enquanto a
ocorrência de imagens mentais de natureza visual ativa as áreas cerebrais
visuais primárias.
Esta similitude funcional parece não ter um carácter absoluto, uma vez que,
alguns estados
patológicos exibem dissociações entre a recognição percetual e as imagens
mentais, o que
poderá indicar a existência de algumas diferenças funcionais. Evidência de
natureza
neuropsicológica suporta a ideia de que a construção de uma imagem mental se
apoia nos
mesmos mecanismos cerebrais utilizados na perceção. O seguinte exemplo é-nos
proposto
por Kosslyn (1995) e Posner e Raichle (2001), o qual se refere a um estudo
clássico nesta
área. Pacientes que sofreram lesões no seu lobo parietal direito, por vezes,
demonstram
negligência visual unilateral: ignoram objetos situados à sua esquerda (o lado
direito do
cérebro recebe informação sensorial do lado esquerdo e vice versa). Os autores
dessa
investigação publicada em 1978, Bisiach e Luzzatti, pediram a estes pacientes
que
imaginassem uma cena que lhes era reconhecidamente familiar antes da lesão
cerebral.
Numa das situações experimentais, pediu-se aos sujeitos que se imaginassem numa
praça
de Milão, bem conhecida deles antes da lesão, para de seguida descreverem o que
visualizavam nas suas mentes. Não obstante o seu conhecimento acurado da praça,
anterior
à lesão, na situação experimental os sujeitos descreveram apenas os edifícios
situados do
lado direito da posição imaginada, ignorando os situados do lado esquerdo. De
seguida, os
investigadores solicitaram aos sujeitos que se imaginassem no lado oposto da
praça, de
frente para o local onde se imaginaram anteriormente e que descrevessem o que
visualizavam nas suas mentes. Foram apenas mencionados os edifícios agora
situados à
direita, os quais foram ignorados na situação experimental anterior, enquanto os
descritos
na situação anterior foram agora ignorados. Estes casos clínicos ilustram com
sustentação
que lesões cerebrais podem afetar, de forma idêntica, a perceção e a construção
de imagens
mentais, o que não poderá deixar de indiciar a partilha de substratos e de
mecanismos
processuais entre estes fenómenos. Outros estudos clínicos, também com pacientes
neurológicos, ajudam a demonstrar e compreender o envolvimento do córtex visual
na
construção de representações mentais. Como explica Farah (1988, 1996), se as
imagens
mentais visuais recorrem ao mesmo substrato funcional que a perceção visual, é
expectável
uma redução da capacidade para construir imagens mentais visuais, em simultâneo
com a
redução da perceção visual. De facto, para todos os tipos de deficiências
visuais estudadas,
resultantes de lesões no córtex visual, identificaram-se deficiências na
construção de
imagens mentais de natureza visual. Um conjunto considerável de casos de
pacientes com
cegueira cortical às cores relata uma relação entre a perda da perceção às cores
e a
incapacidade de construir imagens mentais visuais das cores. Por exemplo, para
além da
sua incapacidade para identificar ou discriminar cores, estes pacientes são
incapazes de
recordar a cor de objetos comuns, como uma bola de futebol ou uma laranja. Estes
pacientes não revelam, em geral, outras disfunções cognitivas. Várias
investigações têm
revelado boas capacidades destes pacientes na construção de imagens mentais de
natureza
visual, imagens essas acedidas através de desenhos ou descrições orais,
revelando-se
incapazes apenas em relação às cores. M. Farah é assim levada a concluir que a
perceção e
as imagens mentais das cores estão dependentes do mesmo substrato neurológico,
pelo que
a ativação das áreas visuais em tarefas associadas a imagens mentais visuais não
é, como
pugnam alguns, um mero epifenómeno. De outra forma, também carecia explicar as
razões
porque o cérebro despenderia energia na ativação das áreas visuais aquando da
construção
de imagens mentais, se essa ativação não fosse efetivamente necessária.
2. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
O sistema cognitivo engloba um conjunto de estruturas que, no seu conjunto,
permitem realizar uma determinada função geral, como ler, escrever, falar,
planear, etc.
(Posner e Raichle, 2001). O desenvolvimento cognitivo estrutura-se a partir de
múltiplos
processos de aprendizagem proativa, envolvendo (i) observações, (ii)
condicionamentos
clássicos, (iii) aprendizagens operantes e (iv) imitações, entre outros (Paivio,
2006).
No passado, houve quem defendesse que as crianças cegas manifestavam atrasos
cognitivos significativos, com base em conceções estáticas do desenvolvimento e
em
medições distorcidas, uma vez que a avaliação cognitiva destas crianças era
efetuada a
partir de testes padronizados para as crianças ditas normais (Cunha e Enumo,
2003).
Não obstante as teorias educacionais e as do desenvolvimento infantil dinâmico,
raramente terem informado e fundamentado a conceção, implementação e avaliação
das
adaptações curriculares destinadas a alunos com NEE, acreditamos hoje no primado
do
desenvolvimento infantil dinâmico, que num mesmo tempo pode seguir caminhos
diferentes ou, seguir o mesmo caminho, mas em tempos diferentes. Assim, aquilo
que
antes eram considerados atrasos, são hoje concebidos como caminhos e/ou tempos
diferentes. A teoria piagetiana do desenvolvimento infantil é apontada por Kirk
e
Gallagher (2002) como um exemplo interessante, particularmente na intervenção
junto das
crianças deficientes visuais. Assim, adotamos os intervalos de idade propostos
por Jean
Piaget, para estruturar a apresentação deste ponto.
2.1. ATÉ AOS DOIS ANOS
As experiências vividas no decorrer deste período constituem-se como a fundação
sobre a qual se irão estruturar outras competências cognitivas, nomeadamente a
linguagem
(Paivio, 2006).
A este nível do desenvolvimento cognitivo, Piaget (1975) defende que o mundo
exterior ao sujeito surge perante este, como constituído por (i) objetos não
permanentes,
(ii) espaço e tempo não organizados em grupos e em séries e (iii) causalidades
não
espacializadas nem situadas nos objetos. Nas palavras do próprio autor: “o
universo
consiste, no começo, em quadros perceptivos móveis e plásticos, centrados na
actividade do próprio sujeito” (p. 327). O autor fala de uma inteligência sensoriomotora
que visa, essencialmente, a adaptação prática, ou seja, a utilização prática e o seu
êxito. Por outro
lado e ainda segundo Piaget, constitui-se como uma adaptação do sujeito aos
objetos, mas
sem socialização do pensamento, em grande medida devido à ausência da linguagem
verbal.
Sintetizando os principais desenvolvimentos emergentes deste período, Fernandes
e Pinho (2007) consideram (i) a ligação das sensações percetivas ao ato motor,
(ii) a
exploração e perceção concreta dos objetos, pelo movimento e a nível consciente,
(iii) a
reprodução dos gestos úteis e abandono dos inúteis, (iv) o início do
desenvolvimento da
linguagem e (v) o início do jogo.
Não olvidando a variabilidade individual associada ao desenvolvimento, existe
evidência de que, o desenvolvimento cognitivo das crianças cegas congénitas na
primeira
infância é bastante afetado (Martín e Bueno, 1997). Por exemplo, a simples
presença de
determinados objetos, pode ser razão suficiente para que um bebé vidente se
sinta atraído
por eles e tente alcançá-los por sua iniciativa ou por intermédio do adulto,
seguindo-se
depois a sua exploração que raramente se limita à visão. A criança mexe com as
mãos e
mete na boca, agita e percute. A investigação tem demonstrado que
características visuais
como contraste, movimento, curvatura, cor e simetria atraem e mantêm a atenção
do bebé
vidente (Sousa, 2003). A audição sem a visão parece ser menos atrativa para o
bebé, pois
no primeiro ano de vida, tendencialmente, um bebé cego só se dirige espontânea e
autonomamente para um som, meses depois de um bebé vidente demonstrar esses
comportamentos em relação aos estímulos visuais (Santin e Simmons, 1977). Como
lembram Kirk e Gallagher (2002), um bebé cego ao não ver os objetos, a simples
presença
destes não é suficiente para que se sinta atraído por eles, logo não tentará
alcançá-los. Mas,
se eles forem deliberadamente introduzidos no seu raio de ação por intermédio de
terceiros,
ou conduzido ao encontro dos mesmos, a exploração que se segue tenderá a seguir
um
padrão semelhante ao dos bebés videntes, como mexer e meter na boca, agitar e
percutir.
Estes autores recomendam o recurso a chocalhos e jogos de encontrar objetos
escondidos
que emanem cheiro ou som.
As investigações realizadas com crianças cegas no estádio sensoriomotor revelam
que, comparativamente aos pares videntes, as primeiras diferenças marcantes do
desenvolvimento se manifestam entre os quatro e os nove meses de vida, período
em que
os videntes deverão desenvolver a coordenação entre a visão e a preensão
(Ormelezi,
2000).
2.2. DOS DOIS AOS SEIS ANOS
Aproximadamente a partir dos dois anos, Martín e Bueno (1997) afirmam que a
criança inicia a sua caminhada pelo período pré-operatório de Piaget, ao qual se
seguirá o
período das operações concretas (entre os 6 e os 11 anos).
Segundo o próprio Jean Piaget, é durante o segundo ano que a representação vem
completar a ação característica do período anterior, graças a uma integração
progressiva
dos comportamentos (Piaget, 1975). Tal evolução, diz o autor, permite progredir
da ação
para a linguagem 11 e para o pensamento, começando os esquemas a organizarem-se
em
sistemas de conceitos racionais. Esta evolução está fortemente relacionada com o
desenvolvimento da linguagem verbal e todo o conjunto beneficia da cooperação
interindividual. Piaget salienta uma relação estreita e bidirecional entre
aquilo que designa
de pensamento social e de pensamento racional. Apesar de a linguagem estar já em
fase de
desenvolvimento, pode acontecer que a criança não consiga, ainda, traduzir em
palavras e
explicações verbais, as operações que já domina plenamente em termos de ação e
que
iniciaram o seu desenvolvimento ainda na fase anterior.
Referimos no parágrafo anterior a importância que Piaget atribui à cooperação
interindividual. A este respeito salienta (Piaget, 1975) uma relação estreita e
bidirecional
entre aquilo que designa de pensamento social e de pensamento racional. Apesar
da
crescente importância que o pensamento social começa a manifestar, nesta fase
não é fácil
as crianças abandonarem o seu pensamento próprio para se adaptarem ao dos
outros, sendo
ainda propensa à satisfação prioritária dos seus desejos e ao julgamento segundo
o seu
ponto de vista.
Para Piaget e Inhelder (1977), uma das características mais marcantes deste
período
é a dificuldade ainda manifestada pelas crianças no domínio das transformações,
o que as
leva a raciocinar, sobretudo, com base em configurações, cuja natureza é,
essencialmente,
estática. Assim se explica, segundo os autores, que “quando se faz o
transvasamento de um
líquido, por exemplo, de um copo largo A para um copo estreito B, o sujeito de
4-5 anos
compara as configurações de partida e de chegada desprezando a transformação e
conclui
que a quantidade aumentou em B” (p. 498).
De acordo com Piaget (1971), este período é marcado pelo aparecimento da
representação cognitiva constituída de pré-conceitos e caracterizada pela busca
de
equilíbrio entre a assimilação 12 e a acomodação 13, favorecida pelo envolvimento
dos
significantes coletivos que são os signos verbais. Os pré-conceitos não estão
organizados
segundo a sua generalidade ou hierarquia, ou seja, os objetos percebidos são
assimilados a
objetos dados pela representação, mas sem qualquer organização em classes ou
relações
gerais, pelo que um objeto percebido ou evocado é considerado como um exemplar
tipo do
todo. Por exemplo, nesta fase, a criança tem dificuldades em identificar os cães
de acordo
com as raças respetivas pelo que, seja um pastor alemão ou um caniche, para a
criança
ambos são, simplesmente cães. Ainda que os possa diferenciar, por exemplo em
termos de
tamanho ou de cor.
No período pré-operatório, os cegos congénitos deparam-se com dificuldades no
desenvolvimento da imitação, que surge empobrecida em relação aos pares
videntes, o que
terá como consequência um atraso no desenvolvimento do jogo simbólico (Ormelezi,
2000).
2.3. DOS SEIS AOS ONZE ANOS
Para o modelo de Piaget, a atividade inteligente é marcada pelo equilíbrio entre
a
assimilação e a acomodação, sendo este período marcado pelo estabelecimento
desse
mesmo equilíbrio (Piaget, 1971). O pensamento da criança caracteriza-se agora
pela
“velocidade e reversibilidade cognitiva, pelo abandono do intuitivo, da confusão
do real
com o irreal, do exterior com o interior” (Fernandes, 2004, p. 51).
Uma das características do pensamento operatório que vai despontando nesta fase
é
a coordenação entre os estados configuracionais e as transformações, sendo os
primeiros
concebidos como resultados de algumas das segundas, ao mesmo tempo que poderão
ser o
ponto de partida de outras transformações (Piaget e Inhelder, 1977).
A criança domina, nesta fase, os processos de classificação do mundo dos objetos
concretos, operando através de classificações, comparações, diferenciações,
seriações, etc.
(Fernandes e Pinho, 2007).
As crianças cegas poderão manifestar atrasos no desenvolvimento das operações
concretas, com maior desfasamento em tarefas de tipo figurativo-percetivo que
nas de
carácter linguístico. Nesta linha, os trabalhos de Ochaita e Rosa (1995) revelam
que, em
média, (i) os cegos apresentam um atraso de três a sete anos nos testes
figurativos ou
espaciais (tarefas espaciais, de imagens, bem como seriações manipulativas),
(ii) esse
atraso é anulado entre os 11 e os 15 anos de idade, mesmo para tarefas espaciais
complexas
e (iii) os cegos obtêm rendimento similar aos videntes em tarefas verbais de
classificação,
inclusão e seriação.
2.4. A PARTIR DOS ONZE ANOS
Como resulta do ponto anterior, a formação de conceitos atravessa vários
estádios,
envolvendo operações mentais gradualmente mais complexas, culminando o seu
desenvolvimento mais elevado na adolescência, quando os sujeitos são capazes de
formular verdadeiros conceitos, não sendo diferente o caso das crianças cegas
(Nunes e
Almeida, 2005).
Segundo Martín e Bueno (1997), a inteligência representativa tende a
manifestar-se
através da comunicação linguística, da imitação de modelos, da exteriorização da
imagem
mental através do desenho e da prática do jogo simbólico, as três últimas
manifestações
particularmente sensíveis nas crianças cegas e sujeitas a atrasos. O ingresso no
estádio das
operações formais indica-nos que uma criança começa a estar apta para assimilar
e
acomodar conceitos abstratos, processos que requerem mais tempo, porque
tendencialmente mais lentos nas crianças cegas (Gil, 2000). Não obstante,
estudos
conduzidos por Ochaita e Rosa (1995) não identificaram diferenças significativas
entre
cegos e videntes, na resolução de problemas de forma hipotético-dedutiva, com
recurso a
(i) controlo de variáveis, (ii) material manipulativo, (iii) material verbal e
(iv) raciocínio
causal.
Há várias décadas que a teoria e os ensinamentos de Piaget alicerçam e
robustecem
a investigação com crianças cegas, não deixando de levantar novas questões, ao
mesmo
tempo que algumas das velhas questões continuam em aberto. Assim vive o
conhecimento
científico e a investigação. Não obstante a distância temporal que nos separa de
1974, não
podemos deixar de considerar o trabalho de Stephens e Simpkins, datado desse
mesmo ano
e de inspiração Piagetiana, como uma referência na investigação com crianças
cegas
congénitas, nomeadamente pela chamada de atenção para a necessidade de conceber
e/ou
adaptar estratégias e atividades que permitam à criança cega interagir e
conhecer o mundo
físico. Permitimo-nos transcrever a descrição que Kirk e Gallagher (2002) nos
fazem deste
trabalho:
“… traçar o desenvolvimento do raciocínio lógico, comparando setenta e
cinco crianças com cegueira congénita e setenta e cinco crianças da mesma
idade com visão e com escores equivalentes de QI. As crianças receberam
uma bateria de tarefas piagetianas de raciocínio que envolviam várias
experiências com o ambiente físico. Os resultados desse estudo sugeriram que
o nível de desenvolvimento conceitual das crianças com visão era
significativamente maior do que o das crianças cegas de idade e aptidão
semelhantes. Stephens e Simpkins estavam inclinados a atribuir esses
resultados à falta de experiências sensoriais na primeira infância por parte das
crianças cegas. Tentaram prosseguir utilizando um currículo que atacou esse
problema apresentando uma série de experiências que ilustravam formações
fundamentais no modelo piagetiano…” (p. 218).
Tendencialmente, as crianças cegas obtêm melhores desempenhos que as crianças
videntes em tarefas associadas à memória para novos objetos, tanto a curto como
a longo
prazo, sendo que quanto mais novas são as crianças cegas, melhores tendem a ser
os
resultados a este nível, sustentando a importância e eficiência da estimulação
precoce
(Heller e Ballesteros, 2006).
Como resulta do exposto anteriormente, a cegueira parece não funcionar como
causa per se de limitações cognitivas. São as limitações que se impõem no
conhecimento
do mundo físico, sobretudo às crianças cegas congénitas, que poderão resultar em
desfasamentos negativos, pela falta de informação visual e de incentivo (i) para
ações
motoras como o gatinhar e a marcha que permitiriam alcançar os objetos, (ii)
para ações
sociais, uma vez que a criança só se aperceberá da presença de outrem pelo toque
ou pelo
som que, se não ocorrerem, a criança poderá nem se aperceber que está
acompanhada, não
solicitando intermediação para alcançar os objetos e/ou solicitar informações
adicionais,
assim como (iii) para ações de natureza afetiva as quais poderão enfermar das
mesmas
limitações impostas às ações sociais, com a agravante da ausência de informação
visual
não permitir percecionar e responder a estímulos de natureza afetiva como o
olhar e o
sorriso, fundamentais para a criação de um ambiente estimulante de partilha de
ideias. Por
outro lado, a investigação tem demonstrado os efeitos perniciosos da
passividade,
proporcionando a conceção, implementação e avaliação de estratégias eficazes de
minimizar as referidas limitações, podendo as crianças cegas alcançar um
desenvolvimento
cognitivo equivalente ou superior às videntes. Vários estudos permitem concluir
que os
atrasos no desenvolvimento observados em algumas crianças cegas, não são
consequência
direta da falta de visão, mas de aspetos secundários relacionados com o contexto
social em
que se processa (Nunes e Almeida, 2005). Lembra-nos Masini (2003) que não é
demais
enfatizar a importância da criança cega viver o mundo de forma plena e proativa,
contactando e aprofundando o conhecimento de pessoas e objetos (naturais e
artificiais),
explorando e tirando o máximo partido dos sentidos de que dispõe. Em suma, a
cegueira,
tal como realçam Heller e Ballesteros (2006), ainda que possa estar associada a
atrasos
temporários do desenvolvimento das crianças portadoras, jamais poderá pressagiar
um
adulto menos capaz.
2.5. O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM VERBAL
No âmbito do desenvolvimento cognitivo, merece destacado realce o
desenvolvimento da linguagem verbal, fundamental a qualquer ser humano e patente
da
própria humanidade, como demonstram alguns estudos experimentais, raros, os
quais
proporcionaram que bebés humanos fossem criados com bebés macacos, tratados da
forma
mais idêntica possível numa família humana. Inicialmente, o desenvolvimento dos
bebés
macaco parecia mais acelerado, mas era ultrapassado pelos bebés humanos a partir
do
momento em que estes desenvolviam a linguagem verbal (Gregory, 1979). Segundo
Gil
(2000), a linguagem verbal nas crianças cegas assume-se, a par do tato, como
canal
primordial de contacto com o meio envolvente. A linguagem permite aos indivíduos
cegos,
em um conjunto considerável de ocasiões, conhecer e manipular mentalmente as
realidades
físicas e sociais circundantes.
Constitui-se como um facto incontestado que, não obstante as variações que podem
ocorrer individualmente, as diferentes fases do desenvolvimento da linguagem
tendem a
ser fixas e universais, mesmo entre culturas muito distintas. A este respeito:
“…durante o primeiro ano de vida, a criança normal adquire primeiro o
comportamento de balbuceio, constituído por sons não diferenciados
produzidos de maneira não específica. A partir do primeiro ano, o sistema
fonológico instala-se: a criança pode pronunciar mais ou menos distintamente
um número crescente de palavras, sendo esta fase marcada sobretudo por um
fenómeno de ecolalia, isto é, a repetição em eco dos sons ouvidos. A partir de
dois anos, a compreensão da linguagem ouvida é quase completa e constróise
o sistema morfossintáctico: construção de frases de duas ou três palavras
cuja organização começa a corresponder a regras de sintaxe…” (Habib, 2003,
p. 244).
O desenvolvimento da linguagem verbal, em qualquer criança, deve processar-se a
par do desenvolvimento dos respetivos significados. Para Paivio (1990), desde
que as
representações da memória correspondam aos sons do discurso, a linguagem
significativa
ou com significado começará a estabelecer-se cedo no desenvolvimento da criança,
através
da exposição ao discurso oral, nomeadamente dos adultos próximos. Paralelamente,
os
sons produzidos pela criança vão, gradualmente, assumindo as características
gerais da
comunidade linguística em que a criança se insere. Aproximadamente a partir dos
dois ou
três anos, os dados experimentais revelam a inexistência de diferenças
significativas dos
cegos em relação aos videntes, na capacidade de codificação semântica da
informação
(Díaz-Aguado et al, 1995; Ninio, 1994; Ochaita e Rosa, 1995; Peraita et al.,
1992). Antes
desta idade, o balbucio desenvolve-se ao longo do primeiro ano de vida, de forma
normal e
semelhante à dos videntes, enquanto o aparecimento das primeiras palavras se
pode revelar
mais variável, podendo manifestar-se com ligeiro atraso. A este respeito, Dias
(1995)
afirma que a aquisição da linguagem nas crianças cegas é equivalente às
videntes, podendo
verificar-se atrasos recuperáveis nas primeiras, como resultado de experiências
de vida
pobres e pouco estimulantes. A partir dos 9 ou 10 anos e uma vez estabelecida a
aquisição
da linguagem pelas crianças cegas, esta dirige e organiza os processos de
classificação e
estruturação dos conhecimentos sobre o mundo, manifestando uma série de esquemas
verbais sobre categorias naturais e artefactos, que em nada diferem dos
videntes, embora
com desfasamentos cronológicos em detrimento dos primeiros (Peraita et al.,
1992).
Assim, enquanto ferramenta cognitiva de extraordinária utilidade para a
adaptação à
realidade, a codificação verbal da informação ajuda a superar as dificuldades
manifestadas
pelas crianças cegas, nomeadamente nos primeiros estádios de desenvolvimento, o
que
pode explicar porque parecem não existir diferenças significativas na idade de
aparecimento do pensamento formal entre os adolescentes cegos e os videntes
(Díaz-
Aguado et al., 1995). Os sujeitos cegos têm revelado, em várias investigações,
uma
memória verbal superior aos videntes com os mesmos padrões de desenvolvimento,
sendo
que o processamento da linguagem e da memória nos cegos parece envolver redes
neuronais extensas, as quais abrangem também as áreas cerebrais visuais (Amedi
et al.,
2005).
No estudo do desenvolvimento da linguagem em crianças cegas, tem merecido
especial atenção a utilização de verbalismos, que Peraita e suas colaboradoras
(1992)
definem como a utilização pelos cegos de palavras com significado visual ou de
referências
visuais, sem equivalente em outras modalidades sensoriais. As autoras referem um
estudo
efetuado por Landau, de 1983, onde é analisada a utilização de verbalismos por
uma
menina cega. Para esta menina, “ver” não é uma palavra desprovida de sentido
quando a
utiliza, tal como não assume o seu significado literal pela falta de experiência
vidente.
Constatou-se que utilizava esta palavra desde os 28 meses aproximadamente, idade
equivalente ao início da sua utilização por parte dos videntes. Para ela, “ver”
parecia
assumir um significado isomorfo de “tocar” num sentido ativo, ou seja, explorar
percetivamente com as mãos. Com base nos seus estudos acerca dos conteúdos
oníricos em
cegos, congénitos ou não, Bértolo e Paiva (2001) vão mais longe e formulam uma
hipótese
diferente:
“… Parece que um discurso com componentes visuais poderá ser mais do que
um simples enunciar de conceitos apreendidos, mas poderá ter, de facto, uma
resposta e uma componente de activação occipital. Ou seja, poder-se-á
considerar a hipótese de os cegos serem capazes de produzir imagens virtuais,
e de que essa representação imagética possa ter, por exemplo, uma origem
genética…” (p. 30).
No nosso quotidiano utilizamos a linguagem gestual a par da verbal, de forma tão
natural que quase não damos pela presença dela. Relatos da Universidade de
Chicago
(University of Chicago, 1998) afirmam que as crianças cegas utilizam os gestos
como parte
integrante do seu discurso, em grande parte, de forma semelhante às crianças
videntes.
Referindo-se aos trabalhos de Goldin-Meadow e Jona Inverson, acrescentam que os
gestos
parecem ser parte integrante do processo de falar em si mesmo e, não tanto, o
resultado da
observação e imitação de modelos (caminhos inacessíveis às crianças cegas,
particularmente às cegas congénitas). Sugerem estas autoras que os gestos que
acompanham com o discurso falado podem refletir, em si mesmos, ou até facilitar,
o
pensamento subjacente ao discurso verbal. Na investigação realizada, os gestos
parecem
facilitar o acesso aos pensamentos das crianças, pensamentos esses que podiam
ainda não
ter sido expressos em palavras. O grupo de cegos congénitos gesticulou com a
mesma
frequência dos videntes, assim como procuraram transmitir ideias similares com
gestos
idênticos. Para testar a possibilidade dos gestos serem realmente auxiliares do
pensamento
e não meras formas conscientes de comunicar, repetiram-se as tarefas da
investigação
referida anteriormente, mas colocando um cego no papel de investigador e
informando os
sujeitos de que estavam a falar com um adulto cego. Nesta condição, todas as
crianças
continuaram a gesticular, com a mesma frequência e gestos semelhantes à condição
anterior.
3. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL
Por todas as suas implicações no desenvolvimento global da criança, desde o
primeiro dia que o desenvolvimento emocional não pode ser descurado, seja nas
crianças
ditas normais, seja nas referenciadas como portadoras de NEE. Como salienta
Fernandes
(2004), para o recém-nascido e durante muito tempo, a afetividade é a única
forma de
comunicação ao seu dispor para comunicar com o mundo exterior. Ela gosta ou não
gosta,
tem medo ou não tem medo, ri, chora ou grita em função dos seus estímulos
interiores e
exteriores, satisfazendo assim grande parte das suas necessidades básicas de
sobrevivência.
Como resposta, a mãe promove contactos entre o seu corpo e o da criança, embala,
amamenta, sorri e dialoga ou canta com uma voz quente e meiga. O desenvolvimento
emocional está, necessariamente, ligado às emoções. Acontece, com alguma
frequência,
que emoções e sentimentos sejam designações usadas indiscriminadamente como
sinónimos, o que segundo Damásio (2003a, 2003b, 2010) não é correto, pois são
processos
distinguíveis. Entende por emoção um programa complexo, dotado de grande
automatização e de ações modeladas pelo processo evolutivo da espécie, as quais
estão
associadas a um programa cognitivo complexo, ou seja, emoções constituem ações
que
ocorrem no nosso corpo de forma automatizada e, muitas vezes modelada, incluindo
desde
as expressões faciais, às posições do corpo e às mudanças nas vísceras e no meio
interno.
Por exemplo, o acelerar do ritmo cardíaco como resposta a uma situação
inesperada e
assustadora. Os sentimentos são, por outro lado, perceções daquilo que acontece
no corpo e
na mente quando sentimos emoções, ou seja, são imagens mentais das ações e não
as ações
em si mesmas, acompanhadas de pensamentos com certos temas e de um certo modo de
pensar. Portanto, é lícito afirmar que, apesar da sua relação íntima e aparente
simultaneidade, a emoção precede o sentimento (Damásio, 2003b, 2004).
No caso particular das crianças cegas congénitas, atos de comunicação como os
sorrisos e as expressões faciais 14 do adulto, altamente gratificantes para o
bebé vidente mas
não percetíveis pelos cegos, devem dar lugar a contatos faciais, ao mesmo tempo
que se
vai falando com ele, para que ele se aperceba e aprenda a identificar quem lhe
fala (Martín
e Bueno, 1997; Dias, 1995; Peraita et al., 1992; Posner e Raichle, 2001;
Vauclair, 2008).
Comparativamente a um bebé vidente, Barraga (1976, citado em Kirk e Gallagher,
2002),
recomenda que se invista mais tempo com carícias, colo, toques, balanço e
movimentação
do bebé cego congénito. Estes resultados surgem corroborados num estudo mais
recente,
realizado por Eliana Ormelezi em 2000, em cuja maioria dos jovens adultos por si
estudados, cegos congénitos, salientaram que “ a presença de alguém adulto que
toca,
cuida, acarinha, fala e ama é um aspecto fundamental para o ser humano nesse
processo de
diferenciar-se e tornar-se sujeito” (p. 190). Estas interações deverão, por
exemplo,
fomentar a curiosidade e a motivação da criança, estimulando-a a aproximar-se do
mundo
dos objetos, a manipulá-los e explorá-los, podendo fazer experiências com eles.
Para estes
autores, a adequação das interações afetivas das crianças cegas com as pessoas
que a
rodeiam é fundamental, nomeadamente para o desenvolvimento da linguagem verbal.
A
voz e o toque, em especial por parte dos adultos mais significativos, são
fatores com
destacada importância para Gil (2000), nomeadamente por se constituírem como
formas
eficazes de tranquilizar e confortar a criança. Sendo certo que os
comportamentos da
criança capazes de cativar a atenção e a reação do adulto não dependem da visão,
como por
exemplo chorar, sorrir e agarrar, estes podem cumprir plenamente as suas
funções, também
no caso das crianças cegas. Já as reações dos adultos às demandas da criança
cega poderão,
com frequência, não ser as mais adequadas, se fizerem apelo à perceção visual,
minimizando os restantes órgãos sensoriais ao serviço da criança cega (Cunha e
Enumo,
2003). Por exemplo, por mais autêntico, belo e sentido que seja um olhar e um
sorriso
silencioso, eles dificilmente serão captados pela criança cega. Mas as carícias,
massagens,
contar uma história, cantar ou simplesmente falar com ternura, partilhar
brincadeiras e
gargalhadas, poderão ser altamente gratificantes, tanto para a criança cega como
para os
seus interlocutores.
A construção de uma imagem equilibrada de si próprio, consciente e real,
enquanto
conjunto de elementos da personalidade considerados nitidamente como
característicos do
si, pode influenciar o desenvolvimento emocional. Consequentemente, sendo
dependente,
em parte, das experiências anteriores e da imagem que os outros projetam desse
si, a
criança poderá considerar-se capaz ou incapaz em função das avaliações alheias e
da
consciencialização acerca da própria eficácia ou ineficácia (Dias, 1995). Os
profissionais
que trabalham com adultos cegos numa perspetiva clínica destacam, entre as
dificuldades
mais importantes destes sujeitos, as relacionadas com a compreensão e/ou
expressão das
próprias emoções, o que poderá resultar da falta de feedback visual sobre as
reações
emocionais dos outros, nomeadamente nos atos de comunicação, assim como da
crença de
que as suas emoções são tão distintas dos restantes seres humanos, que não podem
ou não
merecem ser partilhadas (Díaz-Aguado et al., 1995). Dados empíricos revelam que
as
crianças cegas tendem a apresentar um baixo autoconceito, considerando-se menos
populares e menos felizes que os seus pares videntes, sendo que as diferenças se
acentuam
na adolescência (Díaz-Aguado et al., 1995; Zafra, 1991). Não é assim de
estranhar que a
ansiedade patológica e a depressão tenham uma incidência maior nas crianças
cegas que
nos seus pares videntes, situação para a qual Zafra (1991) recomenda particular
atenção
por parte dos adultos envolvidos na educação da criança. Como conclui Nunes
(2004), este
baixo autoconceito pode influir negativamente no desempenho cognitivo dos
sujeitos. Ao
solicitar a crianças cegas congénitas que descrevessem verbalmente as suas
representações
mentais de vários conceitos obteve, muitas vezes, como resposta inicial “não
conheço” ou
“não sei dizer o que é” sendo que, posteriormente e por via de estratégias
alternativas de
inquirição obteve, desses mesmos sujeitos, representações corretas e elaboradas.
O conhecimento de si mesmo, das emoções e consequentes sentimentos é destacado
por Kirk e Gallagher (2002), quando se referem a Ralph, uma criança de 11 anos
com
visão muito reduzida:
“… Talvez a principal preocupação para a sua adaptação escolar seja o modo
como Ralph sente a si mesmo. Sua deficiência visual é suficientemente séria
para que às vezes não tenha a certeza se pertence à comunidade dos que têm
visão ou à comunidade dos cegos. Ele sente profundamente o fato de ser
desajeitado e a sua incapacidade de se sair bem em atletismo – uma dimensão
muito importante na vida de um menino de onze anos –, mas não discute isso
com ninguém. […] Acima de tudo, Ralph está começando a se preocupar com
o seu futuro: o que fará de sua vida quando crescer? Como poderá ser
independente? Como poderá fazer amizade com o sexo oposto?...” (p. 190).
O trecho anterior chama-nos a atenção para a importância dos grupos de
referência.
A este respeito, vários autores salientam a importância da criança cega se
relacionar
simultaneamente com múltiplos grupos de referência, nomeadamente um grupo dito
macro, composto por crianças sem NEE e um grupo micro, preferencialmente
inserido no
anterior e composto por crianças com NEE, similares ou não (Díaz-Aguado et al.,
1995;
Garialde et al., 1992).
Ao estudarem o controlo e a expressão das emoções em crianças cegas e videntes,
com idades compreendidas entre os 6 e os 13 anos, Cole e outros (1989, citados
por Díaz-
Aguado et al., 1995) relatam que (i) na tentativa de controlar as manifestações
externas da
deceção, ambos os grupos manifestam, com frequências e intensidades similares,
expressões verbais de tipo positivo, assim como sorrisos, ao mesmo tempo que
(ii) se
observam diferenças significativas entre os grupos, nas crianças mais velhas,
quanto à
consciência dos seus comportamentos de dissimulação da deceção. Assim, (i) a
cegueira
congénita parece não impedir o controlo espontâneo de emoções negativas, mas
(ii) afeta a
consciência acerca desse controlo, sobressaindo a utilização consciente de
controlos
verbais em detrimento dos não-verbais, enquanto os videntes evidenciam, pelo
contrário,
maior consciência dos controlos não-verbais.
4. DESENVOLVIMENTO MOTOR
O sistema motor compreende as estruturas destinadas às funções da motricidade, a
qual se entende como “o conjunto dos mecanismos que permitem ao nosso organismo
mover o corpo e os membros em relação aos objectos que nos rodeiam e manter a
nossa
postura, isto é, a atitude do corpo no espaço” (Habib, 2003, p.89).
A maturação do sistema motor dos vertebrados, nomeadamente no que respeita ao
tónus e às posturas, segue a lei da progressão céfalo-caudal e a lei
próximo-distal. De
acordo com Vauclair (2008), a primeira implica que a maturação ocorre de forma
descendente, da cabeça para a parte inferior do corpo, logo desde a vida
intrauterina,
enquanto a segunda implica que a maturação ocorre do tronco para as
extremidades.
Do nascimento aos três anos de vida as crianças devem desenvolver (i) a
sustentação da cabeça, (ii) o rolar, (iii) o gatinhar, (iv) o andar, (v) o
correr e (vi) o saltar
(Gil, 2000). Este percurso, essencial ao desenvolvimento motor é particularmente
sensível
nas crianças cegas, particularmente nas cegas congénitas. Na primeira infância o
défice
visual levanta graves problemas no entanto, pouco notórios nos primeiros quatro
meses de
vida:
“… o desenvolvimento nesta etapa baseia-se na inteligência prática, na
percepção de sensações recebidas do meio ambiente e sua interacção com este
através dos primeiros movimentos. Até aos quatro meses a falta de visão não
é ainda um factor determinante: o bebé segue um ritmo de desenvolvimento
normal, exercitando os reflexos próprios e inatos com excepção da resposta
reflexa a estímulos luminosos; adquire as primeiras capacidades, centradas no
domínio do próprio corpo, como a sucção e a preensão dos objectos que estão
em contacto com o seu corpo…” (Martín e Bueno, 1997, p. 325).
Entre os quatro e os nove meses, período em que os videntes desenvolvem a
coordenação entre a visão e a preensão (Ormelezi, 2000; Peraita et al., 1992),
as
influências da cegueira congénita podem tornar-se mais notórias, como nos
relatam Martín
e Bueno (1997):
“… os bebés normovisuais começam a desenvolver, por um lado, o hábito de
pegar nos objectos que percebem através da visão e, por outro, a permanência
dos objectos, coisa que não se consegue até ao ano e meio ou dois anos, assim
como a coordenação óculo-manual. Nos bebés cegos o processo é diferente,
verificando-se um atraso considerável devido a que a coordenação áudiomanual
é mais difícil e a sua aquisição é mais lenta. Da mesma forma, a um
bebé cego será muito mais difícil adquirir a noção de permanência do objecto.
Para ele, um objecto deixa de existir no momento em que perde o seu
contacto ou deixa de ouvir o seu som.
No bebé cego, o comportamento normal de agarrar um objecto não se
verifica antes dos sete meses. Só a partir daí começa a procurar os objectos
que antes teve na mão. Por volta dos nove meses começa a utilizar algumas
formas de procura desses objectos e, a partir dos 12 meses, aproximadamente,
procura objectos guiando-se pelo som que emitem mesmo sem antes ter
pegado neles…” (p. 325).
Momentos aguardados com expectativa e vividos intensamente por qualquer
progenitor ou cuidador são o sentar, o gatinhar e o caminhar, fortemente
relacionados com
o desenvolvimento da postura. A este respeito:
“… os bebés cegos seguem as mesmas linhas de desenvolvimento motor dos
bebés normovisuais, mas têm mais dificuldade na mobilidade devido à
ausência de estímulos visuais vindos do exterior. O início do gatinhar situa-se
por volta dos 12 meses e a marcha pelos 19…” (Martín e Bueno, 1997, p.
325).
Como afirma Vauclair (2008), a motricidade e a perceção estão fortemente
relacionadas. Ao não ser motivado por estímulos visuais, como um brinquedo com
cores
apelativas ou uma lâmpada que se acende, o bebé cego sentirá menor necessidade
de
erguer a cabeça, de rolar e de gatinhar, como forma de alcançar esses objetos
visualmente
apelativos, levando a que e segundo Gil (2000), os seus músculos possam tardar a
desenvolver-se, o que por retroação dificultará o erguer da cabeça, o rolar e o
gatinhar. A
criança cega sente pouca motivação para se aventurar, por sua conta e risco, na
exploração
de um ambiente imprevisível, acrescentando alguma inércia ao desenvolvimento da
mobilidade (Figueira, 1996; Santin e Simmons, 1977). Não é assim de estranhar
que
algumas crianças cegas, aos três anos de idade e sem qualquer restrição motora
de natureza
anatómica ou fisiológica, revelem atrasos significativos no desenvolvimento das
suas
competências de marcha (Figueira, 1996). No mesmo sentido Gil (2000) acrescenta
que:
“… Frequentemente, os bebês com baixa visão preferem ficar em um
ambiente constante e familiar, temendo as mudanças – mesmo que seja
apenas uma mudança de posição. Alguns, por exemplo, querem permanecer
de costas, escolhendo a estabilidade e a imobilidade para se proteger do
desconhecido mundo ameaçador…” (p. 22).
Com base em Fraiberg (1977), Ochaita e Rosa (1995) traçam-nos o perfil de
desenvolvimento típico de um bebé cego: em média, até aos sete meses de idade,
um bebé
cego não procura recuperar um brinquedo acabado de retirar da sua mão; entre os
sete e os
oito meses de vida, inicia a busca de objetos logo após ter contactado
tactilmente com eles,
por momentos breves e não evidenciando referências espaciais em relação ao
último
contacto; ainda entre os sete e os oitos meses, reage ao som de objetos
perdidos, não os
procurando, mas abrindo e fechando a mão como se quisesse agarrá-los; nesta
fase, não
reage a objetos sonoros que não foram tocados previamente; entre os oito e os
onze meses,
manifesta algumas referências espaciais, procurando objetos em torno do local
onde os
perdeu e se tocado previamente, procura já os objetos perdidos mediante o seu
som; aos 12
meses procura objetos guiando-se somente pelo seu som, o que evidencia a
coordenação
definitiva entre o ouvido e a mão.
Do exposto anteriormente, resulta essencial estimular precocemente o
desenvolvimento do domínio corporal, da coordenação motora e da orientação,
competências pouco desenvolvidas nas crianças cegas, contribuindo
simultaneamente para
debelar o torpor muscular, a rigidez, as estereotipias e as dificuldades na
estruturação
espacial (Zafra, 2001). Além da importância que o desenvolvimento motor assume,
em si
mesmo, ele impactará significativamente no desenvolvimento de outras
competências ao
longo da vida, tanto de um cego como de um vidente (Jensen, 2002). No entanto,
algumas
especificidades merecem destaque no caso dos cegos, como por exemplo a
aprendizagem
da leitura e da escrita em Braille que requer o desenvolvimento de habilidades
motoras
finas, assim como de flexibilidade nos punhos e agilidade nos dedos (Gil, 2000,
2002).
5. DESENVOLVIMENTO SOCIAL
O desenvolvimento social e consequentemente a sociabilidade, compreendem
potencialidades humanas que parecem estar inscritas nos genes da espécie. Somos,
afinal,
uma das espécies mais sociais da Biosfera. Nas palavras de Brazelton e Sparrow
(2010)
“os seres humanos são animais sociais desde o início” (p. 31). No seguimento do
princípio
anterior, Fernandes e Pinho (2007) afirmam que a sociabilidade “conduz o
indivíduo a
comportamentos imitativos, à tomada de consciência dos outros e de si-mesma, ao
desenvolvimento de emoções e de afectos e à concretização de relações
interpessoais que
reforçam a sua autoconsciência” (p. 27).
Em termos gerais, Kirk e Gallagher (2002) salientam a inexistência de problemas
sociais inevitáveis sentenciados pela cegueira, da mesma forma que a cegueira
também não
confere uma nobreza automática. Em suma, a cegueira acontece em seres humanos,
que
continuam humanos, com as suas limitações e os seus talentos. Segundo estes
autores, a
liberdade restringida e a limitação de experiências das crianças cegas, muitas
vezes
consequências por um lado da falta de estimulação e por outro, do
desconhecimento das
suas capacidades por parte dos cuidadores, assim como de estratégias para
promover o
desenvolvimento das mesmas, poderão resultar num estado de passividade e
dependência
ou inutilidade, aprendidas a partir da atitude dos adultos para com elas.
O desenvolvimento social assenta em construções e reconstruções (i) da conceção
de si próprio, (ii) dos outros enquanto partes integrantes de um mesmo mundo e
(iii) dos
conhecimentos básicos acerca do mundo físico (Díaz-Aguado et al., 1995).
Experiências
comuns a um grupo de pessoas podem influenciar a construção de significados
partilhados
entre as mesmas (Paivio, 1990). Neste sentido, dois grupos de interações parecem
desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento social de qualquer criança,
particularmente das crianças cegas, os cuidadores adultos, que inclui a família
próxima, os
educadores e os professores, assim como os seus pares, outras crianças, cegas ou
não,
particularmente em contexto escolar. Assim, dedicaremos os pontos seguintes
deste
trabalho a cada um desses grupos.
5.1. O PAPEL DOS CUIDADORES ADULTOS
Existe evidência de que, se os adultos que interagem com a criança cega
compensarem adequadamente a privação sensorial que a cegueira supõe, de forma
estruturada e intencional, o desenvolvimento da criança cega pode ser muito
similar ao de
uma criança vidente (Díaz-Aguado et al., 1995). Todos os sujeitos de uma amostra
de
cegos congénitos estudados por Ormelezi (2000) destacam a importância de se
terem
relacionado com pessoas estimulantes, as quais criavam situações especialmente
para eles,
o que ajudava a compreender e atribuir significados às vivências em si mesmas,
assim
como às relações existentes entre diferentes vivências.
Se nos detivermos, por alguns momentos, no papel de um bebé cego, dar-nos-emos
conta que o seu mundo circundante está dependente do espaço ocupado pelo seu
corpo, da
mobilidade do mesmo e dos sons que a rodeiam. Antes do desenvolvimento da
linguagem
verbal, estas restrições, impostas pela falta de visão, encontram-se agudizadas,
podendo
minimizar-se pela linguagem dos contactos corporais, que sabemos fundamentais
também
para o desenvolvimento emocional. Como afirmam Martín e Bueno (1997):
“… as relações afectivas e de apego do bebé com a mãe são de grande
importância. Por isso, a família e, sobretudo, a mãe, devem conhecer as
capacidades da criança, que aspectos fundamentais devem ser tidos em conta
e como estimular a aprendizagem e o desenvolvimento do seu filho…” (p.
336).
Os trabalhos de Fraiberg (1977) e de Warren (1984), citados por Ochaita e Rosa
(1995), revelaram que as respostas sociais diferenciadas dos bebés cegos aos
objetos
sociais, parece menos dificultada que aos objetos físicos. Assim, respostas como
sorrir ao
ouvir a voz da mãe, a partir dos quatro meses e medo como reação a vozes
desconhecidas,
a partir dos oito, indiciam um certo conhecimento da permanência das pessoas.
Efetivamente, o sorriso é considerado um poderoso e eficaz meio a favor da
interação
social, tendo já sido observado em bebés cegos congénitos em resposta a sons
familiares
(Sousa, 2003). Temos vindo a reiterar a necessidade suplementar de atenção e de
estimulação de uma criança cega congénita, logo desde o nascimento. Na maioria
das
situações, Sousa (2003) recomenda que os adultos deverão ser proativos e não
esperar que
seja a criança cega congénita a tomar a iniciativa, pois a investigação vem
mostrando que
esta tende a ser passiva, sobretudo na relação com a mãe, não solicitando
atenção. Com a
expressão tende a ser, queremos sublinhar que não se trata de uma relação linear
de causa
efeito entre cegueira congénita e passividade social. Na verdade, os resultados
obtidos pela
autora citada demonstram que, alguns cegos congénitos, quando comparados com
pares
videntes de características equivalentes, apresentam frequências mais elevadas
de atenção
compartilhada na interação com as suas progenitoras, o que chama a atenção para
uma
outra variável, tanto ou mais importante que a condição visual, que é a
qualidade das
interações. A título de exemplo, uma mãe que se limite a acompanhar com um olhar
vazio
o que a criança está a fazer, seja esta cega ou vidente, que responde com
monossílabos às
suas indagações, que não demonstra motivação e prazer de estar a viver aquele
momento,
que para ela está a ser um “frete”, dificilmente poderá aglutinar de forma
sincronizada a
atenção da criança à sua, vivendo momentos de verdadeira partilha empática da
atenção.
Referindo-se ao caso de Sarah, uma menina cega de nove anos, Kirk e Gallagher
(2002) salientam o papel da mãe, afirmando que “sua mãe é carinhosa e
compreensiva e
tem lhe dado um grande apoio emocional” (p. 191). O necessário apoio emocional
deve
dirigir-se para a estimulação de crianças cegas conhecedoras de si próprias,
base para erigir
auto conceitos positivos. Assim, é crucial não confundir apoio emocional com
proteção
excessiva, conhecida como superproteção. Como lembra Nielsen (1999):
“… Os pais, assim como os professores, podem sentir a necessidade de
proteger a criança de qualquer fracasso ou rejeição. Desta forma, esta é
mantida à margem de qualquer actividade competitiva na qual pode existir o
risco de a problemática se tornar óbvia ou de se registar qualquer fracasso. A
superprotecção, porém, impede a existência de oportunidades para resolver
problemas e tomar decisões e não potencia a independência da criança, nem o
seu desenvolvimento social e emocional…” (p. 30).
Torna-se fundamental que a família e o universo social concebam e interajam com
a criança cega enquanto ser humano completo que é, evitando uma focalização
exacerbada
na cegueira (Cunha e Enumo, 2003; Gil, 2000, 2002). Importa assim evitar
atitudes
demasiado protetoras e/ou permissivas, como impedir a criança de fazer algo ou
permitir
algo menos correto, pela simples razão de ser cego. Andar de bicicleta pode
parecer, à
primeira vista, uma atividade impossível para uma criança cega mas, com as
adaptações
necessárias e adequadas, como a utilização de uma bicicleta dupla e/ou a escolha
de vias
pouco acidentadas e pouco movimentadas, pode estar ao alcance de uma criança
cega. É
claro que existe o risco de se magoar, tal como existe para as crianças
videntes. Por outro
lado, se uma criança vidente derruba repetidamente e por puro prazer, um
conjunto de
objetos colocados numa mesa, esta atitude pode irritar bastante um adulto,
entendendo-a
como uma provocação e obrigando a criança a repor os objetos no local original.
Se uma
criança cega manifestar um comportamento semelhante, o mesmo poderá ser
tendencialmente concebido como consequência da cegueira, “coitadinho, é cego,
não viu,
foi sem querer”, não o obrigando a repor os objetos. Tal atitude, aparentemente
benévola e
caridosa, poderá contribuir para a desresponsabilização e dependência da criança
(Zafra, 1991), ao mesmo tempo que não incrementa as suas competências e a sua
autoconfiança.
Estes exemplos fundam-se em casos reais de crianças cegas e seus familiares com
quem temos mantido contato.
Outros adultos marcantes, uns mais outros menos, uns pela positiva outros pela
negativa, são os professores. Estes devem assumir um papel ativo no fomento de
relações
sociais entre as crianças com e sem NEE mas não só, também entre NEE’s e entre
videntes
(Gil, 2000; Silva, 2008a; SNR, 1995), lutando contra possíveis mitos instalados
ou receios
(in)conscientes, por exemplo de que é mais seguro manter a criança cega na sala
de aula,
ao invés de permitir e orientar com diferentes níveis de diretividade, a sua
participação no
recreio (Horton, 2000). Seguindo as ideias de Echeita e Martín (1995), numa sala
de aula
confluem personalidades, dificuldades e talentos díspares, pelo que o
estabelecimento de
relações de amizade autêntica entre alunos (cegos ou não), baseadas em relações
de afeto,
respeito mútuo, empatia, carinho e simpatia, não resulta automático ou fácil,
sendo
imprescindível cultivar um ambiente de aceitação e valorização das diferenças,
cultivo esse
em que o professor deve constituir-se como modelo. Seguindo Garialde e outros
(1992),
trata-se de conseguir que as diferenças sejam assumidas como qualidades que
aprendem e
com as quais podemos aprender, ao invés de serem fatores de discriminação. Tal
não é de
somenos importância, pois como lembram Arbol e Arangurem (1995), por vezes, a
própria
organização escolar, podendo não ser causa de marginalização, pode alimentá-la
com
ambientes extremamente competitivos e individualistas.
Com base em estudos que recolheram os pensamentos de alunos cegos acerca das
suas experiências escolares, Kirk e Gallagher (2002) resumem o que aqueles
esperam dos seus professores:
“… «Não me trate como se eu fosse um desamparado. Não me faça nenhum
favor especial. Deixe-me agir do meu modo.» A reacção de muitas pessoas
que não tiveram experiência com deficientes é a de diminuir as exigências e
expectativas mas esses alunos não querem esse tipo de «favores»…” (p. 197).
Na perspetiva de alguns autores, como Correia e Serrano (1999), Horton (2000),
Kirk e Gallagher (2002), Nielsen (1999) e Ormelezi (2000), o papel dos
professores,
nomeadamente dos especializados em educação especial, não se restringe ao
trabalho, por melhor que seja, com as crianças cegas. Defendem a inclusão e responsabilização
dos pais ou encarregados de educação, enquanto parceiros que podem dar e receber. Podem,
por exemplo, ajudar os professores a conhecerem melhor os seus educandos, ao mesmo
tempo que poderão aprender novas formas de interação eficaz com os seus filhos ou
educandos.
5.2. O PAPEL DOS PARES
A educação das crianças com NEE deve ser concebida, na maioria dos casos,
integrada no contexto da chamada escola regular. Os cegos não são nem poderiam
ser
exceção, desde logo pelos ganhos que podem advir, entre outros, para o seu
desenvolvimento social sendo que, segundo Martín e Bueno (1997), 70% destes
alunos
evidenciam relações sociais positivas, não obstante a dificuldade em se
aperceber de
expressões faciais, o que segundo Nielsen (1999) poderá obstaculizar o
desenvolvimento
de competências sociais. Entre os possíveis contributos, a literatura salienta o
desenvolvimento (i) da independência pessoal, (ii) do trabalho autónomo, (iii)
da psicoafetividade
coerente e sem roturas com a sociedade em geral (Martín e Bueno, 1997).
Entre os 7 e os 11 anos de idade, as principais dificuldades sentidas pelas
crianças
cegas nas suas interações com as videntes acontecem nos momentos lúdicos, como
as
brincadeiras e os jogos, evidenciando preferência pelos videntes para trabalhar
e pelos
cegos para brincar ou jogar. Segundo Díaz-Aguado et al. (1995), tanto as
crianças como os
adolescentes cegos justificam que preferem trabalhar com videntes, com base na
ajuda que
podem obter deles, nomeadamente explicações verbais acerca dos fenómenos e dos
objetos. As mesmas autoras afirmam que as crianças cegas tendem a ter menos
iniciativas
para iniciar e conduzir uma interação social, aproximadamente metade em relação
aos seus
pares videntes. O aparente desinteresse da criança cega, que parece pouco
comunicativa
aos olhos dos videntes e desinformada sobre o desenrolar das brincadeiras,
associado à
ausência de indícios visuais para iniciar e manter uma interação, como as
expressões
faciais e os gestos, contribui para explicar porque as crianças videntes parecem
evitar a
interação com os seus pares cegos (Santin e Simmons, 1977; Sousa, 2003). Por
outro lado,
os videntes, em relação aos cegos, têm o triplo de probabilidades de obter uma
resposta
positiva às suas iniciativas. Atendendo aos resultados obtidos por Díaz-Aguado e
suas
colaboradoras (1995), na comparação de crianças e adolescentes cegos e videntes
a
frequentar a escola regular, com crianças e adolescentes cegos a frequentar
instituições
especializadas:
-
a cegueira parece não afetar o conhecimento de estratégias de interação,
influenciando sim os comportamentos adotados na prática;
-
a integração na escola regular favorece significativamente as relações da
criança
cega com os seus pares, favorecendo o desenvolvimento de estratégias mais
eficazes, com consequências mais positivas;
-
os videntes tendem a ignorar os seus pares cegos da escola regular;
-
os alunos cegos da escola regular tendem a aceitar as escassas iniciativas de
interação iniciadas pelos pares videntes;
-
interações assimétricas entre cegos e videntes na escola regular – os cegos
emitem
frequentemente pedidos de informação e de ajuda, recebendo poucas solicitações
deste tipo;
-
os contextos de integração favorecem, nos alunos cegos, o desenvolvimento de
condutas de colaboração;
-
os alunos cegos a frequentar a escola regular evidenciam representações mais
favoráveis das crianças videntes;
-
no grupo de crianças, os videntes manifestam atitudes mais favoráveis à
integração, quando comparados com os seus pares cegos, cujas representações
parecem mais ambivalentes, baseadas essencialmente na necessidade de ser
ajudado e na impossibilidade de ajudar;
-
as diferenças enunciadas no ponto anterior tendem a desaparecer na
adolescência;
-
os adolescentes integrados valorizam significativa e simultaneamente a sua
interação com os pares videntes e com outros cegos.
As relações sócio-afetivas dos alunos cegos e com baixa visão em contexto de
aula
regular, foram estudadas sociometricamente por Benito e García (1995), obtendo
os
seguintes resultados e interpretações:
-
as crianças cegas ou com baixa visão obtêm menor número de preferências para a
realização de tarefas académicas, facto interpretado com base nas representações
dos restantes alunos sobre as suas eventuais dificuldades e a necessidade de
requerem mais ajuda do que a que podem prestar;
-
as crianças cegas ou com baixa visão não obtiveram qualquer rejeição, nem para
tarefas académicas, nem para jogos;
-
o número de preferências para jogo obtido pelas crianças cegas ou com baixa
visão foi semelhante aos seus pares videntes;
-
os resultados das crianças cegas foram mais favoráveis que os resultados dos
seus
pares com baixa visão, facto interpretado com base na maior indefinição pessoal
associada às crianças com baixa visão.
Referimos anteriormente o papel do professor, o qual se estende,
necessariamente, à
promoção de interações positivas entre a criança cega e os seus pares videntes.
Assim,
Nielson (1999) recomenda que os professores formem os alunos videntes acerca da
cegueira 15, com o objetivo de ajudá-los a ultrapassar quaisquer medos ou
conceções
incorretas acerca da cegueira. Sugere o recurso a simulações que permitam aos
videntes
experienciar algumas das vivências características dos cegos, em condições
artificiais, o
mais próximas possível da condição de cegueira. Usando vendas feitas de
diferentes
materiais de opacidade variável, podemos simular desde a cegueira total até
diferentes
graus de perceção visual. A visão em túnel pode também ser simulada, tentando
ver através
de um pequeno orifício feito numa folha de papel. A mesma autora chama
particular
atenção para a necessidade dos alunos videntes aprenderem a desempenhar o papel
de
guias, como forma de evitar atitudes incorretas, como procurar segurar no braço
de um
aluno cego, quando é este que necessita segurar o braço do vidente, para
caminhar com
plena confiança e sucesso.
Anteriormente, a propósito do desenvolvimento emocional, referimo-nos a Ralph,
uma criança de 11 anos, estudada por Kirk e Gallagher (2002) que nos
proporcionam
também dados acerca do seu desenvolvimento social:
“… também tem alguns problemas interpessoais. Reage com linguagem
agressiva e temperamento forte a quaisquer comentários rápidos ou negativos,
reais ou imaginários, a respeito de sua deficiência visual. Consequentemente,
muitos dos outros jovens tendem a ignorá-lo ou a evitá-lo, exceto quando a
participação em classe exige interacção…” (p. 190).
A respeito dos processos de interação social na sala de aula, Nunes e Almeida
(2005) lembram-nos que as intervenções específicas desenvolvidas tendo como meta
auxiliar à construção de conceitos nas crianças cegas, poderão constituir-se
como uma
mais-valia para os seus pares videntes, pelas oportunidades que propiciam de
desenvolver
e aprender a partir de formas de perceção diferentes e, muitas vezes,
subestimadas nos
videntes.
6. A VARIABILIDADE INDIVIDUAL
Cegos e videntes partilham uma característica que diferencia cada sujeito dos
restantes, inclusive dos membros do seu grupo de referência, essa característica
é serem
humanos. Os seres humanos não são máquinas programadas para agirem todas de
forma
idêntica. Por exemplo, devido ao polimorfismo genético, para 70% dos humanos, a
feniltiocarbamida presente em alguns alimentos, nomeadamente vegetais, é
extremamente
amarga, enquanto os restantes 30% não detetam qualquer sabor (Mackay, 2009).
Cada ser
humano é constituído por uma carga genética e um conjunto de vivências,
distintos de
todos os outros. Da interação da carga genética com as vivências resultam
múltiplas
respostas comportamentais associadas à variabilidade individual que, em sentido
lato e
pela diluição da variabilidade, se poderão enquadrar em padrões gerais
(Brazelton e
Sparrow, 2010). Segundo vários autores (Fernandes, 2004; Paivio, 1990), os
fatores
genéticos impõem predeterminações, mas a aprendizagem por via das experiências
vividas
exercerá uma influência substancial sobre as mesmas, ajudando a determinar de
forma
significativa, o que vai ser aprendido e em que idade, sendo que a variação
destes fatores
conduz ao desenvolvimento de diferentes padrões no exercício de uma determinada
competência. Como afirmam Martín e Bueno (1997), existindo padrões
comportamentais
genericamente característicos dos cegos, tal não significa que eles se incluam
no reportório
comportamental de todos os cegos na mesma extensão e com manifestações,
frequências e
significações semelhantes. No mesmo sentido, Díaz-Aguado e colaboradoras (1995)
apontam a existência de diferenças individuais entre crianças cegas na mesma
amplitude
que entre videntes. Por outras palavras, Bardisa (1992) sublinha a necessidade
de entender
e sentir que cada ser humano, com particular relevância para as crianças, se
encontra em
crescimento e desenvolvimento, de forma dinâmica e suscetível de mudança, não
sendo
nem melhor nem pior que outros, apenas diferente, podendo convergir
posteriormente com
os demais, não sendo condição obrigatória que tal aconteça. Portanto, o
importante é que a
criança consiga realizar tarefas, não importa se antes ou depois dos outros,
desfrutando de
prazer ao realizá-las, sentindo-se bem consigo mesma e com os demais.
Num trabalho realizado para o Ministério da Educação do Brasil, Marta Gil
salienta
que:
“… O impacto da deficiência visual (congénita ou adqu irida) sobre o
desenvolvimento individual e psicológico varia muito entre indivíduos.
Depende da idade em que ocorre, do grau de deficiência, da dinâmica geral da
família, das intervenções que foram tentadas, da personalidade da pessoa –
enfim, de uma infinidade de factores…” (Gil, 2000, p. 9).
O desenvolvimento da orientação e da mobilidade é um dos fatores suscetíveis de
um largo espetro de variações individuais. Podem observar-se logo nas primeiras
etapas da
vida, enquanto algumas se orientam com grande facilidade, outras são incapazes
de o fazer
(Figueira, 1996). A bengala assume enorme importância, sendo que os processos de
aprendizagem da sua utilização conduzem a graus diversos de destreza e
desenvoltura,
contribuindo para estas diferenças (i) a idade da cegueira, (ii) a idade em que
a
aprendizagem ocorre, (iii) a personalidade do sujeito, (iv) a sua aceitação ou
não da
cegueira, (v) a (des)motivação que familiares e amigos incutem, (vi) a
capacidade de
memorização e de síntese, (vii) a destreza corporal, (viii) a lateralidade, (ix)
as
competências auditivas e (x) as competências cinestésicas (Maia, 1998).
Os padrões de desenvolvimento social não escapam das influências da
variabilidade
individual. A este respeito, Romero (1995) lembra que as competências sociais
são
também determinadas pelas próprias situações, dependendo também, mas não
somente, de
dimensões pessoais (como idade, sexo, inteligência, etc.). Outros fatores
passíveis de
influenciar o desenvolvimento social são (i) as condições familiares de
desenvolvimento,
(ii) as oportunidades de experiências de relações interpessoais precoces, (iii)
o tipo e a
qualidade das mesmas, (iv) a idade e o sexo dos pares que participam da
interação, (v) a
familiaridade com os pares, (vi) o lugar onde transcorre a relação (em casa, na
sala de aula,
no recreio, etc.) e (vii) a natureza da própria interação (um jogo de equipa,
uma atividade
de sala de aula, uma conversa entre amigos, etc.).
Em suma, como afirma Robert Atkinson (Diretor do Braille Institute of America –
California), se a natureza presenteou a todos os seres humanos com diferenças
individuais,
mais ou menos acentuadas, devemos ser extremamente cautelosos na generalização
de
características e na sua rotulagem nos sujeitos, sejam características positivas
ou negativas,
sejam sujeitos com ou sem NEE’s (IBC, 2005).
7. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS
A expressão adaptações educativas ou curriculares pressupõe uma atividade
pedagógica centrada, não no mas em cada aluno. Utilizámos uma subtileza
linguística para
salientar a necessidade de olhar para cada aluno em concreto enquanto pessoa e
não para o
aluno em abstrato, perdido na massa socialmente homogeneizada da turma.
Tradicionalmente, quando se fala de adaptações educativas ou curriculares
pensa-se em
crianças ditas diferentes, que se convencionou designar de portadoras de NEE,
como se
todas as outras, as ditas normais, fossem todas elas iguais. Falemos com os pais
e/ou os
cuidadores de irmãos gémeos verdadeiros. Falemos de seguida com os próprios
gémeos
verdadeiros. Certamente que por trás de todas as semelhanças genéticas, físicas
e até
psicológicas, encontraríamos um manancial de diferenças nos gostos, nos
interesses, nos
talentos e na interação com o ambiente em geral. Se todas as crianças são
diferentes,
estamos em crer que a educação de cada uma delas deve assentar em uma adaptação
educativa e curricular. Aceitamos a quota-parte de utopia no que acabámos de
dizer mas, a
alternativa, a criança que se adapta ao currículo imposto, embora parecendo
florir aqui e
além, tarda em frutificar. Assim reza a vasta literatura produzida na área do
Desenvolvimento Curricular desde os anos 60 do século passado, um pouco por todo
o
mundo. São questões não para uma, mas para várias teses académicas, além do que
nos
detém neste trabalho. Assim, é legítimo questionar o porquê das linhas
anteriores. Em
primeiro lugar, pensamos que a utopia supracitada se desvanece se sugerirmos a
individualização, pelo menos em relação a cada sujeito cego. Por outras
palavras, as
sugestões apresentadas neste ponto carecem ainda de adaptação a cada caso
concreto, caso
contrário, seria como querer que todos os cegos calçassem um mesmo sapato,
independentemente do tamanho do pé. Por outro lado, estamos em crer que algumas
das
adaptações que apresentaremos de seguida serão uma mais-valia, não só para os
alunos
cegos, como para os videntes. Estamos a pensar, por exemplo, em atividades para
estimular a audição ou o tato, ou ambos.
A literatura é unânime em considerar a necessidade das intervenções educativas
destinadas às crianças cegas, como às restantes NEE, se iniciar o mais cedo
possível de
forma exaustiva, prolongada e sequenciada, no âmbito da chamada intervenção
precoce, se
possível desde o nascimento (Figueira, 1996; Gil, 2000; Gil, 2002; Horton, 2000;
Kirk e
Gallagher, 2002; Nunes, 2004; Sousa, 2003; Zafra, 1991). Quando dizemos
destinadas às
crianças cegas, não devemos negligenciar os contextos físicos e sociais que as
cercam, pois
como lembram vários autores (Correia e Serrano, 1999; Gil, 2000), as práticas de
intervenção devem incluir também a família, ela própria apresentando
necessidades
específicas, muitas vezes por querer e não saber como contribuir para o
desenvolvimento
das suas crianças, indo desta forma ao encontro das necessidades das próprias
crianças com
NEE e/ou em risco.
Entre o nascimento e os cinco anos de idade, assumem particular relevância a
aplicação de estratégias e técnicas para o desenvolvimento (i) sensorial, (ii)
da imagem
corporal e (iii) das competências motoras (Kirk e Gallagher, 2002).
Gradualmente, outras
competências devem ser trabalhadas, como (i) a orientação, (ii) a mobilidade,
(iii) as
atividades diárias, (iv) a leitura, a escrita e o cálculo, com materiais
específicos e adaptados
(Martín e Bueno, 1997).
O desenvolvimento de competências da vida diária também assume particular
relevância nesta fase, pois além das necessidades pessoais básicas como a
higiene, a
alimentação, os hábitos à mesa, os cuidados com a casa e as atividades sociais,
irá
contribuir para a autoconfiança com todas as implicações daí decorrentes
(independência,
valorização das próprias capacidades, naturalidade, eficiência e desenvoltura
nas relações
sociais, entre outras) (Gil, 2000, 2002; Horton, 2000; Zafra, 2001). Para
estimular a
aprendizagem, a imitação e, posteriormente, a execução autónoma de gestos,
tarefas e
movimentos diários em crianças cegas, Maia (1994) sugere que as mãos dos adultos
trabalhem em conjunto com as mãos das crianças, naquilo que podemos chamar
“seguir
com as mãos” por analogia com “seguir com os olhos”.
A utilização de representações em relevo merece um ponto destacado no trabalho
de Martín e Bueno (1997), os quais afirmam:
“… É preferível apresentar à criança objectos reais em vez das suas
representações, embora sejam muitas vezes empregadas como substitutos.
[…] Utilizam-se como recurso no ensino da Geografia; para mapas e planos
em relevo; na Geometria, para as figuras e desenvolvimento de corpos, e em
outras disciplinas que precisem desenhos, esquemas, etc…” (p. 332).
No âmbito das representações em relevo, enquadra-se o sistema de leitura e
escrita,
conhecido pelo nome do seu criador, o sistema Braille, destinado essencialmente
a sujeitos
sem resíduos visuais ou com resíduos visuais não funcionais. Os nossos
propósitos não
compreendem a apresentação exaustiva do mesmo, pelo que nos limitamos a
apresentar
algumas sugestões de leitura, nomeadamente Dias (1995), Gil (2000), Horton
(2000); Kirk
e Gallagher (2002), Martín e Bueno (1997), Nielsen (1999), Ochaita e Rosa (1995)
e Silva
(2008b). Para uma aprendizagem adequada da leitura Braille, é crucial a
estimulação
precoce do tato, para a qual Dias (1995) sugere: ensinar a criança a utilizar as
duas mãos
quando manipula e explora um objeto; mostrar como se pode encontrar um orifício
numa
placa, mantendo uma mão junto do orifício e com a outra, introduzir nele um
prego de
plástico; enfiar contas num fio, primeiro grandes e depois mais pequenas;
atividades da
vida diária como lavar, vestir e despir, abotoar e desabotoar; discriminar
texturas, formas,
pesos, sabores e temperaturas, associando os respetivos objetos; manipular
materiais
moldáveis como o barro e a plasticina.
As crianças cegas, tal como as videntes, necessitam saber tanto quanto possível
acerca do que as rodeia. Não podendo ver, vários autores (Gil, 2000; Horton,
2000; Kirk e
Gallagher, 2002; Nunes e Almeida, 2005) sugerem que se incentivem as crianças
cegas,
sempre que possível, a explorar tatilmente e/ou através dos restantes sentidos,
fazendo
acompanhar a exploração de descrições verbais, com referências a outras
experiências e
conhecimentos que a criança tenha já desenvolvido, descrições estas mais
frequentes e
pormenorizadas, que as habitualmente empregues com crianças videntes. Esta
recomendação surge reforçada por força dos resultados obtidos por Ormelezi
(2000), a
qual afirma a linguagem e a interação social como condições primordiais para a
construção
de conceitos. Por exemplo, uma criança, cega ou não, não constrói um conceito
válido de
gato, simplesmente por ver ou tocar num gato, mas pela integração proativa de
dados
sensoriais de diferentes naturezas, com explicações verbais que lhe permitam
identificar,
descrever, relacionar, compreender, analisar, sintetizar e avaliar conhecimentos
relacionados com gato (Batista, 2005). Assim, na busca de um equilíbrio entre o
conhecimento sensorial e as respetivas descrições verbais, assume particular
importância
uma atitude de aferição permanente por parte do educador, em relação às reações
da
criança. Tal importância advém do facto de que o conhecimento sensorial
apresentado de
forma isolada poder surgir de forma desconexa e descontextualizada, dificultando
a
atribuição de significados e a relação com outros conhecimentos (passados ou
contemporâneos). Por outro lado, descrições verbais apartadas dos respetivos
conhecimentos sensoriais podem conduzir a retenção mecânica, baseada na retenção
e
repetição verbal, também elas desconexas e descontextualizadas, carentes de
significado e
compreensão, por falta de elaboração pessoal (Horton, 2000; Nunes e Almeida,
2005).
Quando nos referimos, nesta secção, ao desenvolvimento sensorial ao nível do
tato,
salientamos a importância das mãos enquanto órgãos tácteis por excelência.
Assim,
importa trabalhar para que a coordenação bimanual (das duas mãos) e a
coordenação
ouvido/mão se estabeleçam. Várias atividades são sugeridas por Gil (2000): bater
palmas;
segurar o biberão com as duas mãos; percutir dois objetos entre si
horizontalmente ou um
tambor; brincar com as sensações de temperatura e textura da pele, da chupeta,
dos lençóis;
balanceamentos; colaborar no alcance e na movimentação de objetos; colocar
objetos
(sonoros ou não) sobre o peito ou próximo da criança, para que possa senti-los e
procurálos;
incentivar a criança a gatinhar, atraindo-a com objetos sonoros num espaço
aberto.
Como forma de preparar os recetores musculares da criança cega para antecipar e
reagir
adequadamente aos pesos dos objetos que procura agarrar, Bardisa (1992) sugere
que se
possibilite a interação com objetos de diferentes pesos, nomeadamente em
situações em
que eles resultem inesperadamente pesados ou leves. Por exemplo, se a criança
está a
brincar com blocos de madeira, podemos misturar entre eles uns quantos blocos de
plástico
(leves) e de metal (pesados), com tamanhos e formas mais ou menos semelhantes
aos de
madeira, mas não necessariamente iguais.
Para estimular o movimento da criança, Dias (1995) sugere: iniciar o bebé a
gatinhar com um brinquedo que role, ajudando-o a empurrá-lo para a frente e para
trás;
ajudar a criança a pôr-se de pé, por volta dos dez, onze meses, encorajando-a a
agarrar-se à
mobília como forma de se levantar e de promover o sentimento de segurança;
colocar os
pés do bebé em cima dos de um adulto, pegando-lhe debaixo dos braços e andando,
como
forma dela sentir o movimento; com os pés da criança no chão, pegando-lhe nas
mãos e
estimulando a marcha; colocar uma corda esticada ao longo das paredes, à altura
da cintura
da criança, ajudando-a a caminhar e mais tarde a correr. Em contexto escolar,
Silva
(2008a) recomenda que a orientação e a mobilidade comecem a ser trabalhadas o
mais
cedo possível, desejavelmente a partir do ingresso na Educação Pré-escolar, à
semelhança
do que vem sucedendo no Reino Unido e nos estados Unidos da América.
Ainda a título de exemplo, Kirk e Gallagher (2002) apresentam a proposta de Huff
e Franks (1973) para trabalhar os números fracionários com crianças cegas,
podendo
aplicar-se igualmente a videntes:
“… É bastante fácil oferecer uma compreensão intuitiva de metades e de
quartos através de demonstração visual, mas para os alunos cegos tal
compreensão precisa ser adquirida através do sentido do tato. Huff e Franks
demonstraram que crianças cegas das primeiras séries (3ª série) podem
dominar esses conceitos, se receberem círculos de madeira tridimensionais, e
pedirmos para que os coloquem em uma base com formas em baixo relevo.
Depois de colocar um círculo inteiro, a criança pode aprender a montar os
blocos que representam um terço de um círculo e colocá-los no lugar,
formando um todo…” (p. 220).
Também a respeito da Matemática, Gil (2002) recomenda a estimulação e o
desenvolvimento aturado do cálculo mental, desde o início da aprendizagem da
aritmética,
pela sua utilidade posterior na aprendizagem da álgebra.
Para a realização de qualquer tarefa, Nielsen (1999) recomenda a adaptação e o
respeito pelo ritmo de cada aluno cego, em articulação estreita com o professor
de EE, para
que todos possam completar a tarefa solicitada. Assim, atrevemo-nos a sugerir
que tal
adaptação e respeito devem ser considerados em relação a todos os alunos,
videntes
incluídos. A mesma autora salienta a utilidade de permitir ao aluno cego gravar
as aulas, de
forma a poder ouvi-las mais tarde.
Pensando no fomento das relações sociais entre pares, Martín e Bueno (1997)
sugerem que se faça a ponte entre o aluno cego e os companheiros, ensinando-os,
primeiro
a procurar e compartilhar situações lúdicas para todos desde os primeiros dias
de escola.
Em segundo lugar, procurar e estimular a criança cega a participar em jogos em
que a sua
participação possa ser ativa. Em terceiro lugar, há que cultivar um ambiente
social
acolhedor de todos, com atitudes humanistas de valorização pessoal. Pelo
contrário, se a
atitude do professor se basear na desvalorização pessoal, naquilo que cada um
não sabe ou
não é capaz de fazer, então a criança cega ficará certamente em desvantagem
pois, além de
partilhar dificuldades comuns com os videntes, não consegue ver televisão ou
cinema, não
poderá conduzir um carro ou uma moto, etc.
O espaço físico da sala de aula deve ser tido em particular atenção, devendo
encorajar-se o aluno cego a familiarizar-se com o mesmo, pelo que qualquer tipo
de
alteração implica a sua comunicação ao aluno cego e o seu reconhecimento
percetivo
(Nielsen, 1999).
Neste capítulo, abordamos o conceito de representação mental, (i) a sua evolução
histórica, (ii) as suas conceções na atualidade, (iii) as características das
representações
mentais, (iv) casos particulares de representações mentais, como alucinações,
sonhos e
falsas memórias, (v) a atividade cerebral como caminho para a compreensão da
cegueira e
das representações mentais e (vi) o estado da arte no que respeita ao estudo das
representações mentais em videntes e em cegos congénitos.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO
O conhecimento e a compreensão das representações mentais, enquanto
componentes do pensamento humano, têm merecido a atenção dos pensadores desde
longa
data. António Damásio fala-nos de uma tradição na formulação de conceitos
relacionados
com a mente, uma história rica, longa e variada, como a história da própria
Filosofia
(Damásio, 2010). Tendo como referência vários autores (Kosslyn, 1995; Paivio,
1971,
1990; Posner e Raichle, 2001; Thomas, 2007), podemos afirmar que o tema das
imagens
mentais mereceu a atenção de Platão e do seu discípulo Aristóteles, que o
incluíram nas
suas obras. Na sua obra Theaetetus, Platão comparou as imagens mentais com
padrões
semelhantes ao real e gravados em blocos de cera, sendo as diferenças
individuais na
capacidade para construir e trabalhar com imagens mentais resultado das
diferenças na
dureza e na pureza da cera. As ideias de Platão não deixaram de influenciar as
de
Aristóteles, seu discípulo na Academia, que as desenvolveu por extensão e
interrelacionou
com outras, construindo o que podemos considerar uma primeira teoria explicativa
da
cognição, a qual exerceu uma influência enorme e continuada, na forma como a
cognição
em geral e as imagens mentais em particular foram conceptualizadas pelas
tradições
ocidental e árabe. Este pensador concebia que as imagens mentais (phantasmata
16
na sua
terminologia) desempenhavam um papel essencial e central na cognição humana.
Descrevia phantasmata como sendo (i) análogas a pinturas ou gravuras em cera,
(ii)
resíduos de impressões sensoriais ou (iii) resultado de uma atividade sensorial
atual. Um
outro grego deixou definitivamente a sua marca no conhecimento das imagens
mentais.
Referimo-nos a Simónides e à utilização que este operou das imagens mentais como
forma
ou ferramenta mnemónica. Também a cultura latina romana mostrou interesse no
assunto,
entre outros, através de Quintiliano. Este pensador concordava que as imagens
mentais
visuais eram úteis na recordação de objetos, uma vez que, segundo os seus
argumentos, as
coisas materiais apelam à imagem. No entanto, mostrava-se renitente quanto à sua
utilidade para recordar “noções” abstratas, para as quais as imagens teriam que
ser
inventadas ou (re)construídas.
As relações da perceção com as imagens mentais são ainda hoje, como eram há
vários séculos, uma das traves mestras da investigação nesta área. Na primeira
metade do
século XVIII, Hume defendeu que as perceções (impressões na sua terminologia) e
as
imagens mentais (ideias na sua terminologia), não diferiam quanto ao tipo de
fenómeno,
diferindo apenas nas suas causas e no seu grau de vivacidade (clareza na sua
terminologia)
(Farah, 1988; Thomas, 2007). Para ele, as perceções eram “cheias de vida”
enquanto as
imagens mentais eram “desmaiadas” (Damásio, 2003a).
Chegados ao século XX e, salvo algumas exceções, o paradigma Behaviorista
alimentava as ideias da época e assim aconteceu de forma marcante até à década
de 60. No
seu corolário básico, assente no estímulo-resposta, não sobejava espaço para as
representações mentais, pelo que a tradição behaviorista pautou-se pelo
ceticismo acerca
das representações mentais, considerando-as mesmo um assunto subjetivo e
inferencial,
portanto de menor importância para a Psicologia, senão mesmo um anátema (Paivio,
1971;
Thomas, 2007). Um dos pioneiros deste paradigma foi Skinner, considerado por
alguns
como um behaviorista radical, foi também um dos mais céticos do estudo dos
processos
mentais 17, onde se incluem as representações, defendendo que a representação dos
acontecimentos na mente não era nem a causa nem a explicação dos comportamentos,
mas
apenas produtos colaterais (Paivio, 1990). Décadas mais tarde, estas ideias
mereceram um
comentário algo cáustico por parte de Allan Paivio, um dos mais reconhecidos
académicos
dedicados ao estudo das representações mentais. Nas suas palavras, que
traduzimos da
forma mais fiel possível, foi levado a concluir, baseado na incoerência de
alguns princípios
defendidos por Skinner, que os behavioristas radicais queriam ao mesmo tempo
guardar o
bolo e comê-lo! Eram fascinados o suficiente pela “vida interior” para tentar
interpretá-la
em termos behavioristas e, ainda assim, negavam qualquer influência dessa “vida
interior”
no comportamento (Paivio, 1990). Ainda em 1966, Jean Piaget e Bärbel Inhelder se
debatiam contra os preconceitos behavioristas que, aqui e ali, ainda
despontavam. Fica o
seu relato na primeira pessoa:
“…É enfim importante fazer uma observação quanto ao título deste estudo
18,
que vários colegas nos aconselharam a mudar, porque é suspeito de
«mentalismo» e porque muitos autores já não acreditam na imagem ou
pensam pelo menos que não se pode dizer nada de sério a este respeito. Mas
confessamos ter poucas preocupações a respeito das modas em psicologia, e
ainda menos acerca das proibições positivistas…” (Piaget e Inhelder, 1977).
No final dos anos 60 do século passado, com o estabelecimento do Cognitivismo
como paradigma dominante e alternativo ao Behaviorismo, as representações
mentais
voltaram a assumir o seu interesse científico (Kosslyn, 1995; Thomas, 2007),
situando-se
ainda hoje, no centro de importantes debates científicos (Kalakoski, 2006). Uma
constelação de ocorrências contemporâneas dessa época levou a que alguns
académicos
voltassem o seu trabalho, com uma força intrinsecamente renascida e motivada,
para o
estudo das imagens mentais. Dessas ocorrências, Thomas (2007) destaca (i) as
investigações relacionadas com as drogas alucinogénias, (ii) os desenvolvimentos
na
eletroencefalografia, (iii) a descoberta da fase REM (rapid eye movement) do
sono e a sua
relação com o sonhar e (iv) a descoberta que a estimulação elétrica de algumas
áreas
cerebrais pode originar imagens visuais nítidas ou pseudoimagens. Por outro lado
e com
base no mesmo autor, surgiu nesta época uma linha de investigação com impacto
significativo no interesse pelo estudo das imagens mentais. Dedicava-se aos
problemas
percetuais vividos por pessoas como operadores de radar, condutores de longo
curso e
pilotos de avião, cujos trabalhos requerem que permaneçam perceptualmente
alerta,
observando estímulos visuais monótonos, pobres e quase invariáveis por longos
períodos
de tempo, o que pode conduzir, como se veio a demonstrar em laboratório, à
ocorrência de
imagens mentais nítidas, intrusivas e, por vezes, bizarras, algo semelhante a
“sonhar
acordado”. Já na década de 70 do mesmo século, foram criadas associações como a
International Imagery Association ou a American Association for the Study of
Mental
Imagery e revistas científicas como o Journal of Mental Imagery ou Imagination,
Cognition and Personality, importantes indicadores do interesse dos académicos
nesta área
do conhecimento.
Apesar do hiato temporal ditado pelas ideias behavioristas, existe uma longa
tradição de investigar os contributos da construção de imagens mentais para
memória, a
qual tem demonstrado, com segurança, que esses contributos existem e deles a
memória
tira partido. Veniamim foi um conhecido mnemonista russo, objeto de estudo do
famoso
psicólogo seu conterrâneo Alexander Luria. Veniamim necessitava apenas de uma
leitura
para decorar listas de setenta palavras, números ou sílabas, dispostos
arbitrariamente,
sendo capaz de repetir cada lista na íntegra, após vários anos, necessitando no
entanto de
recordar o contexto. Não era por acaso a necessidade de recordar o contexto,
pois
constatou-se que recorria a uma técnica altamente eficaz, convertendo as
palavras em
imagens, dispunha-as mentalmente ao longo de uma rua conhecida e colocava cada
imagem frente a uma porta, podendo ainda construir histórias nas sequências mais
difíceis
(Ninio, 1994).
2. O CONCEITO NA ATUALIDADE
Em primeiro lugar, por uma questão de higiene conceptual, consideramos
fundamental clarificar a utilização de alguns conceitos neste trabalho, ainda
que as opções
tomadas sejam discutíveis, situação que encaramos como natural num trabalho
científico.
Na literatura científica e na investigação relacionada com a representação do
conhecimento
na mente, que mereceu particular destaque no século passado e continua a merecer
nos dias
de hoje, a nomenclatura utilizada tem sido, muitas vezes, opaca nos seus
significados,
sobrepondo e usando indiferenciadamente designações diferentes para um mesmo
conceito, ou designando conceitos diferentes de forma semelhante (Farah, 1996).
Tal é o caso de designações como imagem mental e representação mental. A primeira tem
sido, em si mesma, suscetível a equívocos, confundindo-se com imagens mentais de
natureza
visual (Ochaita e Rosa, 1995). Sendo certo que a literatura e a investigação têm
incidido
com muito maior frequência nas imagens mentais visuais, não podemos olvidar ou
negligenciar a existência de imagens mentais de outra natureza (táctil,
propriocetiva,
auditiva, olfativa e gustativa). Assim, é nosso entender ser necessário
clarificar a natureza
de uma imagem mental sempre que a mesma for referida. Por outro lado, as
designações
imagem mental e representação mental têm-se sobreposto numa utilização
indiferenciada,
sendo que e de acordo com as propostas concetuais de vários autores, as quais
serão
dissecadas neste e nos pontos seguintes, elas têm como referencial realidades
cujas
abrangências não são totalmente coincidentes, ainda que intimamente relacionadas
e
parcialmente sobrepostas. Assim, imagem mental refere-se a uma imagem de
natureza
percetiva 19 guardada e representada na memória ou imaginada criativamente, de
forma
decantada, ou seja, isolada de outras imagens e não evidenciando um
processamento
cognitivo sobre a mesma. Correspondem ao que no dia-a-dia se designa por
visualização,
ver com os olhos da mente, ouvir com a cabeça, imaginar sentir, etc. (Thomas,
2007). Por
exemplo, a imagem mental visual de um determinado automóvel, ou a imagem mental
auditiva do seu motor em funcionamento. Assim, sugerimos que uma representação
mental
resulta de elaborações mais complexas efetuadas sobre as imagens mentais, como
sejam a
combinação de diferentes imagens mentais (da mesma natureza ou não) e a
elaboração de
um processamento cognitivo e/ou criativo sobre as mesmas o que, de acordo com as
propostas de Paivio (1971, 1990, 2006) poderá envolver a linguagem verbal. Por
exemplo,
quando combinamos mentalmente a imagem mental visual do automóvel com a imagem
mental do seu motor em funcionamento e, ao mesmo tempo, refletimos sobre as
causas de
um ruído anómalo denotado nesse funcionamento. As combinações de diferentes
imagens
mentais podem ser lógicas, racionais e conscientes, como nos exemplos anteriores
ou,
resultarem em narrativas desprovidas de lógica racional e, em grande parte,
inconscientes,
tal como acontece nas alucinações e nos sonhos. Podem também resultar de um
processo
criativo consciente, que propositadamente contorna a lógica racional, originando
representações mentais sem equivalente direto na experiência real e/ou sensitiva
(Paivio,
1990). Por exemplo, posso imaginar um elefante de carne e osso a ler, um livro
cujo título
se podia visualizar na capa – Manual de Condução para Elefantes, sentado no
tejadilho de
um táxi com asas (imagem interativa), apesar de eu nunca ter visualizado este
acontecimento, alternando e combinando nesta atividade o processamento paralelo
das
imagens visuais com o processamento sequencial das imagens verbais. Por outras
palavras,
podia visualizar simultaneamente e de forma interativa a imagem do elefante, a
do táxi e a
do manual (processamento paralelo) mas, necessitava de focar-me na frase escrita
na capa
do manual para a poder ler, uma palavra de cada vez (processamento sequencial).
Da
mesma forma posso construir combinações novas de palavras, nunca antes lidas ou
ouvidas
e aparentemente desprovidas de sentido, arte na qual a poesia é rica. Repare-se
na frase
meus braços perdidos na cintura do ar, além da representação verbal, não deixa
de evocar,
por exemplo, a imagem mental visual de um homem a abraçar uma figura feminina,
de
contornos altamente atraentes, mas feita de ar. O conceito de imagem mental
assume-se
como uma abstração teórica, pois temos que admitir a dificuldade de isolar e
decantar
imagens mentais como as concebemos nas linhas anteriores, uma vez que, a própria
perceção, génese primordial da maioria destas imagens, está já contaminada pelas
experiências prévias e/ou antecipadas, sob influência de informações oriundas de
diferentes sistemas sensoriais (ver ponto 1.6. do capítulo II). No mesmo
sentido, Ninio
(1994) defende que estabelecemos interligações entre várias memórias percetivas
de modo
que, por exemplo, um odor pode evocar um lugar e uma pessoa, a pessoa evoca uma
voz
ou um nome e o nome um episódio do passado. Também Kosslyn e colaboradores
citados
por Mazard et al. (2004) defendem que as formas puras de imagens mentais são
raras. Não
estamos a desvalorizar o conceito de imagem mental, antes pelo contrário, pois
sem ele não
poderíamos conceber a representação mental, alvo de estudo neste trabalho,
funcionalmente mais útil e próximo das vivências diárias do ser humano. Como não
poderia deixar de ser, seremos o mais fiéis possível às terminologias adotadas
pelos autores
citados neste capítulo, pelo que aplicaremos o exposto anteriormente, de forma
mais
notória, a partir do capítulo seguinte.
2.1. O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES
MENTAIS
No ponto 1 deste capítulo referimos já os contributos da construção de imagens
mentais, muitos deles conhecidos de há longa data, para o funcionamento da
memória.
Procuraremos agora definir os contributos conhecidos da memória para a
construção de
representações mentais.
Na sua obra intitulada A Unidade do Conhecimento – Consiliência, o biólogo
Edward Wilson dedica um capítulo à mente, no qual descreve os contributos da
memória
na construção das representações mentais. O seu discurso reconhecidamente
preciso, claro
e motivador leva-nos a transcrever um excerto, que por ser demasiado longo,
desde já nos
penalizamos. Nas suas palavras:
“… A memória de curto prazo é o estado de prontidão da mente consciente.
Compreende todas as partes atuais e lembradas dos cenários virtuais.
Consegue lidar apenas com cerca de sete palavras ou outros símbolos ao
mesmo tempo. O cérebro leva cerca de um segundo para esquadrinhar
totalmente esses símbolos e esquece a maior parte das informações em trinta
segundos. A memória de longo prazo é adquirida em muito mais tempo, mas
possui uma capacidade quase ilimitada e uma grande fração dela é retida por
toda a vida. Pela activação propagadora, a mente consciente evoca
informações do depósito da memória de longo prazo e conserva-as por um
breve intervalo na memória de curto prazo. Durante esse tempo, processa as
informações, a uma velocidade de cerca de um símbolo por 25 milissegundos,
enquanto os cenários que surgem das informações competem pelo domínio.
A memória de longo prazo evoca eventos específicos trazendo
determinadas pessoas, objectos e ações para a mente consciente através de
uma sequência de tempo. Por exemplo, ela recria facilmente um momento
olímpico: o acender da tocha, um atleta correndo, os brados da multidão.
Recria não apenas imagens em movimento e som, mas também o significado
na forma de conceitos associados simultaneamente experimentados. O fogo é
associado ao quente, vermelho, perigoso, cozido, paixão do sexo, ato criativo
e assim por diante através de inúmeras vias de hipertexto selecionadas por
contexto, às vezes formando novas associações na memória para futura
evocação…” (Wilson, 1999, p. 105).
No geral, esta perspetiva é também a adotada por Stephen Kosslyn, eminente
académico associado ao estudo das representações mentais, Professor da
Universidade de
Standford e Diretor do Centro de Estudos Avançados em Ciências Comportamentais
desta
Universidade. Afirma, de forma indubitável que é na memória a longo prazo que
guardamos as informações necessárias para construir as representações mentais
(Kosslyn,
1995). A evocação de informações guardadas na memória pode conduzir à
visualização de
lugares e objetos não imediatamente disponíveis no nosso campo percetual (Handy
et al.,
2004). No mesmo sentido, representações mentais evocadas a partir da
apresentação de
estímulos, não incluem todas as informações disponíveis perceptualmente acerca
dos
mesmos, incluindo em contrapartida informação não presente perceptualmente
nesses
mesmos estímulos (Kalakoski, 2006). Assim, em condições normais, o nosso cérebro
caracteriza-se por uma capacidade admirável que faria corar de vergonha o mais
potente
dos computadores, a de apreender informação composta e reproduzi-la mais tarde,
quer
queiramos, quer não e segundo uma grande variedade de perspetivas (Damásio,
2010). É o
que acontece aos veteranos de guerra, certamente contra a sua vontade, que vivem
retrospetivas perturbantes e indesejadas da sua estadia na frente de combate,
ouvindo os
sons, sentindo os cheiros e vendo as imagens do campo de batalha. As emoções
desempenham um papel fundamental nestes processos de memorizar e evocar
(Fernandes,
2004; Damásio, 2010; Jensen, 2002). Nas palavras de António Damásio:
“… desde que na altura houvesse suficiente emoção, o cérebro apreende
imagens, sons, odores e sabores, num registo multimédia, e irá recuperá-los
na altura própria. Com o tempo, a recordação poderá desvanecer-se. Com o
tempo, e com a imaginação de um fabulista, o material será embelezado,
baralhado e voltará a ser ordenado num romance ou num argumento
cinematográfico. Passo a passo, aquilo que começou como imagens fílmicas
não-verbais poderá mesmo transformar-se num relato verbal fragmentado,
recordável tanto pelas palavras de uma narrativa como por elementos visuais
e auditivos…” (Damásio, 2010, p.168).
Outros autores alargam a abrangência conceptual e introduzem o conceito de
memória de trabalho, enquanto mecanismo subjacente à manutenção e
disponibilidade da
informação relevante para determinada tarefa, como a compreensão linguística, a
leitura, a
construção de imagens mentais e a resolução de problemas, sendo que a construção
de
representações mentais requer a cooperação efetiva da memória de trabalho com a
memória a longo prazo (Kalakoski, 2006).
Anteriormente, apresentámos a hipótese defendida por Gregory (1979) e por
Jimenez (2002) segundo a qual, a perceção corresponde a uma hipótese antecipada
sobre a
realidade, formulada ao nível cerebral com base (i) nas representações
preexistentes, (ii) no
contexto e (iii) nos valores individuais, a qual é testada pelos dados
sensoriais. Assim, sem
memórias de (i) representações, (ii) contextos e (iii) valores, a perceção
resultava um
processo difícil, mais lento, menos eficaz e com dispêndio acrescido de energia.
Analogamente, sem memória, dificilmente poderíamos construir representações
mentais,
até porque, com alguma consistência, os estudos revelam que as imagens mentais
de
natureza visual ativam a maioria das áreas cerebrais ativas no decorrer de uma
perceção
visual, sugerindo que imagens mentais visuais e perceções visuais, poderão
sobrepor-se
como formas alternativas de representação ao nível da memória (Gonsalves e
Paller, 2000).
Evaristo Fernandes propõe-nos uma classificação de memória baseada nos seus
conteúdos:
“…a memória figurativa emana das imagens dos objectos anteriormente
percepcionados e da memória dos movimentos realizados; a memória
emocional dos sentimentos e afectos vivenciados; a memória semântica dos
pensamentos ouvidos ou expressos; a memória lógico-verbal dos
pensamentos exteriorizados através das palavras, que são o invólucro material
do pensamento, e, a memória sensorial que emana da acção dos sentidos,
sobretudo, da visão, da audição, do tacto, do paladar, do olfacto, etc”
(Fernandes, 2004, p. 23).
2.2. MODELOS EXPLICATIVOS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS: A TEORIA
DO PROCESSAMENTO DUAL DE ALLAN PAIVIO
Referindo-se ao caso particular das crianças cegas, Martín e Bueno (1997)
referemse
á linguagem como um “mediador entre o objecto e a sua representação” (p. 326).
Partilhando da conceção da linguagem enquanto mediador para a população em
geral,
Ormelezi (2000) alarga-a através da introdução explícita de uma influência
unidirecional
da linguagem nos “processos de aquisição do conhecimento – representação mental,
pensamento e formação de conceitos” (p. 53). As conceções anteriores de
linguagem
parecem excluí-la da representação mental propriamente dita. Sendo esta mediação
interna
e protagonizada pelo mesmo órgão responsável pela representação, o cérebro,
poderemos
questionar se a linguagem não é, em si mesma e só por isso, já uma forma de
representar
com símbolos que lhe são próprios, logo uma representação.
O modelo teórico proposto por Allan Paivio nos anos 60 do século passado
permite,
pelo menos em parte, integrar e explicar o exposto no parágrafo anterior.
Conhecido em
inglês por Dual Coding Approach 20, tem vindo a evoluir desde então e continua a
granjear
respeito e grande aceitação no meio académico. Este modelo concebe a cognição
humana
como a atividade conjunta e interligada de diferentes sistemas representacionais
especializados no processamento de informações de natureza diversa, com origem
no
ambiente, servindo objetivos comportamentais funcionais e adaptativos. Explica
uma
capacidade única na árvore da vida, a de lidar simultaneamente com a linguagem
verbal – Sistema de Representação Verbal (SRV), e com objetos e acontecimentos de
natureza nãoverbal – Sistema de Representação Imagético (SRI). A sua existência manifesta-se pela
distinção estrutural e funcional entre eles. Estruturalmente, diferem na
natureza das suas unidades representacionais e na forma como elas se organizam nas estruturas
cognitivas de mais alto nível. Funcionalmente são autónomos, uma vez que, se podem ativar de
forma
autónoma, mas também em paralelo (Paivio, 1990, 2006). Em suma, eles são
funcionalmente interconectados ainda que autónomos, de tal forma que a atividade
em um deles pode despoletar a atividade do outro.
Uma experiência simples é-nos apresentada por vários autores (Ninio, 1994;
Jimenez, 2002; Spitzer, 2007), a qual, no nosso entender, apoia existência de um
SRI e de um SRV, ambos dotados de autonomia mas intrinsecamente relacionados. Se
escrevermos
a palavra vermelho com tinta verde e pedirmos a alguém que leia a palavra, esse
alguém
dirá vermelho, mas com duas décimas de segundo de atraso em relação ao seu tempo
habitual de leitura:
“… Ao ler a palavra vermelho, captada pela memória gráfica, a memória
visual evoca a imagem do vermelho. Para pronunciar a palavra, a memória
gutural baseia-se por um lado no código gráfico e por outro na memória
perceptiva, para ultrapassar quaisquer ambiguidades. No entanto, neste
exercício muito artificial, a memória perceptiva integra simultaneamente a
percepção do vermelho, activada pela palavra e a percepção do verde,
evocada pela cor da palavra. Daí a tentação de dizer verde e a consequente
perda de tempo…” (Ninio, 1994, p. 237).
Como resulta da experiência anterior, as relações entre as imagens mentais e as
suas
descrições verbais são complexas, estando dependentes de conexões funcionais
entre
elementos do SRV e elementos do SRI. Segundo Paivio (1971, 1990), estas relações
não
são lineares no sentido de que a uma representação verbal corresponde uma
representação
imagética e vice-versa. Defende o autor que as citadas relações são do tipo uma
– várias e
em ambos os sentidos, ou seja, da mesma forma que um objeto pode ser designado
por
várias palavras, a uma palavra podem corresponder vários referentes, logo, uma
mesma
palavra pode evocar diferentes imagens mentais dentro de uma categoria
particular de
fronteiras mais ou menos definidas (mesa, por exemplo), da mesma forma que a uma
mesma imagem mental podem corresponder diferentes descrições verbais. Assim, a
Teoria
do Processamento Dual (Paivio, 1971, 1990, 2006) prevê que (i) a performance nas
tarefas
cognitivas é mediada pela atividade conjunta do SRV e do SRI, com contribuições
relativas de cada um, dependendo das características das tarefas, das
competências e dos
hábitos de cada sujeito, (ii) quanto mais concreta ou de natureza imagética for
a tarefa,
maior será a contribuição do SRI, (iii) quanto mais abstrata ou de natureza
verbal for a
tarefa, maior será a contribuição do SRV, (iv) o SRI e as unidades
representacionais a ele associadas organizam-se sincrónica e hierarquicamente
21, (v) o SRV e as unidades
representacionais a ele associadas organizam-se de forma sequencial, (vi) são
possíveis experiências associativas entre representações verbais (SRV), (vii) são
possíveis representações associativas entre palavras (SRV) e objetos (SRI), (viii) o SRV e
o SRI revelam-se funcionais para lidar com situações concretas, (xix) o SRV é mais
funcional que o SRI para lidar com situações abstratas, (x) a atividade representacional
pode, ou não, ser experienciada de forma consciente na forma de imagens mentais e/ou de
discurso interior e (xi) os indivíduos diferem na extensão, na forma e na eficiência com
que utilizam
cada um dos sistemas de representação, de acordo com as suas competências e
hábitos
verbais e imagéticos.
Tem-se demonstrado que instruções verbais, que delimitem alternativas ou
direcionem a atenção para caraterísticas particulares dos objetos, facilitam e
promovem o
sucesso dos processos de perceção (Paivio, 1971). No mesmo sentido, tem-se
demonstrado
que a linguagem falada pode influenciar a perceção das cores, facto que não será
alheio ao
processamento das cores predominantemente no hemisfério esquerdo 22 nos
adultos 23,
hemisfério que processa também a linguagem (Smith, 2008). Respondendo à questão
implícita do final do primeiro parágrafo deste ponto, com base na Teoria do
Processamento
Dual, a linguagem constitui, ela mesma, um sistema representacional que pode
simbolizar
tanto conceitos puramente verbais, como por exemplo a classificação gramatical
das
palavras, como componentes do mundo percetual e comportamental (nomear e
descrever
objetos e comportamentos, por exemplo). Esta conceção da linguagem pressupõe, em
linha
com os princípios gerais do modelo, que a sua produção é cognitivamente
controlada pela
atividade cooperativa do SRV e do SRI. Numa conferência realizada em 2006, o
psicólogo
canadiano afirmava que a construção de representações mentais é um processo que
se
desenvolve progressivamente, desde as suas fases iniciais que serão de natureza
exclusivamente imagética até ao estabelecimento dos primeiros rasgos de
linguagem
significativa, que dará início às fases posteriores dominadas pelo duplo
processamento
(imagético e verbal). O desenvolvimento inicia-se com a formação de um substrato
representacional, de natureza imagética e imagético-mental, o qual resulta das
observações
e dos comportamentos realizados pela criança em interação com os objetos e
acontecimentos, assim como das múltiplas relações que pode estabelecer a este
nível. A
linguagem vai desenvolver-se a partir deste substrato fundacional, permanecendo
funcionalmente conectada com ele de forma irrevogável 24, de forma que a criança
faça
corresponder os nomes aos respetivos objetos e acontecimentos, tanto na sua
presença
como na sua ausência, assim como ela própria nomear os objetos e acontecimentos,
tanto
na sua presença como na sua ausência (Paivio, 2006). O referido substrato
representacional
continua a desenvolver-se ao longo de toda a vida, agora a par da linguagem, ou
seja, ainda
que com cadências inferiores às da infância, por toda a idade adulta estaremos a
acrescentar novas perceções e novas palavras ao nosso reportório, assim como a
estabelecer novas ligações (significados) entre perceções, entre palavras, entre
perceções e
palavras, assim como a reformular antigas ligações (significados). As
representações
mentais conservam as características do substrato que fornece os materiais da
sua
construção, pelo que Paivio (1990) defende que as estruturas e os processos de
representação são específicos 25 e não amodais. As representações mentais
enquanto
produtos complexos e compostos de imagens mentais de diferentes modalidades
sensoriais,
assim como de representações verbais, podem considerar-se multimodais e com
grandes
intervalos de variação quanto às estruturas e às funções (Paivio, 1990). Por
exemplo, a
imagem mental visual de um telefone poderá estar associada à imagem mental
auditiva do
seu toque de chamada, embora nem sempre assim seja, da mesma forma que as
experiências percetuais correspondentes podem, também elas, ocorrer de forma
conjunta
ou separada.
A par da Teoria do Processamento Dual, outras descobertas (Denis e Cocude, 1989;
Knauff e May, 2005) convergem na ideia, segundo a qual, o processamento de
informação
verbal, ouvida ou lida, evoca imagens e representações mentais no entanto,
certas
condições podem tornar-se limitantes. Se as palavras são recebidas com baixa
densidade e
a uma velocidade reduzida, terão o tempo necessário para se evidenciar de forma
consciente, pelo contrário, se ocorrer uma grande densidade de palavras a grande
velocidade, as imagens e representações tendem a ser reprimidas, dando a falsa
impressão
de estar a ocorrer um processo puramente verbal (Ninio, 1994). Assim, é
necessário
proporcionar tempo, prática e condições ambientais adequadas, para que a
informação
verbal possa ser mobilizada na construção de imagens mentais, cujas propriedades
estruturais são similares àquelas das imagens baseadas na perceção (Denis e
Cocude,
1989). Por outras palavras, é necessário trabalhar e estimular as interligações
entre o SRV
e o SRI.
Embora não tenham merecido maior atenção no seu trabalho, Allan Paivio refere-se
à ocorrência de reações emocionais, como estas estando associadas primariamente
ao SRI
porque, segundo ele, as reações emocionais são sentidas e representadas como
acontecimentos de natureza não-verbal, embora possam ser evocadas a partir de
representações mentais ou de estímulos reais, tanto de natureza verbal como
imagética
(Paivio, 1990). Salienta o autor que os objetos, os acontecimentos ou as
palavras
necessitam ser previamente processados, para que as reações emocionais possam
acontecer
e manifestar-se. Em continuação, afirma que as reações emocionais ou as suas
representações mentais tendem a ser evocadas mais rapidamente por estímulos ou
representações mentais de natureza imagética, que de natureza verbal. Na sua
perspetiva,
as reações emocionais são originariamente aprendidas como respostas às situações
ou
objetos, surgindo posteriormente associadas às representações mentais dessas
situações ou
objetos.
2.3. MODELOS EXPLICATIVOS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS: A
CONVERGÊNCIA-DIVERGÊNCIA DE ANTÓNIO DAMÁSIO
No modelo que nos propõe para a explicação da consciência, Damásio (2010)
atribui um papel importante às imagens mentais, ainda que não exclusivo. Entende
imagens mentais como mapas cerebrais que constroem padrões mentais do corpo e
daquilo
que o rodeia, tanto concreto como abstrato, do presente, daquilo que foi
anteriormente
gravado na memória ou do que é antecipado, recorrendo a qualquer uma das
modalidades
sensoriais (Damásio, 2004, 2010). Lembramos que são as imagens mentais
anteriormente
guardadas na memória, o que nos ocupa neste trabalho. Já o conceito de mente que
nos
propõe afirma o seguinte: “a simples presença de imagens organizadas que se
encadeiam
numa corrente produz uma mente, mas a menos que se lhe acrescente um novo
processo, a
mente permanece inconsciente” (Damásio, 2010, p. 27). Na sua proposta, para que
o
conteúdo da mente se torne consciente, necessita incorporar uma nova propriedade
que
designa de subjetividade, a qual está fortemente relacionada com os sentimentos
que
percorrem as imagens e que experimentamos de forma subjetiva. Uma vez tornados
conscientes, podemos apreender esses mapas na forma de imagens, as quais podemos
manipular através do raciocínio. Os sentimentos surgem-nos como componente
fundamental deste modelo, a par e interrelacionados com as imagens mentais. Por
outras
palavras, os sentimentos são, também eles, imagens mentais que traduzem aspetos
dos
estados corporais, das ações, das ideias, da fluência das ideias (lenta ou
rápida) e da
fixação ou alternância de imagens. Como referido anteriormente, os sentimentos
são
perceções (i) de estados corporais decorrentes de emoções reais ou simuladas,
(ii) do
estado de recursos cognitivos alterados e (iii) da evocação de certas ideias.
Estas perceções
podem ser desencadeadas por imagens de pessoas, objetos ou acontecimentos que
estejam
realmente a ocorrer no momento, que tenham sido evocadas do passado memorizado
ou
criadas de raiz na imaginação. Estas imagens despoletam uma cadeia de fenómenos
em
várias regiões cerebrais, de cuja atividade podem resultar (i) palavras com as
quais se pode
classificar determinado objeto e/ou (ii) evocações rápidas de outras imagens que
nos
permitem concluir algo sobre o objeto, etc. Num cérebro normal, os mecanismos
essenciais
das emoções são muito semelhantes entre indivíduos, mesmo de culturas muito
diferentes,
no entanto existe sempre uma componente individual não desprezível. As
circunstâncias
que tornam emocionalmente competentes certos estímulos de cariz menos universal
são
diferentes do sujeito A para o sujeito B. Há coisas que A receia e B não e
vice-versa, coisas
que A gosta e B não e muitas mais coisas que ambos receiam e adoram.
À semelhança de Paivio, Damásio (2010) considera que as imagens mentais podem
ser processadas, de forma rápida, tanto em paralelo como em sequência, podendo
assumir
diferentes naturezas sensoriais, nomeadamente sons, texturas, cheiros, sabores,
angústias e
felicidades.
Este modelo (Damásio, 2003a, 2004, 2010) não estabelece nenhuma dualidade de
processamento entre palavras e imagens, focando-se no processamento visual e/ou
auditivo
das palavras, ou seja, nas palavras enquanto imagens visuais e/ou auditivas.
Assim, tanto
palavras como símbolos abstratos (um algarismo, por exemplo) são, eles próprios,
imagens. Por um lado, prevê que as palavras sejam primeiramente processadas como
imagens verbais de natureza visual e/ou auditiva, podendo o seu processamento
cerebral
evocar um manancial de imagens não-verbais, as quais ajudarão à compreensão dos
conceitos representados por essas palavras. Por outro lado, prevê também que as
imagens
de natureza não-verbal possam transformar-se em palavras, relatos verbais, cuja
evocação
pode ser acompanhada pelas respetivas imagens de natureza não-verbal. Não é
possível
inibir ou suspender esta tradução do imagético para o verbal. Estes postulados
acompanham, no essencial, o defendido por Paivio, mas encontram uma explicação
funcional viável nas zonas de convergência-divergência (ZDC) que explicaremos de
seguida.
Enquanto componentes essenciais do modelo, os sentimentos e as emoções que
representam podem, também, influenciar ou ser influenciados pela (re)construção
de
imagens mentais, verbais ou não verbais (Damásio, 2003b). Por exemplo, a
tristeza
conduz, geralmente, a uma produção reduzida de imagens mentais, geralmente de
perda,
nas quais se concentra uma atenção excessiva, enquanto os estados de felicidade
conduzem, geralmente, a uma profusão de imagens em rápida sucessão, concentrando
necessariamente pouca atenção. Por outro lado, a recordação de um acontecimento
poderá
evocar as emoções e respetivos sentimentos, experienciados aquando da perceção
do
mesmo ou, pelo menos, as emoções e os sentimentos mais salientes desse
acontecimento.
Também estes postulados encontram uma explicação funcional viável nas zonas de
convergência-divergência (ZDC).
As representações mentais construídas a partir de imagens mentais não-verbais,
verbais e/ou sentimentais, podem ser manipuladas pela nossa mente através de
múltiplas
(re)construções criativas de pessoas, objetos e acontecimentos. Podemos inventar
e incluir
novas imagens mentais na representação, transformar imagens preexistentes como
colocar
a cabeça de alguém num corpo de cavalo, assim como representar abstrações como a
figura
de um átomo (Damásio, 2003b, 2004).
Em termos estruturais e funcionais o modelo proposto por Damásio assenta numa
arquitetura neural de ligações corticais em rede, capazes de emitir sinais
convergentes e
divergentes em relação a determinados pontos de ligação, os nódulos ou ZDC
26.
Por outras
palavras, as ZDC “registam a coincidência de actividade em neurónios de
diferentes partes
do cérebro, neurónios esses que haviam sido activados, por exemplo, pelo
mapeamento de
um determinado objecto” (Damásio, 2010, p. 182). Prevê-se a existência de dois
tipos de
sistemas cerebrais, numa divisão claramente distinta da estabelecida por Paivio.
Um dos
sistemas aqui previsto é responsável pelo processamento de mapas ou imagens –
sistema
imagético (SI), verbais e não-verbais, enquanto o outro se encarrega de gerir
disposições –
sistema disposicional (SD) (Damásio, 2003a, 2004, 2010). No essencial, o SI é
constituído
pelo conjunto de córtices sensoriais primários e periprimários visuais,
auditivos,
somatossensoriais, etc. – por exemplo, o grupo de córtices visuais que rodeia o
córtex
visual primário ou área 17 de Brodmann, assim como por áreas subcorticais. Nele
ocorrem
imagens explícitas de todas as naturezas sensoriais, umas que se tornam
conscientes, outras
que permanecem inconscientes. Por sua vez, o SD inclui todos os córtices de
associação,
situados nos lobos temporal, parietal e frontal, assim como áreas subcorticais.
Constitui a
base implícita do conhecimento e permite a reconstrução e a evocação desse mesmo
conhecimento, ou seja, orienta a (re)construção de imagens no SI, através das
instruções
que os seus padrões neurais enviam com o objetivo de ativarem outros padrões
neurais,
tanto os situados no SD como no SI, permitindo a atividade neural dos mesmos e
com os
quais existe uma forte interconexão. A ativação dos circuitos disposicionais
leva ao envio
de sinais para outros circuitos, levando à (re)construção de imagens e/ou de
ações.
Atentemos no seguinte exemplo. Imaginemos que gostamos do aroma e do sabor de
pipocas acabadas de confecionar. Ao caminharmos junto a uma barraca de confeção
e
venda desta guloseima temos a imagem visual da mesma e do seu interior, assim
como o
aroma intenso que dela emana, compramos algumas e deliciamo-nos com o seu sabor,
ao
mesmo tempo que sentimos um prazer imenso na degustação. Um modelo assente em
ZDC
prevê que a perceção simultânea destes fenómenos (imagem, aroma, sabor e
prazer),
processados inicial e respetivamente nos córtices visual, olfativo e gustativo
primários,
assim como no córtex pré-frontal ventromediano e no tronco cerebral para o
prazer,
venham a estar associados numa ZDC. Assim, no futuro, quando vivenciarmos apenas
parte deste episódio, por exemplo uma fotografia da barraca de confeção e venda
de
pipocas, portanto sem aroma e sem sabor, o padrão induzido por esta imagem nos
córtices
visuais primários vai ativar a ZDC apropriada, a qual irá retroativar (i) nos
córtices olfativo
e gustativo primários a representação mental do aroma e do sabor e (ii) no
córtex préfrontal
ventromediano e no tronco cerebral o sentimento de prazer, que acompanharam a
perceção original. Trata-se de uma aproximação, não de uma réplica nítida e
precisa, no
fundo, um regresso ao passado.
3. CARACTERÍSTICAS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS
Hoje em dia, aceita-se que a origem das representações mentais assenta tanto no
substrato biológico como no cultural. De acordo com a interpretação de vários
autores
(Paivio,1990; Wilson, 1999), tal significa que alguns processos
representacionais são
determinados biologicamente, enquanto outros o são culturalmente. Os processos
biológicos resultam do longo alvorecer evolutivo das espécies e são, pelo menos
em parte,
partilhados com outros animais, particularmente os mamíferos e em especial os
símios não
humanos. Como exemplos gerais temos a memória não-verbal, as imagens mentais e
alguns tipos de esquemas de ação, como a tendência inata a reagir tanto com medo
como
com fascínio diante das cobras, um exemplo daquilo que Wilson (1999) designa
regras
epigenéticas. Os processos culturais, eles próprios marcadamente biológicos
27,
resultam da
evolução e impregnação culturais e têm de ser aprendidos. Como exemplos gerais
temos os
comportamentos planeados, a linguagem, a Matemática, as artes, as religiões, o
conhecimento do senso comum e o conhecimento científico. Exemplificamos com as
cores
normalmente escolhidas para os bebés em função do sexo, azul para os meninos e
cor-derosa
para as meninas, algo que nos é transmitido pelas convenções culturais, mas que
acaba
por se inculcar nas nossas representações ao ponto de, se no pedirem para
imaginar um
quarto de menino o imaginarmos azul e o de uma menina cor-de-rosa. Os autores
ressalvam que as fronteiras entre o biológico e o cultural são ténues e nem
sempre são
identificáveis (Damásio, 2010; Paivio, 1990; Voland, 1999; Wilson, 1999).
Uma das caraterísticas fundamentais das representações mentais é a presença de
informações de natureza contextual. São elas que nos orientam na identificação
dos
elementos constituintes, ajudando a atribuir-lhes um significado, assim como na
recuperação posterior das informações retidas na memória a longo prazo (Jimenez,
2002;
Paivio 1999; Vauclair, 2008). Por exemplo, se representarmos alguém a correr na
nossa
direção, tanto poderá significar um amigo ou um desconhecido que nos quer ajudar
porque
contextualmente acabámos de cair ao chão e estamos magoados, como poderá
significar
um amigo do alheio se contextualmente acabámos de levantar dinheiro de uma caixa
multibanco. Sabemos que uma representação mental evocada pelo nome de um objeto
evidencia características contextuais (Jimenez, 2002). O contexto ajuda também a
explicar
as variações representacionais acerca de um objeto ou situação por parte de um
mesmo
sujeito, ou seja, a diferentes contextos correspondem diferentes perceções e
comportamentos, diferenças essas que se irão refletir nas respetivas
representações mentais
(Paivio, 1990). No âmbito da Teoria do Processamento Dual referimos que as
representações associadas ao SRI se caracterizam por serem sincrónicas e
hierárquicas no
entanto, estas características têm revelado os seus limites (Paivio, 1990). Tal
como a
perceção visual, as imagens mentais de natureza visual têm um alcance limitado
e, em
certos casos, as diferentes partes de uma representação sincronicamente
disponível terão de
ser visualizadas sucessivamente. Tal situação ocorre, sobretudo, nas imagens
mentais
relativas a objetos complexos, como o interior de uma habitação. A divisão que
fica
inicialmente acessível na imagem mental depende do contexto em que se dá a
evocação,
pelo que a ordem de processamento não é aleatória. Aquilo que normalmente
definimos
como a memória de um objeto, não é algo que resulte de uma receção passiva,
simples e
digitalizada por parte do sujeito, é antes uma receção ativa, complexa e
(re)construída, logo
composta, das atividades sensoriais e motoras associadas à interação entre o
organismo e o
objeto, a qual é responsável por, muitas vezes, recordarmos contextos e não
apenas coisas
isoladas (Damásio, 2010).
Um fator não negligenciável em qualquer análise das características das
representações mentais é a natureza do estímulo evocador. Ainda em 1966, nos
primeiros
tempos de trabalho na sua Teoria do Processamento Dual, Allan Paivio demonstrou
que o
tempo de reação requerido para a construção de uma imagem mental é menor, quando
o
estímulo é uma palavra concreta, comparativamente às situações em que o estímulo
é uma
palavra abstrata, tal como previsto pelo princípio teórico de que as
representações verbais
de natureza concreta (palavras concretas) apresentam mais conexões funcionais
com o SRI,
comparativamente às representações verbais de natureza abstrata (palavras
abstratas)
(Paivio, 1971, 1990). Existe também evidência de que (i) as palavras abstratas
têm menor
probabilidade de evocar imagens mentais que as palavras concretas, (ii) as
imagens
mentais evocadas pelas palavras concretas não se restringem às de natureza
visual ou
pictórica, podendo ser de natureza auditiva, táctil, olfativa, gustativa,
cinestésica,
interoceptiva ou sentimental e (iii) as imagens mentais evocadas a partir de
estímulos
semânticos tendem a ser menos nítidas e detalhadas, comparativamente às evocadas
a
partir de situações concretas e objetos específicos (Paivio, 1971, 1990; Thomas,
2007).
Pediu-se a 57 sujeitos do primeiro ano do Ensino Superior que, utilizando uma
escala de
Likert de sete níveis (1 - 7), classificassem um conjunto de frases, umas
concretas, outras
abstratas, quanto à sua potencialidade para evocar imagens mentais, tendo as
frases
concretas obtido níveis significativamente superiores (4,85) às frases abstratas
(2,97)
(Bellardinelli, 2004). No desenvolvimento da criança, as representações podem
evoluir
tanto no sentido de uma maior concretização, como de maior abstração (Paivio,
1971). Por
exemplo, a representação mental evocada pela palavra cão, pode evoluir no
sentido de uma
maior concretização, passando a incluir, reconhecer e nomear diferentes raças,
como pode
evoluir no sentido de uma maior abstração, compreendendo o conceito de mamífero.
Ainda em relação à natureza dos estímulos, sabe-se que imagens mentais de
natureza visual podem ser induzidas por estímulos de natureza diferente. Estudos
realizados a este propósito têm demonstrado, que as imagens mentais visuais
induzidas por
estímulos auditivos tendem a ser menos detalhadas ou específicas,
comparativamente às
induzidas por estímulos tácteis (James et al., 2006). No caso particular dos
cegos
congénitos, a ausência de estímulos visuais, tem implicações na natureza das
suas
representações mentais (Heller e Ballesteros, 2006). Atendendo a que eles
reconhecem os
objetos essencialmente através da perceção táctil ativa, Paivio (1990) considera
razoável
supor que as suas representações mentais incorporem abundantemente elementos
resultantes dessa experiência háptica.
As representações mentais podem caracterizar-se como sendo uma teoria individual
acerca do mundo e da própria interação com ele. Assim pensa Allan Paivio que
exemplifica com as representações mentais de natureza antecipatória, no sentido
em que
permitem prever e monitorizar objetos e acontecimentos, mesmo antes da sua
ocorrência, o
que permite deliberar e planear reações, assim como antecipar os resultados das
mesmas
(Paivio, 1990). Neste sentido, podemos afirmar que as representações mentais
evoluíram
na espécie humana como forma de potenciar a adaptação ambiental, caso contrário
a
capacidade de as construir não se teria imposto no nosso património genético.
Pensemos
numa caçada efetuada pelos nossos antepassados há cem mil anos atrás, quanto
melhor o
seu planeamento, quanto maior colaboração entre caçadores, melhor conhecimento
do
terreno e preparação da emboscada da presa, melhor antecipação das reações dos
outros
caçadores e da presa, maiores as probabilidades de sucesso no número de animais
mortos e
no seu tamanho, logo mais alimento, melhor sobrevivência e mais êxito
reprodutivo.
António Damásio defende um mecanismo semelhante em relação às emoções, afirmando
que o cérebro, com o contributo dos chamados neurónios espelho, pode criar
rapidamente
mapas do corpo (imagens mentais), em tudo comparáveis aos que seriam criados
caso o
corpo fosse realmente alterado por determinada emoção. Diz-nos, por outras
palavras, que
“o cérebro pode simular, em regiões somatossensoriais, certos estados do corpo,
como se
estivessem mesmo a ocorrer; e uma vez que a nossa percepção de qualquer estado
do corpo
se baseia nos mapas corporais das áreas somatossensoriais, apercebemo-nos do
estado do
corpo como se este de facto estivesse a ocorrer, mesmo que não seja esse o caso”
(Damásio, 2010, p. 133). De forma mais simples, melhores representações mentais
conduzem a melhores antecipações ou simulações avançadas, as quais permitirão,
em
conjunto com outras ferramentas como o raciocínio hipotético dedutivo, planear
melhores
reações e consequentemente, obter melhores resultados. Em linha com estas
ideias, hoje
em dia, a maioria dos cognitivistas atribuem um papel essencial às
representações mentais
na nossa “economia mental”, ou seja, permitem melhores desempenhos com custos
energéticos mais baixos (Damásio, 2010; Thomas, 2007).
A natureza antecipatória das imagens mentais foi também defendida por Piaget e
Inhelder (1977), a par das imagens mentais de natureza reprodutiva. Para eles,
imagens
antecipadoras são “as que representam por imaginação figural acontecimentos não
percepcionados anteriormente, quer se trate de movimentos ou transformações ou
dos seus
fins ou resultados” (p. 18). Imagens reprodutoras são “as que evocam objectos ou
acontecimentos já conhecidos” (p. 18). A capacidade de construir imagens mentais
reprodutivas tem sido identificada em crianças muito antes dos sete anos de
idade,
enquanto as imagens antecipatórias tendem a tornar-se funcionais apenas após
essa idade,
parecendo desenvolver-se a par e em relação com as operações concretas (Paivio,
1971).
As imagens mentais não devem ser tidas como algo estático, consideram vários
autores (Damásio, 2003a, 2010; Mackay, 2009), sendo dotadas de grande
volatilidade,
(re)construindo-se constantemente de forma a refletir as alterações que ocorrem
nos
neurónios que as alimentam, os quais refletem as mudanças no interior do nosso
corpo e no
mundo envolvente, mesmo nos adultos. Estas (re)construções são momentâneas e
embora
possam parecer réplicas de boa qualidade, são geralmente imprecisas e
incompletas.
A componente imagética das representações mentais pode caracterizar-se pela sua
claridade e pela sua vivacidade, sendo que uma imagem será tanto mais vívida
quanto mais
se assemelhar a uma perceção real, nomeadamente em termos de brilho, nitidez e
dinamismo (Marks, 1995, citado em Beato et al., 2006).
Como resulta dos pontos anteriores, tanto a Teoria do Processamento Dual como o
Modelo de Convergência-Divergência preveem, que os conteúdos das representações
mentais possam ser traduzidos em palavras pelos sujeitos que os representam. Com
base
nestes relatos verbais, Almaraz (1997) propõe que se caracterizem as
representações em
termos de riqueza e de complexidade. Por riqueza entende o conjunto ou somatório
dos
substantivos, dos adjetivos, dos verbos e dos advérbios utilizados. A
complexidade
corresponde ao conjunto ou somatório das palavras de ligação entre as orações do
relato
verbal, ou seja, das conjugações e preposições.
As nossas representações mentais não são, na maioria dos casos, constituídas por
informações particulares e isoladas, mas sim por generalidades. Como defendem
vários
autores (Spitzer, 2007; Vauclair, 2008), seria um dispêndio inútil de energia se
tivéssemos
de registar cada informação isolada que apreendemos do ambiente, isto porque
esse
ambiente é maioritariamente regido por regras. Assim, defendem os autores,
necessitamos
apenas de representar essas regras gerais através de um processo denominado
categorização, conduta adaptativa humana que permite estruturar, organizar e
reduzir a
complexidade e a diversidade do meio físico e social. Por exemplo, certamente
conhecemos e representamos detalhadamente os pormenores da casa que habitamos.
Se
nos solicitarem a (re)construir uma representação mental da mesma, muito
provavelmente
esses pormenores irão manifestar-se em virtude da nossa familiaridade com os
mesmos (o
nosso desagrado com desarrumação do quarto dos brinquedos, aquela mancha na
parede, o
ruído daquela porta, o aroma inebriante que emana da cozinha, etc.). Em
contrapartida, se
nos pedirem para representar uma casa qualquer, sem nenhuma familiaridade
connosco,
(re)construímos essa representação com base em características gerais que podem
assumir
múltiplos aspetos, como ter quatro paredes, um telhado, janelas, portas,
varandas, etc. De
outro modo, se representássemos na mente, de forma pormenorizada, todas as casas
que já
tivemos oportunidade de percecionar, teríamos uma pequena cidade na nossa
cabeça. Um
caso mais flagrante será, por exemplo, o das frutas. Não existem dois limões
iguais, mas
quando olhamos um percebemos quase imediatamente que se trata de um limão pela
sua
forma oval, pela sua cor e pela textura tipo “casca de laranja”, o que
posteriormente é
reforçado com o aroma cítrico e o sabor ácido. Se tivéssemos gravado cada limão
que já
observámos, como um limão isolado, então a nossa cabeça mais pareceria um cabaz
cheio
de limões isolados. Como explica Manfred Spitzer:
“… não só encheria a nossa cabeça de informação não importante como
também não teríamos retirado nada desse conhecimento isolado. Só quando
conseguimos abstrair algo de conteúdos isolados e formamos um conjunto e
uma imagem global de um tomate a partir de um conjunto de indicações
isoladas sobre tomates é que estamos em condições de, por exemplo,
identificar os seguintes e saber logo que propriedades gerais têm (aspecto,
cheiro, sabor, que podem ser comestíveis, cozinhados, secos, atirados,
preparados em ketchup, etc.)…” (Spitzer, 2007, p. 83).
4. CASOS PARTICULARES: ALUCINAÇÕES, SONHOS E FALSAS MEMÓRIAS
Já anteriormente o referimos, as alucinações são casos particulares de
representações mentais criadas na mente de alguém, desprovidas de lógica
racional do
ponto de vista do observador externo, desfasamento do qual o próprio sujeito
criador não
tem, geralmente, consciência, levando-o a confundir as suas próprias criações
com a
realidade, que pode estar completamente ausente ou manifestar-se de forma
distorcida
(Gregory, 1979). São várias as causas apontadas para a ocorrência de
alucinações,
nomeadamente patológicas, onde se destaca o exemplo dramático da esquizofrenia,
consumo de drogas e estados induzidos pelos contextos físicos e/ou sociais, como
a
privação sensorial, o calor extremo acompanhado de desidratação ou eventos que
nunca
ocorreram, mas que conjuntos de muitas pessoas afirmam terem presenciado. Quanto
há
natureza dos seus conteúdos, eles podem ser visuais, auditivos, tácteis,
gustativos ou
olfativos, podendo mesmo combinar simultaneamente conteúdos de natureza diversa,
situação que segundo Gregory (1979) provocará uma distorção esmagadora da
realidade.
Foi demonstrada experimentalmente a possibilidade de induzir alucinações
visuais,
semelhantes às relatadas pelos pacientes do Síndrome de Charles-Bonnet, após
dois ou três
dias de privação visual. Segundo Pascual-Leone e colaboradores (2006), estas
alucinações
cessavam assim que terminava o período de privação visual, sendo descritas, no
geral,
como sendo bem formadas e representando situações apropriadas e semelhantes a
perceções, sendo que os sujeitos, tal como no Síndrome de Charles-Bonnet, estão
conscientes da irrealidade de tais vivências, não obstante o pormenor e a
vivacidade
relatados. Por exemplo, uma jovem de 29 anos relatou a seguinte alucinação: uma
face
esverdeada com grandes olhos, refletida num espelho. Acrescentou que foi a sua
primeira
alucinação visual e ocorreu quando estava em frente daquilo que ela sabia ser um
espelho.
Gregory (1979) recorre às alucinações, enquanto criações da mente não
controladas
por informações sensoriais, para desmentir os empiristas clássicos, para quem as
representações mentais eram uma transposição passiva de dados sensoriais para a
mente.
Na verdade, se assim fosse, esta passividade dificilmente permitiria a
ocorrência de
alucinações, enquanto casos extremos de distorção da realidade, engendradas a
nível
cerebral, ou a ocorrência de ilusões de ótica como as de Mueller-Lyer e de
Ponzo, para
citar algumas das mais conhecidas, ou os avistamentos de objetos voadores não
identificados (OVNI’s), fenómeno estudado por Jimenez (2002). Por norma, as
ilusões de
ótica são situações benignas e transitórias, também elas resultantes da
atividade cerebral.
Não deixam por isso de ser intrigantes, ainda mais quando há evidência de que a
estimulação táctil pode, por si mesma, despoletar ilusões de natureza visual
(Millar, 2006).
Por outro lado, as ilusões não têm que ser, necessariamente, de natureza visual.
A
investigação tem demonstrado que a ilusão de Mueller-Lyer ocorre, também, na
forma
táctil aquando da perceção da mesma natureza e com algumas similitudes, como a
ilusão
ser mais notória quando o ângulo de abertura das “asas” das setas é mais
reduzido, tanto na
perceção táctil como na visual (Heller, 2006). Já a ilusão de Ponzo não ocorre
na perceção
táctil, o que poderá dever-se a duas razões: por um lado, o tato implica, quase
obriga, a
uma concentração em características localizadas atendendo ao relevo das linhas e
de outros
estímulos e por outro lado, sendo a visão particularmente adequada à perceção de
configurações imagéticas vastas, é também mais suscetível a ilusões relacionadas
com as
relações de profundidade (Heller, 2006).
Num estudo com 236 sujeitos que afirmaram ter visualizado OVNI’s 28, Manuel
Jimenez conclui que a atividade cerebral envolvida na perceção e na construção
de
representações mentais pode ser fortemente influenciada pelo interesse pessoal e
pela
cultura, nomeadamente livros e novas tecnologias da informação, ao ponto de a
facilitar ou
de a distorcer. Nas suas palavras, um exemplo de distorção:
“… pode comparar-se, para todas as pessoas interrogadas nesse inquérito, a
precisão da descrição imaginária com a leitura de livros e com o
visionamento assíduo de emissões sobre óvnis: existem correlações entre a
leitura de livros e o seguimento de emissões e as modalidades mais precisas
da distância, do tamanho e da velocidade imaginadas. Correlações análogas
aparecem entre o facto de manifestar, no inquérito, um maior interesse pelos
óvnis, e a precisão da descrição imaginária…” (Jimenez, 2002, pp. 116-117).
Também os sonhos podem considerar-se casos particulares de representações
mentais, sendo as de natureza visual particularmente abundantes nos sujeitos
videntes e as
de natureza verbal quase ausentes. Segundo Ninio (1994), tal explica-se com base
no facto
de durante o sonho, o hemisfério direito do cérebro se encontrar em plena
atividade,
enquanto o esquerdo, responsável pela linguagem verbal, reduz ao mínimo a sua
atividade,
mínimo esse responsável pelas poucas referências de natureza verbal. Cerca de
metade dos
sonhos contêm também imagens mentais auditivas e menos de um por cento
apresentam
informações de outra natureza sensorial, nomeadamente gustativa, olfativa ou
táctil
(Hurovitz et al., 1999).
Em suma, imagens oníricas, alucinações visuais ou outras, como uma voz que
julgamos ouvir, são construídas a partir de elementos esparsos guardados na
memória, mas
que se confundem facilmente com a realidade externa (Ninio, 1994). Duas
experiências
clássicas demonstram a proximidade das imagens mentais com a perceção da
realidade
externa:
“… Por volta de 1900, Perky apresentou uma hábil demonstração desse facto.
Colocou um indivíduo frente a um ecrã e pediu-lhe que pensasse com muita
força num objecto, por exemplo uma banana, e procurasse visualizá-lo
mentalmente no ecrã. Sem que o indivíduo soubesse, projectava-se uma
imagem do objecto no ecrã. Nenhum dos indivíduos se apercebeu da
projecção: todos julgaram ver uma imagem mental. Numa variante mais
recente desta experiência, Segal pede ao indivíduo que pense num automóvel
e tente visualizá-lo no ecrã. Sem que ele se aperceba, projecta uma cor verde
de fraca intensidade, subliminal, ou seja, que não produz efeito consciente.
Quando se pede ao indivíduo que visualize um automóvel, ele vê-o verde…”
(Ninio, 1994, p. 198).
Ao longo dos últimos séculos, uma questão tem permanecido em aberto no campo
científico, não obstante a atenção que lhe tem sido devotada. Essa questão
consiste em
saber se os sonhos dos cegos, particularmente cegos congénitos, incluem ou não
imagens
mentais de natureza visual, negligenciando muitas vezes o conteúdo substantivo
desses
sonhos (Dávila, 2003; Hurovitz et al., 1999). A ideia que tem tido maior
aceitação na
comunidade científica, defendida entre outros por Hurovitz e Domhoff e
respetivos
colaboradores, nega a ocorrência de imagens mentais de natureza visual nos
sonhos dos
cegos congénitos (Hurovitz et al., 1999; Kerr e Dumhoff, 2004). Outros autores
esgrimem
factos e argumentos a favor de uma ideia alternativa, a de que os sonhos dos
cegos
congénitos são compostos, também, por imagens de natureza visual. Tal é o caso
de
Vecchi, para quem eles têm a capacidade de construir imagens visuo-espaciais
(Bértolo,
2005; Bértolo e Paiva, 2001). Num estudo que envolveu cegos com idades
compreendidas
entre ao 21 e os 50 anos, Bértolo e Paiva (2001) recolheram dados
polisonográficos 29,
verbais (relatos oníricos) e gráficos. Concluíram pela possibilidade dos cegos
produzirem
imagens virtuais, em simultâneo com a ativação dos seus córtices visuais. Ao
analisarem as
descrições verbais dos relatos oníricos feitas pelos cegos, congénitos ou não,
os autores
não puderam deixar de manifestar alguma surpresa, pois ao contrário do esperado
e
indicado por alguma literatura, era grande a semelhança com os relatos oníricos
de
videntes, incluindo conteúdos visuais com descrições de cenas e de paisagens.
Paralelamente, alguns dos sujeitos foram capazes de representar graficamente
alguns dos
conteúdos oníricos descritos verbalmente, recorrendo a desenhos esquemáticos e
simples,
por exemplo de palmeiras, estrelas, nuvens e figuras humanas. Na interpretação
destes
dados, os autores do estudo afirmam a necessidade de se passar a considerar a
hipótese de
os cegos, incluindo os congénitos, serem capazes de construir imagens virtuais
de natureza
visual, as quais poderão ter origens genéticas, em lugares e por caminhos ainda
não
desvendados. Estes resultados vão de encontro aos obtidos pelo Professor Kenneth
Ring da
Universidade de Connecticut e sua colaboradora Sharon Cooper, os quais
demonstraram
que os sujeitos cegos congénitos experienciam as situações de quase morte de
forma
semelhante aos videntes, chegando mesmo a relatar a sensação de terem
experienciado
imagens visuais quando se encontravam neste estado (Williams, 2006). Conjugando
os
resultados obtidos por Bértolo e Paiva (2001), com os resultados obtidos em
experiências
de privação sensorial em animais, Dávila (2003) acrescenta uma outra hipótese
que cremos
compatível com a anterior, a de que certas regiões corticais estão determinadas
geneticamente para construir imagens mentais de natureza visual, tendo por base
preferencial as informações obtidas através da perceção visual mas, na ausência
desta,
sinais neurais originados em outras áreas corticais, nomeadamente as de natureza
sensorial
e as de natureza associativa, poderão constituir-se como estímulo para a
construção de
imagens mentais de natureza visual. Numa perspetiva algo integradora de ambas as
posições, a favor e contra a existência de conteúdos de natureza visual,
Ormelezi (2000)
propõe-nos uma explicação alternativa: “a ideia de que o sonho provém da
totalidade da
experiência – as sensações, a síntese das percepções, a imaginação e o
conhecimento” (p.
182). Efetivamente, esta explicação contempla as sensações abundantes de
natureza táctil,
auditiva, olfativa e gustativa, em função da sua proximidade à experiência
percetiva do
dia-a-dia dos cegos. Por outro lado, introduz o fenómeno da síntese das
perceções. Sendo o
tato um sistema sensorial baseado em análises parcelares, graduais e lentas, ele
exige este
fenómeno de integração, para que uma planta seja uma planta e não um aglomerado
desconexo de folhas, caules, flores e aromas. A integração prevê igualmente os
contributos
dos restantes sistemas sensoriais, por exemplo integrar o aroma das flores na
representação
mental global da planta. Assim e com o contributo da imaginação e do
conhecimento,
estamos em crer que muitos dos conteúdos dos sonhos dos cegos estão para além
das
simples perceções podendo provocar, como relatam alguns sujeitos, uma sensação
de “ver”
o que se toca, de tocar sem tocar, algo mais que uma vontade de ver, por exemplo
o rosto
de alguém conhecido. Não é uma resposta cabal à questão da presença ou ausência
de
imagens de natureza visual nos sonhos dos cegos. Talvez esta seja uma falsa
questão e
nunca se venha a obter uma resposta cabal para a mesma, pois como resulta das
linhas
anteriores, ignora outros conteúdos dos sonhos, como as imagens mentais de
natureza
sensorial diferente e respetivas características, as imagens mentais de natureza
sentimental,
assim como os processos cerebrais de integração das mesmas, de imaginação e de
construção de conhecimentos.
Referimo-nos no ponto anterior às representações mentais como sendo de natureza
antecipatória, no sentido em que permitem prever e monitorizar objetos e
acontecimentos,
mesmo antes da sua ocorrência, o que permite deliberar e planear reações, assim
como
antecipar os resultados das mesmas. Numa perspetiva evolutiva, tal autoriza-nos
a afirmar
que as representações mentais evoluíram na espécie humana como forma de
potenciar a
adaptação ambiental, caso contrário a capacidade de as construir não se teria
imposta no
nosso património genético. Acontecem, por vezes, erros nesta monitorização da
realidade,
em que acontecimentos apenas imaginados, se representam na mente como se
tivessem
ocorrido de facto, representações essas conhecidas como falsas memórias. De
forma
experimental, Gonsalves e Paller (2000) demonstraram a possibilidade dos
sujeitos,
ocasionalmente, confundirem as suas memórias de um objeto imaginado, com as suas
memórias de objetos realmente visionados. Posteriormente, os sujeitos relataram
diferenças subjetivas entre as verdadeiras e as falsas memórias, as quais
consistiam em
mais detalhes percetuais nas verdadeiras memórias, comparativamente às falsas
memórias.
Numa perspetiva extrema, nenhuma memória é absolutamente verdadeira, uma vez
que, os
acontecimentos relembrados são, pelo menos em parte, (re)construções e não
representações fiéis da realidade (Paivio, 1971). O cérebro não é uma câmara de
vídeo, ele
não proporciona uma recordação exata dos acontecimentos vividos, ou seja, as
memórias
de acontecimentos específicos são (re)construídas no momento da recuperação, o
que torna
o processo de relembrar particularmente vulnerável a erros (Gonsalves e Paller,
2000).
Em suma, qualquer um dos três fenómenos tratados neste ponto sustenta que as
imagens mentais visuais podem ser tão similares às perceções reais, que podem
mesmo
confundir-se com elas (Knauff e May, 2005). No entanto, tais similitudes são
estruturais e
não de conteúdo, ou seja, não significam reprodução fiel e exata de algo, pois
como lembra
Kosslyn (1995), os fenómenos representados mentalmente não têm que obedecer às
leis da
física, uma vez que, por um lado não correspondem à realidade externa tal e qual
ela existe
e por outro, não são entidades rígidas.
5. O ESTUDO DA ATIVIDADE CEREBRAL COMO CAMINHO PARA A
COMPREENSÃO DA CEGUEIRA E DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS
De acordo com Pascual-Leone e colaboradores (2006), a conceção tradicional e
dominante acerca da organização do cérebro humano, postula a existência de
vários
sistemas sensoriais específicos, paralelos e organizados hierarquicamente: o
sistema visual,
o sistema auditivo, o sistema táctil, o sistema gustativo e o sistema olfativo.
Cada um deles
é, geral e tradicionalmente, caracterizado como possuindo sistemas de recetores
periféricos, os quais transmitem a informação a regiões pré corticais, que
funcionam como
estações de retransmissão. Estas estações, como por exemplo o núcleo do tálamo,
dirigem
os sinais para áreas corticais sensoriais unimodais, uma vez que, tem-se pensado
ao longo
do tempo serem responsáveis pelo processamento de apenas um tipo de informação
sensorial. Estas áreas sensoriais unimodais organizam-se hierarquicamente em
função da
sua complexidade funcional crescente: áreas primárias, áreas secundárias e áreas
de
associação (estas também unimodais). Só depois destas etapas, em que se tem
acreditado a
informação sensorial estar compartimentada por modalidades puras, a informação
poderia
aceder a áreas de associação multimodais e hierarquicamente superiores. Estas
áreas de
associação multimodais serão constituídas por células multissensoriais, as quais
proporcionam os mecanismos neurológicos (i) para a integração das experiências
sensoriais, (ii) para a modulação dos estímulos em função da sua saliência,
(iii) para aceder
à relevância afetiva e experiencial dos mesmos, proporcionando assim, tem-se
acreditado,
o substrato da experiência percetual final, completa e integrada. Os autores
chamam a
atenção para evidência recente, segundo a qual esta organização cerebral surge
como
demasiado simplista e compartimentada, assim como incapaz de explicar
determinados
factos, alguns dos quais apresentamos nos pontos seguintes (como a ativação do
córtex
visual primário em cegos congénitos através da exploração táctil), a par de
novas
perspetivas teóricas que têm vindo a ser propostas.
5.1. ATIVIDADE CEREBRAL E CEGUEIRA
Não será demais relembrar que os órgãos dos sentidos são os coletores e
comunicadores de informações do meio ambiente, por outras palavras, vemos com os
olhos
mas não vemos nos olhos, assim como sentimos com a pele, mas não sentimos na
pele, o
mesmo acontecendo com os restantes órgãos dos sentidos. A informação coletada é
então
comunicada ao cérebro que a processará, integrando-a com outras informações de
natureza
sensorial diferente, atuais, guardadas na memória ou antecipadas,
(re)construindo e
instruindo as respostas mais adequadas. Assim, consideramos de todo o interesse
tratar
neste ponto o assunto que se segue. Na cultura do senso comum, assim como em
algumas
correntes científicas, sobrevive a doutrina da compensação sensorial segundo a
qual, se
uma fonte sensorial, como por exemplo a visão, for afetada de grave défice
durante algum
tempo ou permanentemente, os outros sentidos serão automaticamente reforçados, o
que
levou e poderá ainda levar a acreditar, por exemplo, que um deficiente visual
desenvolve
automaticamente a capacidade de ouvir e memorizar melhor, comparativamente a um
vidente (Kirk e Gallagher, 2002). Tem surgido evidência que refuta, pelo menos
em parte,
a teoria anterior, particularmente numa das suas articulações vitais, o reforço
automático,
que parece não existir. Se este reforço fosse, efetivamente automático,
pressupõe-se não
serem necessárias medidas adicionais para estimular uma criança cega,
comparativamente
a uma vidente, pois a natureza e os seus automatismos tomariam as rédeas. Como
resulta
do ponto 8 do capítulo II, o arsenal de estratégias educativas e de estimulação
que são lá
apresentadas, sublinha a necessária proatividade que deve alicerçar o
desenvolvimento das
restantes funções sensoriais, tanto em crianças cegas como em videntes. Por
outro lado,
existem videntes com capacidades auditivas e de memórias tão boas ou melhores
que
alguns cegos. Em suma e partilhando da explicação de Kirk e Gallagher (2002),
como
resultado dos estímulos adequados ao desenvolvimento, é lícito continuar a
considerar
possível que as pessoas com deficiência visual grave, rentabilizem melhor as
suas
capacidades disponíveis em outras áreas. Por exemplo, um vidente poderá não
prestar
atenção em determinados sons do ambiente, os quais poderão ser significativos
para uma
pessoa cega, como aquele ruído característico do motor do autocarro que faz
habitualmente
uma determinada carreira.
A investigação tem demonstrado um enorme potencial plástico e adaptativo a nível
do córtex cerebral, mantendo sempre a sua estrutura anatomofisiológica de base,
ou seja, o
seu padrão de base que é, aliás, semelhante de cérebro para cérebro, não
obstante cada um
deles ser único (Damásio, 2010; Habib, 2003). Algo semelhante ao que acontece
com os
nossos rostos, todos eles diferentes, mas assentes num mesmo padrão de base que
localiza
os olhos, o nariz, a boca e as orelhas segundo uma disposição ao mesmo tempo
rígida (por
exemplo, o nariz tem de estar entre os olhos) e ao mesmo tempo plástica (por
exemplo, a
distância entre os olhos e a espessura do nariz, podem ser maiores ou menores de
indivíduo
para indivíduo). Como demonstram as cirurgias plásticas, o padrão individual é
suscetível
de ser alterado, podemos por exemplo modificar a forma da boca, mas mantendo
sempre o
padrão de base. O cérebro possui uma capacidade, ainda que limitada, para se
reorganizar a
si mesmo após algum traumatismo ou privação sensorial, num período que vai de
2-3
meses até muitos anos, como acontece num acidente vascular cerebral ou numa
perda
sensorial como é a cegueira ou a surdez (Amedi et al., 2005; Heller e
Ballesteros, 2006;
Kupers et al., 2006; Mackay, 2009; Pascual-Leone et al., 2006). José Dávila fala
de estudos
de privação sensorial realizados em animais, os quais conduziram à reorganização
dos
circuitos corticais envolvidos na análise da informação sensorial. Continua,
dizendo que
estes estudos de natureza experimental consistiram em privar o animal de um
determinado
sentido, por exemplo fazendo a ablação dos olhos logo após o seu nascimento.
Observouse
que as regiões do córtex cerebral destinadas a receber e processar os impulsos
de
natureza visual, ao não serem estimuladas por sinais oriundos dos olhos, são
colonizadas
por axónios provenientes de regiões adjacentes, especializadas em receber e
processar
sinais emissários de outras modalidades sensoriais (Dávila, 2003). Estudos com
humanos,
recorrendo claro está, a condições menos extremas, corroboram as ideias de
plasticidade
mesmo na ausência de novas ligações corticais. Vários autores (Amedi et al.,
2005;
Pascual-Leone et al., 2006) relatam que a privação completa, mas temporária, da
visão em
sujeitos videntes durante cinco dias, revelou-se suficiente para ativar o córtex
visual
primário no processamento de informações tácteis e auditivas. Esta ativação
deixou de
ocorrer após a privação sensorial. Para estes investigadores, a velocidade
destas mudanças
funcionais é tão elevada (aproximadamente 24 horas), que é altamente improvável
que se
tenham estabelecido novas ligações corticais, pelo que as conexões
somatossensoriais e
auditivas ao córtex occipital deverão já existir previamente, “desmascarando-se”
quando
sujeitas a estas condições experimentais. Na verdade, existe evidência anatómica
e
eletrofisiológica de que o córtex visual primário dos mamíferos recebe
informações de
natureza não apenas visual, mas também auditiva e somatossensorial (Kupers et
al., 2006).
Tal está de acordo com a ideia exposta por Damásio (2010), a qual refere que
todas as
regiões cerebrais envolvidas na construção das imagens mentais evidenciam
padrões
extremamente diferenciados de interconetividade, sugerindo uma capacidade
complexa
para integrar sinais 30. Numa investigação conduzida por Kupers e colaboradores
(2006),
estes constataram que a estimulação magnética transcraniana do córtex visual
tende a
induzir sensações tácteis, tanto em sujeitos com cegueira congénita como em
sujeitos com
cegueira adquirida. Os sujeitos descreveram estas sensações como sendo de curta
duração,
distintas na vibração sentida, de intensidade, extensão e topografia variáveis,
em função da
zona do córtex visual estimulada. Tais sensações não foram sentidas por sujeitos
videntes,
quando sujeitos às mesmas condições experimentais, tendo relatado apenas
sensações
visuais. Assim, afirmam os autores que as sensações sentidas e relatadas pelos
sujeitos da
sua investigação revelam que a atividade do córtex visual nos cegos, depois da
sua
reorganização em função da plasticidade cerebral, é de natureza táctil e não
visual. Não
obstante, deixam a ressalva de que nem todos os sujeitos cegos relataram terem
sentido
sensações tácteis, existindo assim uma variabilidade individual intersubjetiva
para a qual
não possuíam ainda uma explicação definitiva. Defendem estes autores, a par de
outros
como Pascual-Leone et al. (2006), que a reorientação da informação táctil para o
córtex
visual pode efetuar-se através da formação de novos padrões tálamo corticais, ou
através
do reforço dos padrões já existentes, os quais e em função do defendido por
Amedi et al.
(2005) e já referido anteriormente, se poderão encontrar “mascarados” nos
sujeitos
videntes, em função da maior adequação funcional do córtex visual às informações
de
natureza visual e da sua predominância nos mesmos, o que poderá ajudar a
explicar que a
estimulação magnética transcraniana do córtex occipital em videntes tenha
resultado,
apenas, em sensações visuais. Tal cointegração no córtex occipital de
informações de
natureza visual e de natureza háptica, poderá ajudar a explicar a proficiência e
a eficácia de
alguns dos nossos comportamentos, eventualmente fundamentais, senão para a
nossa, para
a sobrevivência dos nossos antepassados caçadores, recolectores e presas. Por
exemplo,
nota-se esta cointegração dos sentidos háptico e visual na execução de tarefas
visuomotoras, como os movimentos do braço ou da mão, nos quais uma representação
propriocetiva da mão no espaço é automaticamente e sem esforço, referenciada
para o
cálculo visual da posição da mão (James et al., 2006). Por outras palavras, é
esta
capacidade que nos permite de imediato e com uma margem de erro muito pequena,
olhar
para a nossa mão sem ter que a procurar visualmente no espaço, assim como
permitia aos
nossos antepassados aprender a manejar de forma primorosa as suas ferramentas de
caça,
como por exemplo o arco e a flecha.
Ao estudar um adulto de 52 anos de idade, cego congénito que havia recuperado a
visão através de um transplante da córnea, R. Gregory e J. Wallace verificaram
que ele
iniciou rapidamente o reconhecimento de letras que já lhe haviam sido ensinadas
via tato
(Gregory, 1979; Ninio, 1994). Concluíram os autores que este sujeito se mostrava
apto a
utilizar a sua prévia experiência táctil em prol da visão recém-adquirida,
evidência que
corroborava a ideia de que o cérebro não era tão compartimentado como, de forma
muito
difundida, se acreditava nessa época. Por outro lado e durante muito tempo, a
sua visão
parece ter estado limitada aos conhecimentos previamente adquiridos por via do
tato,
manifestando grande relutância em compreender e utilizar a visão em situações
novas.
Estes dados parecem apoiar a ideia defendida pelo próprio Gregory de que a
perceção
corresponde a uma hipótese antecipada sobre a realidade, formulada ao nível
cerebral com
base em conhecimentos previamente adquiridos, a qual é testada pelos dados
sensoriais.
Tradicionalmente, acreditava-se que as crianças ao cegarem muito novas teriam
poucas
esperanças de aprender a ver, mesmo que a visão fosse restabelecida, daí a
relutância em as
submeter a tratamentos cirúrgicos de risco a partir dos cinco ou seis anos, por
exemplo
para a remoção de cataratas. Num estudo de caso recente relatado por Trafton
(2007),
investigadores do MIT descobriram que uma mulher cega até aos doze anos, idade
em que
a visão lhe foi restabelecida, executou aos trinta e dois anos e com uma
performance quase
normal, uma bateria de testes de visão de alto nível, incluindo reconhecimento
de objetos e
rostos, avaliação de profundidade e correspondência de formas a duas e três
dimensões.
Esta investigação aponta indícios de que o cérebro mantém a sua plasticidade,
mesmo em
crianças mais velhas.
Segundo Amedi et al., (2005), a equipa de Sadato publicou em 1996 resultados que
apontavam para a ativação do córtex visual, incluindo o primário, em ambos os
hemisférios, enquanto sujeitos que cegaram até aos seis anos de idade realizavam
leitura
Braille. Esta ativação foi também evidente, embora em menor extensão, em outras
tarefas
de discriminação táctil, como a identificação de ângulos tateáveis e criados com
pontos
Braille. Noticiaram também os investigadores que a varredura passiva dos dedos
por cima
de um modelo homogéneo de pontos Braille, não desencadeou tal ativação. Estudos
baseados na Tomografia por Emissão de Positrões 31, realizados por Büchel e
colaboradores
e publicados em 1998, têm demonstrado que as pessoas cegas congénitas ativam as
áreas
cerebrais responsáveis pela representação espacial durante a leitura Braille,
enquanto os
sujeitos que perderam a visão depois da puberdade, ativam também o córtex visual
primário na realização da mesma tarefa (Knauff e May, 2005). Embora sejam
convergentes
na ideia geral de que o córtex visual, incluindo o primário, se pode ativar nos
sujeitos
cegos em tarefas de discriminação táctil, nomeadamente na leitura Braille,
divergem no
intervalo de idades em que os sujeitos cegaram. Enquanto Sadato identificou esta
ativação
em sujeitos que cegaram até aos seis anos de idade, Büchel apenas a identificou
em
sujeitos que cegaram precisamente a partir desta idade. A implicação do córtex
occipital na
leitura Braille foi reforçada com o estudo de pacientes com lesões cerebrais. O
caso clínico
de uma mulher cega precocemente, no passado altamente proficiente na leitura
Braille, que
se tornou incapaz de ler Braille após um golpe traumático na zona occipital, o
qual lesou
gravemente o córtex nessa região, apoia a ideia de uma conexão entre a
capacidade de ler
Braille e a função occipital (Amedi et al., 2005).
Coloca-se assim em questão a organização rígida do cérebro em sistemas
unimodais e que descrevemos anteriormente. Uma hipótese alternativa é defendida
por
Pascual-Leone et al. (2006), a qual postula que o funcionamento cerebral assenta
numa
estrutura organizada em redes de operadores corticais, os quais executam
determinadas
funções independentemente da modalidade sensorial que proporcionou as
informações.
Um determinado operador poderá processar preferencialmente informações
provenientes
de um determinado sistema sensorial, com base na sua adequação relativa. Esta
tendência
preferencial pode conduzir a uma seletividade específica do operador, a qual é
reforçada
com o tratamento preferencial de uma determinada modalidade sensorial de
informação,
situação que poderá ter induzido, ilusoriamente, a ideia de uma estruturação
cerebral rígida
em sistemas corticais paralelos e segregados, para cada uma das modalidades
sensoriais.
De acordo com esta ideia, a especificidade sensorial do cérebro, por exemplo o
“córtex
visual”, pode acontecer apenas na presença da visão e porque o tipo de
processamento que
lá ocorre se adequa melhor a informação visual proveniente da retina. Por
exemplo,
podemos postular que o “córtex visual” está envolvido na discriminação precisa
das
relações espaciais e das características detalhadas dos objetos, situações
particularmente
adequadas à modalidade sensorial da visão, com vantagens sobre as restantes. No
entanto e
face a uma privação da visão, o córtex estriado 32 pode desmascarar a sua
sensibilidade
táctil e auditiva, de forma a implementar as suas funções multimodais de
processamento de
informação sensorial não-visual. Considerar o córtex visual primário como
multimodal
significa, para o autor, que a estrutura e a organização funcional cérebro
assentam em
funções particulares a desempenhar e não em modalidades sensoriais específicas,
compartimentadas e estanques. A análise das funções a desempenhar revelam o
córtex
visual como um operador epicrítico na deteção táctil de características
localizadas e na
discriminação espacial precisa (como na leitura Braille), independentemente da
modalidade de estimulação sensorial. Outros autores, como F. H. Lopes da Silva
citado por
Bértolo (2005), vão mais longe nas implicações de tais propostas, defendendo que
os
estímulos auditivos e hápticos, ao serem processados pelo córtex visual, poderão
conduzir
à formação de imagens mentais visuais, as quais se poderão revelar ao nível dos
sonhos,
como constataram Bértolo e Paiva (2001). Os sujeitos cegos congénitos seriam,
desta
forma, capazes de utilizar outras modalidades sensoriais, cuja cointegração dos
estímulos
no córtex visual, poderia conduzir a construções capazes de representação mental
gráficovisual
(Bértolo, 2005).
5.2. ATIVIDADE CEREBRAL E REPRESENTAÇÕES MENTAIS
As neurociências e o estudo da atividade cerebral têm vindo a alcançar o seu
espaço
na investigação relacionada com as representações mentais. Em alternativa ao
verbo
alcançar, poderíamos ter utilizado conquistar ou ganhar, mas estamos em crer que
não se
trata de uma conquista ou de uma vitória, no sentido de tomar posse do que até
aí pertencia
a outrem. Trata-se de ocupar um espaço próprio, o dos conhecimentos ligados à
atividade
cerebral propriamente dita, na construção das representações mentais. Como nos
dizem
Kay e seus colaboradores (2008), um dos objetivos mais desafiantes para as
neurociências
é virem a ser capazes de ler e descodificar o conteúdo mental resultante da
atividade
cerebral. Nos últimos anos têm-se feito avanços significativos no conhecimento
da
atividade cerebral, a qual se tornou acessível ao estudo graças ao
desenvolvimento de um
conjunto de técnicas não invasivas, as técnicas de neuroimagem, destinadas
prioritariamente ao diagnóstico clínico mas, com enorme alcance e utilidade para
a
investigação dos fenómenos direta ou indiretamente relacionados com o cérebro.
No estado
atual dos nossos conhecimentos acerca das representações mentais, dispersos,
incipientes
e, por vezes, contraditórios, a humildade científica não pode deixar de contar
com o
contributo de novas disciplinas, como não pode menorizar as tradicionalmente
envolvidas
nesta demanda, como sejam a Psicologia e a Filosofia. Cada uma destas áreas tem
o seu
espaço por mérito próprio, mas devem canalizar cada vez mais sinergias para a
colaboração convergente entre si, buscando aquilo que Edward Wilson sagazmente
denominou de Consiliência, que segundo ele significa a unidade do conhecimento
(Wilson,
1999).
Na sua obra, Paivio (1990) fala-nos das assimetrias funcionais entre os dois
hemisférios cerebrais, as quais se têm revelado através de estudos envolvendo
sujeitos com
cérebros intactos (“normais”), doentes com lesões em apenas um dos hemisférios e
doentes
em que o corpo caloso (estrutura que estabelece a ligação entre os dois
hemisfério) foi
seccionado. O hemisfério esquerdo controla o discurso e revela-se mais eficiente
que o
hemisfério direito em várias tarefas envolvendo material verbal, enquanto o
hemisfério
direito está mais envolvido em tarefas não-verbais, como a identificação e
memorização de
faces, de outros padrões espaciais e o reconhecimento de sons não-verbais. Em
consonância, pacientes com lesões no lobo temporal esquerdo evidenciam défices
em
tarefas de memória verbal, mas não em tarefas de memória não-verbal, enquanto
pacientes
com lesões no lobo temporal direito evidenciam défices em tarefas de memória
não-verbal,
mas não em tarefas de memória verbal (Paivio, 1990). Não obstante, ambos os
hemisférios
possuem sistemas representacionais para a recognição visual de objetos comuns.
Partilhando destas ideias, Kosslyn (1995) acrescenta que os processos envolvidos
nas
transformações de imagens mentais ocorrem, de forma mais efetiva, no hemisfério
direito,
tendo-se demonstrado que sujeitos com lesões no lobo parietal direito apresentam
dificuldades em tarefas de transformação, como a rotação mental. Não obstante,
sublinha
que, de acordo com algumas investigações, o hemisfério esquerdo poderá
desempenhar,
também, um papel importante nas tarefas de transformação das imagens mentais.
Não
obstante as especificidades de cada hemisfério, Fernandes e Pinho (2007)
lembram-nos a
existência do corpo caloso, o qual com mais de dez milhões de fibras
mielinizadas, une
ambos os hemisférios numa unidade funcional. Alguns dados apresentados por Habib
(2003), demonstram que as funções da linguagem não são um exclusivo do
hemisfério
esquerdo, existindo no entanto especificidades. Afirma o autor que “tal como o
hemisfério
esquerdo está encarregado de elaborar os aspectos instrumentais da linguagem, o
hemisfério direito está por sua vez especializado no tratamento e na produção de
toda uma
componente, em particular emocional, da linguagem, designada por prosódia” (p.
20).
No ponto 3 deste capítulo, referimos diferenças entre as representações mentais
evocadas por palavras abstratas e as evocadas por palavras concretas. Estas
diferenças
estão, segundo Paivio (1990, 2006) relacionadas com o hemisfério cerebral
predominante
no processamento das mesmas. Interpretando os resultados de várias
investigações, sugere
que as representações mentais evocadas por palavras concretas, com elevada
probabilidade
de evocarem imagens mentais, assim como os objetos a que as mesmas se referem,
são
processados em ambos os hemisférios, enquanto as representações mentais evocadas
por
palavras abstratas, com baixa probabilidade de evocarem imagens mentais, são
processadas
preferencialmente no hemisfério esquerdo. Para o autor, as diferenças na
eficiência
funcional de ambos os hemisférios cerebrais evidenciada nos parágrafos
anteriores, quanto
ao processamento verbal e não-verbal, constituem evidência consistente acerca da
independência funcional dos sistemas de representação simbólica (SRI e SRV),
assim
como da interconetividade e interação dos mesmos, postulados pela sua Teoria do
Processamento Dual. Atendendo às ideias de Mackay (2009), o hemisfério esquerdo
assume a especialidade de discriminar finamente sequências temporais
(processamento
sequencial), logo é compreensível que Paivio situe predominantemente o SRV neste
hemisfério, responsável pelo reconhecimento e compreensão da linguagem falada e
escrita.
O mesmo autor afirma que o hemisfério direito discrimina combinações imagéticas
com
constrangimentos temporais flexíveis (análise espacial e sincrónica). Paivio
situa o SRI
predominantemente no hemisfério direito, proeminente no processamento do fluxo
visual
da linguagem escrita e no reconhecimento de vozes.
Os estudos baseados em neuroimagens têm acrescentado evidência, tanto a favor
das ideias de Paivio como das de Damásio, quanto às interligações multimodais
entre o
SRV e o SRI. Assim, frases com conteúdos que apelam e facilitam a representação
mental
de natureza visual tendem a ativar as áreas cerebrais responsáveis pela visão
(Knauff e
May, 2005). Por exemplo, as palavras que designam cores ou ações (palavras
concretas),
ativam as mesmas áreas cerebrais que as respetivas cores e ações, quando
percecionadas
(Paivio, 2006). Assim, Farah (1988) considera as representações mentais de
natureza visual
como realmente visuais, não no sentido de representarem, necessariamente,
informações
adquiridas sensorialmente via visão, mas no sentido de dependerem, pelo menos em
parte,
do mesmo substrato neurológico que a visão, o que explica que sujeitos cegos sem
lesões
neurológicas, mesmo que congénitos, possam utilizar as suas áreas visuais
corticais
intactas para a construção de representações mentais. Para Paivio (1990), as
representações
mentais multimodais que integrem informações acerca de acontecimentos e objetos
nãoverbais,
estão relacionadas com a ativação de áreas corticais posteriores centrais, em
estreita associação com os sistemas sensoriais primários. O seu carácter
multimodal é o
resultado de repetidas e variadas experiências sensoriais e motoras, as quais
conduziram à
construção de representações mentais sincrónicas e integradas, em que cada uma
das
modalidades sensoriais (visual, auditiva, háptica, olfativa e/ou gustativa) pode
ativar a
construção de uma representação mais holística. Acrescenta o autor que os
padrões
associativos se desenvolvem, também, entre diferentes representações, intra e
inter
hemisférios, de forma que a ativação de uma representação pode ativar outra(s),
dependendo da informação sensorial e da sua natureza contextual. Os padrões
associativos
poderão explicar-se, de forma satisfatória, através das ZDC. Estas
representações e
associações ocorrem em ambos os hemisférios no entanto, um dos hemisférios,
geralmente
o direito, desenvolve maior proficiência, em atividades integrativas,
associativas e
transformacionais. Ainda segundo Paivio (1990), as relações entre o SRI e o SRV
resultam
do desenvolvimento de padrões associativos entre as representações neuronais
visuo
espaciais (não-verbais), localizadas nas regiões corticais posteriores centrais
e as
representações auditivo motoras (verbais), localizadas mais frontalmente,
principalmente
no hemisfério esquerdo. Conexões funcionais desenvolvem-se também entre as
representações verbais e as representações não-verbais correspondentes a outras
modalidades sensoriais (auditiva e háptica), localizadas mais centralmente. São
estas
interconexões que tornam possível que as palavras e as descrições verbais
evoquem
representações imagéticas em qualquer modalidade sensorial, ao mesmo tempo que
permite a realização de atividades organizativas e transformacionais. De forma
inversa,
permite que objetos e imagens representados mentalmente possam ser nomeados ou
descritos.
Também os resultados provenientes dos estudos de caso clínicos parecem apoiar as
relações postuladas entre o SRV e o SRI. Farah (1988) fala-nos de uma paciente
estudada
por Beauvois e Saillant em 1985, cujas áreas visuais foram neuroanatomicamente
desconectadas das áreas da linguagem em consequência de um acidente vascular
cerebral.
Mostrou-se capaz de realizar tarefas puramente visuais envolvendo cores, uma vez
que as
áreas visuais, em si mesmas, não foram lesadas. As suas capacidades verbais não
foram
afetadas, obtendo pontuações elevadas num teste de QI verbal, uma vez que as
áreas da
linguagem também não foram lesadas. No entanto, se a tarefa implicar a
coordenação entre
elementos visuais e elementos verbais, como por exemplo nomear uma cor
apresentada
visualmente ou apontar uma cor em função da sua designação verbal, aqui as suas
performances eram extremamente pobres, em virtude da desconexão neuroanatómica
entre
as áreas da visão e as áreas da linguagem.
Com o objetivo de determinar como é que o cérebro organiza representações de
substantivos, os neurocientistas Marcel Just e Vladimir Cherkassky em
colaboração com os
cientistas informáticos Tom Mitchell e Sandesh Aryal, todos da Universidade de
Carnegie
Mellon, realizaram um estudo que demonstrou que o significado dos substantivos é
processado de forma similar no cérebro de diferentes sujeitos, ou seja, quando
dois sujeitos
pensam, por exemplo, sobre a palavra martelo, os padrões de ativação cerebral
são bastante
similares nos dois casos (Ciencia PT, 2010). Atendendo a Damásio (2003b), esta
descoberta não deveria surpreender, uma vez que ao sermos tão parecidos uns com
os
outros, no que à essência biológica diz respeito, é natural que um mesmo objeto
provoque
padrões neurais semelhantes, dos quais resultam imagens mentais semelhantes. O
mesmo
estudo (CienciaPT, 2010) evidenciou que a representação de um substantivo não
ocorre
independentemente a nível cerebral, ou seja, essa representação não ocorre num
espaço
encerrado em si mesmo, antes pelo contrário, ativa áreas responsáveis pela
representação
de substantivos afins. Por exemplo, a palavra apartamento, ainda que apresentada
de forma
isolada como todas as outras utilizadas no estudo, provocou a ativação em cinco
áreas que
se revelaram ativas na representação de outras palavras relacionadas com abrigo.
Assim, a
expressão rede de conceitos, enquanto conjunto de conceitos interligados com
base num
conjunto de características afins, parece fazer todo o sentido.
Na procura das localizações corticais mais pormenorizadas para o processamento
das imagens mentais, têm-se publicado vários estudos, nem sempre convergentes
nos
resultados, tal como nos reportam Mazard et al. (2004). De acordo com a meta
análise
efetuada por esta equipa de investigadores, os aspetos figurativos das imagens
mentais
visuais e da perceção visual tendem a ser processados no córtex
occipito-temporal ventral,
enquanto as informações de natureza espacial tendem a ser processadas pelo
córtex
occipito-parietal dorsal. Notam que esta atribuição de funções não é absoluta,
uma vez que
alguns estudos referem também o envolvimento do córtex occipito-parietal ventral
no
processamento de imagens de natureza espacial. Em relação ao envolvimento do
córtex
visual primário (áreas 17 e 18 de Brodmann), no processamento de imagens mentais
visuais, têm-se publicado resultados divergentes. Alguns investigadores reportam
a
ativação destas áreas corticais, enquanto outros não identificaram qualquer
ativação.
Mazard e colaboradores apresentam uma explicação possível para esta
discrepância.
Segundo eles, a maioria dos estudos que lidam com imagens mentais de natureza
espacial
não reportaram atividade no córtex visual primário, enquanto os estudos que
lidam com
imagens mentais figurativas tendem a identificar atividade nesta área cortical.
Acrescentam
que a ativação do córtex visual primário poderá estar, também, relacionada com
as
características individuais dos sujeitos, uma vez que quanto melhor for a
performance
individual na construção de representações mentais, mais áreas cerebrais tendem
a ativarse
e evolver-se em determinada tarefa.
Numa investigação baseada na utilização de imagens provenientes de Ressonância
Magnética Funcional, Handy e colaboradores (2004) estudaram a atividade cortical
quando
(i) mantendo o conteúdo de uma determinada representação mental constante, (ii)
se altera
a estratégia de evocação da mesma. Os participantes foram observados enquanto
procuravam representar mentalmente objetos comuns em duas condições diferentes:
a)
evocar imagens mentais de objetos a partir das respetivas imagens visualizadas a
priori e
b) evocar imagens mentais desses objetos a partir da visualização do seu nome.
Os
resultados revelaram (i) ativação bilateral do córtex frontal na condição a),
(ii) ativação do
córtex frontal esquerdo na condição b) e (iii) ativação das mesmas áreas do
córtex temporo
parietal nas duas condições. Segundo os autores, estes resultados sugerem que a
rede
neuronal posterior, ativada do decorrer das imagens mentais visuais, não varia
com
alterações na forma de evocação, nem com alterações na rede neuronal frontal,
responsável
por recuperar as imagens da memória e cujo padrão de ativação depende da forma
de
evocação.
Estruturalmente, Damásio (2010) afirma que as representações mentais resultam da
atividade de pequenos circuitos neuronais, que se organizam em grandes redes, as
quais
são capazes de criar padrões neurais. Estes representam objetos e acontecimentos
situados
tanto fora como dentro do próprio cérebro. Os situados fora podem pertencer ao
mundo
exterior ou ao próprio corpo, enquanto os situados dentro, representam o próprio
processamento de outros padrões. Os padrões neurais constituem mapas
33, uns
simples e
toscos, outros refinados, alguns concretos e outros abstratos. Construímos mapas
quando
interagimos 34 com objetos, como, por exemplo, pessoas, máquinas, locais e
acontecimentos. Em suma:
“… o cérebro mapeia o mundo em seu redor, bem como o seu próprio
funcionamento. Esses mapas são experienciados como imagens na nossa
mente, e o termo imagem refere-se não só às imagens de tipo visual mas
também a imagens com origem em qualquer sentido, sejam elas auditivas,
viscerais, ou tácteis…” (Damásio, 2010, p.36).
O autor continua, afirmando que quando recordamos objetos, pessoas, lugares,
melodias, estados de dor ou alegria e acontecimentos, bem como as múltiplas
relações que
puderam estabelecer entre si, a partir dos dados guardados na nossa memória,
estamos
também a construir mapas. Em condições normais, a construção de mapas é
ininterrupta,
não parando nem durante o sono, tal como demonstra a ocorrência dos sonhos.
6. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM VIDENTES
Quando questionadas, a maioria das pessoas refere que as imagens mentais se
assemelham às perceções reais, apesar de menos nítidas, algo semelhante a
esboços e
difíceis de manter na memória consciente (Farah, 1996). A capacidade para
construir
representações mentais, nomeadamente de natureza visual, não se expressa nos
extremos
de tudo ou nada. Para Kosslyn (1995), as pessoas não são, em geral, boas ou más
a
construir representações mentais e apresenta-nos um dos seus estudos, realizado
em 1984
com vários colaboradores, no qual solicitaram a uma amostra de sujeitos que
realizassem
13 tarefas diferentes relacionadas com representações mentais, tarefas de
retenção, rotação,
geração, entre outras. Se a capacidade para construir representações mentais
fosse uma
capacidade una per se, então os sujeitos com níveis elevados de sucesso numa das
tarefas,
deveriam obter, igualmente, níveis elevados nas restantes, o que não se
verificou. Surgiram
mesmo várias correlações negativas, em que um nível elevado de sucesso numa das
tarefas
implicava insucesso em outra tarefa. O autor explica estes resultados a partir
da ideia que
tarefas diferentes de representação mental estão associadas a subsistemas
diferentes.
Evidência favorável às ideias expressas pela Teoria do Processamento Dual,
nomeadamente a existência de um SRI e de um SRV, autónomos mas intimamente
relacionados, surge-nos dos trabalhos de Beavois e Saillant (1985), os quais nos
são
descritos por Farah (1996). Ao estudarem um paciente com desconexão
visuo-verbal,
constataram que este era capaz de realizar tarefas visuais puras, como agrupar
objetos em
função da cor, assim como era capaz de realizar tarefas verbais puras
relacionadas com a
cor, como responder à seguinte questão: Que cor está relacionada com a inveja?
No
entanto, era incapaz de realizar tarefas que implicassem uma associação entre
representação visual e representação verbal, tal como nomear a cor de um
determinado
objeto.
Claramente inspirado pelo trabalho de Paivio, Almaraz (1997) estudou a
construção
de representações mentais em mais de duas mil crianças videntes, com idades
compreendidas entre os 9 e os 11 anos. Os seus resultados apontam (i) um
comportamento
regular e indistinto da natureza dos estímulos (imagens, palavras ou sons), o
qual se traduz
numa correlação altamente positiva entre a pontuação total da representação
mental (soma
das pontuações de riqueza 35 e de complexidade 36) e as pontuações independentes
de
riqueza e de complexidade, (ii) as pontuações de riqueza, comparativamente às de
complexidade, apresentam correlações mais elevadas com as pontuações totais
(superiores
a 0,97 em todos os casos) e (iii) as pontuações de riqueza correlacionam-se, em
todos os
grupos de estímulos, com as de complexidade, numa magnitude que varia de
moderada a
alta.
Consideramos neste trabalho, a par de algumas das principais orientações
teóricas
neste campo, a existência de imagens mentais que, para um mesmo conteúdo de
base,
apresentam diferentes características, nomeadamente em função da sua natureza
sensorial
de base. Por exemplo, podemos formar uma imagem mental visual simples de um
rebuçado, como podemos formar uma imagem mental táctil simples do mesmo, assim
como olfativa, gustativa, cinestésica, interoceptiva, auditiva ou sentimental.
Simultaneamente podem aflorar em nós imagens mentais de outros rebuçados, outros
alimentos, da pessoa que estava connosco, do local onde tudo aconteceu, etc.
Podemos
também construir múltiplas combinações com estes vários tipos de imagens mentais
simples, formando um conjunto estruturado que anteriormente designámos
representação
mental. Como explica Belardinelli (2004), a informação proveniente dos
diferentes canais
sensoriais acerca de um mesmo estímulo, tende a ser preferencialmente integrada
numa
única representação mental. James e colaboradores (2006) dizem-nos que a
investigação
tem demonstrado que a imagem mental visual de um objeto pode ser evocada tanto
pela
apresentação visual do estímulo, como pela sua apresentação háptica e
vice-versa, a
imagem mental háptica de um objeto pode ser evocada tanto pela apresentação
háptica do
estímulo, como pela sua apresentação visual. Os mesmos autores referem que um
objeto
estudado hapticamente de “um ponto de vista particular”, será melhor
identificado numa
apresentação visual posterior, se ela ocorrer segundo esse mesmo “ponto de vista
particular”. No longínquo ano de 1971, já Paivio afirmava a existência de
suporte teórico e
empírico considerável, para apoiar a ideia de que a discriminação táctil das
formas pode
envolver imagens mentais de natureza visual.
Atrás referimos a proximidade anatomofisiológica entre o paladar e o olfato, ao
ponto do último poder influenciar o funcionamento do primeiro. Basta pensarmos
nas
nossas constipações com congestão nasal e em como os alimentos parecem perder o
seu
sabor habitual. Conforme Djordjevic e colaboradores (2004), algumas
investigações
apontam para inter-relações também ao nível das imagens mentais de natureza
gustativa e
de natureza olfativa, embora estes resultados não sejam corroborados de forma
unânime.
De encontro com esta ideia, esta equipa de investigação demonstrou que as
mudanças na
perceção dos sabores podem ser induzidas, em alguns casos, não só por odores
reais e
fisicamente presentes, mas também e seguindo padrões semelhantes, pelas imagens
mentais olfativas desses mesmos odores.
7. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM CEGOS CONGÉNITOS
Como nos lembram Ochaita e Rosa (1995) e de encontro às ideias que temos vindo
a expor no presente capítulo, não obstante a privação visual, os cegos dispõem
de uma
ampla gama de possibilidades para percecionar, perceber significativamente e
representar o
mundo que os cerca. Está bem documentado que a performance dos sujeitos cegos
congénitos, em várias tarefas que envolvem imagens mentais, nomeadamente de
natureza
visual, é similar à performance dos sujeitos videntes, mas nem sempre idêntica
(Kerr e
Domhoff, 2004). Por exemplo, demonstrou-se que tanto os sujeitos cegos
congénitos,
como os videntes, são capazes de aplicar com sucesso as imagens mentais à
mnemónica,
assim como à imaginação de formas ou objetos, os quais podem mudar as suas
orientações
e posições no espaço. Os investigadores que compararam as imagens mentais dos
cegos
congénitos e dos videntes têm concluído, em geral, que elas são funcionalmente
equivalentes em muitos aspetos no entanto, as imagens mentais dos cegos
congénitos
surgem desprovidas de características visuais como a cor e o brilho (Kerr e
Domhoff,
2004). Saliente-se que a equivalência ocorre a nível funcional e não,
necessariamente, a
nível de processos, conteúdos e sua natureza, até porque Kerr e Domhoff são
muito críticos
dos defensores da ocorrência de imagens mentais de natureza visual nos cegos
congénitos,
como é o caso de Teresa Paiva e Hélder Bértolo.
Deve estimular-se a construção de imagens mentais em crianças cegas congénitas a
partir das experiências percetivas vividas de forma direta ou indireta, em
interação com as
explicações verbais obtidas por diferentes meios (videntes, livros, televisão,
rádio, novas
tecnologias da informação, etc.) (Cunha e Enumo, 2003).
Várias investigações têm sido realizadas para estudar as possíveis relações
entre o
sistema háptico e as representações mentais de natureza espacial. Como exemplo
típico,
Ochaita e Rosa (1995) apresentam o trabalho de Carpenter e Eisenberg (1978), que
consistia em avaliar tactilmente se a imagem de uma letra (P ou F) era a
correta, quer
quando as letras se encontravam em posição normal, quer em diferentes ângulos de
inclinação. Os cegos de nascença mostraram-se capazes de identificar tactilmente
as
alterações de forma nos eixos horizontal, vertical e oblíquo do espaço
euclidiano.
Concluem os autores do trabalho que o sistema háptico pode construir
representações
mentais válidas e fiáveis de natureza espacial. Outras investigações têm
conduzido a
resultados e interpretações menos otimistas. Tal é o caso dos trabalhos de
Knauff e May
(2005) que, segundo os próprios, vão de encontro aos resultados de outros
estudos que
compararam sujeitos cegos com videntes, num conjunto alargado de tarefas
visuoespaciais,
nas quais os sujeitos cegos evidenciaram performances menos corretas e mais
lentas, ainda que baseadas na construção e aplicação de representações mentais
de natureza
espacial. Não obstante alguma evidência que sugere atrasos na compreensão do
espaço por
parte dos sujeitos cegos, Heller e Ballesteros (2006) salientam outras
investigações, as
quais têm demonstrado que as crianças cegas ou com baixa visão, entre os 3 e os
16 anos
de idade, podem obter melhores performances que os seus pares videntes da mesma
idade,
quando sujeitos a testes de natureza espacial desenhados para avaliar a
compreensão
espacial de (i) figuras de fundo, (ii) estrutura dimensional, (iii) orientação
espacial, (iv)
deteção e (v) identificação de simetrias. A visão assume-se como a fonte mais
óbvia e
imediata de informação espacial, sobretudo se esta questão for analisada na
perspetiva dos
videntes. No entanto, os resultados anteriores mostram que a experiência visual
podendo
ser necessária, não é essencial na resolução de problemas de natureza espacial,
tal como
defendem Millar e Ittyerah (1991) e Millar (2006). Recorrendo à teoria de
Revesz, Millar
(2006) lembra que as informações propriocetivas, gravitacionais e cinestésicas,
originadas
pelo corpo e pela postura corporal, proporcionam referências espaciais efetivas,
particularmente na ausência da visão. Assim, a autora sublinha a importância
para os
sujeitos cegos, da consciência dos estímulos que podem, potencialmente, ser
utilizados
como referências espaciais em determinadas situações ou tarefas, assim como do
conhecimento processual sobre como aceder e utilizar essas mesmas referências.
No ponto 1.2. do capítulo II, caracterizámos a perceção táctil como requerendo
análises parcelares, graduais e lentas, com posterior integração num todo
global. Segundo
Bardisa (1992), estas características manifestam-se igualmente nas
representações mentais,
pois quando se pergunta a um cego o que está na sua mente quando desenha
cuidadosamente, por exemplo uma cadeira, as suas respostas retratam uma sucessão
gradual das parcelas do objeto (braço direito da cadeira, braço esquerdo,
assento, encosto,
pernas, etc.). A adoção de processos diferentes, entre crianças cegas e
videntes, na
realização de desenhos, não obsta a que os resultados finais partilhem muitas
das suas
características. Segundo Kennedy e Juricevic (2006), os desenhos das crianças
cegas
partilham muitas características com os desenhos dos seus pares videntes,
sobretudo
quando os cegos são encorajados e estimulados a desenhar desde os primeiros anos
de
vida. Investigações conduzidas por Kennedy em 1993 e 1997 demonstraram que, as
pessoas cegas são capazes de desenhar figuras bidimensionais, com
características
similares às desenhadas pelos videntes, em termos de profundidade, movimento,
perspetiva, superfícies, contornos e outras características. O investigador
interpretou estes
factos com base na sobreposição das informações obtidas pelos sistemas
percetuais visual e
táctil defendendo que, apesar da visão e do tato constituírem sistemas
percetuais distintos,
um responsável por processar os estímulos luminosos e outro por processar a
pressão, as
informações que aportam são processadas numa mesma área cerebral que integra os
elementos comuns (Kerr e Domhoff, 2004).
Numa outra investigação relacionada com as imagens tácteis, sujeitos cegos e
sujeitos videntes com os olhos vendados, perante uma imagem alvo tangível, foram
solicitados a selecionarem a melhor combinação possível perante um grupo de
quatro
outras imagens, também elas tangíveis (instrumento musical com instrumento
musical,
animal com animal, etc.). Os resultados indiciaram os sujeitos cegos como
significativamente mais rápidos a completar a tarefa, provavelmente devido a
competências hápticas mais desenvolvidas, não obstante ambos os grupos terem
atingido
elevados níveis de precisão, com aproximadamente 90% de acertos (Heller, 2006).
Na
identificação de imagens em relevo não familiares, um grupo de crianças cegas
congénitas,
com idades compreendidas entre os 8 e os 13 anos, identificaram um maior número
de
imagens do que os seus pares videntes com os olhos vendados, não obstante estas
diferenças, as imagens que se revelaram mais difíceis de identificar para um dos
grupos,
foram também as mais difíceis de identificar pelo outro grupo (Kennedy e
Juricevic, 2006).
Um dos trabalhos de Aleman e colaboradores é-nos descrito por Bértolo (2005).
Nesse trabalho procuraram estudar a capacidade dos sujeitos cegos congénitos na
execução
de tarefas que, nos sujeitos videntes, são mediadas pelas imagens mentais
visuais. Uma das
tarefas consistia em comparar mentalmente formas de objetos, enquanto a outra
solicitava
aos sujeitos que representassem um caminho imaginário em matrizes bi e
tridimensionais.
Apesar dos cegos congénitos terem obtido valores inferiores aos videntes,
mostraram-se
capazes de executar ambas as tarefas.
Ao estudarem a discriminação tonal dos sons em crianças cegas, Gougoux et al.
(2004) demonstraram que os sujeitos cegos, comparativamente aos videntes,
identificam
melhor as mudanças tonais entre sons. Os cegos de nascimento, ou que cegaram nos
primeiros tempos de vida, evidenciaram esta mesma capacidade, mesmo quando a
velocidade da mudança era dez vezes superior para eles, em relação aos videntes.
Em
suma, quanto mais precoce for a cegueira melhor é a performance na discriminação
tonal,
o que leva os autores a salientar a importância e a influência da plasticidade
cerebral nos
cegos congénitos e precoces.
Ao estudarem as representações de categorias naturais em crianças cegas no
início
da escolaridade básica (primeiro e segundo anos), Peraita e colaboradoras (1992)
obtiveram os resultados que apresentamos a seguir:
-
dificuldade em caracterizar categorias gerais, como por exemplo animal,
enumerando exemplos da mesma com algumas das respetivas características (a
vaca tem cornos ou o camelo corre);
-
referência a contextos muito próximos e imediatos (no jardim do colégio há um
pinheiro);
-
utilização abundante de gestos para explicar formas, tamanhos, localização das
partes e utilizações;
-
erros de classificação (uma planta é uma folha);
-
utilização frequente de analogias (uma pêra é como uma maçã);
-
desconhecimento dos intervalos de tamanhos possíveis para animais, plantas e
objetos em geral, conduzindo frequentemente a sobredimensionamento;
-
ausência quase total de referências a cores;
-
explicação detalhada de aspetos funcionais.
Nos terceiro e quarto anos da escolaridade básica, os padrões de resposta e os
esquemas conceptuais das crianças cegas começam a aproximar-se dos identificados
nas
crianças videntes:
-
caracterização precisa de categorias gerais, como animal ou planta, o que não
se
manifestou, em absoluto, no grupo anterior;
-
tendência em incluir categorias mais específicas noutras mais gerais;
-
persistência de alguns erros de classificação, como por exemplo o animal é um
ser humano;
-
caracterização de tipo avaliativa, como por exemplo gosto ou é bonita;
-
surgem as relações entre as partes e o todo, algo que não ocorreu no grupo
anterior;
-
diminui a frequência de exemplos específicos citados para cada categoria mais
geral;
-
surgem referências às cores;
-
surgem referências aos intervalos de tamanhos possíveis para animais, plantas
e
objetos em geral, com mais precisão que no grupo anterior;
-
utilização de analogias mais complexas, como por exemplo o animal é como o
Homem, só que não raciocina.
Entre o quinto e o oitavo ano da escolaridade básica, parece ocorrer uma
explosão
de conhecimentos sobre as categorias e os objetos, com esquemas conceptuais mais
completos e complexos. Em relação ao grupo anterior, destaca-se:
-
conhecimento preciso das aplicações e funções dos objetos;
-
conhecimento da variabilidade de formas, cores, tamanhos e materiais, em
relação a um determinado objeto;
-
aplicação sistemática de conhecimentos adquiridos em contexto escolar, como as
taxionomias que permitem classificar os seres vivos;
-
pontualmente, caracterização e classificação das palavras quanto às suas
propriedades lexicais e gramaticais.
Ao longo deste trabalho, por várias vezes referimos a importância da linguagem
verbal para o desenvolvimento e para o dia-a-dia dos cegos, assim como a
linguagem
verbal enquanto fator constituinte das próprias representações mentais. Com base
em
vários trabalhos sobre a utilização de verbalismos pelos cegos, Peraita e suas
colaboradoras
(1992) salientam a ocorrência de processamento semântico, por exemplo ao
julgarem a
adequação de um adjetivo a um determinado substantivo (bola – redonda, rosa –
vermelha,
gato – voador, neve – negra), uma vez que as latências de resposta se revelaram
mais
longas nos pares inapropriados (neve – negra, por exemplo), em resultado de
processos
ativos de pensamento utilizados na busca de inferências corretas.
Num estudo que pretendia contribuir para o conhecimento e para a explicação dos
processos de construção dos conhecimentos em cegos congénitos, Ormelezi (2000)
estudou cinco jovens adultos portadores de cegueira congénita e obteve os
seguintes
resultados 37:
-
possibilidade do ser humano captar informações relevantes da realidade e
construir conhecimentos acerca da mesma, mesmo na ausência da visão;
-
para o cego, constituem fontes privilegiadas de informação (i) a experiência
percetiva, considerando-se particularmente relevante o tato, (ii) a experiência
afetiva e (iii) as explicações de outros (por exemplo, em relação às cores);
-
fundamental introduzir recursos concretos acessíveis ao cego, como ferramenta
para trabalhar e construir conceitos;
-
importante fundir a palavra a objetos representativos da realidade na formação
de conceitos não acessíveis, senão pela visão (lua, por exemplo);
-
desvalorização, por parte dos sujeitos da amostra, das figuras em relevo
enquanto fontes de informação;
-
valorização, pelos sujeitos, das figuras tridimensionais enquanto fontes de
informação;
-
há conceitos considerados secundários e acessórios pelos cegos congénitos;
-
construção do conceito de cores com base em critérios e relações
disponibilizadas pelos videntes;
-
os sonhos são constituídos, predominantemente, a partir da realidade que
vivem,
ou seja, por imagens mentais tácteis, olfativas, auditivas e cinestésicas, sendo
que
a maioria dos sujeitos relatou que, ao sonhar, sente que vai além da realidade
correspondente à perceção, como se estivesse a ver.
Nas palavras de Isabel:
“«vejo» as características que sinto das coisas quando toco… é como se estivesse
tocando as coisas sem as tocar… na verdade sinto, mas é mais que sensação… é
mais global” (p. 181):
Já em 2004, Sylvia Nunes conduziu um estudo com objetivos congéneres, tendo
estudado crianças cegas congénitas com idades compreendidas entre os nove e os
treze
anos. Destacam-se os seguintes resultados:
-
a representação da maioria dos conceitos baseia-se nos seus atributos
definidores, ou seja, características essenciais que atribuem uma identidade
distinta dos demais 38;
-
as categorias mais utilizadas para a definição de conceitos foram, por ordem
decrescente, (i) comportamentos/exemplos, (ii) função, (iii) características
físicas
tateáveis e (iv) características físicas não tateáveis;
-
os sujeitos podem recorrer a informações de natureza visual nas suas
representações, às quais têm acesso através das descrições verbais feitas pelos
videntes, ou dos meios de comunicação (como livros, televisão, internet, rádio,
etc.);
-
os conceitos concretos tateáveis, como bola ou telefone, tendem a ser
representados pela sua função útil e pelas suas características físicas;
-
os conceitos concretos não tateáveis e não cognoscíveis de forma direta pelos
restantes sentidos, em virtude da enorme distância física que os separa dos
sujeitos, como são os casos da lua e da nuvem, tendem a ser representados pelas
suas características físicas não tateáveis e pela sua localização;
-
os conceitos naturais, como vento, trovão, nuvem e arco-íris tendem a ser
representados de forma contextualizada;
-
recurso a analogias na representação de conceitos dificilmente apreensíveis
pelo
tato;
-
os conceitos abstratos tendem a ser representados através de comportamentos
e/ou exemplos considerados ilustrativos dos mesmos, assim como pela negação
dos seus opostos;
-
a linguagem utilizada pelos sujeitos não foi um mero reflexo mecânico do
conhecimento disponibilizado pelos videntes, representando efetivamente os
conceitos que formaram a partir das suas experiências percetivas e cognitivas.
8. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS DO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES
MENTAIS
Se as representações mentais evoluíram como forma de potenciar a nossa adaptação
ambiental, permitindo mais e melhores desempenhos cognitivos com mais baixo
custo
energético, então um processo educativo será tanto melhor quanto mais e melhores
representações mentais permitir desenvolver.
Está demonstrado, com algum consenso, que a utilização de mnemónicas baseadas
em imagens mentais melhora a retenção de material verbal (Kalakoski, 2006;
Paivio, 1971,
1990; Thomas, 2007). Ainda em relação com os processos mnemónicos, várias
investigações têm demonstrado que (i) relembrar e relatar livremente imagens se
revela
mais eficaz que relembrar e relatar as respetivas legendas, (ii) objetos e
imagens são
relembrados mais facilmente que palavras concretas, (iii) palavras concretas são
relembradas mais facilmente que palavras abstratas e (iv) a recordação de
palavras está
positivamente correlacionada com a sua capacidade para evocar imagens mentais de
natureza visual e cinestésica (Paivio, 1971).
Na aprendizagem da leitura, Paivio (1990, 2006) afirma que a aprendizagem das
palavras concretas é mais rápida quando as mesmas são acompanhadas pelas
respetivas
imagens referentes, em comparação com a sua pronúncia verbal simples, logo
recomenda-se
a utilização de material verbal de natureza concreta e de estímulos sensoriais,
como
forma de melhorar a compreensão da leitura, a memorização e a evocação, tanto em
crianças como em adultos. Acrescenta o autor que a construção de imagens mentais
no
decorrer da leitura melhora a aprendizagem de novo vocabulário e a compreensão.
O recurso à concretização, à construção de imagens mentais e aos princípios do
duplo processamento (SRI e SRV), permite escrever com mais significado e de
forma mais
memorável (Paivio, 2006).
Outros autores, como Paivio (1990) alargam as funções que as representações
mentais e os processos a elas associados podem desempenhar. Além da mnemónica,
defendem o seu papel ativo nas tarefas de avaliação da informação e de motivação
para a
ação. Alguns exemplos associados às funções de avaliação são (i) analisar as
representações mentais de mapas para determinar as distâncias relativas entre
localizações,
(ii) estimar o tamanho relativo de um objeto através da sua representação
mental, (iii) ler
em voz alta a informação contida numa matriz representada mentalmente, (iv)
comparar
objetos através das respetivas representações mentais (tamanho, cor, peso,
etc.), (v) cálculo
mental, (vi) análise estrutural e semântica de palavras representadas
mentalmente (número
de sílabas, número de vogais e consoantes, significados, sinónimos, etc.), (vii)
análise
estrutural e semântica de frases representadas mentalmente (classificar as
palavras nas
respetivas categorias gramaticais, significados, etc.) e (viii) tarefas de
transformação e/ou
criação (imaginar um cubo a ser cortado em 10 cubos iguais, por exemplo). A
execução
destas tarefas poderá envolver e, regra geral, envolve o SRI e o SRV. Por
exemplo,
analisar as representações mentais de mapas para determinar as distâncias
relativas
implica, entre outros, o processamento da imagem mental do mapa, eventualmente
com
diferentes distâncias focais, da imagem mental das cores, nomeadamente das
linhas
representativas das vias de comunicação (estradas nacionais, auto estradas, vias
férreas,
etc.), assim como das palavras associadas aos nomes das localidades e das cores
das linhas.
Paralelamente, muitas vezes de forma involuntária, podem assomar à mente outras
imagens associadas à representação geral, ainda que insignificantes para a
tarefa, como a
sensação de atrapalhação na dobragem de um grande mapa ou o som produzido pela
manipulação do papel.
Tradicionalmente, as Neurociências têm-se descuidado no estudo das emoções
(Damásio, 2004). As Ciências da Educação seguiram-lhes os passos, ignorando ou
mesmo
ostracizando e reprimindo as emoções e respetivos sentimentos na aprendizagem,
considerando-os não só dispensáveis como contraproducentes (Fernandes, 2004;
Fernandes
e Pinho, 2007). Nos seus últimos avanços, as Neurociências têm agora tratado as
emoções
e os sentimentos com maior cuidado, revelando não só a sua presença em qualquer
ato de
conhecer, sobretudo das primeiras, como a sua importância “para a direcção
adequada da
atenção, uma vez que fornece um sinal automatizado acerca da experiência passada
do
organismo com certos objectos e providencia, deste modo, uma «razão» para
prestar
atenção a um determinado objecto ou para desviar a atenção desse objecto”
(Damásio,
2004, p.312). Acrescenta o mesmo autor que “tanto em ratos como em seres
humanos,
demonstrou-se que o recordar de factos novos é reforçado pela presença de certos
níveis de
emoção ao longo da aprendizagem” (p. 336). Objetos em educação podem ser, entre
outros, a própria escola enquanto espaço físico e social, uma determinada
disciplina e
respetivos conteúdos, como pessoas importantes da história passada e atual
(todas as
disciplinas têm os seus personagens históricos), assim como os seus feitos,
lugares,
imagens ou objetos tridimensionais e respetiva composição (os órgãos do corpo,
por
exemplo), um determinado raciocínio matemático ou o significado de uma palavra.
A
Escola e cada professor em particular têm que assumir como objetivo crítico a
educação
dos afetos, pelas emoções e pelos sentimentos, desde logo valorizando-os e tendo
plena
consciência da sua presença constante no ato educativo. Neste sentido, Fernandes
(2006)
afirma a necessidade do ato educativo ter em conta as várias dimensões que
constituem o
indivíduo, ou seja, a sua natureza biopsíquica, social, emocional, afetiva,
mental,
intelectual, interpessoal e transcendental. Argumentarão os céticos que se trata
de pura
perda de tempo, face às aprendizagens, essas sim importantes, da Matemática e da
Língua,
entre outras. Outros, mais abertos, dirão que estão de acordo com este objetivo
crítico, mas
falta tempo, pois os horários estão já sobrecarregados com as disciplinas
tradicionais. A
uns e a outros diremos que não se trata de incluir ou não as emoções e os
sentimentos nos
currículos, porque eles já lá estão, associados a cada um dos conteúdos
contemplados, pois
como referimos anteriormente, as Neurociências têm demonstrado a sua presença em
qualquer ato de conhecer. Podemos ignorá-las, fazer de conta que lá não existem
ou dizer
que não são importantes, mas não faz sentido, por essa razão, discutir a sua
inclusão ou não
no currículo. Também não faz sentido falar da falta de tempo pois, como
dissemos, a
emoção acontece no ato de conhecer, portanto não se trata de reservar umas
quantas aulas
para abordar emoções ou sentimentos, nem tão pouco dar a sua definição teórica e
está
cumprido o programa. É em cada ato de conhecer que se educa a emoção e o
sentimento, a
emoção de semear uma semente (feijão por exemplo), ver as primeiras folhas a
brotar da
terra, medir regularmente a altura da planta e rejubilar de alegria porque
cresceu em
relação à última medição, desenhá-la e nomear os diferentes órgãos, pesquisar as
funções
de cada órgão, é a felicidade estampada no rosto ao ver a primeira flor e a
vontade de
registar o momento em fotografia, é a ansiedade que os frutos amadureçam para
serem
colhidos e com eles confecionar uma sopa coletiva. Da parte do professor, é
saber que esta
estratégia de aprendizagem envolve mais emoções e de natureza positiva, que a
simples
apresentação da imagem do feijoeiro retirada de um manual ou a colocação de
sementes
em algodão e água, sem viabilidade de sobrevivência além da germinação.
Atendendo à
funcionalidade das ZDC, importa cultivar o estabelecimento de redes neurais
alargadas,
quer através da interligação lógica entre conteúdos diferentes mas
interrelacionados, o que
pode ser feito, por exemplo, através dos chamados mapas conceptuais ou redes de
conceitos, ou através da interligação com vivências anteriores dos alunos em
relação a
determinado objeto. Em suma, há que ter presente que o cérebro, órgão da
aprendizagem
por natureza, é constituído por conjuntos de redes neuronais, por outras
palavras, por
enredos neuronais. Diz-nos Spitzer (2007) que este órgão prefere aprender
histórias com
enredos contextualizados e significativos, a fatos isolados.
CAPÍTULO VI – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Neste capítulo procuramos interpretar os resultados obtidos em relação (i) às
representações mentais da realidade física (identificação, riqueza,
complexidade, valor
total e natureza das informações), (ii) às representações mentais da realidade
social escolar
(integração no EBER) e (iii) às relações entre as representações mentais da
realidade física
e as representações mentais da realidade social escolar.
1. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA
1.1. IDENTIFICAÇÃO DE ESTÍMULOS PERCETIVOS
Na identificação de estímulos percetivos de natureza diferente, a performance
dos
sujeitos, tanto cegos congénitos como videntes, saldou-se numa frequência
reduzida de
erros de identificação. Outras investigações têm demonstrado que a exploração
táctil ativa
se revela particularmente eficiente na identificação de objetos tridimensionais
(Ballesteros
e Reales, 2006).
No caso dos cegos congénitos da nossa mostra: objetos
tridimensionais –
um erro em vinte e quatro possíveis, figuras em relevo – sete erros em vinte e
quatro
possíveis e sons – três erros em vinte e quatro possíveis.
No caso dos videntes:
objetos
tridimensionais – zero erros em vinte e quatro possíveis, figuras em relevo –
dois erros em
vinte e quatro possíveis e sons – três erros em vinte e quatro possíveis.
Para a
boa
performance geral dos sujeitos, muito terão contribuído a simplicidade ou
identificabilidade e a familiaridade dos estímulos utilizados no nosso
dispositivo de
recolha de dados. Tratam-se, na sua maioria, de objetos, figuras e sons do
quotidiano e de
contornos simples. Em conformidade com esta ideia, o estímulo com mais erros de
identificação, seis no total dos dois grupos de sujeitos, foi a figura em relevo
casa, uma
figura mais complexa e composta por outras mais simples (triângulos, retângulos
e
círculos). Sendo percecionada hapticamente e atendendo à sua complexidade, para
a sua
identificação eram necessárias análises parcelares, graduais e lentas, para uma
posterior
integração num todo global (Dias, 1995; Gil, 2000; Heller e Ballesteros, 2006;
Nunes,
2004; Ochaita e Rosa, 1995), integração essa que se revelou difícil nos sujeitos
que
falharam a identificação, uma vez que, a maioria destes conseguiu análises
parcelares
corretas, identificando algumas das figuras geométricas que integravam o todo.
Com
quatro erros de identificação surge o piano, um som que no seu estado puro, tal
como foi
apresentado, desacompanhado de voz e de outros instrumentos musicais ou seja, de
outros
elementos contextuais, poderá ser menos familiar a alguns dos sujeitos. A
identificação do
som galo a cantar saldou-se em dois erros de identificação, erros cometidos em
função da
afinidade com o som das galinhas, uma vez que foi esta a resposta dada por ambos
os
sujeitos que erraram a identificação. Trata-se assim de um som com uma
identificabilidade
menor.
A identificabilidade dos estímulos é um fator crítico apontado pela literatura,
tendo
sido estudado por Almaraz (1997), o qual identificou influências do mesmo nos
níveis de
riqueza e de complexidade das representações mentais. Também a familiaridade é
apontada como fator crítico por Heller e Ballesteros (2006), nomeadamente na
perceção
háptica.
Nas análises estatísticas efetuadas, não identificámos qualquer diferença
significativa no entanto, alguns dos resultados merecem-nos reflexão. No caso
dos cegos
congénitos, a comparação estatística das identificações de estímulos tácteis com
as
identificações de estímulos sonoros evidencia a ausência de diferenças
significativas, com
om’s muito próximas, o que poderá estar relacionado com a proficiência e a
familiaridade
destes sujeitos, na utilização quotidiana de ambas as modalidades de
identificação. Quando
comparamos as identificações das duas categorias de estímulos tácteis, não
obstante a
ausência de diferenças significativas, verificamos que os sujeitos cegos foram
melhor
sucedidos na identificação de objetos tridimensionais que na identificação de
figuras em
relevo, facto explicável pela menor familiaridade com as representações em
relevo e que
podemos constatar na aplicação das entrevistas, com vários sujeitos a revelarem
ser o
primeiro contacto com esta forma de representação. A mesma razão estará
subjacente ao
facto das figuras em relevo estarem associadas ao pior desempenho, quando
comparamos
as identificações das três categorias de estímulos (objetos tridimensionais,
sons e figuras
em relevo), ainda que sem diferenças significativas.
Os sujeitos videntes, ao contrário do que seria de esperar, evidenciaram
melhores
performances na identificação de estímulos tácteis que na identificação de sons,
ainda que
sem diferenças significativas. Dizemos ao contrário do que seria de esperar
porque, no dia-a-dia, a utilização do tato pelos videntes é, muitas vezes, substituída pela visão
ou
combinada com ela, uma vez que, em condições normais, um vidente não poderá
tatear
nada que não esteja, igualmente, ao alcance da visão. O mesmo não acontece com a
audição, que é um sentido de longo alcance, pelo que os videntes são
confrontados, muitas
vezes, com sons que procuram identificar, mas que não estão ao alcance da visão,
como
por exemplo, um cão a ladrar por detrás de um muro alto. No entanto, numa
análise mais
detalhada dos resultados, verificamos uma diferença em relação ao padrão
evidenciado
pelos cegos congénitos, segundo a qual os videntes apresentam melhores
performances na
identificação de figuras em relevo que de sons. Sendo certo que os videntes
estavam
vendados aquando da exploração háptica das figuras em relevo, permanecia um
fator para
nós impossível de neutralizar, as memórias visuais destas figuras familiares
39
permaneciam
disponíveis, podendo ser mobilizadas como auxiliares na identificação dos
estímulos.
Como afirmam James e colaboradores (2006), a exposição a objetos reais através
da visão
ou, em alternativa, do sentido háptico, afeta a identificação posterior desses
mesmos
objetos, respetivamente através do sentido háptico ou da visão.
Comparando a performance dos sujeitos cegos congénitos com a dos videntes,
verificamos a ausência de diferenças significativas na identificação de sons e
diferenças
próximas do limiar de significância na identificação de estímulos tácteis
(p=0,058).
Quando comparamos os dois grupos na identificação de objetos tridimensionais e
de
figuras em relevo, verificamos om’s próximas e ausência de diferenças
significativas no
primeiro caso, enquanto as diferenças no segundo caso se situam próximas do
limiar de
significância (p=0,057). Recuperando explicações apresentadas anteriormente,
face á
pouca familiaridade de ambos os grupos de sujeitos com esta forma de
representação, as
memórias visuais dos videntes parecem ter desempenhado um papel não
negligenciável na
identificação dos estímulos. Face à maior familiaridade com a representação
tridimensional
dos objetos e com a sua exploração táctil, por parte de ambos os grupos de
sujeitos,
seguramos um limão para cortar ou espremer, seguramos uma bola quando jogamos,
assim
como seguramos pedras para as atirar, as memórias visuais dos videntes terão
desempenhado um papel menos importante na identificação de objetos
tridimensionais,
resultando em om’s muito próximas com os sujeitos cegos congénitos.
1.2. RIQUEZA, COMPLEXIDADE E TOTAL DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS
Analisando (i) a riqueza, (ii) a complexidade e (iii) o total das representações
mentais, destacam-se os seguintes resultados:
-
as representações mentais evocadas por estímulos semânticos apresentam valores
significativamente mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii)
total,
comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos percetivos,
tanto em cegos congénitos como em videntes;
-
as representações mentais evocadas por palavras abstratas apresentam valores
significativamente mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii)
total,
comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no
grupo de sujeitos videntes;
-
as representações mentais evocadas por palavras concretas apresentam valores
significativamente mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii)
total,
comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no
grupo de sujeitos videntes;
-
ausência de diferenças significativas (i) na riqueza, (ii) na complexidade e
(iii) no
total das representações mentais evocadas por estímulos de natureza diferente
(palavras abstratas, palavras concretas, objetos tridimensionais, figuras em
relevo e
sons), no grupo de cegos congénitos;
-
ausência de diferenças significativas (i) na riqueza, (ii) na complexidade e
(iii) no
total, entre as representações mentais evocadas por cegos congénitos e as
representações mentais evocadas por videntes.
A riqueza e a complexidade são duas componentes daquilo que temos vindo a
designar de representação mental total (= riqueza + complexidade). Estas duas
componentes são apresentadas na literatura como apresentando correlações
positivas
fortes, as quais se evidenciaram nos nossos resultados, tal como explicita o
quadro 10. Não
é assim de estranhar que a riqueza e a complexidade apresentem resultados com
padrões
semelhantes, sendo que os resultados de uma têm de ser, necessariamente,
explicados
tendo em atenção os resultados da outra. O total das representações mentais,
enquanto
resultado da adição da riqueza com a complexidade, apresentado estas componentes
padrões semelhantes, era expectável que recapitulasse o padrão partilhado pela
riqueza e
pela complexidade, o que se verificou. Assim, é nossa convicção que devemos
concentrar
os nossos esforços na compreensão dos resultados da riqueza e da complexidade e
suas
interações, como forma de compreendermos os resultados das representações
mentais
totais.
O facto dos estímulos semânticos evocarem representações mentais mais ricas que
os estímulos percetivos, não está de acordo com o relatado por Almaraz (1997)
que,
utilizando uma base teórica e metodológica equivalente à nossa, encontrou
resultados
inversos. Sendo a diferença nos resultados de ambas as investigações um facto
indiscutível,
podemos apenas discutir os critérios de comparação dos resultados das duas
investigações
a partir de algumas especificidades metodológicas. No seu trabalho, Almaraz
concebia as
representações mentais como a evocação mnemónica e imagética do estímulo e das
características diretamente associadas a ele. Por exemplo, a palavra tacho
deveria evocar a
imagem de um tacho, sendo esta a única imagem que deveria ser descrita, estando
implicitamente proibidas ligações contextuais com outros objetos, ou com
pessoas, lugares,
acontecimentos e pensamentos. Não é assim de estranhar que estímulos percetivos
tivessem evocado representações mentais mais vívidas e mais ricas. Por
entendermos que
esta conceção de representação mental é redutora da sua complexidade, da sua
dinâmica e
da sua natureza multimodal, na evocação das representações mentais, não só não
proibimos
ligações contextuais, como as incentivámos, no sentido em que solicitávamos aos
sujeitos
que durante 30 segundos representassem nas suas mentes, não só o estímulo
propriamente
dito, mas também lugares, pessoas, acontecimentos e pensamentos que surgissem
nas suas
mentes, como naturalmente associados. Por exemplo, face à palavra tacho, o
sujeito podia
representar aquele acontecimento em que ajudou a sua mãe a confecionar uma
refeição.
Era esta representação global que pretendíamos que os sujeitos nos relatassem e
não,
apenas, o tacho utilizado. Dito isto, apenas explicámos o porquê das diferenças
em relação
a outras investigações, carecendo ainda explicar os nossos resultados
propriamente ditos.
A existência de diferenças significativas na riqueza e na complexidade das
representações mentais evocadas por estímulos semânticos, em relação às evocadas
por
estímulos percetivos, vai de encontro aos postulados da Teoria do Processamento
Dual a
qual, como já referimos, prevê a existência de dois sistemas de representação
mental
autónomos mas interligados, um SRI mais vocacionado para as informações de
natureza
imagético percetiva e um SRV, mais vocacionado para as informações de natureza
simbólico verbal.
Para melhor explicarmos e compreendermos o porquê das representações mentais
evocadas por estímulos semânticos serem mais ricas e mais complexas que as
evocadas por
estímulos percetivos, a análise da enunciação revelou-se um precioso auxiliar na
interpretação dos resultados estatísticos. Estatisticamente, a complexidade das
representações mentais evocadas por estímulos semânticos é, em consonância com a
riqueza, significativamente superior à das representações mentais evocadas por
estímulos
percetivos. A nosso ver, tal está relacionado com algumas das características
das
representações mentais reveladas pela análise da enunciação, as quais passamos a
explicar:
em ambos os grupos de sujeitos, as representações mentais evocadas por estímulos
percetivos e de forma mais evidente nos estímulos tácteis, centraram-se na
representação
mnemónica da imagem mental dos estímulos propriamente ditos, de forma vívida e
com
abundância de informações de natureza imagética. Corroboram-se assim os
resultados de
Nunes (2004), segundo os quais os conceitos concretos tateáveis, tendem a ser
representados pelas suas características físicas. Ocorreram menos ligações com
outros
objetos, lugares, pessoas, acontecimentos e pensamentos, o que nos relatos
verbais se
manifestou na utilização de um menor número de orações, logo de palavras de
ligação
como são as conjunções e as preposições. Esta centração na representação do
estímulo
percetivo propriamente dito, com escassez de ligações a outros referentes, como
sejam
objetos, lugares, pessoas e acontecimentos, explica a menor riqueza das
representações
mentais evocadas por estímulos percetivos. Por seu turno, as representações
mentais
evocadas por estímulos semânticos revelaram-se mais complexas, na procura de
contextualizar as palavras estímulo em situações e acontecimentos concretos,
ocorrendo
abundante inclusão de objetos, lugares, pessoas e acontecimentos, mais como
forma de dar
significado à palavra que de descrever exaustivamente esses elementos,
recorrendo mais a
informações de natureza verbal que imagética. Estes resultados vão de encontro
aos
relatados por Nunes (2004), ou seja, os conceitos abstratos tendem a ser
representados
através de comportamentos e/ou exemplos considerados ilustrativos dos mesmos.
Como
nos diz Damásio (2003b, 2004), as representações mentais construídas a partir de
estímulos
não-verbais e verbais, podem ser manipuladas pela nossa mente através de
múltiplas
(re)construções de pessoas, objetos, lugares e acontecimentos, podendo inventar
e incluir
novas imagens mentais na representação.
Atendendo aos nossos resultados, as
representações mentais evocadas por estímulos verbais parecem dispor de maior
liberdade
e maleabilidade na sua manipulação e (re)construção. As palavras, sejam
abstratas ou
concretas, tendem a evocar acontecimentos, lugares, pessoas, objetos e
pensamentos, os
quais já se encontram integrados em redes interligadas na memória a longo prazo.
Por
outras palavras, a palavra bola não se refere a nenhuma bola em particular, pelo
que o
cérebro irá recuperar informações guardadas na memória, com grande probabilidade
de
integrarem vivências concretas dos sujeitos marcadas emocionalmente. Como
defende
Vigotski (2001), “a palavra nunca se refere a um objecto isolado mas a todo um
grupo ou
classe de objectos” (p. 9). Em contrapartida, a evocação de uma esfera ou de uma
bola
específicas, percecionadas apenas há alguns minutos atrás, conduz o sujeito a
centrar-se
nesses mesmos objetos, sobretudo quando o intervalo de tempo que medeia a
perceção e a
evocação da respetiva representação mental é demasiado reduzido para permitir a
sua
integração nos esquemas conceptuais e representativos pré-existentes. Como
reconhecem
vários autores (Horton, 2000; Nunes e Almeida, 2005), o conhecimento sensorial
apresentado de forma isolada pode representar-se de forma desconexa e
descontextualizada, dificultando a atribuição de significados e a relação com
outros
conhecimentos (passados, contemporâneos e/ou futuros).
Podemos assim dizer que as representações mentais evocadas por estímulos
percetivos, sendo quantitativamente menos ricas, revelam-se qualitativamente
mais vívidas
ou, por outras palavras, mais nítidas e com abundância de informações de
natureza
imagética, enquanto as representações mentais evocadas por estímulos semânticos,
sendo
quantitativamente mais ricas, revelam-se qualitativamente menos nítidas e com
abundância
de informações de natureza verbal. Por outras palavras, maior frequência de
pessoas,
objetos, lugares, acontecimentos e pensamentos, mas sem descrições
pormenorizadas das
suas características e/ou das suas ações.
No grupo de cegos congénitos, não encontrámos diferenças significativas nem na
riqueza, nem na complexidade das representações mentais evocadas por estímulos
de
natureza diferente (palavras abstratas, palavras concretas, objetos
tridimensionais, figuras
em relevo e sons), o que parece revelar um processamento equilibrado e integrado
das
informações, independentemente da sua natureza. Analisando estes resultados à
luz da
Teoria do Processamento Dual, eles poderão estar relacionados com interligações
robustas
entre o SRI e o SRV, as quais não permitem diferenciar significativamente a
riqueza e a
complexidade das representações mentais resultantes do processamento de palavras
abstratas ou de palavras concretas por um lado, da riqueza e complexidade das
representações mentais resultantes do processamento de objetos tridimensionais,
de figuras
em relevo ou de sons, por outro lado. O modelo de convergência – divergência
também
nos pode ajudar na compreensão destes resultados. Sendo este baseado numa
arquitetura
neural de ligações em rede capazes de emitir sinais convergentes e/ou
divergentes em
relação a diferentes ZDC’s, as quais “registam a coincidência de actividades em
neurónios
de diferentes partes do cérebro, neurónios esses que haviam sido activados, por
exemplo,
no mapeamento de um determinado objecto” (Damásio, 2010, p. 182), é plausível
que a
familiaridade dos cegos congénitos com as perceções táctil e auditiva, assim
como com o
processamento de palavras abstratas e de palavras concretas, se desenvolvam
nestes
sujeitos arquiteturas neurais mais ricas em redes corticais, tanto de natureza
táctil, como de
natureza auditiva e simbólico-verbal, de forma que a ativação de uma determinada
ZDC
poderá, com um dispêndio de energia mínimo, ativar várias outras redes neuronais
e
ZDC’s, que por sua vez poderão ainda ativar outras redes neuronais e ZDC’s. Tal
parece
ocorrer nos cegos congénitos sem que nenhuma das redes ativadas, seja por
informação
táctil, auditiva ou simbólico-verbal, predomine sobre as restantes, quer na
disponibilidade
de disparo, quer na disponibilidade quantitativa das informações que permitem
evocar.
No caso dos sujeitos videntes, a menor familiaridade com a perceção táctil por
um
lado e a simplicidade dos estímulos figuras em relevo por outro, ajuda no nosso
ponto de
vista a explicar a riqueza e a complexidade significativamente maiores, das
representações
mentais evocadas por palavras abstratas e por palavras concretas, em relação às
representações mentais evocadas por figuras em relevo. A menor familiaridade com
a
perceção táctil de figuras em relevo poderá estar associada a uma menor
disponibilidade de
redes corticais e de ZDC’s associadas a esta forma de representação, não sendo
as
memórias visuais suficientes para colmatar esta carência. Por outro lado, a
simplicidade
dos estímulos associada a uma maior centração nos mesmos, leva a uma menor
disponibilidade de elementos referenciais e potenciais ativadores de disparos em
ZDC’s.
Por exemplo, houve sujeitos que se limitaram a uma representação tão simples
como
“Retângulo [hes.] a forma que ele tinha parecia-se com um retângulo” (C2), ou
“Bola.
assim do feitio de um balão” (F2).
Na comparação das representações mentais evocadas pelos cegos congénitos com
as representações mentais evocadas pelos videntes, não encontrámos qualquer
diferença
significativa na riqueza e na complexidade das mesmas, logo no valor total.
Desde logo,
podemos afirmar, com alguma segurança, que as memórias visuais dos videntes, as
quais
parecem ter sido mobilizadas como auxílio à identificação das figuras em relevo,
parecem
não ter influenciado significativamente a riqueza e a complexidade das
representações
mentais. Um outro fator a ter em conta na compreensão destes resultados,
surge-nos da
análise da enunciação ao conteúdo das representações mentais, através da qual
identificámos padrões de categorização transversais a ambos os grupos de
sujeitos, ou seja,
as representações mentais (re)construídas por ambos os grupos de sujeitos
partilham um
conjunto de categorias abstratas nas quais se podem classificar as respetivas
informações,
pelo que o processamento cognitivo destas informações em ambos os grupos de
sujeitos
surge, também ele, como fator de aproximação entre os dois grupos. Verifica-se
assim o
defendido por Vauclair (2008), para quem a categorização permite estruturar,
organizar e
reduzir a complexidade e a diversidade, tanto do meio físico, como do social.
Com base na
categorização, uma competência que se manifesta desde muito cedo nos seres
humanos,
desde a idade de alguns meses (Vauclair, 2008) e pela qual o cérebro humano
parece ter
um apetite insaciável (Spitzer, 2007), sem que se apercebam disso, os sujeitos
simplificam
o seu pensamento e aproximam as suas representações mentais uns em relação aos
outros,
sobretudo da perspetiva de quem analisa com base em categorias puramente
abstratas,
como o fazem os investigadores e nós também. Por outras palavras, a propósito do
objeto
esfera, os sujeitos E2, E1 e F1, (re)construíram representações diferentes do
mesmo,
afirmando E2 que poderia ser uma bola de futebol, E1 que seria um globo
terrestre e F1
que poderia ser um objeto de decoração. Apesar das diferenças, estas
representações
podem classificar-se numa categoria abstrata comum, a aplicação funcional do
objeto.
Estes sujeitos procuraram, entre outros aspetos, definir aplicações para o
objeto. Não
obstante a natureza abstrata das categorias identificadas, é possível
atribuir-lhes algumas
características que ajudam a objetivá-las. Assim, as representações mentais
evocadas por
palavras abstratas evidenciaram de forma transversal a ambos os grupos de
sujeitos (i)
contextualização em situações concretas, vivenciadas ou não pelos sujeitos e
(ii)
influências sociais no conteúdo, com a higiene da casa, pessoal e do ambiente a
serem mais
valorizadas que outras formas de higiene, como a da bicicleta ou do automóvel,
surgindo
estas influências sociais fortemente associadas à figura materna 40. As
representações
mentais evocadas por palavras concretas evidenciaram, de forma transversal a
ambos os
grupos de sujeitos, (i) a centração em torno de categorias geográficas e
ambientais,
atendendo a que estas palavras evocavam elementos naturais (montanha, neve,
estrela e
nuvem) e (ii) caracterização das imagens mentais evocadas nas representações. As
representações mentais evocadas por objetos tridimensionais, em ambos os grupos
de
sujeitos, centraram-se na caracterização das imagens mentais dos estímulos, em
torno de
10 categorias, duas das quais se manifestam nas representações mentais evocadas
pelos
quatro objetos tridimensionais (a forma e a textura), enquanto outras três se
manifestam
nas representações mentais evocadas por três dos quatro objetos tridimensionais
(a cor, a
dureza e as aplicações funcionais). A prevalência da caracterização mental de
possíveis
aplicações para os objetos tridimensionais, salienta a procura da
funcionalidade, aspeto
característico destas representações mentais. A procura da função útil foi uma
das
características identificadas por Nunes (2004) na representação de conceitos
concretos
tateáveis, ao estudar uma população de cegos congénitos. Na mesma linha de
pensamento,
as representações mentais evocadas por figuras em relevo centram-se, para ambos
os
grupos de sujeitos, na caracterização das imagens mentais dos estímulos, em
torno de uma
mesma categoria dominante e presente nas representações mentais evocadas pelas
quatro
figuras em relevo, a forma. As categorias emergentes da análise da enunciação às
representações mentais evocadas pelos sons revelam uma maior dispersão no
entanto,
podem considerar-se centradas em torno de dois conteúdos essenciais, de forma
transversal
a ambos os grupos de sujeitos, o objeto produtor do som e as características do
som.
Estamos em crer que esta forma de processamento cognitivo, a tendência para a
categorização, que ficou evidente nos resultados da análise da enunciação,
contribuiu para
aproximar as representações mentais dos cegos congénitos e dos videntes, uma vez
que a
maioria das categorias identificadas são transversais a ambos os grupos de
sujeitos. Tal
como outros investigadores que compararam representações mentais de sujeitos
cegos
congénitos com as de sujeitos videntes (Kerr e Domhoff, 2004), concluímos que
elas são
funcionalmente equivalentes em muitos aspetos.
Apesar de não termos recolhido dados neuroanatómicos e neurofisiológicos,
nomeadamente neuroimagens, que nos autorizem a dizê-lo, os resultados de outras
investigações fazem-nos crer que a enorme plasticidade cortical desempenhou aqui
e ao
longo do desenvolvimento dos nossos sujeitos o seu papel e que, como afirma
Damásio
(2010), todas as regiões cerebrais envolvidas na construção de imagens mentais
evidenciam uma capacidade complexa para integrarem sinais, ou seja, o córtex
cerebral
parece não ser tão constituído por áreas independentes, como sem tem vindo a
acreditar.
Por exemplo, Kupers et al. (2006) apresentaram evidências de que o córtex visual
primário
dos mamíferos recebe informações de natureza não apenas visual, mas também
auditiva e
somatossensorial. O facto deste processamento intersectorial ocorrer tanto nos
cegos
congénitos, como previsto desde há muito tempo, mas também nos videntes, poderá
contribuir para aproximar os processamentos cognitivos nas respetivas
(re)construções
da(s) realidade(s). Nesta linha de pensamento, o facto de os videntes
apresentarem
sistematicamente valores de riqueza, complexidade e total superiores, para as
representações evocadas por estímulos de natureza táctil, em relação às
representações
evocadas por estímulos auditivos, padrão inverso ao manifestado pelos videntes,
pode estar
relacionado com as descobertas de Kupers e colaboradores (2006), as quais
revelam a
existência de uma significativa atividade de natureza táctil no córtex visual
dos cegos, após
uma reorganização cortical em função da plasticidade cerebral. Assim, nos cegos
congénitos, as representações mentais de natureza táctil parcem beneficiar em
mais larga
escala desta reorganização, em comparação com as representações mentais de
natureza
auditiva.
Em suma, parecem assumir-se como fatores críticos para a (i) riqueza, (ii) a
complexidade e (iii) o total das representações mentais, (i) a natureza
semântica ou
percetiva dos estímulos, com a primeira associada a melhores performances, (ii)
a
capacidade de mobilizar informações guardadas na memória a longo prazo como
forma de
enriquecer e complexificar as representações, com os estímulos de natureza
semântica a
evidenciarem melhores performances a este nível, (iii) a familiaridade com as
formas de
processamento cognitivo necessárias em função da natureza do estímulo, (iv) a
simplicidade dos estímulos, (v) a tendência humana para o pensamento categorial
e (vi) as
influências sociais.
1.3. NATUREZA DAS INFORMAÇÕES NAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS
Da análise à natureza das informações presentes nas representações mentais,
destacam-se os seguintes resultados:
-
as representações mentais evocadas por estímulos percetivos apresentam valores
significativamente mais elevados de informações de natureza imagética,
comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos semânticos,
no grupo de cegos congénitos;
-
as representações mentais evocadas por estímulos semânticos apresentam valores
significativamente mais elevados de informações de natureza sentimental,
comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos percetivos, no
grupo de cegos congénitos;
-
ausência de diferenças significativas na natureza das informações, entre as
representações mentais evocadas por estímulos semânticos e as representações
mentais evocadas por estímulos percetivos, no grupo de videntes;
-
as representações mentais evocadas por objetos tridimensionais apresentam
valores significativamente mais elevados de informações de natureza imagética,
comparativamente às representações mentais evocadas por palavras abstratas,
tanto
em cegos congénitos, como em videntes;
-
as representações mentais evocadas por palavras abstratas apresentam valores
significativamente mais elevados de informações de natureza sentimental,
comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no
grupo de cegos congénitos;
-
as representações mentais evocadas por palavras concretas apresentam valores
significativamente mais elevados de informações de natureza verbal,
comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no
grupo de videntes;
-
ausência de diferenças significativas na natureza das informações, entre as
representações mentais evocadas por cegos congénitos e as representações mentais
evocadas por videntes.
As representações mentais evocadas por estímulos percetivos apresentam valores
mais elevados de informações de natureza imagética, comparativamente às
representações
mentais evocadas por estímulos semânticos, tanto no grupo de cegos congénitos,
como no
de videntes. No entanto, as diferenças apenas assumem significância estatística
no primeiro
grupo. Estes resultados eram expectáveis à luz da Teoria do Processamento Dual.
Como
afirmam vários autores (Paivio, 1971, 1990; Thomas, 2007), as imagens mentais
evocadas
a partir de estímulos semânticos tendem a ser menos nítidas e detalhadas,
comparativamente às evocadas a partir de objetos específicos. Estando o SRI
particularmente vocacionado para o processamento de informações de natureza
percetiva,
o seu envolvimento destaca-se na (re)construção mental dos estímulos percetivos,
o que
também ajuda a explicar a maior centração das representações mentais em torno
dos
estímulos percetivos, centração essa que temos vindo a aludir desde os pontos
anteriores,
particularmente nos estímulos tácteis. A maior familiaridade dos cegos
congénitos com o
processamento de informações de natureza táctil e auditiva, certamente terá
contribuído
para a significância das diferenças neste grupo de sujeitos. Como afirma Paivio
(1990), se
os cegos congénitos, no seu quotidiano, reconhecem os objetos essencialmente
através da
perceção táctil ativa, é razoável supor que as suas representações mentais
incorporem
abundantemente elementos resultantes dessa experiência háptica. Apesar de, no
conjunto
dos estímulos percetivos e dos estímulos semânticos, os videntes não denotarem
diferenças
significativas nas informações de natureza imagética presentes nas respetivas
representações mentais, analisando o conjunto de estímulos de natureza diferente
(palavras
abstratas, palavras concretas, objetos tridimensionais, figuras em relevo e
sons),
verificamos que, tal como no grupo de cegos congénitos, as representações
mentais
evocadas por objetos tridimensionais apresentam valores significativamente mais
elevados
de informações de natureza imagética, comparativamente às representações mentais
evocadas por palavras abstratas. Este facto vai, também, de encontro às ideias
vinculadas à
Teoria do Processamento Dual (Paivio, 1971, 1990), segundo as quais as palavras
abstratas
estão associadas a escassas conexões funcionais com o SRI, enquanto os objetos
tridimensionais, pela riqueza de elementos percetivos que podem encerrar e por
convidarem à exploração táctil ativa, permitem mais conexões funcionais com este
sistema
de representação.
Assumindo, como Paivio (1990, 2006), que o SRV está particularmente
vocacionado para lidar com a linguagem verbal, os resultados demonstram uma
predominância das informações de natureza verbal nas representações mentais
evocadas
por estímulos semânticos, em comparação com as evocadas por estímulos
percetivos, tanto
no grupo de cegos congénitos como no de videntes. No entanto, em nenhum destes
grupos
as diferenças são significativas, o que poderá indicar, por um lado, o
envolvimento em
mais larga escala e a vocação do SRV para lidar com estímulos semânticos, por
outro lado,
a interligação do SRV com o SRI, nomeadamente como forma de atribuir
significados às
informações de natureza imagética e de estabelecer interligações de ideias.
Ainda em
relação às informações de natureza verbal e no caso concreto dos sujeitos
videntes,
verificamos que as representações mentais evocadas por palavras concretas
apresentam
valores significativamente mais elevados, comparativamente às representações
mentais
evocadas por figuras em relevo. Dada a pouca familiaridade dos videntes com a
perceção
táctil de figuras em relevo e consequente representação mental das respetivas
informações,
assim como a simplicidade das próprias figuras em relevo, os sujeitos
centraram-se, quase
exclusivamente, na descrição das imagens mentais das informações tácteis que
haviam
coletado, não procurando atribuir significados a essas informações, nem
estabelecer
interligações de ideias. Estes resultados parecem salientar a importância de
fazer
acompanhar as explorações percetivas, sempre que possível, de descrições
verbais, com
referências a outras experiências e conhecimentos que a criança tenha já
desenvolvido,
tanto no caso dos cegos congénitos como no dos videntes.
Atendendo à literatura relevante na área das emoções e dos sentimentos (Damásio,
2003a, 2003b, 2004, 2010; Fernandes, 2004, 2006; Fernandes e Pinho, 2007;
Spitzer,
2007), sentimos a necessidade e considerámos adequada a introdução de uma
categoria de
análise que denominámos informações de natureza sentimental, informações essas
que, no
fundo, simbolizam um sistema de representação autónomo além dos já referidos SRI
e
SRV, mas em estreita ligação com eles. Este sistema de representação é o
responsável pelo
processamento das informações emocionais, as quais se expressam e representam
mentalmente na forma de sentimentos. Lembremos que, para que o cérebro possa
apreender imagens, sons, odores, sabores e palavras, assim como para que possa
recordálos
mais tarde, é necessário que no momento da apreensão exista suficiente emoção
(Damásio, 2010). Interpretando estritamente esta ideia de António Damásio, a
qual é
partilhada por outros autores (Fernandes, 2004; Spitzer, 2007), só poderemos
considerar a
existência de um SRI e de um SRV, se simultaneamente considerarmos a existência
de um
SRS (sistema 41 de representação sentimental). Centrando a nossa atenção nos
dados
propriamente ditos, verificamos que as representações mentais evocadas por
estímulos
semânticos tendem a incluir maior quantidade de informações de natureza
sentimental,
comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos percetivos,
tanto em
cegos congénitos, como em videntes. No entanto, no grupo de cegos congénitos as
diferenças foram estatisticamente significativas. Como defendemos no ponto
anterior, a
utilização de estímulos verbais (palavras abstratas e palavras concretas)
revelou-se mais
eficaz na evocação de informações armazenadas na memória a longo prazo, pessoas,
lugares, objetos, acontecimentos e pensamentos, em comparação com os estímulos
percetivos que conduziram a uma maior centração em torno das respetivas
características
percecionadas e posteriormente representadas. Os resultados das investigações
têm
revelado o envolvimento essencial das emoções no processamento de informações na
memória a longo prazo, envolvimento esse menos notório no processamento de
objetos e
sons percecionados pouco tempo antes e cujas informações representacionais são
processadas, essencialmente, nesta fase, ainda ao nível da memória de trabalho.
Assim,
havendo nas representações mentais evocadas por estímulos semânticos, maior
disponibilidade de informações recuperadas da memória a longo prazo
42, é
compreensível
uma maior abundância de informações de natureza sentimental, geralmente as
mesmas
emoções e respetivos sentimentos presentes aquando da apreensão dessas
informações e
que, pensando em termos de ZDC’s, a ativação de determinadas ZDC’s
correspondentes a
informações imagéticas ou verbais, faz disparar as ZDC’s correspondentes aos
sentimentos
relacionados e apreendidos em simultâneo com essas informações. Compreendem-se
assim
as abundantes referências a acontecimentos reais vivenciados pelos sujeitos, nas
representações mentais evocadas por estímulos semânticos, em oposição à sua
escassez nas
representações mentais evocadas por objetos tridimensionais e total ausência nas
evocadas
nas figuras em relevo. Como defende Cury (2006), as experiências vividas
envolvendo
mais emoção, sejam prazer ou sofrimento, tranquilidade ou medo, são memorizadas
de
forma privilegiada, pelo que “recordamos facilmente sobretudo os momentos mais
marcantes das nossas vidas” (p. 109). A respeito das informações de natureza
sentimental
verificamos, no grupo de cegos congénitos, que as representações mentais
evocadas por
palavras abstratas apresentam valores significativamente mais elevados,
comparativamente
às representações mentais evocadas por figuras em relevo. Mais uma vez, a
centração
quase exclusiva na descrição das imagens mentais das informações tácteis que
haviam
recolhido das figuras em relevo, não se abrindo a interligações com informações
guardadas
na memória a longo prazo, ajuda a explicar a escassez de informações de natureza
sentimental, nas representações evocadas por figuras em relevo. A ser assim, é
lícito
questionar por que razão, tais resultados e diferenças não se verificaram no
grupo de
videntes, nomeadamente a ausência de informações de natureza sentimental nas
representações mentais evocadas por figuras em relevo. A análise da enunciação
permitiunos
verificar que, a maioria das informações sentimentais incorporadas pelos
videntes
nestas representações, eram de dúvida, dificuldade e hesitação, dada a sua pouca
familiaridade com esta forma de representação.
Comparando os resultados obtidos pelo grupo de cegos congénitos com os obtidos
pelo grupo de videntes, não encontrámos qualquer diferença significativa na
natureza das
informações presentes nas respetivas representações mentais. São vários os
fatores que
poderão ter contribuído para este facto. Desde logo, as imagens mentais de
natureza visual
guardadas na memória dos videntes, não terão influenciado as representações
mentais dos
mesmos, no sentido de serem significativamente mais ricas em informações de
natureza
imagética, em relação aos videntes. No caso das representações mentais evocadas
por
estímulos percetivos, é compreensível a não influência das memórias visuais dos
videntes,
uma vez que estas representações se centraram, maioritariamente, nas imagens
mentais do
que havia sido percecionado momentos antes, ou seja, foram aqueles objetos,
aquelas
figuras em relevo e aqueles sons, foram as suas características que povoaram as
respetivas
representações mentais. Por outras palavras, foi aquele estímulo em forma de
esfera que os
sujeitos representaram, o seu material, a sua dureza, a sua textura e as suas
irregularidades
e, não tanto, outras esferas que, certamente, os sujeitos conheciam. No caso das
representações mentais evocadas por estímulos semânticos, ambos os grupos de
sujeitos
evocaram informações tanto de natureza imagética, como verbal e sentimental, de
acordo
com as suas vivências e memórias que, não obstante a falta de visão dos cegos
congénitos,
se revelaram plenas de riqueza e complexidade. Não queremos, nem podemos afirmar
que
as memórias visuais dos videntes não assomaram às suas mentes na (re)construção
das
várias representações mentais, apenas podemos afirmar que, não obstante a sua
existência e
possível evocação pelos videntes, as diferenças no conhecimento do mundo físico
entre
cegos congénitos e videntes, a existirem poderão ser mais na forma de conhecer e
recolher
informações, que no conhecimento propriamente dito, na sua natureza e no seu
processamento. Havíamos verificado no ponto anterior que estas memórias visuais,
também não terão influenciado a riqueza e a complexidade das representações
mentais. Por
outro lado, podemos afirmar que os cegos congénitos não recorrem às informações
de
natureza verbal com mais frequência que os videntes, ou seja, o conhecimento do
mundo
físico por parte dos cegos congénitos não é uma mera abstração verbal daquilo
que
ouviram ou leram mas inclui, de forma interrelacionada, conteúdos de natureza
percetiva e
sentimental. Podemos assim afirmar que, não obstante o conteúdo explícito das
representações mentais variar de sujeito para sujeito e, consequentemente, entre
cegos
congénitos e videntes, quando esse conteúdo é classificado em função de
categorias
abstratas e gerais, as semelhanças sobrepõem-se às diferenças, pelo que os
processos
cerebrais e cognitivos em particular, utilizados por cegos congénitos e videntes
na
(re)construção das respetivas representações mentais, se equivalem.
2. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR
As representações acerca da integração social dos alunos cegos congénitos no
EBER foram estudadas recorrendo a um questionário sociométrico aplicado às
turmas
frequentadas pelos sujeitos e a entrevistas individuais de carácter não
estruturado. Os
resultados sociométricos indicam-nos que a maioria dos sujeitos cegos congénitos
se
encontra em situação de isolamento (D1, E1 e G1) ou próximos da mesma (C1 e F1).
Apenas H1 se pode considerar como popular na respetiva turma. Os sujeitos E1 e
G1 não
receberam qualquer preferência dos seus pares videntes. As preferências
recebidas pelos
restantes cegos congénitos tiveram origem em videntes com um estatuto social
equivalente
ou inferior. Todos os cegos congénitos partilhavam o respetivo estatuto social
com outros
alunos videntes, ou seja, nas respetivas turmas não eram os únicos isolados, os
únicos
populares ou os únicos sem significância estatística. Por outro lado, comparando
estatisticamente o número de preferências recebidas pelos cegos congénitos com
as
recebidas pelos respetivos pares videntes, as diferenças não são significativas.
Não
obstante a “atipicalidade” da cegueira, pela estranheza que impressiona nos
videntes, poder
favorecer a exclusão (Bastin, 1980), não é lícito atribuir à cegueira congénita
responsabilidades exclusivas pelo estatuto social dos seus portadores, o que vai
de
encontro às ideias de Kirk e Gallagher (2002), segundo os quais a cegueira, em
si mesma,
não sentencia problemas sociais inevitáveis. Como corolário, não podemos deixar
de
salientar que, ao pensarmos, definirmos e implementarmos uma escola integrada,
esse
pensamento, essa definição e essa prática devem incluir, necessariamente, todos
os alunos,
com e sem NEE, uma vez que, como evidenciam os nossos resultados, o isolamento
social
em contexto escolar não é um exclusivo dos alunos ditos com NEE.
Refletindo sobre as preferências emitidas, verificamos que os videntes emitiram
significativamente mais preferências que os respetivos pares cegos congénitos.
Este é o
único indicador sociométrico onde se verificaram diferenças significativas entre
cegos
congénitos e videntes. Tal facto poderá estar relacionado com alguma
passividade, não
raras vezes identificada nas crianças cegas (Kirk e Gallagher, 2002),
passividade essa, que
muitas vezes se inicia logo na primeira infância na relação com a mãe, como
demonstrou
Sousa (2003), onde as crianças cegas tendem a ser passivas, não solicitando
atenção. Na
mesma linha, outros estudos têm evidenciado que as crianças cegas tendem a
encetar
menos iniciativas para iniciar e conduzir uma interação social, aproximadamente
metade
em relação aos seus pares videntes (Díaz-Aguado et al., 1995). Também não
podemos
excluir, a existência de critérios mais restritos na definição de amizade, por
parte dos
sujeitos cegos congénitos. Nas entrevistas realizadas aos mesmos, verificou-se
que estes
valorizam nos videntes as relação de ajuda que estes lhes prestam, relações
essas que C1
define como simpatia. Nos seus trabalhos, Díaz-Aguado et al. (1995) encontraram
resultados semelhantes, com as crianças e os adolescentes cegos a justificarem
as suas
preferências em relação aos videntes, com base na ajuda que podem obter deles.
As
preferências dos cegos congénitos isolados (D1, E1, G1) foram emitidas, apenas,
em
relação a videntes de estatuto social superior, tendência comum segundo Bastin
(1980),
para quem os alunos excluídos ou isolados têm “tendência para emitir
preferências não
realistas, escolhendo indivíduos que ocupam pontos muito altos na escala
sociométrica e
que não o escolherão” 43 (p. 166). Não podemos olvidar que as respostas dos
sujeitos são
representações da sua integração social escolar e não a sua integração social
escolar real.
As preferências dos cegos congénitos não significativos (C1 e F1) e populares
(H1), foram
emitidas no seio do grupo de videntes com estatuto social semelhante e, no caso
de H1,
também em relação ao grupo de não significativos. Estas podem considerar-se
preferências
mais próximas da realidade, porque tendencialmente baseadas nas experiências
sociais
autênticas (Bastin, 1980).
As preferências recíprocas constituem-se como um indicador sociométrico
importante para avaliar a frequência e, sobretudo, a robustez das relações
sociais
estabelecidas por determinado elemento no seio de um grupo. Na nossa amostra,
verificamos que os sujeitos isolados não manifestaram qualquer preferência
recíproca, o
que não deixa de reforçar a sua situação de isolamento e que resulta, em certa
medida, do
facto dos isolados tenderem a emitir preferências em relação a estatutos sociais
superiores
e destes tenderem a não emitir em relação aos estatutos sociais inferiores. Não
obstante,
não se verificaram diferenças significativas nas preferências recíprocas, entre
o grupo de
cegos congénitos e o grupo de videntes que emparelha com o primeiro.
Olhando para o conjunto das turmas frequentadas pelos sujeitos cegos congénitos,
evidencia-se um padrão homogéneo na distribuição dos alunos populares e dos
alunos
isolados. Assim, as turmas de C1 e de G1 apresentam dois alunos populares e dois
isolados, as turmas de E1 e F1 apresentam dois alunos populares e três isolados,
a turma de
H1 apresenta quatro alunos populares e quatro isolados, enquanto a turma de D1
apresenta
dois isolados e nenhum popular.
As entrevistas realizadas junto dos pares videntes, evidenciaram atenção e
vontade
de estes conhecerem melhor a cegueira e a condição de ser cego, valorizando
algumas das
capacidades manifestadas pelos seus pares cegos congénitos, como as competências
mnemónicas. Esta vontade manifestada, ainda que implicitamente, pelos videntes
deve ser
aproveitada e trabalhada, assim como se deve promover nos cegos congénitos um
melhor
conhecimento da vidência e da condição de ser vidente. Este conhecimento cruzado
poderá
ajudar a ultrapassar algumas das situações relatadas pelos sujeitos que, em
nosso entender,
se devem a um desconhecimento ou a um conhecimento incompleto e distorcido dos
videntes em relação aos cegos e vice-versa. Estamos a refletir, nomeadamente,
acontecimentos relatados por C1, nos quais os colegas de turma videntes pareciam
não
compreender a utilidade e a necessidade de C1 utilizar a máquina Braille nas
aulas,
querendo impor-lhe como método alternativo o computador. Por outro lado, a
rigidez de
C1 ao recusar-se a utilizar o computador, ainda que pontualmente e em
determinadas
situações. Outra situação foi-nos relatada a propósito de D1, ocorrendo
essencialmente nos
corredores de acesso às salas de aula, onde os videntes exibiam comportamentos
pouco
adequados esperando, por exemplo, que D1 se desviasse para que pudessem passar,
esquecendo que D1 não poderia notar a sua presença, se estes não a fizessem
notar de
forma adequada. Por outro lado, as reações de agressividade de D1 em relação a
estes
acontecimentos, não funcionam, certamente, como facilitadores do estabelecimento
de
relações sociais positivas. Através da promoção do conhecimento mútuo, estaremos
a ir de
encontro às ideias de Díaz-Aguado e colaboradores (1995), para quem o
desenvolvimento
social assenta, também, em construções e (re)construções dos outros enquanto
partes
integrantes de um mesmo mundo. Os professores devem assumir um papel ativo no
fomento das relações sociais entre as crianças videntes e as cegas congénitas,
assim como
entre cegos, cultivando um ambiente de conhecimento, aceitação e valorização das
diferenças, constituindo-se como modelos para os alunos, com base na premissa
essencial
de que, atendendo à variabilidade individual que perpassa a espécie humana,
todos somos
diferentes. Neste sentido, recuperamos a recomendação de Nielson (1999),
advogando a
necessidade de os professores formarem os alunos videntes acerca da cegueira,
com o
objetivo de ajudá-los a ultrapassar quaisquer inseguranças ou conceções
incorretas. A estas
recomendações, acrescentamos a enumerada anteriormente, de também os cegos,
sobretudo os congénitos, porque nunca vivenciaram a vidência, serem formados
acerca da
vidência e da condição de ser vidente, incluindo as inseguranças e conceções
incorretas
destes em relação à cegueira.
Nas entrevistas realizadas com os sujeitos, assim como em conversas informais
com os respetivos professores, foram relatados alguns comportamentos associados
a
instabilidade emocional, nomeadamente em E1 e H1. O primeiro referiu nem sempre
lidar
bem com o facto de ser cego, sentindo-se, por vezes, triste e revoltado,
sentimentos que
tem dificuldade em partilhar, quer com os adultos próximos, quer com os seus
pares. Em
relação ao segundo, foi a sua professora de ensino regular que referiu
dificuldades em
aceitar que não poderá vivenciar determinadas situações de forma equivalente aos
videntes,
como ver televisão ou, um dia mais tarde, conduzir um automóvel ou uma moto.
Existe
evidência clínica que uma das dificuldades mais importantes dos cegos está
relacionada
com a compreensão e/ou expressão das próprias emoções crendo, muitas vezes, que
as suas
emoções são tão distintas dos restantes seres humanos, que não podem ou não
merecem ser
partilhadas (Díaz-Aguado et al., 1995). Estamos em crer que a escassez de
contactos com
outras crianças cegas ajuda a explicar estes episódios de instabilidade, uma vez
que o ser
humano necessita relacionar-se com múltiplos grupos de referência. Vários
autores (Díaz-Aguado et al., 1995; Garialdi et al., 1992) salientam a importância da criança
cega se
relacionar, simultaneamente, com um grupo dito macro, composto por crianças sem
NEE e
um grupo micro, preferencialmente inserido no anterior e composto por crianças
com NEE
similares ou não.
Cruzando os dados das entrevistas efetuadas aos diferentes sujeitos pertencentes
a
um mesmo contexto, cegos congénitos, videntes e professores, foi possível
identificar a
ocorrência de comportamentos agressivos, de natureza essencialmente verbal, em
D1, E1 e
G1, dirigidos aos seus pares videntes. Estes são os cegos congénitos que a
análise
sociométrica revelou estarem isolados nas respetivas turmas. A sua agressividade
não será
o único fator explicativo do isolamento mas, certamente, presta o seu
contributo, tal como
no caso de Ralph, uma criança cega de 11 anos estudada por Kirk e Gallagher
(2002). No
caso específico de G1, esta agressividade parece estar associada a uma
competitividade
académica excessiva em relação aos seus pares. A competitividade excessiva é
apontada
por Arbol e Arbol e Arangurem (1995) como fator promotor da marginalização.
Nas suas intervenções, os cegos congénitos valorizaram as relações de ajuda
prestadas pelos seus pares videntes, relações essas que parecem acontecer
essencialmente
em contextos formais, emergindo algumas dificuldades relacionais em contextos
menos
estruturados e de natureza lúdica. Estes resultados vão de encontro aos
relatados por outros
investigadores, nomeadamente Díaz-Aguado et al. (1995). Segundo esta equipa de
investigadores, entre os 7 e os 11 anos de idade, as principais dificuldades
sentidas pelas
crianças cegas nas suas interações com os videntes aconteceram nos momentos
lúdicos,
como as brincadeiras e os jogos, evidenciando preferência pelos videntes para
trabalhar e
pelos cegos para brincar ou jogar, justificando que preferem trabalhar com
videntes com
base na ajuda que podem obter deles, nomeadamente explicações verbais acerca dos
fenómenos e dos objetos.
3. RELAÇÕES ENTRE AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE
FÍSICA E AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL
ESCOLAR
Atendendo aos resultados respeitantes às relações da integração social no EBER,
nas suas várias dimensões (preferências recebidas, valores relativos tendo em
consideração
as ordens das preferências recebidas, preferências recíprocas e preferências
emitidas), com
as características de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) valor total, das
representações
mentais da realidade física, destacam-se os seguintes resultados:
-
o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está positivamente
relacionado, no limiar de significância (p=0,059), com a complexidade das
representações mentais evocadas por (i) estímulos percetivos, (ii) figuras em
relevo
e (iii) sons;
-
o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversamente
relacionada, no limiar de significância (p=0,059), com as diferenças entre a
riqueza
das representações mentais dos cegos congénitos e a dos videntes, quando os
estímulos evocadores são objetos tridimensionais e o total dos estímulos
(semânticos + percetivos);
-
o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversamente
relacionado, no limiar de significância (p=0,059), com as diferenças entre a
complexidade das representações mentais dos cegos congénitos e a dos videntes,
quando os estímulos evocadores são de natureza percetiva;
-
o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversamente
relacionada, no limiar de significância (p=0,059), com as diferenças entre o
total
das representações mentais dos cegos congénitos e o dos videntes, quando os
estímulos evocadores são objetos tridimensionais;
-
o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está significativa e
inversamente relacionada com as diferenças entre (i) a riqueza e (ii) o total
das
representações mentais de cegos congénitos e videntes, considerando a totalidade
dos estímulos (semânticos + percetivos);
-
ausência de relações significativas ou no limiar de significância, entre a
integração
social no EBER dos videntes e as suas representações mentais da realidade
física.
No ponto anterior, o número de preferências emitidas revelou-se como o único
indicador sociométrico com diferenças significativas entre os cegos congénitos e
os
videntes, com estes a emitirem maior número de preferências. Também as relações
entre as
representações mentais da realidade física e as representações mentais da
realidade social
escolar surgem particular e unicamente afetadas por este indicador. Desde logo e
com
significância estatística, nas representações da realidade física resultantes da
totalidade dos
estímulos (semânticos + percetivos), as diferenças entre (i) a complexidade e
(ii) o valor
total entre cegos congénitos e videntes é tanto menor, quanto maior o número de
preferências emitidas pelos cegos congénitos. Existem outras relações com este
indicador
social, no limiar de significância (p=0,059), como enumerado anteriormente. No
nosso
entender, as razões que assistem a esta influência das preferências emitidas
pelos cegos
congénitos, na (re)construção da realidade física, poderão estar relacionadas
com uma
menor tendência para a passividade, por parte dos sujeitos que emitem maior
número de
preferências. Efetivamente, os contactos sociais entre crianças videntes e cegas
congénitas,
só poderá ocorrer se existir disponibilidade de parte a parte. Por outras
palavras, pouco
adiantará a alguém receber muitas preferências, se esse alguém não se sentir
motivado a
interrelacionar-se, nomeadamente com aqueles que o escolheram, sendo assim
levado a
emitir poucas preferências. Tendencialmente, os cegos congénitos que emitiram
mais
frequências foram, também, os que foram mais escolhidos e com maior
reciprocidade,
reunindo assim condições necessárias ao estabelecimento de relações sociais
autênticas. Só
assim estarão reunidas as condições previstas por Paivio (1990), segundo as
quais,
experiências comuns a um grupo de pessoas, podem influenciar a construção de
representações partilhadas entre as mesmas, no caso em análise, nomeadamente
através de
explicações verbais proporcionadas pelos videntes acerca de fenómenos e de
objetos
(Díaz-Aguado et al., 1995; Gil, 2000; Horton, 2000; Kirk e Gallagher, 2002;
Nunes e
Almeida, 2005). Atendendo ao conjunto de resultados, são as representações
mentais
evocadas por estímulos percetivos, as que parecem ser mais afetadas pela
integração social
escolar, sobretudo na dimensão complexidade. Assim, estamos em crer, que as
informações sobre a realidade física que a integração social disponibiliza aos
sujeitos cegos
congénitos, são integradas nas representações mentais (re)construídas pelos
mesmos,
resultando mais complexas, no sentido que permitirão o estabelecimento de um
maior
número de interrelações entre os conteúdos das mesmas.
Do exposto anteriormente, não deve resultar uma relação de causa efeito entre a
integração social escolar dos cegos congénitos e as suas representações mentais
da
realidade física. A integração social escolar, nomeadamente o número de
preferências
emitidas, surge apenas como mais um fator explicativo, entre outros. Esses
outros incluem,
desde logo, outros contextos sociais vivenciados pelo sujeito (passados e
contemporâneos),
como sejam a família, o grupo de amigos extra escola e a frequência de outras
atividades
(música, informática, desporto, dança, etc.). Além dos vários contextos sociais,
influirão
também fatores genéticos (Ninio, 1991), assim como as experiências individuais
de cada
sujeito, mesmo no período pré natal (Vauclair, 2008), com particular relevância
para a
ocorrência e qualidade da estimulação precoce (Dias, 1995; Figueira, 1996; Gil,
2000;
Horton, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Nunes, 2004; Sousa, 2003; Zafra, 1991). No
caso
dos sujeitos videntes, a integração social escolar parece não ter exercido
influência nas
respetivas representações mentais da realidade física, pelo que, possivelmente,
os
contextos sociais extra escola, passados e contemporâneos, os fatores genéticos
e as
experiências pessoais, terão exercido as suas influências de forma mais marcante
neste
grupo de sujeitos.
Pensando novamente no caso dos sujeitos cegos congénitos, as relações
identificadas entre a integração social escolar e as representações mentais da
realidade
física podem assumir uma natureza bidirecional, portanto de duplo sentido.
Refletimos
anteriormente sobre as possíveis influências da integração social escolar nas
representações
mentais da realidade física. No entanto, entendemos que a ocorrência de menores
diferenças entre o total das representações mentais evocadas pelos cegos
congénitos e o
total das representações mentais evocadas pelos videntes poderá, reforçar a
integração
social dos cegos congénitos no grupo de videntes, uma vez que, poderá facilitar
a
aproximação e a partilha de representações levando os cegos congénitos a gerir
positivamente algumas das suas inseguranças, emitindo um maior número de
preferências
em relação aos seus pares videntes. Assim, podemos estar na presença de um
circuito
retroalimentado, cujos componentes se reforçam mutuamente, com níveis melhores
de
integração social a aproximarem as representações mentais dos cegos congénitos
com as
dos videntes, resultando desta aproximação melhores níveis de integração social.
Como complemento às interpretações apresentadas no capítulo anterior anterior,
apresentamos as nossas conclusões, procurando ser concisos, mas completos e
coerentes
com o trabalho desenvolvido. É nossa convicção que uma das melhores formas de
obter
essa concisão, essa completude e essa coerência, será atendendo às hipóteses
colocadas e
as quais procurámos testar ao longo deste trabalho. Assim, começamos por
apresentar as
hipóteses consideradas plausíveis com base nos nossos dados e de seguida, as
refutadas.
Apresentaremos também as implicações.
Hipóteses aceites
Com base nos resultados do nosso estudo, consideramos aceites as seguintes
hipóteses:
H1.: As crianças cegas congénitas a frequentar o EBER identificam igualmente
estímulos
evocadores de natureza percetiva diferente.
H4.: As crianças cegas congénitas e as crianças videntes, quando expostas aos
mesmos
estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem, o EBER, identificam igualmente
estímulos de natureza percetiva diferente.
H5.: Não existem diferenças significativas nas representações mentais (riqueza,
complexidade e total) construídas (i) pelas crianças cegas congénitas e (ii)
pelas crianças
videntes, quando expostas aos mesmos estímulos e no mesmo contexto de
aprendizagem, o
EBER.
H6.: Não existem diferenças significativas na natureza da informação (imagética,
sentimental e verbal), presente nos relatos verbais das representações mentais
construídas
(i) pelas crianças cegas congénitas e (ii) pelas crianças videntes, quando
expostas aos
mesmos estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem, o EBER.
H 9.: Não existem relações significativas entre a integração social das crianças
cegas
congénitas em turmas do EBER e as suas representações mentais (riqueza,
complexidade e
total).
Hipóteses refutadas
Com base nos resultados do nosso estudo, consideramos refutadas as seguintes
hipóteses:
H2.: Não existem diferenças significativas nas representações mentais (riqueza,
complexidade e total) construídas pelas crianças cegas congénitas a frequentar o
EBER,
em função da categoria dos estímulos evocadores.
As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas pelo conjunto de
estímulos semânticos (palavras abstratas e palavras concretas), obtiveram
valores
significativamente mais elevados, na riqueza, na complexidade e no valor total,
em relação
às representações mentais evocadas pelo conjunto de estímulos percetivos
(objetos
tridimensionais, figuras em relevo e sons).
H3.: Não existem diferenças significativas na natureza da informação (imagética,
sentimental e verbal), presente nos relatos verbais das representações mentais
construídas
pelas crianças cegas congénitas a frequentar o EBER, em função da categoria dos
estímulos.
As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas pelo conjunto de
estímulos percetivos, obtiveram valores significativamente mais elevados de
informações
de natureza imagética, em relação às representações mentais evocadas pelo
conjunto de
estímulos semânticos.
As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas pelo conjunto de
estímulos semânticos, obtiveram valores significativamente mais elevados de
informações
de natureza sentimental, em relação às representações mentais evocadas pelo
conjunto de
estímulos percetivos.
As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas por objetos
tridimensionais, obtiveram valores significativamente mais elevados de
informações de
natureza imagética, em relação às representações mentais evocadas por palavras
abstratas.
As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas por palavras abstratas,
obtiveram valores significativamente mais elevados de informações de natureza
sentimental, em relação às representações mentais evocadas por figuras em
relevo.
H7.: O número de preferências recebidas pelas crianças cegas congénitas a
frequentar o
EBER, emitidas pelos seus pares de turma videntes, não é estatisticamente
significativo.
Três dos sujeitos cegos congénitos (D1, E1 e G1) receberam um número de
preferências significativamente baixo, considerando-se isolados. O sujeito H1
recebeu um
número de preferências significativamente elevado, considerando-se popular.
Apenas C1 e
F1 não obtiveram valores significativos no número de preferências recebidas.
H8.: Não existem diferenças significativas entre a integração social das
crianças cegas
congénitas em turmas do EBER, e a integração social na mesma turma dos seus
pares
videntes com características desenvolvimentais equivalentes.
Os sujeitos videntes emitiram um número significativamente superior de
preferências, em relação aos seus pares cegos congénitos a frequentar a mesma
turma.
H10.: Não existem relações entre a integração social das crianças cegas
congénitas em
turmas do EBER, e as diferenças das suas representações mentais (riqueza,
complexidade e
total) em relação às representações mentais construídas pelas crianças videntes,
a partir dos
mesmos estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem.
O número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversa e
significativamente relacionado com as diferenças na complexidade e no total das
suas
representações mentais, evocadas pelo conjunto dos estímulos (semânticos +
percetivos),
em relação à complexidade e ao total das representações mentais evocadas pelos
videntes,
a partir do mesmo conjunto de estímulos. Assim, quanto maior o número de
preferências
emitidas pelos cegos congénitos no seio da sua turma do EBER, mais próximas se
encontram as suas representações mentais da realidade física das dos videntes,
em termos
de complexidade e de valor total, considerando a totalidade dos estímulos. Por
outro lado,
maior proximidade entre as representações mentais da realidade física dos cegos
congénitos e dos videntes, em termos de complexidade e valor total, considerando
a
totalidade dos estímulos, melhora a integração social escolar dos cegos
congénitos, por via
de um maior número de preferências emitidas.
Implicações
Dos antigos gregos, nomeadamente Platão, Aristóteles e Simónides (ponto 1 do
Capítulo III), chegaram aos dias de hoje documentos que relatam as suas
preocupações e
os seus trabalhos, em torno das relações entre as imagens mentais e os processos
mnemónicos. Estas relações têm merecido e continuam a merecer a atenção dos
investigadores. Estamos convictos de que os nossos resultados e as
interpretações que nos
mereceram, podem contribuir para um melhor entendimento destas relações, em
particular
no caso dos sujeitos cegos congénitos a frequentar o EBER. Assim, a utilização
de
estímulos percetivos, nomeadamente objetos tridimensionais, figuras em relevo e
sons,
poderão constituir-se como ferramentas potenciadoras das competências
mnemónicas,
assim como da compreensão, uma vez que, como demonstram os relatos verbais das
representações mentais evocadas por estímulos percetivos, (i) estas
representações tendem
a centrar-se nos próprios estímulos evocadores, facilitando dessa forma a
identificação e
seleção das informações mais relevantes as quais, após processamento na memória
de
curto prazo, poderão transitar para a memória de longo prazo, (ii) assim como
tendem a
incluir maior número de informações de natureza imagética. Com o intuito de
promover
esta transição, ganha relevância a utilização combinada de estímulos percetivos
com
estímulos semânticos, nomeadamente de natureza concreta, contribuindo para
estabelecer
relações (i) entre diferentes imagens mentais percetivas, (ii) entre
representações mentais
concretas e abstratas, (iii) entre as novas representações mentais e as
anteriormente
construídas, (iv) entre as novas representações mentais e as suas possíveis
aplicações. Por
outras palavras, a utilização de estímulos percetivos em combinação com
estímulos
semânticos, poderá conduzir à (re)construção de representações mentais mais
complexas e
ricas, mas com significado para o sujeito que (re)constrói e aprende. Por outro
lado, os
estímulos semânticos, ao estarem associados a representações mentais com maior
abundância de informações de natureza sentimental poderão, também por esta via,
contribuir para a retenção, pois como têm demonstrado diversas investigações, a
retenção
de informações, sobretudo ao nível da memória de longo prazo, é enormemente
facilitada
quando estas se constituem como estímulos emocionalmente competentes, ou seja,
capazes
de evocar e fazer sentir emoções no sujeito que representa. Pensando na futura
evocação
destas representações mentais, ela será também facilitada pela presença destas
informações
emocionalmente competentes, pelo que a utilização adequada de estímulos
semânticos nos
parece essencial na evocação de representações mentais, como demonstram os
valores
mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) total, em relação às
representações
mentais evocadas por estímulos percetivos.
Do exposto anteriormente, não nos parece uma abordagem adequada afirmar numa
relação livre, como por vezes surge em alguns trabalhos, que os estímulos
percetivos são
melhores, ou piores, auxiliares da retenção e/ou da evocação, em relação aos
estímulos
semânticos. Em primeiro lugar, importa salientar a importância de uma combinação
criteriosa de estímulos percetivos e de estímulos semânticos, enquanto
educadores e/ou
sujeitos de aprendizagem, na (re)construção de uma determinada representação
mental.
Como nos lembra Batista (2005), uma criança, cega ou não, não constrói um
conceito
válido de gato, simplesmente por ver ou tocar num gato, mas pela integração
proativa de
dados sensoriais de diferentes naturezas, com explicações verbais que lhe
permitam
identificar, descrever, relacionar, compreender, analisar, sintetizar e avaliar
conhecimentos
relacionados com o conceito nuclear, neste caso o de gato.
Por outro lado, importa ponderar se o objetivo principal é a retenção ou a
evocação.
Estamos em crer que a retenção deve assentar nuclearmente em estímulos
percetivos,
criteriosamente combinados com estímulos semânticos emocionalmente competentes,
enquanto a evocação deverá envolver nuclearmente estímulos semânticos, de
preferência
emocionalmente competentes, apoiados por estímulos percetivos. Devemos salientar
que
estas implicações se aplicam ao tipo de representação que estudámos,
representações
(re)construídas livremente pelos sujeitos face a determinados estímulos. Estão
assim
reunidas as condições para que as mesmas se constituam plenas de significado
para o
sujeito que representa. Trata-se de uma abordagem diferente da utilizada na
maior parte
das investigações acerca da retenção e da evocação, nas quais se solicita aos
sujeitos que
memorizem uma lista de palavras ou objetos para posterior evocação. Na maioria
das
situações são listas sem qualquer significado interno, nem concetualmente, nem
para o
sujeito. Tentaremos exemplificar, operacionalizando hipoteticamente o que
acabámos de
afirmar. Um professor de Ciências pretende conduzir os seus alunos cegos
congénitos na
(re)construção das respetivas representações mentais do corpo humano. Para tal
convida-os
a explorar tatilmente um modelo tridimensional do tronco humano, com acesso aos
órgãos
internos. Se não se completarem estas explorações táteis com outras imagens
mentais,
como a localização dos órgãos no próprio corpo, assim como com explicações
verbais,
nomeadamente acerca das características funcionais, as representações das
crianças
resumir-se-ão às imagens mentais das suas perceções táteis, as quais poderão
fazer mais ou
menos sentido nas suas mentes, conforme os seus conhecimentos anteriores e as
relações
concetuais que foram capazes de estabelecer por si mesmos. Não obstante, estas
representações conterão elementos mais próximos da realidade, do que se a sua
(re)construção estivesse assente, exclusivamente, em relatos verbais do
professor, sem
qualquer referencial percetivo. De forma adequada a cada situação, o professor
poderia
completar a exploração do modelo tridimensional recorrendo a estímulos
semânticos,
explicações verbais com níveis diferenciados de riqueza e complexidade.
Centrando-nos
no coração, poderia apenas referir a sua designação, como poderia acrescentar
(i) a sua cor,
(ii) o seu tamanho e (iii) a sua forma, como podia ainda acrescentar as suas
funções e suas
inter-relações com outros órgãos, o papel metafórico do coração nas emoções e
consequentemente na poesia, os cuidados de saúde, etc. No futuro, ao pretender
evocar
nestas crianças as representações mentais agora construídas, ele poderia colocar
uma de
duas perguntas, entre outras possíveis. Duas perguntas aparentemente iguais, mas
com
resultados diferentes. Podia perguntar, após localizar os sujeitos cegos, Que
órgão é este?
Fala-me dele!, ou podia perguntar Onde se situa o coração? Fala-me dele! Na
segunda
questão, a utilização do estímulo semântico coração, poderia conduzir á evocação
de
representações mentais mais ricas e complexas, porque com maior carga de
informações de
natureza emocional. Estas ideias não deixam de merecer aprofundamento e teste em
futuras investigações. Não obstante, atendendo a que, quando analisadas em
separado, as
representações mentais dos cegos congénitos e dos videntes, evidenciaram padrões
semelhantes e, quando comparadas, não evidenciaram diferenças significativas,
estamos
em crer que as implicações apontadas ao caso dos cegos congénitos, se podem
estender aos
videntes, com as adaptações necessárias, nomeadamente o recurso à visão, aos
estímulos
visuais e às imagens mentais de natureza visual.
No que respeita às representações mentais da realidade social no EBER,
parece-nos
pertinente um trabalho de aproximação entre a população de cegos congénitos e a
de
videntes. Falamos de aproximação e não de aceitação, pois esta parece existir,
de parte a
parte, como demonstra, nomeadamente, o interesse dos videntes em conhecerem mais
acerca da cegueira e da condição de ser cego. No entanto, a aproximação merece
ser
trabalhada, não só dos videntes em relação aos cegos, como destes em relação aos
videntes, como demonstra o número de preferências emitidas pelos cegos
congénitos em
relação aos pares videntes, que é significativamente inferior ao número de
preferências
emitidas pelos videntes em direção ao mesmo grupo de sujeitos. Assim,
recuperamos as
recomendações de Martín e Bueno (1997), as quais sugerem que façamos erguer
pontes
entre os alunos cegos e os seus pares videntes. Se necessário e até que as
mesmas se
consolidem, que sejamos parte dos pilares dessas pontes, fomentando a procura e
a partilha
de situações lúdicas e prazerosas para todos, sendo fundamental que todos possam
ter uma
participação ativa, ao mesmo tempo que zelamos pela dispersão, germinação e
cuidado das
sementes para o estabelecimento de um ambiente social acolhedor de todos, com
atitudes
humanistas de valorização pessoal. Por outro lado, as crianças cegas poderiam
tirar
proveito, nomeadamente para o seu desenvolvimento emocional e social, de
contactos
alargados com outros sujeitos cegos, contacto esse muito escasso nos casos
estudados. O
contato com outras crianças cegas poderia contribuir para o autoconhecimento,
nomeadamente porque se estariam a debater com questões semelhantes e enfrentando
as
mesmas dúvidas, os mesmos sentimentos e as mesmas exigências de desenvolvimento,
ou
pelo menos, semelhantes.
Limitações
Uma das limitações que não podemos deixar de apontar ao nosso trabalho, prendese
com o reduzido efetivo da amostra. Ao longo do trabalho, tivemos oportunidade de
explicar as razões subjacentes a tal fato no entanto, ele não deixa de se
constituir como um
fator limitante. No nosso entender, implica limitações na validade externa dos
resultados e
das conclusões deles extraídas sendo que, com segurança, podemos apenas propor a
sua
transferência e aplicabilidade para sujeitos e contextos com características
semelhantes à
nossa amostra.
O recurso à análise lexical e sintática para medir as caraterísticas de (i)
riqueza, (ii)
complexidade e (iii) total, havia já sido experimentado, com sucesso, em outras
investigações, nomeadamente Almaraz (1997). Procurámos introduzir algumas
melhorias
neste processo, tal como explicámos nos capítulos IX e X. A principal dessas
melhorias
consistiu na análise, não apenas da palavra em si mesma, enquanto unidade de
registo, mas
também das respetivas funções na oração, funções essas que ajudaram a determinar
o
estatuto e a relação de cada unidade de registo com a variável dependente
representações
mentais, nos seus níveis de riqueza e complexidade. Cada conjunto, constituído
por uma
palavra (ou locução) e respetiva função era contabilizado apenas uma vez, numa
determinada oração. Por outras palavras, quando uma determinada palavra se
repetia, no
exercício de uma mesma função e numa mesma oração, contabilizou-se apenas uma
ocorrência. Desta forma, pensamos ter contribuído para melhorar a aplicação
deste método
de análise às representações mentais, incrementando desta forma a validade
interna do
nosso estudo. Não obstante, reconhecemos a necessidade de continuar a melhorar
este
método, seja em investigações no campo das representações mentais, seja em
investigações
com a finalidade de testar o próprio método, nomeadamente a pertinência e o
contributo de
cada uma das categorias gramaticais, nomeadamente dos advérbios, para as
caraterísticas
de riqueza e complexidade.
Sugestões
A primeira das nossas recomendações resulta de uma das limitações que apontámos
ao nosso trabalho, a reduzida dimensão do efetivo da amostra. Assim, futuros
estudos com
objetivos afins dos nossos deverão abranger um maior número de sujeitos cegos
congénitos
e respetivos pares videntes, libertando-se dos constrangimentos que colocámos
quanto ao
nível de ensino, alargando o contexto da amostra também ao Ensino Secundário e
ao
Superior. A nosso ver, as questões tratadas na nossa investigação, por um lado
as
representações mentais da realidade física por outro, a integração social
escolar dos cegos
congénitos poderão, no futuro, justificar linhas de investigação distintas,
ainda que e tal
como demonstrámos, necessariamente interrelacionadas. Nesta sequência, a
investigação
das representações mentais da realidade física em cegos congénitos poderá
avançar para
abordagens verdadeiramente experimentais, por exemplo para aprofundar e
determinar
com maior clareza, as influências dos estímulos semânticos e dos estímulos
percetivos na
(re)construção das representações mentais, nomeadamente em termos de retenção e
de
evocação. A investigação da integração social escolar poderá estudar, não só a
perspetiva
dos alunos cegos e dos seus pares videntes, mas também de outros atores
educativos, como
professores do ensino regular, professores de EE, encarregados de educação de
alunos
cegos e de videntes.
A nossa investigação procurou estudar, essencialmente, as representações mentais
associadas ao período que compreende a escolaridade básica, assim como as
influências da integração social escolar nessas mesmas representações. Tem-se
vindo a construir um
corpo crescente de evidência acerca das influências das experiências vividas nos
primeiros
anos de vida, inclusivamente no período pré natal, no desenvolvimento das
crianças
videntes. Um percurso de investigação semelhante deve ser seguido em relação aos
cegos
congénitos, procurando identificar e caracterizar as experiências mais
significativas vividas
antes da escolaridade formal, aos seis anos de idade e possíveis influências no
desenvolvimento dos cegos congénitos, nomeadamente na riqueza e complexidade das
suas representações mentais. Também poderão ser estudadas possíveis influências
destas
experiências de vida, na integração social escolar das crianças cegas
congénitas.
Um outro percurso de investigação poderia estudar as influências de variáveis
como
(i) a idade, (ii) o género e (iii) o nível de escolaridade, nas representações
mentais de
sujeitos cegos congénitos, crianças e adultos.
Numa perspetiva de natureza mais qualitativa, poderiam recolher-se histórias de
vida de sujeitos cegos congénitos e não congénitos, crianças e adultos,
masculinos e
femininos, profissionalmente ativos e não ativos, a frequentar o ensino regular
ou uma
instituição especializada. Enfim, estudar sujeitos cegos com experiências de
vida
diversificadas.
Notas
-
1
Dual Coding Approach no original.
-
2 Que implica representações mentais de diferentes naturezas: visuais,
auditivas, tácteis, olfativas, gustativas,
propriocetivas, sentimentais e simbólico-verbais.
-
3 A palavra “tio” era utilizada na aldeia onde cresci, como aliás em muitos
outros locais, como um epíteto
marcador de afinidade e não, necessariamente, de laços de consanguinidade.
-
4 Habitualmente designados “olhos” ou grelos.
-
5 Borg havia sido responsável pela criação de uma instituição equivalente em
Estocolmo.
-
6 Acuidade visual é a capacidade de perceber a figura e a forma dos objetos
(Martín e Bueno, 1997).
-
7 Campo visual é o espaço em que pode ser visto um objeto, enquanto o olhar
permanece fixo num
determinado ponto (Martín e Bueno, 1997).
-
8 Enriquecimento significa a elaboração de uma representação mental integrada, a
qual contempla o
conhecimento dos objetos, das pessoas, dos acontecimentos e, mais tarde, da
linguagem verbal, segundo
diferentes perspetivas e diferentes modalidades sensoriais (Paivio, 1990).
-
9 Ver ponto 1.1. do capítulo II.
-
10 Duas conhecidas figuras de séries de televisão infantis.
-
11 Na sequência da abordagem ao desenvolvimento cognitivo dedicamos um título ao
desenvolvimento da
linguagem.
-
12 Entende-se por assimilação um conceito de Piaget que “consiste em integrar um
objecto exterior a uma
estrutura de acção, a um esquema” (Vauclair, 2008, p. 24).
-
13 Entende-se por acomodação um conceito de Piaget que “consiste em transformar
uma estrutura de acção a
um esquema […] com vista a ajustar-se a um objecto exterior” (Vauclair, 2008, p.
24).
-
14 As expressões faciais são, de acordo com Damásio (2003, 2004, 2010) um dos
programas de ação que
permitem expressar e identificar as chamadas emoções universais (receio, fúria,
tristeza, felicidade, nojo e
surpresa). Designam-se universais porque manifestam-se e são reconhecíveis
independentemente das culturas
e com programas de ação semelhantes.
-
15 De salientar que os autores estendem esta ideia às restantes NEE.
-
16 Phantasma no singular.
-
17 O Behaviorismo defendia o estudo dos comportamentos observáveis em vez dos
processos mentais
(Vauclair, 2008).
-
18 A obra em causa intitula-se, precisamente, “A imagem mental na criança”, a
qual foi editada originalmente
em França no ano de 1966.
-
19 Natureza percetiva refere-se, neste contexto, ao conteúdo da imagem e não à
imagem propriamente dita.
-
20 Esta expressão pode traduzir-se para português por Teoria do Processamento
Dual.
-
21 Como exemplo de organização sincrónica, temos a face humana, que é
constituída por olhos, nariz, lábios e outros componentes, mas que são percebidos holisticamente como um todo.
Hierarquicamente, é ao mesmo tempo um componente do corpo humano e os seus constituintes são, também eles,
compostos por componentes mais pequenos. No caso dos olhos pela íris, pela pupila, pelo
cristalino, etc.
-
22 De acordo com os resultados publicados por Paul Kay em 2008, na revista
Procedings of the National
Academy of Sciences (Smith, 2008).
-
23 Os bebés, até ao desenvolvimento da linguagem, processam as cores
predominantemente no hemisfério
direito (Smith, 2008).
-
24 Em condições normais. Excluem-se assim estados patológicos como a afasia.
-
25 Neste sentido, estamos em crer que esta ideia se aproxima do conceito de
imagem mental que defendemos
no ponto 2 deste capítulo.
-
26 As páginas 180 a 187 de Damásio (2010) incluem esquemas figurativos que
representam quer a estrutura
quer o funcionamento das ZDC.
-
27 De acordo com Damásio (2010), Voland (1999) e Wilson (1999).
-
28 De referir que, por exemplo, a observação de uma nuvem lenticular pode
interpretar-se como sendo um
“disco voador”, se o observador acreditar que estes objetos existem e pensar que
pode efetivamente sê-lo
(Jimenez, 2002).
-
29 Eletroencefalograma, eletroculograma, eletromiograma, eletrocardiograma,
fluxo respiratório, movimento
torácico, ressonar, oximetria e pulso.
-
30 Padrões extremamente diferenciados de interconetividade e uma capacidade
complexa para integrar sinais,
são dois dos postulados essenciais do modelo de Convergência-Divergência do
mesmo autor e já apresentado
neste trabalho.
-
31 Uma das técnicas genericamente designadas neuroimagens.
-
32 Designação atribuída ao córtex visual por referência à sua textura.
-
33 Na obra em questão, Damásio utiliza os termos imagem, mapa e padrão neural
como equivalentes.
-
34 O autor considera da maior importância o termo interação.
-
35 Soma dos valores correspondentes à presença das seguintes categorias
gramaticais nos relatos verbais das
representações mentais: substantivos, adjetivos, verbos e advérbios.
-
36 Soma dos valores correspondentes à presença das seguintes categorias
gramaticais nos relatos verbais das
representações mentais: conjunções e preposições.
-
37 Atendendo à sua extensão, apresentamos apenas aqueles que consideramos mais
relevantes.
-
38 Em detrimento dos atributos característicos, mais aparentes e superficiais,
não essenciais á definição de um
determinado conceito.
-
39 Todos os videntes haviam já contactado com imagens visuais bidimensionais de
quadrados, triângulos,
círculos e casas.
-
40 No caso de E1 a figura materna é a avó com quem vive desde os primeiros anos
de vida.
-
41 Há semelhança do SRI e do SRV, a utilização do vocábulo sistema não deve ser
confundido com área
cerebral isolada e bem delimitada, uma vez que sistema representa precisamente
um conjunto de várias áreas cerebrais a trabalhar de forma sincronizada para o
processamento e representação de determinada
informação.
-
42 Posner e Raichle (2001) demonstraram que numa tarefa de geração de verbos,
“os sujeitos associavam
conscientemente pensamentos ou emoções com informação retida na memória de longo
prazo” (p. 231).
-
43 Em acordo com esta ideia, relembramos que as preferências emitidas em relação
aos cegos congénitos,
com exceção de H1 considerado popular, tiveram origem em videntes com estatuto
social igual ou inferior.
ϟ
excerto de
CEGUEIRA CONGÉNITA NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE BIOFÍSICA E PSICOSSOCIAL
autor: Fernando Jorge da Costa Figueiredo
Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para
cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências
da Educação
Universidade de Aveiro
Ano 2012
texto integral da dissertação
aqui.
Δ
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