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 SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL

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Cegueira Congénita na Construção da Realidade Biofísica e Psicossocial

Fernando Jorge da Costa Figueiredo

-excerto-

Na tentativa de converter a sua família dissoluta, uma rapariga cega lê a Bíblia com os dedos - George Smith, 1865
Na tentativa de converter a sua família dissoluta, uma rapariga cega lê a Bíblia com os dedos - George Smith, 1865

 

INTRODUÇÃO
PARTE I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO
CAPÍTULO I: CEGUEIRA
1. A CEGUEIRA AO LONGO DO TEMPO  | 2. O CONCEITO NA ACTUALIDADE  | 3. CLASSIFICAÇÕES DE CEGUEIRA | 4. CAUSAS
CAPÍTULO II: DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA VIDENTE E DA CRIANÇA CEGA CONGÉNITA
1. DESENVOLVIMENTO SENSORIAL | 2. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO | 3. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL | 4. DESENVOLVIMENTO MOTOR | 5. DESENVOLVIMENTO SOCIAL | 6. A VARIABILIDADE INDIVIDUAL | 7. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS
CAPÍTULO III: REPRESENTAÇÕES MENTAIS
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO | 2. O CONCEITO NA ACTUALIDADE | 3. CARACTERÍSTICAS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS | 4. CASOS PARTICULARES: ALUCINAÇÕES, SONHOS E FALSAS MEMÓRIAS | 5. O ESTUDO DA ATIVIDADE CEREBRAL COMO CAMINHO PARA COMPREENSÃO DA CEGUEIRA E DAS EPRESENTAÇÕES MENTAIS | 6. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM VIDENTES  | 7. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM CEGOS CONGÉNITOS | 8. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS DO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS (cap. VI)
1. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA | 2. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR | 3. RELAÇÕES ENTRE AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA E AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR
CONCLUSÕES (cap. VII)

 

INTRODUÇÃO

Desde o início da década de noventa do século passado, assistimos a um interesse crescente pela educação das crianças categorizadas como apresentando Necessidades Educativas Especiais (NEE) e suas modalidades, nomeadamente a inclusão (UNESCO, 1994) na escola regular. Efetivamente, podemos considerar este período como uma referência no que a este tema diz respeito, nomeadamente com a realização pelas Nações Unidas da Conferência Mundial de Educação Especial, da qual resultou a célebre e celebrada Declaração de Salamanca.

A atualidade não é, nem será nunca em matéria de Educação, o destino final. Terá de assumir-se, certamente, como mais uma passagem, mas uma passagem de exigência pedagógica, social e humana. A Sociedade e as suas instituições, nomeadamente a Escola, deverão proporcionar as condições essenciais à construção pessoal do bem-estar físico, emocional e social, de acordo com o conceito de saúde estabelecido pela Organização Mundial de Saúde (Andrade, 1995; Tones, 1987). De acordo com o pensamento de Fernandes (2006), entendemos que a missão da Escola é contribuir para o desenvolvimento de todos os alunos (com e sem NEE), a nível cognitivo, emocional, físico e social, potenciando dessa forma um projeto de vida e uma vivência assente no bem-estar. Nas suas palavras: “com manutenção de um continuado estado de bem-estar em todas as dimensões da sua individualidade, o que o fará funcionar de modo integrado e orientado para o desenvolvimento e concretização de suas potencialidades individuais” (Fernandes, 2006, p. 20). Para ajudar a Escola a cumprir esta missão, é necessário aprofundar o conhecimento acerca dos alunos, mobilizando esse conhecimento para a preparação adequada dos professores, assim como para o estabelecimento de pontes de intercomunicação entre a escola e a família. Um Currículo historicamente centralizado como o nosso (Roldão, 1999), apesar das brechas que vai abrindo à flexibilização e à diferenciação, é pensado em função da norma, do aluno médio. Em consequência, os professores conhecem melhor o aluno médio e, no essencial, foi para trabalhar com ele que foram formados. É nesta realidade que emergem (ou submergem) as crianças com NEE: O que sabemos acerca destas crianças?; O que importa investigar para aprofundar o conhecimento acerca delas?; Como mobilizar este conhecimento para formar adequadamente pais, professores, auxiliares de acão educativa e a própria Sociedade?; Como educar as crianças com NEE?; De que forma, um currículo homogéneo, pensado no abstrato em função do aluno médio, pode valorizar e educar na diferença? Neste contexto, o nosso trabalho de doutoramento pretende ser um contributo para a clarificação deste tema, nomeadamente a Educação das crianças cegas congénitas, procurando responder ao seguinte problema de investigação:

Ao frequentarem o mesmo contexto de aprendizagem no Ensino Básico da Escola Regular, a representação mental da realidade em crianças cegas congénitas é semelhante à representação mental da realidade em crianças videntes?

Neste problema emergem dois conceitos cujas relações procuramos estudar, o conceito de condição visual dos sujeitos e o conceito de representação mental. No que respeita à condição visual constituímos dois grupos de sujeitos com condições visuais diferentes, um grupo de sujeitos cegos congénitos e um grupo de sujeitos videntes, grupos estes equivalentes em termos de idades, géneros, anos e ciclos de escolaridade, inseridos num mesmo contexto de aprendizagem, o EBER (Ensino Básico da Escola Regular). No que respeita à representação mental da realidade, estudámos a representação mental da realidade física e a representação mental da realidade social em contexto escolar. No nosso trabalho, a construção teórica deste conceito assentou em dois modelos explicativos: a Teoria do Processamento Dual 1 proposta por Allan Paivio e o modelo de Convergência–Divergência proposto por António Damásio. Uma vez que ambos os modelos preveem a possibilidade das representações mentais serem traduzíveis em descrições verbais, a nossa recolha de dados incidiu essencialmente na aplicação de entrevistas, nas quais e perante condições pré-determinadas solicitámos aos sujeitos que nos relatassem oralmente as suas representações mentais. Para o estudo das representações mentais da realidade física apresentámos de forma aleatória e um de cada vez, vários estímulos com os quais pretendíamos evocar essas mesmas representações. Estes estímulos podem agrupar-se, de acordo com a sua natureza, em (i) palavras abstratas, (ii) palavras concretas, (iii) objetos tridimensionais, (iv) figuras em relevo e (v) sons. Para o estudo das representações mentais da realidade social, recorremos ao questionário sociométrico junto dos sujeitos cegos congénitos e dos seus pares videntes da turma. Na realização da entrevista e após recolhermos as representações mentais acerca da realidade física, colocámos algumas questões abertas acerca da integração social das crianças cegas congénitas, com o intuito de completar as informações acerca das representações da realidade social escolar. Para a análise dos dados recolhidos através da entrevista recorremos a uma análise de conteúdo de natureza quantitativa (análise lexical e sintática e análise temática frequencial) e a uma análise de conteúdo de natureza qualitativa (análise da enunciação). Os dados recolhidos através do questionário sociométrico foram analisados através do cálculo dos índices sociométricos recomendados e descritos na literatura.

As razões que sustentam o presente problema radicam na própria evolução dos modelos explicativos da mente humana e do seu funcionamento. Com o advento das teorias construtivistas da aprendizagem, da sua assimilação e implementação graduais ao nível das conceções e práticas dos professores, com particular ênfase a partir dos anos 80 do século passado, rejeitam-se as ideias de matriz behaviorista, segundo as quais a mente das crianças é um balde vazio ou uma tábua rasa, que compete à escola encher ou preencher, se depois de cheia continuarem a existir espaços vazios (Pereira e Duarte, 1992). Assim, as teorias construtivistas, as quais adotamos, assumem que:

“… o sujeito não se limita a acumular passivamente as informações. Pelo contrário, tem um papel ativo no processamento da experiência e da informação, determinado pelo seu quadro referencial teórico preexistente. A realidade é, deste modo, apercebida e construída de forma pessoal por cada observador…” (Pereira e Duarte, 1992, p. 65).

Percebe-se, assim, a necessidade de investigar sobre a lógica e a origem das representações mentais que crianças e jovens (antes, durante e após o ensino formal) constroem dos fenómenos e situações concretas dos seus quotidianos escolares e não escolares, de forma a conceber e implementar estratégias pedagógicas adequadas (Cachapuz, 1997, Veiga et al., 2000). Desde os anos 80 do século passado que se vem construindo um corpo teórico vasto, assente nos resultados de numerosas investigações sobre as representações das crianças ditas normais, como demonstram as revisões da literatura efetuadas por Pereira e Duarte (1992) e por Santos (1991). No entanto, o interesse pelas representações mentais das crianças com NEE tem sido incipiente e de pouca relevância, ou como afirmam Veiga et al. (2000), as investigações nesta área são “praticamente inexistentes” (p. 35). Uma vez que o conceito de NEE representa múltiplas situações, resulta proporcionalmente uma escassez ainda mais notória, quando pensamos no caso concreto das crianças com cegueira congénita a frequentar o EBER. Esperamos ajudar a minorar esta carência, fazendo luz sobre algumas das representações mentais das crianças cegas congénitas, as quais poderão constituir uma ferramenta de trabalho para os profissionais da Educação, ajudando a conceber e implementar estratégias pedagógicas adequadas ao desenvolvimento destas crianças.

O próprio estudo das representações mentais das crianças ditas “normais” tem assente, maioritariamente, numa conceção reducionista do conceito de representação mental. Essa conceção reducionista assenta, tradicionalmente, nas relações das representações mentais com a memória e os processos mnemónicos (Almaraz, 1997; Paivio, 1971). Tem assumido particular relevância a investigação acerca da memorização de listas de palavras (abstratas ou concretas), de objetos, imagens, sons, etc. Os objetivos visados com a maioria destas investigações visam, essencialmente, o sucesso ou não na retenção e evocação destes materiais, não incidindo nas representações enquanto (re)construções mentais da realidade, de natureza complexa, dinâmica e multimodal 2, assim como nos significados que os sujeitos lhes atribuem. Se me é permitido, passo a relatar um episódio vivenciado por mim e que pode ilustrar essa natureza complexa, dinâmica e multimodal das representações mentais, muito além da memorização de palavras, objetos ou símbolos. Hoje de manhã, enquanto me barbeava e sem que nenhum estímulo em particular me tivesse afetado, diria portanto quase sem intencionalidade, assomaram-me à mente memórias da minha infância. Conscientemente, a primeira imagem de que tive consciência foi de quando eu, o “tio” 3 Coelho e o seu filho levámos a mula deles a pastar, imagem visual entremeada com imagens tácteis do pêlo do animal. Seguiuse, quase de imediato e sem qualquer esforço intencional da minha parte, a imagem visual de uma arrecadação onde o “tio” Coelho guardava as batatas, entremeada com imagens olfativas características destes locais, imagens tácteis de quando ajudava a retirar os renovos 4 das batatas e imagens sentimentais de felicidade vivida naquele tempo. Tal como anteriormente, de forma quase imediata e sem qualquer esforço intencional da minha parte, surgiu-me a imagem visual imaginada de um acontecimento que, na época, foi vivido pelo meu avô materno junto dessa arrecadação e por ele me foi relatado verbalmente, de quando ele ali se deparou com uma cobra. Quase sem pensar surgiu-me uma representação de natureza simbólico-verbal, na qual e através da minha linguagem interior me questionava sobre a minha idade na época, colocando hipóteses e refletindo sobre as mesmas (cinco, seis anos?). São representações como estas que pretendemos estudar e com o desenho de investigação que nos propusemos seguir, procurámos ir de encontro às representações mentais evocadas nos sujeitos através dos vários estímulos evocadores, enquanto (re)construções mentais desses estímulos plenas de significados pessoais. Um outro lado reducionista das investigações acerca das representações mentais está relacionado com a sua centração excessiva nas representações mentais de natureza visual. A par do sentido da visão (Ballesteros e Heller, 2006), também a investigação das representações mentais tem privilegiado a natureza visual das mesmas, em detrimento das representações mentais de natureza táctil, auditiva, olfativa, gustativa e propriocetiva. No nosso trabalho, ao recorrermos a estímulos de naturezas diferentes (tácteis, auditivos e verbais), pensamos estar a contribuir, modestamente, para a correção desta desfasagem.

A defesa social e política pela implementação da integração de crianças com NEE na escola regular assenta, geralmente, na ideia de que resultam exclusivamente ganhos para estas crianças e de forma quase automática. Em consequência, não se questiona(m) o(s) modelo(s) utilizado(s) e não se ponderam os modelos alternativos, nomeadamente e a título de exemplo, o adotado no Centro Infantil Helen Keller e descrito em Dias (1995). No modelo comummente adotado, a criança com NEE é integrada num grupo de crianças ditas normais, na convicção de que esta vivência irá ajudá-la a desenvolver competências sociais, indispensáveis à vida em Sociedade. Ao pretendermos estudar as representações da realidade social, procuramos colocar à prova estas convicções, muitas vezes assentes em ideias do senso comum ou meramente economicistas. Por outras palavras, procuramos analisar a distância que separa o otimismo do currículo enunciado e a articulação teórica e de alguns documentos de política educativa, da inadequação, frequente, do currículo implementado, uma vez que, como afirma Doll (1986), é dentro da escola que o currículo acontece. Estamos convictos, que o nosso estudo irá contribuir para um melhor conhecimento dos processos de aprendizagem e pensamento das crianças cegas congénitas, assim como da sua integração na escola regular. De acordo com Canário (1999):

«…Isto significa romper com a visão desvalorizada das comunidades e das crianças, presente nas políticas oficiais, e pelo contrário privilegiar a visibilidade dos pontos de vista dos aprendentes…» (p. 30).

Por outras palavras, a realidade experienciada pelas crianças e pelos jovens nos contextos educacionais não poderá ser completamente compreendida através de inferências ou assumpções feitas pelos adultos, ou seja, os significados que as crianças e os jovens atribuem às suas experiências não estão necessariamente em sintonia com as dos seus professores e dos seus pais (Lloyd-Smith e Tarr, 2000).

Em consonância com as ideias anteriores, é nossa intenção tentar ver o mundo com os olhos das crianças cegas que são, para além dos restantes sentidos, a mente. Este conhecimento poderá contribuir para uma cuidadosa identificação e avaliação das necessidades e potencialidades da criança com NEE, a fim de potenciar a organização de um programa adequado, integrador e integrado no sistema educativo regular. Assim, os resultados deste estudo, contribuindo para a compreensão dos processos de aprendizagem e pensamento das crianças cegas congénitas, poderão constituir-se como uma mais-valia para a prática pedagógica dos professores regulares e de apoio, ajudando-os a adequar ou mesmo a conceber metodologias de trabalho mais adequadas a estas crianças. Por outro lado, ao estudar o processo de integração na perspetiva dos sujeitos cegos congénitos e dos seus pares videntes, ajudará a compreender as relações sociais que se estabelecem entre estes dois grupos, pelo que poderá contribuir para guiar a intervenção dos professores, no sentido de incrementarem e/ou melhorarem as relações sociais entre alunos cegos e videntes. A este propósito, Correia, Cabral e Martins (1999) afirmam que “os alunos ditos «normais» podem constituir um fator fundamental para o êxito da integração através das interações positivas que desenvolvem com os seus colegas, ajudando-os e assumindo o papel de tutores e amigos” (p. 167).

Ao estudarmos a integração das crianças categorizadas como possuindo NEE, recolhendo e analisando as suas próprias perceções, poderemos também contribuir para o Desenvolvimento Curricular, com alguma clarificação e compreensão acrescidas deste processo, tantas vezes mal compreendido, alvo que é de fundamentalismos a seu favor ou contra si. Com a desmistificação destes fundamentalismos, poderemos compreender melhor o momento atual do processo de integração, em termos teóricos e práticos, ajudando a delinear os caminhos possíveis para o futuro. Os resultados deste trabalho, ao contribuírem para um melhor conhecimento das crianças cegas congénitas, nomeadamente das suas necessidades e potencialidades, poderão constituir uma mais-valia no momento de pensar, desenhar e implementar uma matriz curricular adaptada a estas crianças. Como afirma Jiménez (1997), “as adaptações curriculares são a mais importante estratégia de intervenção na resposta às necessidades educativas especiais” (p. 15). Também para Correia e Rodrigues (1999), não será possível atender à complexidade e diversidade das NEE, sem adaptar e diferenciar o Currículo Escolar a cada situação concreta. Estes autores acrescentam que o professor deverá “tomar em consideração, na elaboração de adaptações curriculares para alunos individualmente considerados, aqueles aspetos que a investigação e a prática têm posto em destaque relativamente às incidências específicas de alguns défices (sensoriais, motores, intelectuais, emocionais, de comportamento…) nas aprendizagens escolares” (p. 109).

A prática, a investigação e a legislação, salientam a necessidade de encontrar modelos de colaboração entre a Escola e a Família, particularmente no caso das crianças com NEE. Como afirmam Kirk e Gallagher (2002), “nas últimas décadas começamos a entender mais a dor e o stress dos que têm uma criança deficiente e o grau de coragem e apoio externo necessários para que os pais mantenham o seu equilíbrio nestas circunstâncias” (p. 11). Estes autores classificam como um passo importante a mudança do papel dos pais, que conduziu à sua participação significativa nos programas de intervenção.

O Decreto-Lei nº3/2008 prevê e apela, a uma participação extensiva dos Encarregados de Educação nos processos de Educação Especial (EE) dos seus educandos com NEE. Assim, no ponto 1 do artigo 3º, refere-se que “os pais ou encarregados de educação têm o direito e o dever de participar activamente, exercendo o poder paternal nos termos da lei, em tudo o que se relacione com a educação especial a prestar ao seu filho, acedendo, para tal, a toda a informação constante do processo educativo” (ME, 2008, p. 155). No que diz respeito ao processo de avaliação, na alínea c do ponto 1 do artigo 6º afirma-se a necessidade de “assegurar a participação activa dos pais ou encarregados de educação, assim como a sua anuência” (p. 156). O artigo 30º prevê “o desenvolvimento de acções de apoio à família” (p. 163). Entendemos que o conhecimento mais aprofundado da criança cega congénita por parte dos seus pais e/ou Encarregados de Educação, poderá melhorar substancialmente a colaboração destes com a Escola. Os pais necessitam saber como o filho progride na escola e como ajudá-lo a reforçar os seus conhecimentos e capacidades (Horton, 2000). Cremos que este trabalho irá contribuir para aprofundar esta colaboração. Ao mesmo tempo, poderá ajudar a construir um ambiente familiar estimulante e construtivo, conferindo alguma orientação na relação da família com a criança cega congénita, nos estímulos que lhe são proporcionados e na Educação formal considerada mais adequada.

Numa perspetiva mais abrangente, contribuindo para conhecer melhor o mundo das crianças portadoras de cegueira congénita, pensamos estar a contribuir, ainda que humildemente, para a formação de uma Sociedade com mais igualdade de oportunidades para estas crianças enquanto crianças que são e, futuramente, enquanto adultos e cidadãos de pleno direito. Para tal, é fundamental reestruturar falsas conceções que ainda hoje perpassam em pais, educadores e na Sociedade em geral, aprofundando e divulgando os vários fatores com elas relacionados (Nielsen, 1999).

No que respeita às opções teóricas e metodológicas deste trabalho, Paivio (1990) diz-nos que saber como representamos mentalmente a informação e a utilizamos para interagir com o mundo de forma adaptativa, constitui um problema extraordinariamente difícil, talvez o mais difícil de toda a Ciência. De acordo com ele, implica questões relacionadas com a natureza do conhecimento e do pensamento, com os comportamentos observáveis, com a atividade cerebral, com o desenvolvimento, etc. Sendo um problema tão complexo, o autor não encontra acordo definitivo acerca da(s) forma(s) de abordar o problema, quer teórica quer empiricamente, sendo certo que a controvérsia está inerente ao próprio trabalho científico. Escolhemos uma passagem de Gregory (1979) para ilustrar estas ideias: “frequentemente é muito difícil estabelecer se um efeito visual deve ser considerado pertencente à psicologia, fisiologia ou física. Todas essas áreas ficam muito misturadas”. Todos estes contributos conduzem-nos a uma outra consequência, a injustiça de não podermos dedicar a merecida atenção a todos os novos contributos que vão emergindo em cada uma dessas áreas científicas. Sendo as representações mentais um fenómeno construído no cérebro, entendemos no seguimento de Damásio (2010) que será, talvez, um pouco desproporcionado falar de teoria ou teorias, pois “a menos que se trabalhe numa escala suficientemente grande, a maior parte das teorias não passam de hipóteses” (p. 36). Assim, preferimos e utilizamos a expressão enquadramento teórico como alternativa a fundamentação teórica. Atendendo á multiplicidade de áreas de conhecimento que contribuem para o estudo das representações mentais e à escassez de consensos, mesmo no seio de uma mesma disciplina, temos como arriscado e difícil tomar a direção de uma única corrente teórica na qual fundamentar o nosso trabalho. Assim, optámos por uma abordagem mais abrangente, prospetando contribuições de diferentes quadrantes e construindo um enquadramento teórico, procurando interligações entre fenómenos anatómicos e fisiológicos, comportamentais, desenvolvimentais, mentais e cerebrais.

No presente trabalho, em termos organizacionais, seguem-se os capítulos I, II e III, no qual apresentamos o enquadramento teórico subjacente em três partes: Capítulo I – Conceito de Cegueira, Capítulo II - Desenvolvimento da criança vidente e da criança cega congénita, Capítulo III - Conceito de representação mental.

No capítulo IV – Metodologia, apresentamos as questões de investigação, os objetivos, as variáveis e as hipóteses, os participantes, os procedimentos éticos, os instrumentos e os procedimentos de análise de dados .

Os resultados são apresentados no capítulo V, de acordo com a seguinte sequência: índice de riqueza vocabular, representações mentais construídas pelas crianças cegas congénitas e seus pares videntes, segundo a natureza do estímulo, comparação das representações mentais construídas pelas crianças cegas congénitas com as representações mentais construídas pelas crianças videntes, análise das representações mentais dos sujeitos cegos congénitos e dos seus pares videntes, integração social das crianças cegas congénitas no EBER e integração no EBER e suas relações com a riqueza, a complexidade e o total das representações mentais.

No capítulo VI apresentaremos a discussão dos resultados, para de seguida nos determos nas conclusões (capítulo VII), nomeadamente na confirmação ou na refutação das hipóteses, nas limitações e implicações do presente estudo, bem como nas recomendações para futuras investigações.


PARTE I

ENQUADRAMENTO TEÓRICO

CAPÍTULO I: CEGUEIRA

Neste capítulo apresentamos (i) uma abordagem histórica da cegueira, (ii) o conceito na atualidade, algumas (iii) classificações e (iv) causas da cegueira.


1. A CEGUEIRA AO LONGO DO TEMPO

Até meados do século XX, os conhecimentos acerca da visão e da cegueira eram reduzidos e esparsos, tanto na comunidade científica como na Sociedade em geral. Como em muitos outros campos, o conhecimento científico acerca da visão e da cegueira cresceu exponencialmente e com diversos propósitos, desde os meramente teóricos aos aplicados na recuperação da visão de sujeitos cegos. O conhecimento da Sociedade em geral parece estar muito marcado pelas matrizes culturais subjacentes, evidenciando uma evolução mais lenta em relação ao conhecimento científico, estando muito marcado por aquilo que Gil (2000) chama de mitos, crendices e superstições, como é característico do conhecimento que se convencionou chamar de senso comum.

Na Grécia Antiga, nomeadamente em duas das suas cidades-estado mais emblemáticas, Atenas e Esparta, o infanticídio de crianças com deficiências notórias era prática corrente, por razões e com base em princípios e procedimentos distintos, tal como defendemos noutro local (Figueiredo, 2010a). Quando, por alguma razão escapavam da morte, nomeadamente em Atenas onde os pais tinham o direito a proferir a sentença final, juntar-se-iam, certamente, aos que cegaram tardiamente, na juventude ou na idade adulta.

Segundo Gil (2000), a cegueira representava um estigma, palavra cujo significado se associava à existência de sinais corporais marcadores de uma condição moral inferior logo, os estigmatizados deviam ser evitados, principalmente em locais públicos. A autora acrescenta que “a cegueira, como outras deficiências, estava entre os estigmas denunciadores de péssimo carácter – seus portadores eram marginalizados, excluídos do convívio social” (p. 18). Tal conceção refletia-se na literatura e na mitologia de então, com Édipo a furar os próprios olhos para se castigar de ter morto o seu próprio pai e desposado a mãe, e Tirésias castigado por Hera com a cegueira (Oliveira, 1998). Nesta época, Aristóteles considerava a visão como o sentido mais importante do Homem, fonte de um adequado conhecimento do mundo, ideias retomadas séculos mais tarde por Locke (Nunes, 2004). Assim, o cego era considerado como alguém incapaz de conhecer adequadamente quer o mundo físico, quer o mundo social, logo alguém que só poderia viver à margem desses mundos.

No decurso da Idade Média, a relação da Sociedade com a cegueira, não se distanciou da relação com as demais deficiências, em suma, um castigo divino (Gil, 2000).

Tratando-se da Idade Média, em que os clássicos foram, de alguma forma esquecidos, não podemos deixar de assinalar uma certa familiaridade com a Antiga Grécia. Na Idade Média havia apenas um Deus, misericordioso, mas para quem a cegueira continuava a ser uma forma de castigo. Os cegos chegaram a ser associados à imagem do diabo e a atos de feitiçaria e bruxaria, sendo alvo de exorcismos, perseguições, julgamentos e execuções (Correia e Cabral, 1999a; Jiménez, 1997). Esta associação divina perpassa ainda hoje na cultura popular portuguesa, de matriz vincadamente católica romana. Quando criança lembro-me de brincar imitando alguém coxo ou cego e de ser severamente repreendido pela minha avó, com o argumento de que “Deus me podia castigar”.

Certas culturas, continuando a exacerbar a diferença, fizeram-no em sentido positivo. Como nos diz Gil (2000) “houve sociedades em que o cego era considerado um favorito dos deuses: com sua «visão para dentro», ele veria coisas que escapavam aos demais” (p. 18). Era assim considerado um ser superior, um privilegiado, mais capaz de se desenvolver espiritualmente, pois menos influenciável pelas ilusões mundanas (Nunes, 2004; Oliveira, 1998). Numa revisão da literatura e tendo como contexto o Brasil, Nunes (2004) mostra que esta ambiguidade continua a perpassar, mesmo entre atuais e futuros professores. Alguns acreditam que o cego é um deficiente global com limitações severas de aprendizagem, enquanto outros lhes apontam uma inteligência e uma espiritualidade extraordinárias.

Foi no século XVIII (1787), em Paris, que se fundou a primeira escola para cegos, pela mão de Valentín Haüy, tendo seguido o seu exemplo Edward Rushton em Liverpool (1791), Johann Klein em Viena (1804), August Zeune em Berlim (1806) e José Ricart em Barcelona (1820) (Tallaví, 1998). Estas instituições destacaram-se pela sua natureza essencialmente educativa, rompendo com a tradição das instituições de natureza essencialmente assistencialista. Anos mais tarde, em 1825 surgiu o alfabeto de pontos criado por Braille para os cegos, o qual viria e continua a ser adotado mundialmente com o nome do seu criador (Tallaví, 1998).

No que diz respeito a Portugal, o nosso país não se distanciou muito do percurso seguido por outros países europeus, nomeadamente a França (Dias, 1995). Ainda no século XIX, foi criada a Associação Promotora do Ensino dos Cegos, obra de várias personalidades, nomeadamente José Cândido Branco Rodrigues, João de Deus, Fernando Pereira Palha, Victoriane Sigaud Souto, entre outras (Guerreiro, 1996). Também no século XIX, o rei D. João VI, a pedido de José António Freitas do Rego, concede meios e contrata o sueco Aron Borg para a criação do Instituto de Surdos, Mudos e Cegos de Lisboa 5, o qual veio posteriormente a integrar a Casa Pia (Dias, 1995). A partir da última década desse mesmo século fundaram-se algumas escolas-asilo, obras de benfeitores e beneméritos, alguns dos quais cegos (Dias, 1995). Na transição do século XIX para o século XX, um número considerável de cegos não se limitava a sobreviver da mendicidade ou do assistencialismo institucional. Segundo relatos da época, alguns cegos com formação lecionavam música ou exerciam profissão musical, outros lecionavam instrução primária, Língua Portuguesa e Língua Francesa, sendo que a docência ocorria, essencialmente, em instituições especializadas para a educação de cegos (Dias, 1995). Na nossa vizinha Espanha, a atividade musical constituía, também, uma das principais fontes de sustento para os cegos (Tallaví, 1998).

Em seguida, apresentamos os momentos mais marcantes da EE em Portugal, ao longo do século XX, tendo por base a resenha histórica efetuada por Correia e Cabral (1999b). De acordo com estes autores e tendo por referência documentos do Ministério da Educação, as primeiras experiências de integração em Portugal consistiram na criação de classes especiais no Instituto Aurélio da Costa Ferreira, em 1944, destinados a alunos com problemas de aprendizagem e orientadas por professores especializados por esse Instituto.

A utilização do conceito de integração neste contexto pode parecer abusiva, mas ela pretende sublinhar a rutura com o modelo institucional segregado e segregador, ainda dominante nesta época. Na década de 60, sob a orientação da então Direcção-Geral da Assistência, alargou-se o apoio à integração na escola regular de crianças e adolescentes com deficiência, promovendo programas destinados a alunos com deficiência visual, integrados em escolas preparatórias e secundárias das principais cidades do país. Pela primeira vez, os alunos com deficiência poderiam participar em pleno na classe regular, decorrendo o trabalho de apoio em espaços próprios, as salas de apoio. Constitui um bom exemplo, a integração em 1968 no ensino regular, na Escola Preparatória Francisco Arruda, dos primeiros alunos cegos e amblíopes, oriundos do Centro Infantil Helen Keller e com apoio de professores do mesmo (Dias, 1995). Esta dinâmica que se inicia em Portugal nos anos 60 é, sem dúvida, tardia em relação aos países do norte da Europa; no entanto, não devemos esquecer a evolução lenta da alfabetização e da escolarização em Portugal para as crianças ditas “normais”. O Censo de 1960 revelou, pela primeira vez, taxas de frequência da escola para crianças “normais”, entre os 7 e os 9 anos, equivalentes às que os países do norte da Europa revelavam já no início do século XX (Candeias e Simões, 1999). Assim e no que diz respeito a Portugal, o início da integração das crianças com NEE, apesar de tardio, foi, em certa medida, atempado.

No passado como na atualidade, muitas personalidades cegas se destacaram e destacam mundialmente em diversas áreas, o que tem contribuído para enraizar a crença na educabilidade e nas potencialidades das pessoas cegas e deficientes em geral. No entanto, importa desmistificar a existência de qualquer talento resultante diretamente da cegueira, como o mito de que os cegos têm um talento especial para a música, como se não tivessem que aprender a escala musical, conhecer e treinar um determinado instrumento, com maiores ou menores dificuldades, muitas vezes equivalentes às sentidas pelos videntes em condições semelhantes. Entre estas personalidades destacamos, sem qualquer desprimor para as restantes, a ensaísta Helen Keller pelo seu pioneirismo enquanto ativista dos direitos e da educação dos cegos, Ray Charles, Stevie Wonder, Andréa Bocelli, Maria Teresa von Paradis e Joaquín Rodrigo pelas suas obras musicais de divulgação mundial, assim como Nicholas Sauderson e Benard Morin pelas suas investigações matemáticas.

Experimentam-se hoje novas intervenções médicas com o objetivo de recuperar, total ou parcialmente, a visão em pessoas cegas. Além de novas técnicas cirúrgicas, tem-se experimentado e trabalhado em terapias genéticas e em dispositivos tecnológicos como o chamado olho biónico. Com sucessos pontuais, esta demanda da Medicina conta já uma longa história. Segundo Ninio (1994), há registos de no século XI se ter efetuado a primeira intervenção cirúrgica conhecida a um cego, realizada pela mão de um cirurgião árabe. A partir do século XVIII os registos são mais abundantes, com alguns casos de sucesso relatados, como o de um rapaz de13 anos que recuperou a visão, após ser operado pelo cirurgião inglês Cheselden.


2. O CONCEITO NA ATUALIDADE

Como todos os conceitos, o de cegueira evoluiu ao longo do tempo, de acordo com o percurso que procurámos esboçar no ponto anterior. Em cada momento e o atual não é exceção, a definição de um conceito resulta da necessidade de encontrar significados partilhados no seio das comunidades, sejam elas constituídas por investigadores, profissionais de diversas áreas, políticos ou cidadãos em geral. Entendido desta forma, um conceito assume-se como um artefacto cultural abstrato, que não depende tanto do seu objeto real, mas do entendimento que um conjunto de pessoas elabora acerca do mesmo.

Efetivamente, não se trata de ser ou não ser cego, porque alguém com visão subnormal não vai ver mais ou menos mudando o significado de cegueira, mas do que significa ser cego perante uma determinada comunidade. Não é assim de estranhar, a coexistência de diferentes definições de um conceito no interior de fronteiras mais ou menos estabelecidas, sendo que o conceito de cegueira não é exceção. Esta é também a posição de Zafra (1991), para quem os critérios para considerar uma pessoa como cega não são totalmente claros.

Enquanto instituição de referência, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define cegueira como a incapacidade de ver (OMS, 2011a). De acordo com as suas indicações de 2006 patentes no International Classification of Diseases – 10 (OMS, 2011b), devem considerar-se quatro níveis funcionais ao nível da visão: visão normal, incapacidade visual moderada, incapacidade visual severa e cegueira. Os níveis de incapacidade visual moderada e de incapacidade visual severa podem conjugar-se numa designação única, a de baixa visão. Se combinarmos a baixa visão com a cegueira obtemos a incapacidade visual total, a qual se estima em 284 milhões de pessoas a nível mundial (39 milhões de cegos + 245 milhões com baixa visão). Na faixa etária até aos 15 anos de idade, estima-se que existam 19 milhões de crianças com incapacidades visuais (2 milhões na Europa), sendo que 1,4 milhões serão irreversivelmente cegos (140 mil na Europa).

Numa perspetiva mais técnica:

“… A OMS considera que existe deficiência visual quando a acuidade visual 6 de ambos os olhos, com correcção, é igual a 0,3. A maioria dos países considera cegueira quando a acuidade visual, com correcção, é igual ou inferior a 0,1, ou se existe uma redução do campo visual 7 inferior a dez graus…” (Martín e Bueno, 1997, p. 317).

“… Um indivíduo que seja legalmente cego tem uma acuidade visual central de 20/200, ou menor, com correcção no olho em melhores condições, ou tem um campo de visão muito limitado, cerca de 20 graus no ponto máximo de afastamento. Isto significa que, mesmo com correcção, não se verifica mais do que 10% de visão normal no olho em melhores condições, sendo o campo de visão nunca superior a 20 graus. Um indivíduo legalmente cego, se sujeito a correcção, vê a uma distância de 6 metros o que, em condições normais, veria a uma distância igual ou superior a 61 metros…” (Nielsen, 1999, p. 52).

Entre a acuidade de 20/200 (1/10 ou 0,1 nas formas simplificadas) e a cegueira total, Dias (1995) define uma linha contínua onde distingue (i) a perceção de formas e cores com visão de dedos a 2,5 metros, (ii) perceção de vultos com visão de dedos a um metro, (iii) projeção luminosa com distinção da luz e do lugar de emanação e (iv) perceção luminosa com distinção entre luz e escuridão.

A conceção de cegueira apresentada anteriormente radica, essencialmente, na medicina. Com o tempo, a sua aplicação no campo educacional veio a revelar-se pouco satisfatória e desfasada, tendo-se constatado que sujeitos com a mesma acuidade visual poderiam apresentar capacidades visuais diferentes, nomeadamente quanto ao aproveitamento funcional que faziam da visão residual quando ela existia (Nunes, 2004).

Foi para colmatar esta insuficiência da conceção médica, que se procuraram conceções de natureza funcional, mais adequadas ao contexto educativo. Funcionalmente, Martín e Bueno (1997) consideram cego, alguém que não possui resíduo visual ou possuindo-o, apenas permite a orientação em direção à luz, perceber volumes e cores, assim como ler grandes títulos, inviabilizando o uso habitual da leitura e da escrita. Para estes autores, “as anomalias do campo visual têm maior importância para a capacidade funcional do indivíduo do que a própria acuidade visual, pois influem na locomoção, leitura e possibilidade de utilizar imagens ampliadas” (p. 319). Na busca de uma definição, também ela funcional, Kirk e Gallagher (2002) citam Barraga (1976), que considera cegas as crianças com ausência total de visão ou que têm somente a perceção da luz, necessitando aprender Braille para ler e escrever, assim como outros meios não relacionados com o uso da visão. No conhecimento do senso comum subsiste a ideia de que a cegueira equivale a uma escuridão total. Tal não corresponde à verdade, quer porque a perceção residual da luz subsiste em muitos cegos, que assim são capazes de distinguir grandes manchas brancas, semelhantes às que os videntes sentem ao cerrar as pálpebras, quer pelo envolvimento do próprio cérebro nos processos da visão e da sua ausência (Nielson, 1999; Ninio, 1994). Na verdade, Gil (2000, 2002) lembra-nos que poucos portadores de deficiência visual são totalmente cegos, embora muitos, nomeadamente crianças com algum grau de visão, sejam considerados cegos e tratados como tal, perdendo os benefícios que a utilização da visão residual poderia acrescentar ao desenvolvimento e à qualidade de vida.


3. CLASSIFICAÇÕES DE CEGUEIRA

Em termos funcionais e educativos, as NEE’s podem assumir um carácter permanente ou temporário. Com base na classificação proposta por Correia e Cabral (1999c), considera-se a cegueira como NEE de carácter permanente, ou seja, são necessárias adaptações estruturais do currículo, a manter durante grande parte ou todo o percurso escolar do aluno. Consideram-se adaptações estruturais, a necessidade de introduzir ou retirar áreas do saber assim como as estratégias de abordagem, enquanto adaptações de conteúdo estão relacionadas com os conhecimentos a tratar no âmbito de cada uma dessas áreas. A literatura referida nos pontos seguintes, nomeadamente no desenvolvimento das crianças cegas congénitas e nas implicações educativas, é consensual na necessidade de adaptações estruturais, como a aprendizagem da leitura e da escrita Braille, assim como da orientação com e sem bengala. As adaptações de conteúdo parecem mais dependentes das variáveis individuais associadas a cada sujeito e a cada contexto, podendo ou não ser necessárias.

Uma outra classificação que não colide mas complementa a anterior, estabelece que a cegueira pode ser adquirida, situação em que o indivíduo nasce dotado do sentido da visão, perdendo-o mais tarde, ou pode ser congénita, situação em que o indivíduo nasce cego (ACAPO, 1996; Gil, 2000; Gil, 2002; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995; Tallaví, 1998). A lei alemã considera que uma pessoa é cega congénita total se tem disponíveis apenas 5% da visão normal e se cegou antes dos dois anos de idade (Knauff e May, 2005).

Na perspetiva mais aceite atualmente, crê-se que os cegos de nascimento ou que perderam a visão nos primeiros meses de vida não dispõem de referências visuais na sua memória, enquanto os portadores de cegueira adquirida em idade mais avançada, não só conheceram o mundo numa perspetiva visual, como puderam estabelecer relações entre a perceção visual e a tátil, guardando na sua memória essas imagens e relações, podendo experienciar imagens mentais nítidas de natureza visual (Bardisa, 1992; Gil, 2002; Heller e Ballesteros, 2006; Knauff e May, 2005; Masini, 2003). No âmbito da classificação de cegueira congénita, outros autores alargam o intervalo de tempo que medeia o nascimento e a perda de visão, considerando cegueira congénita quando a criança nasce cega ou se torna cega até aos cinco anos de idade (Nunes, 2004; Ormelezi, 2000). Com base na investigação, sustentam que até aos cinco anos não ocorre retenção de imagens visuais, ou seja, as memórias visuais não estão presentes e como tal, não poderão constituir-se como referencial das representações mentais. Tal não parece ser a posição defendida por Allan Paivio e por Jacques Vauclair. Estes autores apresentam evidência empírica segundo a qual, as representações de natureza imagética ou não verbal começam a estabelecer-se muito mais cedo na vida da criança, por volta dos seis meses de idade, tendo já sido identificados fenómenos de memória episódica de curta duração (seis segundos), em bebés com apenas alguns dias de vida (Paivio, 1990; Vauclair, 2008). Allan Paivio acredita que o desenvolvimento das representações mentais ocorrerá de forma contínua desde o nascimento, enriquecendo-se 8 em relação a objetos, pessoas, locais, melodias, estados de dor ou alegria e acontecimentos, segundo diferentes perspetivas e diferentes modalidades sensoriais. Esta falta de consenso é confirmada por Ballesteros e Heller (2006). Nas suas pesquisas encontraram investigadores que consideram cegueira adquirida apenas a que ocorre após o início da escolarização, outros a que ocorre após um ano de idade e outros, a que ocorre após os dez anos de idade. Perante esta profusão de intervalos cronológicos considerados por diferentes autores e tratando este trabalho de cegueira congénita, torna-se necessário balizar o intervalo de idades considerado no presente trabalho, para a classificação de cegueira congénita. Adotámos uma das classificações mais restritivas, a de cegueira congénita ser a que ocorre até a criança completar um ano de idade. Esta opção fundamenta-se nos dados apresentados por Mackay (2009) acerca da maturação cerebral.

Sustenta o autor que aos seis meses de idade as crianças conseguem lembrar acontecimentos ocorridos apenas nas últimas 24 horas, enquanto aos nove meses a memória abarca acontecimentos ocorridos, sensivelmente, até há um mês atrás. É na transição do primeiro para o segundo ano de vida que ocorrem importantes mudanças, as quais se estendem ao longo do segundo ano e acarretam consideráveis melhorias na memória de longa duração. Por outro lado, os adultos são incapazes de recordar acontecimentos vivenciados ao longo dos dois primeiros anos das suas vidas, fenómeno conhecido como amnésia infantil (Vauclair, 2008). Congruentemente, todos os sujeitos da nossa amostra cegaram neste período das suas vidas, o que nos confere alguma validade acrescida ao minimizar a possibilidade de existirem memórias visuais.

Nem sempre a palavra cegueira significa ausência total de visão. Existem outras formas de cegueira, como por exemplo a cegueira para o vermelho e o verde, também conhecida como Daltonismo, em homenagem ao histórico químico John Dalton, portador desta deficiência e que, em pleno século XVIII, foi o primeiro a dedicar-se ao seu estudo.

Na atualidade, esta condição acomete, em média, um em cada doze homens, por ausência nos cones 9 de proteínas fotorreceptoras sensíveis ao vermelho e ao verde (Dolgin, 2009).

Uma das razões para que esta condição tivesse passado despercebida até tão tarde na história da humanidade, poderá estar relacionada com a pouca importância que a perceção correta das cores assume no quotidiano, nomeadamente diferenças subtis de tonalidade (Ninio, 1994). Alguns ensaios clínicos de terapia genética efetuados em machos de macacos esquilo têm demonstrado a possibilidade de reverter esta situação (Dolgin, 2009).

4. CAUSAS

Resulta do nosso problema e das nossas questões de investigação que a cegueira congénita assume um dos papéis principais no nosso trabalho, o de variável independente.

Assim, não poderíamos deixar de abordar as causas da cegueira em geral, com particular incidência nas causas da cegueira congénita. Esta abordagem assumirá a abrangência necessária à compreensão dos fenómenos, sem a exaustão que seria própria de um trabalho de natureza médica e clínica, a qual ultrapassa os nossos objetivos, mas pugnando sempre pela necessária correção científica.

Tendo como referência a população em geral e a nível mundial, a OMS aponta como principais causas de cegueira (i) as cataratas (com particular incidência nos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento), (ii) o glaucoma, (iii) a degeneração macular relacionada com a idade, (iv) a opacidade da córnea, (v) a retinopatia diabética, (vi) o tracoma, (vii) a avitaminose A (particularmente sensível nas crianças) e (viii) tumores (OMS, 2011a, 2011c). No seu trabalho Educação da Criança Excepcional, Kirk e Gallagher (2002) apontam, além destas, outras possíveis causas para a cegueira (i) doenças infeciosas, (ii) acidentes e ferimentos, (iii) envenenamentos, (iv) influências pré-natais (inclusive a hereditariedade), (vi) retinopatia da prematuridade (antes designada fibroplasia retrolental), (vii) atrofia do nervo ótico e (viii) albinismo. A OMS salienta que mais de três quartos dos casos de incapacidade visual, na população em geral e a nível mundial, podem ou poderiam prevenir-se e tratar-se (OMS, 2011a). As múltiplas causas da cegueira, apontadas anteriormente, são condensadas por Nielsen (1999) da seguinte forma:

“… Esta pode resultar de degeneração do globo ocular ou do nervo óptico, ou então de problemas nas conexões nervosas que ligam o olho ao cérebro. As lesões cerebrais podem igualmente causar deficiência a este nível. A cegueira é frequentemente o resultado de uma lesão ou de uma doença e ninguém está imune a este tipo de deficiência…” (pp. 52-53).

Pelas condicionantes espaciais e cronológicas associadas a um trabalho desta natureza, optámos por desenvolver apenas aquelas causas associadas à cegueira dos sujeitos da nossa amostra (ver ponto 4.2.3. do capítulo IV). Dois dos sujeitos da nossa amostra cegaram em consequência de retinopatia da prematuridade. Como se pode depreender da própria designação, são os bebés prematuros os mais suscetíveis a esta causa da cegueira, em virtude da exposição excessiva ao oxigénio no interior das incubadoras (Ferreira, s/d; Gil, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Knauff e May, 2005; Ormelezi, 2000). Na descrição de Rosane Ferreira, Mestre em Oftalmologia e membro da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica, os vasos sanguíneos da retina desenvolvem-se centrifugamente (do centro para a periferia), partindo do nervo ótico e atingindo a periferia por volta da quadragésima semana de vida. Assim, se ocorrer parto prematuro, com risco acrescido antes das 32 semanas de gestação, existe uma área de isquemia retiniana periférica, ou seja, ausência de fornecimento sanguíneo à periferia da retina, sendo que quanto mais prematuro for o bebé, maior será esta área. Tal situação de isquemia conduz à libertação de um fator que conduz à proliferação de vasos sanguíneos na retina, que na maioria dos casos se desenvolvem naturalmente e a doença involui espontaneamente. Quando tal involução não ocorre, os vasos continuam a crescer de forma errática, com hemorragias e exsudação, que pode levar ao deslocamento da retina e à cegueira. Como lembra Neves (2008), no momento atual da medicina, uma vez destruída a retina, a cegueira é irrecuperável. A literatura aponta outros fatores que poderão desencadear ou participar secundariamente na retinopatia da prematuridade: transfusão sanguínea, hiperbilirrubinemia, avitaminose E, cardiopatias congénitas, apneia e hipocalcemia (Ormelezi, 2000). Dados de Kirk e Gallagher (2002) referem que na década de 50 do século XX, antes de se estabelecer a sua causa principal, a retinopatia da prematuridade seria responsável por mais de metade dos deficientes visuais daquela época. Com a descoberta da sua causa, diminuiu-se a concentração de oxigénio nas incubadoras, diminuindo significativamente a sua prevalência, mas não na totalidade, tal como estes dois casos testemunham.

Dois outros sujeitos da nossa amostra cegaram em resultado de glaucoma congénito, que Gil (2000) define de forma simples como atrofia ótica de natureza hereditária ou causada por infeções virais, como por exemplo a rubéola. Manifesta-se de forma lenta ou rápida, pela incapacidade de drenar o humor aquoso, que ao ficar retido provoca a distensão do globo ocular e consequentemente um aumento de pressão no interior do mesmo, atrofiando o nervo ótico, o que poderá conduzir à cegueira (Dias, 1995; Ormelezi, 2000). Constituía em 1995 a causa mais frequente de cegueira infantil em Portugal (Dias, 1995).

Uma das meninas cegas da nossa amostra cegou em virtude de um acometimento do que se designa por persistência de vítreo primário hiperplásico, o qual encerra um amplo espectro de anomalias congénitas. Segundo Ferreira (s/d) tais anomalias resultam de falhas na reabsorção do vítreo primário embriológico, que persiste, assim como dos vasos hialóides, vindo no conjunto a formar uma placa retrolental.


CAPÍTULO II: DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA VIDENTE E DA CRIANÇA CEGA CONGÉNITA

A literatura relacionada com o desenvolvimento infantil versa, essencialmente, no caso das crianças videntes, escasseando estudos congéneres baseados em crianças cegas, escassez ainda mais acentuada no caso da cegueira congénita. Não obstante, procuraremos desenvolver suficientemente este ponto, para compreender o desenvolvimento da criança cega congénita nos seguintes níveis: sensorial, cognitivo, emocional, motor e social. É nosso entendimento que as influências da cegueira congénita no desenvolvimento infantil dos seus portadores, a existirem, serão mais facilmente explicitadas se, em paralelo, abordarmos o desenvolvimento das crianças videntes. Na frase anterior, fizemos questão de salientar e questionar a existência de influências da cegueira congénita no desenvolvimento infantil dos seus portadores, porque não é claro nem linear, ou seja, não foi ainda determinada uma relação inquestionável de causa efeito entre a cegueira congénita e consequências no desenvolvimento infantil. A literatura disponível e que apresentaremos nos pontos seguintes vem subscrever estas dúvidas, com resultados e interpretações diversas de estudo para estudo, o que parece conduzir-nos a um outro fator essencial, a variabilidade individual. Os dados expostos nos pontos seguintes conduzemnos a pensar que a cegueira não origina, necessariamente, problemas desenvolvimentais ou, pelo menos, não é evidente que eles se manifestem de forma significativa, não obstante os caminhos e as velocidades variarem entre sujeitos cegos e, sobretudo, entre estes e os videntes (Martín e Bueno, 1997; Ochaita e Rosa, 1995). A ocorrerem, esses problemas estarão dependentes da severidade e tipo de perda visual, da idade da criança quando ocorre essa perda, assim como do nível geral de funcionamento da criança (Nielsen, 1999).

Existe mesmo alguma evidência, baseada em dados empíricos recolhidos em amostras que variam entre o estudo de caso individual e o estudo de dezenas de sujeitos, que aponta percursos de desenvolvimento mais adequados nas crianças cegas, quando comparadas com outras crianças com deficiências visuais menos severas, em contextos equivalentes (Kirk e Gallagher, 2002).

Nos pontos seguintes aprofundaremos aspetos relacionados com (i) o desenvolvimento sensorial, (ii) o desenvolvimento cognitivo, (iii) o desenvolvimento emocional, (iv) o desenvolvimento motor e (v) o desenvolvimento social. A delimitação destas áreas, como será percetível da leitura das mesmas, é necessariamente artificial porque não existe na natureza nada escrito, um marcador que aponte inquestionavelmente o fim de uma e o início de outra. São portanto decisões tomadas com base na racionalidade humana e no pragmatismo que nos pareceu mais adequado aos objetivos a que nos propusemos. Por outras palavras, estas áreas do desenvolvimento humano interpenetram-se a vários níveis e profundidades, pelo que acontecerá, por exemplo, no desenvolvimento emocional referir aspetos indissociáveis do desenvolvimento social e vice-versa.


1. DESENVOLVIMENTO SENSORIAL

O desenvolvimento sensorial inicia-se muito antes do nascimento, no período pré natal, no qual os sistemas sensoriais, à exceção da visão, alcançam a maturidade funcional segundo uma ordem de desenvolvimento comum aos vertebrados: tato – equilíbrio – olfato e paladar – audição – visão (Vauclair, 2008).


1.1. A VISÃO

Atendendo às metas estabelecidas para este trabalho, nas quais a cegueira congénita se assume como variável independente, certamente será compreensível uma maior abrangência no tratamento da visão, comparativamente aos outros sentidos. Não deixaremos de os focar, até pela função alternativa que podem desempenhar nos sujeitos cegos.

 A visão, a par da audição e em parte, do olfato, destaca-se pela sua capacidade de captar tanto os estímulos próximos como os distantes (Dias, 1995; Gil, 2000). Trata-se de um dos nossos sentidos físicos, uma vez que é estimulado por um fenómeno físico nas suas várias manifestações, a luz. O órgão responsável pela captação dos estímulos luminosos que proporcionam a visão é o olho, um sistema complexo de partes inter-relacionadas que importa conhecer e compreender (Figura 1).
 


Figura 1 - Olho humano segundo Gregory (1979, p. 50)

Vários autores têm estabelecido comparações entre o olho e uma máquina fotográfica, as quais são consideradas por Neves (2008) como apropriadas, uma vez que, a máquina fotográfica terá sido, segundo ele, “inventada a partir dos conhecimentos q tínhamos da composição e funcionamento daquele órgão do corpo humano” (p. 7). Nas palavras de Kirk e Gallagher (2002):

“… o olho humano tem um diafragma, a íris. Esta é a parte muscular colorida que se expande e se contrai para regular a quantidade de luz admitida pela abertura central, a pupila. Atrás da íris encontra-se a lente do cristalino, que é um corpo biconvexo elástico que focaliza sobre a retina a luz refletida dos objetos em uma linha de visão. A retina é sensível à luz, e é a camada mais interna de tecido no fundo do globo ocular. Contém os receptores neurais, que transformam a energia física da luz em energia neural…” (p. 185).

Como evidencia a figura 1, existem no olho outros órgãos funcionalmente imprescindíveis, como a córnea que se situa na zona anterior da camada externa do globo ocular e é transparente; existem os músculos ciliares responsáveis pelas mudanças na forma do cristalino que permitem focar os objetos a várias distâncias; existem também os músculos oculares externos, responsáveis pelo movimento do globo ocular na sua cavidade (Kirk e Gallagher, 2002; Mackay, 2009). O funcionamento defeituoso de qualquer um destes órgãos é passível de afetar a visão, pois compete aos olhos enviarem para o cérebro, via nervo ótico, informação codificada em atividade neural, ou seja, cadeias de impulsos elétricos as quais, pelo seu código e pelos padrões de atividade cerebral, permitem representar objetos (Gregory, 1979).

Muitas vezes, os olhos de alguém com deficiência visual são externamente notados por diferenças anatómicas e funcionais, em relação aos olhos de alguém vidente. A este respeito, Nielsen (1999) refere que:

“… À nascença, os do bebé podem parecer vazios de expressão ou podem mesmo apresentar alguma desfiguração. As doenças que afectam o globo ocular podem também alterar o aspecto dos olhos. Um excesso de pressão pode fazer com que os olhos fiquem protuberantes. Por estes factos, muitos indivíduos cegos usam óculos. Alguns podem usá-los por razões estéticas, enquanto outros aos quais ainda resta alguma visão útil, o podem fazer para a melhorar um pouco (p.55).

Tradicionalmente, a perceção de padrões visuais é atribuída exclusivamente a dois conjuntos de células existentes na retina, os cones e os bastonetes (Gregory, 1979; Habib, 2003; Mackay, 2009), enquanto as células ganglionares da retina surgem como responsáveis, unicamente, pela deteção da presença ou ausência de luz, contribuindo assim para a regulação de certas atividades cerebrais, como os ritmos circadianos. Aos bastonetes atribui-se a função de “captar” a imagem do objeto, enquanto os cones são responsáveis por “perceber” as diferentes cores (Neves, 2008). Investigações recentes, conduzidas por Ecker e outros (2010) em ratos, sugerem que as células ganglionares podem ser mais abundantes e diversificadas do que as teorias tradicionais sugerem, projetando-se assim num conjunto alargado de áreas cerebrais, nomeadamente naquelas responsáveis pela perceção visual. Numa das suas experiências, os autores criaram ratos geneticamente programados para não desenvolverem cones nem bastonetes, mantendo intactas as células ganglionares da retina. Quando sujeitos a um teste visual, estes ratos mostraram-se capazes de distinguir padrões, necessitando no entanto do dobro de tentativas.

Os seres humanos possuem dois olhos dotados de músculos que lhes permitem mover-se, de forma que uma cena que é olhada se projete na zona central das retinas, chamadas fóveas, onde as imagens atingem a máxima definição (Jimenez, 2002). A região central da retina, num ângulo de 10 a 15 graus em torno do eixo ocular, trata de forma estática as imagens recebidas, permitindo apreciar toda a riqueza das formas e os movimentos lentos, enquanto a visão periférica é especializada na análise de movimentos rápidos, parecendo não se preocupar com a identificação das formas (Ninio, 1994).

Após o estímulo luminoso ser focado na retina, geram-se sinais neuronais enviados via nervo ótico do olho para o núcleo geniculado lateral do Tálamo e deste, para o córtex occipital, região onde a maior parte da informação visual é processada (Amedi et al., 2005). No córtex occipital situam-se o córtex visual primário e o secundário, que como a própria palavra primário indica, constrói uma primeira representação preceptiva, função que será continuada ao nível do lobo parietal posterior e do lobo temporal, zonas responsáveis por representações visuais específicas, assim como por representações multimodais (Farah, 1988).

Se taparmos com a mão o olho esquerdo e observarmos uma paisagem apenas com o direito, obtemos uma imagem A. Se de seguida repetirmos o processo, mas tapando o olho direito e observando com o esquerdo, obtemos uma imagem A’. Sobrepondo A e A’ poderemos perceber que não coincidem exatamente, ou seja, na verdade temos duas imagens díspares. Felizmente, o sistema visual humano possui, em condições normais, uma capacidade notável, a de sintetizar as duas imagens, um tanto díspares, numa única imagem – visão estereoscópica, a qual é necessária para a perceção da profundidade até aproximadamente 100 metros (Gregory, 1979; Vauclair, 2008). Quando, por alguma razão, o cérebro perde esta capacidade, ocorre diplopia, visão de duas imagens simultâneas de um mesmo objeto, uma síndrome bastante incapacitante e perturbadora. A perceção da profundidade é considerada um desafio fundamental para o sistema visual, particularmente quando os sujeitos se movimentam (Nadler et al., 2008).

Desde há muito tempo, com particular ênfase nas últimas quatro ou cinco décadas, os investigadores têm procurado identificar, compreender e explicar as influências da deficiência visual nas restantes funções dos sentidos, almejando, projetando e testando formas cada vez mais eficazes de estimular estas últimas (Kirk e Gallagher, 2002). É certo que a visão se constitui como uma excelente fonte sensorial no desenvolvimento da perceção, mas esta pode atingir níveis de excelência na sua ausência, nomeadamente em cegos congénitos ou precoces (Heller e Ballesteros, 2006). Assim, não poderíamos deixar de abordar os restantes sentidos, ainda que menos exaustivamente que a visão, o que faremos nos pontos seguintes.


1.2. O TATO

Depois de mais de um século dedicado, essencialmente, ao estudo da visão (Posner e Raichle, 2001), os investigadores sentem-se agora atraídos pelo estudo do tato, sobretudo nas duas últimas décadas, em que um número considerável de laboratórios em todo o mundo lhe devota atualmente esforços consideráveis (Ballesteros e Heller, 2006). Trata-se também de um sentido físico, sendo estimulado quer pela pressão na pele, quer pelos movimentos do corpo. O seu desenvolvimento ontogenético inicia-se cedo, ainda no útero materno, onde o feto desfruta de inúmeras interações táteis com as paredes uteroplacentárias, suscitadas pelas deslocações do corpo materno e do seu próprio corpo (Vauclair, 2008).

Podemos considerar as mãos como a primeira ferramenta e a mais importante, utilizada nos primórdios da humanidade. Ainda hoje elas são essenciais pelas suas múltiplas funcionalidades, sendo certo que a sua importância é incomensuravelmente maior para os cegos. A metáfora que nos é apresentada por Gil (2000, 2002) ilustra bem a importância que o tato assume para os cegos, sobretudo nos primeiros anos de vida, em que a linguagem se encontra num estádio incipiente, não olvidando, é claro, o seu sentido metafórico: “As mãos são os olhos das pessoas com deficiência visual” (p. 24). Através das mãos, um bebé cego pode (i) localizar, analisar, compreender e relacionar a existência, as formas e as funções dos objetos, (ii) identificar a forma e perceber o calor dos rostos, nomeadamente da mãe, (iii) adquirir conceitos espaciais e (iv) integrar o seu esquema corporal (Gil, 2000). No entanto, reduzir o tato às mãos é demasiado redutor, uma vez que o tato é, em si mesmo, uma fonte de informações multimodal. Compreende o tato propriamente dito, por referência à pele, órgão particularmente sensível nos dedos e em toda a zona palmar das mãos, nos lábios, na língua e nos pés (zonas densamente inervadas), mas também os movimentos de procura ou varredura que estas executam e as referências à postura corporal (Ballesteros e Reales, 2006; James et al., 2006; Mackay, 2009; Millar, 2006).

Quando comparado com a visão, que é sintética e globalizadora, o tato permite apenas análises parcelares, graduais e lentas, só posteriormente integradas num todo global (Dias, 1995; Gil, 2000; Heller e Ballesteros, 2006; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995).

Está demonstrado experimentalmente e percebemo-lo pela nossa própria experiência, que o tempo necessário ao tato é significativamente superior ao da visão, ou seja, podemos planear e executar um movimento ocular sacádico em menos de 200ms, enquanto mover os dedos para uma nova localização requer intervalos de tempo superiores (James et al., 2006). Por outro lado, o tato apenas pode percecionar os objetos situados ao alcance das mãos, enquanto a visão permite percecionar a grandes distâncias e características macro espaciais (Ballesteros e Reales, 2006; Dias, 1995; James et al., 2006; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995; Sathian e Prather, 2006). A visão permite outras funções não acessíveis ao tato, como captar a cor, a tonalidade e a luminosidade dos objetos, assim como existem objetos dificilmente tateáveis no seu estado natural, como sejam o fogo, uma estrela, uma formiga, uma montanha, um castelo ou objetos raros e/ou frágeis, entre outros (Dias, 1995;

Heller, 2006; Horton, 2000). O tato também apresenta vantagens em relação à visão, pois há características microespaciais dos objetos que captará com mais precisão, como sejam (i) o peso, (ii) a consistência, (iii) a flexibilidade, (iv) a temperatura, (v) a aderência (pegajosa ou escorregadia) e (vi) a textura (Ballesteros e Heller, 2006; Ballesteros e Reales, 2006; Bardisa, 1992; Heller, 2006; Horton, 2000; James et al., 2006; Sathian e Prather, 2006). Para o reconhecimento tátil de um objeto, o cego explora com as mãos e organiza pontos de referência num mapa mental, como sejam ângulos, fendas, rugosidades ou superfícies lisas (Ninio, 1994). Quando se trata de percecionar formas tridimensionais, o tato permite vantajosamente tatear, em simultâneo, as partes da frente e de trás de um objeto, simultaneidade que não está ao alcance da visão embora, em alguns casos, o observador possa contornar os objetos e obter informações visuais segundo diferentes pontos de observação (Ballesteros e Reales, 2006; Heller, 2006; James et al., 2006).

Continuando a comparação entre a visão e o tato, a primeira é capaz de processar uma análise pouco pormenorizada através da retina periférica e simultaneamente, processar uma análise finamente pormenorizada através da fóvea, contrastando com o sistema háptico, para o qual é muito difícil processar simultaneamente uma análise pouco pormenorizada com as palmas das mãos ou os braços e uma análise pormenorizada com os dedos (James et al., 2006). Não obstante as semelhanças e as diferenças expressas neste parágrafo, James e outros (2006) defendem a existência de evidência sustentada de que os sistemas visual e háptico processam a estrutura dos objetos da mesma forma, partilhando uma mesma representação subjacente. Esta ideia encontra suporte adicional em vários estudos de neuroimagem, os quais evidenciam uma sobreposição entre os processamentos visual e háptico ao nível do cérebro humano.

Numa das manifestações da nossa perceção multissensorial podemos, enquanto videntes, recorrer à visão para guiar a exploração tátil, conduzindo ambos os sentidos um trabalho sincronizado de obtenção de informações ambientais, até certo ponto redundantes, mas mais completas (Heller e Ballesteros, 2006). Acrescente-se que a exposição a objetos reais através da visão ou, em alternativa, do sentido háptico, afeta a identificação posterior desses mesmos objetos, respetivamente através do sentido háptico ou da visão (James et al., 2006). Esta cooperação entre a visão e o tato merece dois reparos. Em primeiro lugar, nem sempre as informações obtidas são acrescidas de validade, porque contraditórias. Por exemplo, quando olhamos para uma cobra a nossa perceção visual remete-nos para uma textura viscosa e húmida, mas se a percecionarmos tactilmente, sentimos uma textura fria e seca. Em segundo lugar, esta cooperação entre a visão e o tato não está ao alcance dos sujeitos cegos, particularmente dos cegos congénitos, que não deixarão de demonstrar outras formas de cooperação sensorial, como a que pode ocorrer entre o tato e a audição, em que a dureza e o material de um objeto podem ser determinados com a exploração tátil auxiliada pela audição, daí muitos cegos percutirem os objetos quando os exploram tatilmente.

Vários autores (Bardisa, 1992; Ochaita e Rosa, 1995) consideram que o tato ativo ou sistema háptico se constitui como o mais importante sistema sensorial para os cegos.

Distinguem dois tipos de tato, o tato passivo e o tato ativo ou sistema háptico. O primeiro recebe informações de forma passiva ou não intencional, como sejam a sensação da roupa vestida ou da temperatura do ar. O segundo busca intencionalmente a informação a receber, envolvendo não apenas os recetores cutâneos (como ocorre no tato passivo), mas também os recetores dos músculos e dos tendões, o que permite captar, também, informação articulatória, motora e de equilíbrio. A exploração tátil ativa tem-se revelado particularmente eficiente na identificação de objetos tridimensionais e das suas propriedades estruturais, como por exemplo a simetria (Ballesteros e Reales, 2006). Esta identificação incrementa a sua eficiência e a sua rapidez, quando todos os dedos podem explorar livremente os objetos e os sujeitos podem mover livremente as mãos, logo a imposição experimental de restrições à exploração tátil dos objetos, desincentiva a rapidez e a eficácia (Ballesteros e Heller, 2006). No estudo da perceção háptica, Bardisa (1992) alerta para a distinção necessária entre a natureza do fenómeno em cegos congénitos e em videntes e cegos tardios (com cegueira adquirida). No primeiro caso, considera a autora estarmos face à perceção háptica pura ou autónoma, enquanto no segundo caso a perceção háptica dificilmente se pode divorciar da perceção visual, propondo as designações de háptica visual ou de optoháptica. Os padrões de perceção táctil tendem a ser mais pobres nos videntes, comparativamente aos sujeitos com muito baixa visão ou aos cegos (Heller e Ballesteros, 2006).

O Mestre em Educação Física Paulo Ferreira Pinto afirma que se tem vindo a acumular evidência de que a perceção plantar, por referência à planta do pé, é utilizada pelos portadores de cegueira total congénita para o seu deslocamento. A perceção plantar resulta do contacto mecânico da planta dos pés com o solo, podendo proporcionar informações acerca do tipo de piso, do que este representa ou pode representar, sobretudo após uma sucessão de contatos plantares (Pinto, 2001). Recomenda o autor que se desenvolva a capacidade percetiva plantar, expandindo as oportunidades de exploração de pisos diferenciados.

Um aspeto que os dados apontam como particularmente sensível no tato, sobretudo na identificação dos estímulos, é a familiaridade dos sujeitos com estes (Ballesteros e Reales, 2006). Tanto os cegos congénitos como os videntes de olhos vendados manifestam dificuldades na identificação de figuras tangíveis não familiares (Heller, 2006).


1.3. A AUDIÇÃO

Tem-se demonstrado que a audição se torna completamente funcional por volta das 24 semanas de gestação e que os fetos reagem a ruídos exteriores, assim como a estímulos linguísticos, a partir das 27 semanas (Vauclair, 2008).

Trata-se, à semelhança dos anteriores, de um sentido físico estimulado pela energia mecânica associada à vibração dos materiais, normalmente o ar. Em condições equivalentes, os sujeitos cegos estão expostos aos mesmos sons que os videntes, mas a importância e os significados que estes assumem em termos cognitivos e funcionais podem ser muito distintos. Por exemplo, se nos preparamos para atravessar uma estrada e uma viatura se aproximar, a nossa primeira perceção poderá ser o som, mas a tendência natural será voltar a cabeça para o estímulo sonoro e avaliar visualmente a distância e a velocidade do mesmo e decidir conforme sobre a travessia. Nesta mesma situação, a audição poderá ser o único ou pelo menos, o mais fiável e seguro meio para um cego decidir sobre o momento adequado para atravessar a estrada. Efetivamente, a audição do som produzido pela viatura poderá proporcionar informação útil acerca da sua localização (à esquerda ou à direita), da sua distância e da sua velocidade. Não se trata assim, como a investigação tem demonstrado, de algum dom especial caraterístico dos cegos ou sexto sentido, mas tão só da seleção e processamento diferencial dos estímulos disponíveis e passíveis de serem captados o que, tão pouco, se processa automaticamente, implicando aprendizagem e prática estruturadas, orientadas e sistematizadas (Horton, 2000; Ormelezi, 2000).

Para as crianças cegas, particularmente as que o são desde os primeiros meses ou semanas de vida, a audição poderá constituir-se como um contributo essencial para compreender a existência de uma realidade exterior, separada e mais ou menos distante.

Para elas, estímulos sonoros que permitam uma identificação fiável são particularmente importantes, enquanto referências para a locomoção em larga escala (Millar, 2006).

Importa assim que as crianças aprendam, desde cedo, a (i) ter consciência dos sons, (ii) identificá-los, (iii) distingui-los, (iv) localizá-los e (v) atribuir-lhes significados, processos lentos e graduais (Gil, 2000; Horton, 2000). Por exemplo, ao ouvir uma porta a bater, a criança pode ainda não conhecer a sua forma, a sua função, nem o material que a constitui, mas este som poderá constituir-se como estímulo motivador para encetar explorações táteis e/ou solicitar informações verbais sobre a porta. Mais uma vez, a linguagem deve assumirse, nestas circunstâncias, como um mediador de significados por excelência.

A “visão facial” é uma competência estritamente relacionada com a audição e alvo de particular atenção pela investigação. Nas palavras de Horton (2000):

“… É provável que já a tenha experimentado. Numa noite muito escura, regressa a casa por um caminho ladeado de árvores ou arbustos. De quando em quando pára, porque «sabe» que há um ramo à sua frente. Pode não o ver mas, de algum modo, «sente» a sua presença. Estende então a mão, encontra o ramo, passa-lhe por baixo e prossegue o seu caminho…” (p. 66).

Explica o autor que tal situação, nada encerra de mágico, apresentando a seguinte explicação científica:

“… chega até si um certo eco, talvez o barulho dos seus próprios passos repercutido no ramo. É um efeito do tipo do que guia os morcegos nos seus voos nocturnos. Certas crianças cegas têm esta aptidão consideravelmente desenvolvida. Ao percorrerem determinado caminho podem ser capazes de contar o número de árvores por que vão passando, sem lhes tocarem. Podem, inclusive, dirigir-se directamente para uma parede ou um muro, e parar antes de ir contra ele…” (pp. 66-67).


1.4. O OLFATO

Embora a sua presença e as suas manifestações sejam incontornáveis no dia-a-dia, tanto dos cegos quanto dos videntes, o olfato, assim como o paladar (ponto seguinte), são tidos equivocamente como sentidos pouco importantes, porventura mesmo no seio da comunidade científica que, não raras vezes, os exclui da literatura relacionada com a cegueira. Na verdade, podemos falar da existência de um fosso histórico cuja amplitude ultrapassa um século, no qual os investigadores estudaram, essencialmente, a perceção visual (Ballesteros e Heller, 2006; Paivio, 1971).

Estando as estruturas nervosas responsáveis pelo olfato (e também pelo paladar) disponíveis a partir da 14ª semana de gestação (Vauclair, 2008), a importância funcional do olfato manifesta-se, desde logo, nos primórdios da vida, enquanto ferramenta funcionalmente útil para a sobrevivência, contribuindo para o reconhecimento do seio materno, ao mesmo tempo que cheiros novos ou com significado, podem ser mais atraentes para um bebé que alguns objetos visualmente apelativos (Gregory, 1979; Ninio, 1994).

Sendo certo que o cego recorre, de forma voluntária, ao olfato e ao paladar com menos frequência do que ao tato e à audição, pensamos como Horton (2000) que as informações por eles disponibilizadas não são negligenciáveis para o conhecimento do mundo circundante, por exemplo na identificação de locais e objetos, assim como de alimentos agradáveis ou impróprios para consumo. Em conformidade, o autor recomenda que se trabalhe com as crianças, no sentido de adquirirem as seguintes competências relacionadas com o olfato: consciência, identificação, distinção e localização dos cheiros.

Podemos comparar o nosso nariz a uma central de identificação química uma vez que, cheirar corresponde à deteção de certas moléculas no ar ou na água (Mackay, 2009; Ninio, 1994).


1.5. O PALADAR

Estritamente relacionados em termos anatomofisiológicos, paladar e olfato partilham algum do ostracismo a que o senso comum e mesmo a comunidade científica os tem votado. Ambos estes sentidos são designados de químicos, uma vez que são estimulados a partir da deteção de determinadas substâncias químicas na boca e no nariz, respetivamente (Mackay, 2009).

J. Kirk Horton recomenda que se trabalhe com as crianças cegas no sentido destas desenvolverem a sensibilidade às diferenças de paladar e à identificação de alimentos (Horton, 2000). Parece que somos dotados de células recetoras específicas para cada uma das classes primárias de sabores, especificidade essa que deve contribuir para a organização do trabalho educativo em torno do paladar. De acordo com Mackay (2009), são seis as classes primárias de sabores: amargo, doce, salgado, ácido e umami (palavra japonesa que define o sabor da carne). Acrescenta este autor que outras propriedades gustativas, como as relativas à gordura e à água, carecem ainda de mais e melhores estudos.


1.6. A PERCEÇÃO

A perceção de algo, uma pessoa, um objeto ou uma paisagem, não se restringe única e exclusivamente ao processamento de informações de natureza sensorial, podendo envolver informações resultantes de experiências prévias e/ou antecipadas, envolvendo o objeto propriamente dito ou outros, assim como pessoas ou situações relacionadas, não esquecendo as informações oriundas dos restantes sistemas sensoriais (tato, audição, olfato e paladar) (Gregory, 1979; Damásio, 2004). Como exemplo das influências possíveis da informação resultante de experiências prévias e/ou antecipadas, temos as famigeradas figuras ambíguas. Uma figura ambígua consiste num conjunto de linhas sem significado algum, que percecionadas numa busca ativa e induzida de objetos, podem efetivamente conduzir a uma representação dos mesmos. Por exemplo, ver uma jarra branca entre áreas pretas sem significado (rostos), torna-se possível em virtude da nossa familiaridade com a forma representada, a qual resulta de experiências anteriores com jarras de formatos mais ou menos equivalentes aos representados (Jimenez, 2002; Neves, 2008). Os princípios anteriores aplicam-se também aos restantes sistemas sensoriais, ou seja, as influências das experiências prévias e/ou antecipadas e as interações entre sistemas. No que respeita às interações entre sistemas, a maioria das experiências percetivas envolvem, pelo menos, duas modalidades sensoriais diferentes, o que se designa por perceção intersensorial ou intermodal (por exemplo, a visão e o som, o paladar e os odores) (Vauclair, 2008). A perceção intermodal está relacionada com a designada transferência intermodal, a qual permite que informações provenientes de determinada modalidade sensorial informem outras modalidades, levando a que, por exemplo, possamos identificar visualmente um objeto, através de informações provenientes exclusivamente da sua perceção táctil (Vauclair, 2008). Consequentemente, a representação que nos chega do mundo, não corresponde ao mundo tal qual ele é, pois ela está contaminada pelas referidas experiências prévias e/ou antecipadas. Neste sentido, Jimenez (2002) afirma que “identificar um objecto pressupõe uma correspondência entre informações perceptivas figurativas e uma representação preexistente na memória” (p. 40). Para Paivio (1971), além de uma representação disponível na memória, são necessários processos e competências verbais que permitam identificar o estímulo. Nos seus trabalhos, Lev Vigotski havia já demonstrado que, mesmo nos estágios mais precoces do desenvolvimento, a linguagem e a perceção estão interligadas (Vigotski, 1994). Com base nesta ideia, vários autores (Gregory; 1979; Jimenez, 2002) sugeriram que a perceção corresponde a uma hipótese antecipada sobre a realidade, formulada ao nível cerebral com base (i) nas representações preexistentes (percetivas e culturais), (ii) no contexto e (iii) nos valores individuais, a qual é testada pelos dados sensoriais, processos acompanhados da atribuição de significados, com base em informações de natureza contextual e valorativa. Tanto as abordagens teóricas tradicionais, como as mais contemporâneas, assumem que os processos associados às representações mentais interagem com e modificam a informação sensorial, contribuindo assim para determinar a experiência percetual (Paivio, 1971). Datam de 1951 as primeiras experiências científicas que demonstraram que “um mesmo estímulo é tratado tanto mais rapidamente quanto maior for a sua probabilidade subjectiva” (Jimenez, 2002, p. 41). Numa outra investigação de 1949, Bruner e Postman solicitaram a um grupo de sujeitos que observassem um baralho de cartas comum, para de seguida lhes mostrarem cartas em que os naipes apresentavam uma cor diferente da comum, por exemplo copas pretas e paus vermelhos, situação na qual os sujeitos descreveram estas cartas como se de cartas comuns se tratasse (copas vermelhas e paus pretos), enquanto outros tentaram um equilíbrio intermédio, referindo por exemplo copas roxas (Paivio, 1971). Um bom exemplo da perceção enquanto hipótese antecipada pode acontecer num centro comercial.

Aproximamo-nos de umas escadas rolantes que se encontram paradas, sabemos de experiências anteriores que a nossa presença as acionará automaticamente mas, por alguma razão, desta vez elas continuaram paradas. Não obstante, o nosso corpo comporta-se como se elas tivessem iniciado o movimento, procurando manter-se equilibradamente num mesmo degrau, procura essa que acaba por induzir algum desequilíbrio em virtude da sua desadequação à ausência de movimento das escadas. Um outro exemplo vem-nos da natureza. Numa trovoada, ao vermos um relâmpago antecipamos imediatamente a ocorrência subsequente do trovão. Em função da proximidade e da intensidade do relâmpago, podemos mesmo antecipar a proximidade e a intensidade do trovão. Quando estamos a ler um texto escrito, o contexto da mensagem ajuda a probabilizar e antecipar as palavras mais adequadas para se seguirem, o que poderá explicar porque é tão difícil identificar pequenas gralhas, mesmo após várias leituras, sobretudo quando os textos são da nossa autoria (Jimenez, 2002). Assim, quanto mais conhecido for o texto, mais fácil se torna a antecipação e menor é o erro probabilístico. Em suma, a perturbação da perceção pelas imagens mentais está, em grande medida, dependente da coincidência entre natureza dos estímulos a percecionar e a natureza das imagens mentais percecionadas, ou seja, por exemplo, a perceção de estímulos visuais é perturbada, sobretudo, pelas imagens mentais de natureza visual (Paivio, 1971).

Desde há vários séculos que se debate a se a perceção é adquirida ou inata, por outras palavras, se a aprendizagem de uma determinada forma de perceção é ou não necessária. Tal debate focou-se essencialmente na visão e segundo Gregory (1979), contou com pensadores tão eminentes como Descartes, Locke, Molyneux e Berkeley. Diz-nos o autor que têm sido conduzidas várias investigações para tentar derramar alguma luz sobre esta questão, enquanto Bouvrie e Sinha (2007) acrescentam que este continua a ser um dos desafios fundamentais da neurociência. Alguns dos debates científicos mais acesos e apaixonados a propósito dos processos da visão, são os que esgrimem argumentos entre a sua natureza inata e a sua natureza adquirida. Autores há que rejeitam firmemente qualquer natureza inata no funcionamento da visão, sublinhando que quando nascemos ainda não sabemos ver, pelo que é imprescindível aprender a ver, algo que deve ocorrer nos primeiros anos de vida (Gil, 2000). Algumas investigações têm incidido sobre cegos congénitos que recuperaram a visão em idade adulta, mas com resultados pouco conclusivos, existindo evidências a favor e contra ambas as ideias. Numa súmula dos resultados obtidos com estas investigações, Gregory (1979) afirma que:

“… Alguns dos casos relatados são da natureza esperada pelos filósofos empiristas. Os pacientes só viam pouco no início, sendo incapazes de denominar ou distinguir até mesmo entre objectos e formas simples. Por vezes, transcorria um longo período de treinamento antes de eles passarem a ter visão útil, a qual, de facto, em muitos casos, nunca foi atingida. Alguns renunciaram à tentativa e voltaram a uma vida de cegueira, frequentemente depois de um período de sérias perturbações emocionais. Por outro lado, alguns viram perfeitamente bem quase de imediato, sobretudo aqueles que eram inteligentes e activos, e que tinham recebido uma boa educação enquanto cegos…” (p. 191).

O estudo da identificação de configurações faciais por crianças cegas congénitas e que recuperaram a visão é, uma das áreas que tem contribuído com alguma evidência a favor do inatismo. Dois estudos de caso realizados por Bouvrie e Sinha (2007), junto de duas crianças cegas congénitas e que recuperaram a visão após sete e dez anos de privação visual, revelaram que a capacidade de discriminar faces visualmente e localizá-las em cenários complexos pode desenvolver-se, mesmo após longos períodos de privação visual, não sendo necessários longos períodos para desenvolver esta capacidade após a recuperação da visão, uma vez que num dos sujeitos essa recuperação havia ocorrido há apenas uma semana.

Outra linha de investigação relacionada com a mesma questão tem estudado bebés (Gregory, 1979). R. Frantz descobriu que os bebés passam o dobro do tempo com o olhar fixo num desenho semelhante a um rosto humano, comparativamente a um outro desenho, com os mesmos traços e elementos, mas distribuídos aleatoriamente. Mais uma vez, os resultados não apoiam, de forma inequívoca, apenas uma das possibilidades, pois tanto podem significar um reconhecimento inato do padrão visual geral dos rostos, como podem significar uma aprendizagem muito precoce, atendendo a que os rostos das mães não foram ocultados aos bebés, ou significar ambas as coisas. Outras investigações parecem dar ligeira vantagem à hipótese do desenvolvimento inato, tendo-se apurado uma preferência dos bebés por objetos sólidos em detrimento das representações bidimensionais dos mesmos, o que parece indicar alguma capacidade inata de avaliar a profundidade (Gregory, 1979). No mesmo sentido, não é necessário ensinar uma criança a compreender o espaço, tal como evidenciaram procedimentos experimentais de grande elegância concebidos por Eleanor Gibson, em que os bebés se recusam a gatinhar por cima de uma chapa de vidro, perfeitamente segura, mas que simulavam um precipício (Gregory, 1979; Ninio, 1994). O ser humano parece, assim, já nascer equipado para perceber visualmente a profundidade e o perigo.

As contribuições mais recentes para este debate parecem conduzir a uma hibridação entre o inato e o adquirido, um percurso algo semelhante ao percorrido pelo debate acerca da natureza da luz, corpuscular defendida por Newton ou ondulatória defendida por Huygens, o qual culminou na natureza dual aceite atualmente e que combina, entre outras, proposições válidas de ambas as teorias. Assim, Ninio (1991) afirma que algumas perceções se encontram geneticamente programadas para acontecerem logo após a nascença, como sejam a cor e o movimento, sendo que outras irão amadurecer fruto da experiência e sem educação formal, como o reconhecimento das formas e dos sons. A experiência diária diz-nos que não precisamos explicar a uma criança de dois ou três anos como reconhecer e distinguir o Noddy e o Ruca 10. Acompanhando o autor, voltamos aos cegos de nascença que recuperaram a visão na idade adulta, na busca de evidências para o que afirmamos. Assim, estes sujeitos sentem enorme dificuldade em reconhecer formas, consequência da falta de experiência. Por outro lado, aprendem depressa a distinguir as cores, apesar de não conseguirem distinguir formas a partir das mudanças de tonalidade.

Na interpretação de Jacques Ninio, as áreas cerebrais que processam informações sobre a cor, apesar de nunca terem sido utilizadas, parecem funcionar perfeitamente, pelo que conclui que a análise da cor foi programada geneticamente com grande precisão. Diz-nos o mesmo autor que as dificuldades e a necessidade de aprendizagem aumentam quando se lida com imagens e signos criados pelo Homem, artefactos culturais com os quais povoou a sua realidade e que só ele, em todo o Reino Animal poderá compreender, como sejam a título de exemplo, a linguagem escrita ou a análise das imagens de um espelho retrovisor.

Dedicamos considerável atenção aos sistemas sensoriais e à perceção, pois as principais correntes teóricas no campo das representações mentais, assumem à larga data que estas estão relacionadas com a perceção, quer na sua origem, quer nas suas propriedades funcionais (Bértolo, 2005; Damásio, 2003a, 2010; Denis e Cocude, 1989;

Paivio, 1971, 1990; Posner e Raichle, 2001). Dados recentes apresentados por Belardinelli (2004), suportam e ajudam a esclarecer a ideia geral, segundo a qual, as imagens mentais operam de forma similar à perceção: lesões cerebrais posteriores (córtex visual) podem provocar simultaneamente deficiências percetuais e imagético-mentais, enquanto a ocorrência de imagens mentais de natureza visual ativa as áreas cerebrais visuais primárias.

Esta similitude funcional parece não ter um carácter absoluto, uma vez que, alguns estados patológicos exibem dissociações entre a recognição percetual e as imagens mentais, o que poderá indicar a existência de algumas diferenças funcionais. Evidência de natureza neuropsicológica suporta a ideia de que a construção de uma imagem mental se apoia nos mesmos mecanismos cerebrais utilizados na perceção. O seguinte exemplo é-nos proposto por Kosslyn (1995) e Posner e Raichle (2001), o qual se refere a um estudo clássico nesta área. Pacientes que sofreram lesões no seu lobo parietal direito, por vezes, demonstram negligência visual unilateral: ignoram objetos situados à sua esquerda (o lado direito do cérebro recebe informação sensorial do lado esquerdo e vice versa). Os autores dessa investigação publicada em 1978, Bisiach e Luzzatti, pediram a estes pacientes que imaginassem uma cena que lhes era reconhecidamente familiar antes da lesão cerebral.

Numa das situações experimentais, pediu-se aos sujeitos que se imaginassem numa praça de Milão, bem conhecida deles antes da lesão, para de seguida descreverem o que visualizavam nas suas mentes. Não obstante o seu conhecimento acurado da praça, anterior à lesão, na situação experimental os sujeitos descreveram apenas os edifícios situados do lado direito da posição imaginada, ignorando os situados do lado esquerdo. De seguida, os investigadores solicitaram aos sujeitos que se imaginassem no lado oposto da praça, de frente para o local onde se imaginaram anteriormente e que descrevessem o que visualizavam nas suas mentes. Foram apenas mencionados os edifícios agora situados à direita, os quais foram ignorados na situação experimental anterior, enquanto os descritos na situação anterior foram agora ignorados. Estes casos clínicos ilustram com sustentação que lesões cerebrais podem afetar, de forma idêntica, a perceção e a construção de imagens mentais, o que não poderá deixar de indiciar a partilha de substratos e de mecanismos processuais entre estes fenómenos. Outros estudos clínicos, também com pacientes neurológicos, ajudam a demonstrar e compreender o envolvimento do córtex visual na construção de representações mentais. Como explica Farah (1988, 1996), se as imagens mentais visuais recorrem ao mesmo substrato funcional que a perceção visual, é expectável uma redução da capacidade para construir imagens mentais visuais, em simultâneo com a redução da perceção visual. De facto, para todos os tipos de deficiências visuais estudadas, resultantes de lesões no córtex visual, identificaram-se deficiências na construção de imagens mentais de natureza visual. Um conjunto considerável de casos de pacientes com cegueira cortical às cores relata uma relação entre a perda da perceção às cores e a incapacidade de construir imagens mentais visuais das cores. Por exemplo, para além da sua incapacidade para identificar ou discriminar cores, estes pacientes são incapazes de recordar a cor de objetos comuns, como uma bola de futebol ou uma laranja. Estes pacientes não revelam, em geral, outras disfunções cognitivas. Várias investigações têm revelado boas capacidades destes pacientes na construção de imagens mentais de natureza visual, imagens essas acedidas através de desenhos ou descrições orais, revelando-se incapazes apenas em relação às cores. M. Farah é assim levada a concluir que a perceção e as imagens mentais das cores estão dependentes do mesmo substrato neurológico, pelo que a ativação das áreas visuais em tarefas associadas a imagens mentais visuais não é, como pugnam alguns, um mero epifenómeno. De outra forma, também carecia explicar as razões porque o cérebro despenderia energia na ativação das áreas visuais aquando da construção de imagens mentais, se essa ativação não fosse efetivamente necessária.


2. DESENVOLVIMENTO COGNITIVO

O sistema cognitivo engloba um conjunto de estruturas que, no seu conjunto, permitem realizar uma determinada função geral, como ler, escrever, falar, planear, etc.

(Posner e Raichle, 2001). O desenvolvimento cognitivo estrutura-se a partir de múltiplos processos de aprendizagem proativa, envolvendo (i) observações, (ii) condicionamentos clássicos, (iii) aprendizagens operantes e (iv) imitações, entre outros (Paivio, 2006).

No passado, houve quem defendesse que as crianças cegas manifestavam atrasos cognitivos significativos, com base em conceções estáticas do desenvolvimento e em medições distorcidas, uma vez que a avaliação cognitiva destas crianças era efetuada a partir de testes padronizados para as crianças ditas normais (Cunha e Enumo, 2003).

Não obstante as teorias educacionais e as do desenvolvimento infantil dinâmico, raramente terem informado e fundamentado a conceção, implementação e avaliação das adaptações curriculares destinadas a alunos com NEE, acreditamos hoje no primado do desenvolvimento infantil dinâmico, que num mesmo tempo pode seguir caminhos diferentes ou, seguir o mesmo caminho, mas em tempos diferentes. Assim, aquilo que antes eram considerados atrasos, são hoje concebidos como caminhos e/ou tempos diferentes. A teoria piagetiana do desenvolvimento infantil é apontada por Kirk e Gallagher (2002) como um exemplo interessante, particularmente na intervenção junto das crianças deficientes visuais. Assim, adotamos os intervalos de idade propostos por Jean Piaget, para estruturar a apresentação deste ponto.


2.1. ATÉ AOS DOIS ANOS

As experiências vividas no decorrer deste período constituem-se como a fundação sobre a qual se irão estruturar outras competências cognitivas, nomeadamente a linguagem (Paivio, 2006).

A este nível do desenvolvimento cognitivo, Piaget (1975) defende que o mundo exterior ao sujeito surge perante este, como constituído por (i) objetos não permanentes, (ii) espaço e tempo não organizados em grupos e em séries e (iii) causalidades não espacializadas nem situadas nos objetos. Nas palavras do próprio autor: “o universo consiste, no começo, em quadros perceptivos móveis e plásticos, centrados na actividade do próprio sujeito” (p. 327). O autor fala de uma inteligência sensoriomotora que visa, essencialmente, a adaptação prática, ou seja, a utilização prática e o seu êxito. Por outro lado e ainda segundo Piaget, constitui-se como uma adaptação do sujeito aos objetos, mas sem socialização do pensamento, em grande medida devido à ausência da linguagem verbal.

Sintetizando os principais desenvolvimentos emergentes deste período, Fernandes e Pinho (2007) consideram (i) a ligação das sensações percetivas ao ato motor, (ii) a exploração e perceção concreta dos objetos, pelo movimento e a nível consciente, (iii) a reprodução dos gestos úteis e abandono dos inúteis, (iv) o início do desenvolvimento da linguagem e (v) o início do jogo.

Não olvidando a variabilidade individual associada ao desenvolvimento, existe evidência de que, o desenvolvimento cognitivo das crianças cegas congénitas na primeira infância é bastante afetado (Martín e Bueno, 1997). Por exemplo, a simples presença de determinados objetos, pode ser razão suficiente para que um bebé vidente se sinta atraído por eles e tente alcançá-los por sua iniciativa ou por intermédio do adulto, seguindo-se depois a sua exploração que raramente se limita à visão. A criança mexe com as mãos e mete na boca, agita e percute. A investigação tem demonstrado que características visuais como contraste, movimento, curvatura, cor e simetria atraem e mantêm a atenção do bebé vidente (Sousa, 2003). A audição sem a visão parece ser menos atrativa para o bebé, pois no primeiro ano de vida, tendencialmente, um bebé cego só se dirige espontânea e autonomamente para um som, meses depois de um bebé vidente demonstrar esses comportamentos em relação aos estímulos visuais (Santin e Simmons, 1977). Como lembram Kirk e Gallagher (2002), um bebé cego ao não ver os objetos, a simples presença destes não é suficiente para que se sinta atraído por eles, logo não tentará alcançá-los. Mas, se eles forem deliberadamente introduzidos no seu raio de ação por intermédio de terceiros, ou conduzido ao encontro dos mesmos, a exploração que se segue tenderá a seguir um padrão semelhante ao dos bebés videntes, como mexer e meter na boca, agitar e percutir.

Estes autores recomendam o recurso a chocalhos e jogos de encontrar objetos escondidos que emanem cheiro ou som.

As investigações realizadas com crianças cegas no estádio sensoriomotor revelam que, comparativamente aos pares videntes, as primeiras diferenças marcantes do desenvolvimento se manifestam entre os quatro e os nove meses de vida, período em que os videntes deverão desenvolver a coordenação entre a visão e a preensão (Ormelezi, 2000).

2.2. DOS DOIS AOS SEIS ANOS

Aproximadamente a partir dos dois anos, Martín e Bueno (1997) afirmam que a criança inicia a sua caminhada pelo período pré-operatório de Piaget, ao qual se seguirá o período das operações concretas (entre os 6 e os 11 anos).

Segundo o próprio Jean Piaget, é durante o segundo ano que a representação vem completar a ação característica do período anterior, graças a uma integração progressiva dos comportamentos (Piaget, 1975). Tal evolução, diz o autor, permite progredir da ação para a linguagem 11 e para o pensamento, começando os esquemas a organizarem-se em sistemas de conceitos racionais. Esta evolução está fortemente relacionada com o desenvolvimento da linguagem verbal e todo o conjunto beneficia da cooperação interindividual. Piaget salienta uma relação estreita e bidirecional entre aquilo que designa de pensamento social e de pensamento racional. Apesar de a linguagem estar já em fase de desenvolvimento, pode acontecer que a criança não consiga, ainda, traduzir em palavras e explicações verbais, as operações que já domina plenamente em termos de ação e que iniciaram o seu desenvolvimento ainda na fase anterior.

Referimos no parágrafo anterior a importância que Piaget atribui à cooperação interindividual. A este respeito salienta (Piaget, 1975) uma relação estreita e bidirecional entre aquilo que designa de pensamento social e de pensamento racional. Apesar da crescente importância que o pensamento social começa a manifestar, nesta fase não é fácil as crianças abandonarem o seu pensamento próprio para se adaptarem ao dos outros, sendo ainda propensa à satisfação prioritária dos seus desejos e ao julgamento segundo o seu ponto de vista.

Para Piaget e Inhelder (1977), uma das características mais marcantes deste período é a dificuldade ainda manifestada pelas crianças no domínio das transformações, o que as leva a raciocinar, sobretudo, com base em configurações, cuja natureza é, essencialmente, estática. Assim se explica, segundo os autores, que “quando se faz o transvasamento de um líquido, por exemplo, de um copo largo A para um copo estreito B, o sujeito de 4-5 anos compara as configurações de partida e de chegada desprezando a transformação e conclui que a quantidade aumentou em B” (p. 498).

De acordo com Piaget (1971), este período é marcado pelo aparecimento da representação cognitiva constituída de pré-conceitos e caracterizada pela busca de equilíbrio entre a assimilação 12 e a acomodação 13, favorecida pelo envolvimento dos significantes coletivos que são os signos verbais. Os pré-conceitos não estão organizados segundo a sua generalidade ou hierarquia, ou seja, os objetos percebidos são assimilados a objetos dados pela representação, mas sem qualquer organização em classes ou relações gerais, pelo que um objeto percebido ou evocado é considerado como um exemplar tipo do todo. Por exemplo, nesta fase, a criança tem dificuldades em identificar os cães de acordo com as raças respetivas pelo que, seja um pastor alemão ou um caniche, para a criança ambos são, simplesmente cães. Ainda que os possa diferenciar, por exemplo em termos de tamanho ou de cor.

No período pré-operatório, os cegos congénitos deparam-se com dificuldades no desenvolvimento da imitação, que surge empobrecida em relação aos pares videntes, o que terá como consequência um atraso no desenvolvimento do jogo simbólico (Ormelezi, 2000).

2.3. DOS SEIS AOS ONZE ANOS

Para o modelo de Piaget, a atividade inteligente é marcada pelo equilíbrio entre a assimilação e a acomodação, sendo este período marcado pelo estabelecimento desse mesmo equilíbrio (Piaget, 1971). O pensamento da criança caracteriza-se agora pela “velocidade e reversibilidade cognitiva, pelo abandono do intuitivo, da confusão do real com o irreal, do exterior com o interior” (Fernandes, 2004, p. 51).

Uma das características do pensamento operatório que vai despontando nesta fase é a coordenação entre os estados configuracionais e as transformações, sendo os primeiros concebidos como resultados de algumas das segundas, ao mesmo tempo que poderão ser o ponto de partida de outras transformações (Piaget e Inhelder, 1977).

A criança domina, nesta fase, os processos de classificação do mundo dos objetos concretos, operando através de classificações, comparações, diferenciações, seriações, etc. (Fernandes e Pinho, 2007).

As crianças cegas poderão manifestar atrasos no desenvolvimento das operações concretas, com maior desfasamento em tarefas de tipo figurativo-percetivo que nas de carácter linguístico. Nesta linha, os trabalhos de Ochaita e Rosa (1995) revelam que, em média, (i) os cegos apresentam um atraso de três a sete anos nos testes figurativos ou espaciais (tarefas espaciais, de imagens, bem como seriações manipulativas), (ii) esse atraso é anulado entre os 11 e os 15 anos de idade, mesmo para tarefas espaciais complexas e (iii) os cegos obtêm rendimento similar aos videntes em tarefas verbais de classificação, inclusão e seriação.

2.4. A PARTIR DOS ONZE ANOS

Como resulta do ponto anterior, a formação de conceitos atravessa vários estádios, envolvendo operações mentais gradualmente mais complexas, culminando o seu desenvolvimento mais elevado na adolescência, quando os sujeitos são capazes de formular verdadeiros conceitos, não sendo diferente o caso das crianças cegas (Nunes e Almeida, 2005).

Segundo Martín e Bueno (1997), a inteligência representativa tende a manifestar-se através da comunicação linguística, da imitação de modelos, da exteriorização da imagem mental através do desenho e da prática do jogo simbólico, as três últimas manifestações particularmente sensíveis nas crianças cegas e sujeitas a atrasos. O ingresso no estádio das operações formais indica-nos que uma criança começa a estar apta para assimilar e acomodar conceitos abstratos, processos que requerem mais tempo, porque tendencialmente mais lentos nas crianças cegas (Gil, 2000). Não obstante, estudos conduzidos por Ochaita e Rosa (1995) não identificaram diferenças significativas entre cegos e videntes, na resolução de problemas de forma hipotético-dedutiva, com recurso a (i) controlo de variáveis, (ii) material manipulativo, (iii) material verbal e (iv) raciocínio causal.

Há várias décadas que a teoria e os ensinamentos de Piaget alicerçam e robustecem a investigação com crianças cegas, não deixando de levantar novas questões, ao mesmo tempo que algumas das velhas questões continuam em aberto. Assim vive o conhecimento científico e a investigação. Não obstante a distância temporal que nos separa de 1974, não podemos deixar de considerar o trabalho de Stephens e Simpkins, datado desse mesmo ano e de inspiração Piagetiana, como uma referência na investigação com crianças cegas congénitas, nomeadamente pela chamada de atenção para a necessidade de conceber e/ou adaptar estratégias e atividades que permitam à criança cega interagir e conhecer o mundo físico. Permitimo-nos transcrever a descrição que Kirk e Gallagher (2002) nos fazem deste trabalho:

“… traçar o desenvolvimento do raciocínio lógico, comparando setenta e cinco crianças com cegueira congénita e setenta e cinco crianças da mesma idade com visão e com escores equivalentes de QI. As crianças receberam uma bateria de tarefas piagetianas de raciocínio que envolviam várias experiências com o ambiente físico. Os resultados desse estudo sugeriram que o nível de desenvolvimento conceitual das crianças com visão era significativamente maior do que o das crianças cegas de idade e aptidão semelhantes. Stephens e Simpkins estavam inclinados a atribuir esses resultados à falta de experiências sensoriais na primeira infância por parte das crianças cegas. Tentaram prosseguir utilizando um currículo que atacou esse problema apresentando uma série de experiências que ilustravam formações fundamentais no modelo piagetiano…” (p. 218).

Tendencialmente, as crianças cegas obtêm melhores desempenhos que as crianças videntes em tarefas associadas à memória para novos objetos, tanto a curto como a longo prazo, sendo que quanto mais novas são as crianças cegas, melhores tendem a ser os resultados a este nível, sustentando a importância e eficiência da estimulação precoce (Heller e Ballesteros, 2006).

Como resulta do exposto anteriormente, a cegueira parece não funcionar como causa per se de limitações cognitivas. São as limitações que se impõem no conhecimento do mundo físico, sobretudo às crianças cegas congénitas, que poderão resultar em desfasamentos negativos, pela falta de informação visual e de incentivo (i) para ações motoras como o gatinhar e a marcha que permitiriam alcançar os objetos, (ii) para ações sociais, uma vez que a criança só se aperceberá da presença de outrem pelo toque ou pelo som que, se não ocorrerem, a criança poderá nem se aperceber que está acompanhada, não solicitando intermediação para alcançar os objetos e/ou solicitar informações adicionais, assim como (iii) para ações de natureza afetiva as quais poderão enfermar das mesmas limitações impostas às ações sociais, com a agravante da ausência de informação visual não permitir percecionar e responder a estímulos de natureza afetiva como o olhar e o sorriso, fundamentais para a criação de um ambiente estimulante de partilha de ideias. Por outro lado, a investigação tem demonstrado os efeitos perniciosos da passividade, proporcionando a conceção, implementação e avaliação de estratégias eficazes de minimizar as referidas limitações, podendo as crianças cegas alcançar um desenvolvimento cognitivo equivalente ou superior às videntes. Vários estudos permitem concluir que os atrasos no desenvolvimento observados em algumas crianças cegas, não são consequência direta da falta de visão, mas de aspetos secundários relacionados com o contexto social em que se processa (Nunes e Almeida, 2005). Lembra-nos Masini (2003) que não é demais enfatizar a importância da criança cega viver o mundo de forma plena e proativa, contactando e aprofundando o conhecimento de pessoas e objetos (naturais e artificiais), explorando e tirando o máximo partido dos sentidos de que dispõe. Em suma, a cegueira, tal como realçam Heller e Ballesteros (2006), ainda que possa estar associada a atrasos temporários do desenvolvimento das crianças portadoras, jamais poderá pressagiar um adulto menos capaz.

2.5. O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM VERBAL

No âmbito do desenvolvimento cognitivo, merece destacado realce o desenvolvimento da linguagem verbal, fundamental a qualquer ser humano e patente da própria humanidade, como demonstram alguns estudos experimentais, raros, os quais proporcionaram que bebés humanos fossem criados com bebés macacos, tratados da forma mais idêntica possível numa família humana. Inicialmente, o desenvolvimento dos bebés macaco parecia mais acelerado, mas era ultrapassado pelos bebés humanos a partir do momento em que estes desenvolviam a linguagem verbal (Gregory, 1979). Segundo Gil (2000), a linguagem verbal nas crianças cegas assume-se, a par do tato, como canal primordial de contacto com o meio envolvente. A linguagem permite aos indivíduos cegos, em um conjunto considerável de ocasiões, conhecer e manipular mentalmente as realidades físicas e sociais circundantes.

Constitui-se como um facto incontestado que, não obstante as variações que podem ocorrer individualmente, as diferentes fases do desenvolvimento da linguagem tendem a ser fixas e universais, mesmo entre culturas muito distintas. A este respeito:

“…durante o primeiro ano de vida, a criança normal adquire primeiro o comportamento de balbuceio, constituído por sons não diferenciados produzidos de maneira não específica. A partir do primeiro ano, o sistema fonológico instala-se: a criança pode pronunciar mais ou menos distintamente um número crescente de palavras, sendo esta fase marcada sobretudo por um fenómeno de ecolalia, isto é, a repetição em eco dos sons ouvidos. A partir de dois anos, a compreensão da linguagem ouvida é quase completa e constróise o sistema morfossintáctico: construção de frases de duas ou três palavras cuja organização começa a corresponder a regras de sintaxe…” (Habib, 2003, p. 244).

O desenvolvimento da linguagem verbal, em qualquer criança, deve processar-se a par do desenvolvimento dos respetivos significados. Para Paivio (1990), desde que as representações da memória correspondam aos sons do discurso, a linguagem significativa ou com significado começará a estabelecer-se cedo no desenvolvimento da criança, através da exposição ao discurso oral, nomeadamente dos adultos próximos. Paralelamente, os sons produzidos pela criança vão, gradualmente, assumindo as características gerais da comunidade linguística em que a criança se insere. Aproximadamente a partir dos dois ou três anos, os dados experimentais revelam a inexistência de diferenças significativas dos cegos em relação aos videntes, na capacidade de codificação semântica da informação (Díaz-Aguado et al, 1995; Ninio, 1994; Ochaita e Rosa, 1995; Peraita et al., 1992). Antes desta idade, o balbucio desenvolve-se ao longo do primeiro ano de vida, de forma normal e semelhante à dos videntes, enquanto o aparecimento das primeiras palavras se pode revelar mais variável, podendo manifestar-se com ligeiro atraso. A este respeito, Dias (1995) afirma que a aquisição da linguagem nas crianças cegas é equivalente às videntes, podendo verificar-se atrasos recuperáveis nas primeiras, como resultado de experiências de vida pobres e pouco estimulantes. A partir dos 9 ou 10 anos e uma vez estabelecida a aquisição da linguagem pelas crianças cegas, esta dirige e organiza os processos de classificação e estruturação dos conhecimentos sobre o mundo, manifestando uma série de esquemas verbais sobre categorias naturais e artefactos, que em nada diferem dos videntes, embora com desfasamentos cronológicos em detrimento dos primeiros (Peraita et al., 1992).

Assim, enquanto ferramenta cognitiva de extraordinária utilidade para a adaptação à realidade, a codificação verbal da informação ajuda a superar as dificuldades manifestadas pelas crianças cegas, nomeadamente nos primeiros estádios de desenvolvimento, o que pode explicar porque parecem não existir diferenças significativas na idade de aparecimento do pensamento formal entre os adolescentes cegos e os videntes (Díaz- Aguado et al., 1995). Os sujeitos cegos têm revelado, em várias investigações, uma memória verbal superior aos videntes com os mesmos padrões de desenvolvimento, sendo que o processamento da linguagem e da memória nos cegos parece envolver redes neuronais extensas, as quais abrangem também as áreas cerebrais visuais (Amedi et al., 2005).

No estudo do desenvolvimento da linguagem em crianças cegas, tem merecido especial atenção a utilização de verbalismos, que Peraita e suas colaboradoras (1992) definem como a utilização pelos cegos de palavras com significado visual ou de referências visuais, sem equivalente em outras modalidades sensoriais. As autoras referem um estudo efetuado por Landau, de 1983, onde é analisada a utilização de verbalismos por uma menina cega. Para esta menina, “ver” não é uma palavra desprovida de sentido quando a utiliza, tal como não assume o seu significado literal pela falta de experiência vidente.

Constatou-se que utilizava esta palavra desde os 28 meses aproximadamente, idade equivalente ao início da sua utilização por parte dos videntes. Para ela, “ver” parecia assumir um significado isomorfo de “tocar” num sentido ativo, ou seja, explorar percetivamente com as mãos. Com base nos seus estudos acerca dos conteúdos oníricos em cegos, congénitos ou não, Bértolo e Paiva (2001) vão mais longe e formulam uma hipótese diferente:

“… Parece que um discurso com componentes visuais poderá ser mais do que um simples enunciar de conceitos apreendidos, mas poderá ter, de facto, uma resposta e uma componente de activação occipital. Ou seja, poder-se-á considerar a hipótese de os cegos serem capazes de produzir imagens virtuais, e de que essa representação imagética possa ter, por exemplo, uma origem genética…” (p. 30).

No nosso quotidiano utilizamos a linguagem gestual a par da verbal, de forma tão natural que quase não damos pela presença dela. Relatos da Universidade de Chicago (University of Chicago, 1998) afirmam que as crianças cegas utilizam os gestos como parte integrante do seu discurso, em grande parte, de forma semelhante às crianças videntes.

Referindo-se aos trabalhos de Goldin-Meadow e Jona Inverson, acrescentam que os gestos parecem ser parte integrante do processo de falar em si mesmo e, não tanto, o resultado da observação e imitação de modelos (caminhos inacessíveis às crianças cegas, particularmente às cegas congénitas). Sugerem estas autoras que os gestos que acompanham com o discurso falado podem refletir, em si mesmos, ou até facilitar, o pensamento subjacente ao discurso verbal. Na investigação realizada, os gestos parecem facilitar o acesso aos pensamentos das crianças, pensamentos esses que podiam ainda não ter sido expressos em palavras. O grupo de cegos congénitos gesticulou com a mesma frequência dos videntes, assim como procuraram transmitir ideias similares com gestos idênticos. Para testar a possibilidade dos gestos serem realmente auxiliares do pensamento e não meras formas conscientes de comunicar, repetiram-se as tarefas da investigação referida anteriormente, mas colocando um cego no papel de investigador e informando os sujeitos de que estavam a falar com um adulto cego. Nesta condição, todas as crianças continuaram a gesticular, com a mesma frequência e gestos semelhantes à condição anterior.

3. DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL

Por todas as suas implicações no desenvolvimento global da criança, desde o primeiro dia que o desenvolvimento emocional não pode ser descurado, seja nas crianças ditas normais, seja nas referenciadas como portadoras de NEE. Como salienta Fernandes (2004), para o recém-nascido e durante muito tempo, a afetividade é a única forma de comunicação ao seu dispor para comunicar com o mundo exterior. Ela gosta ou não gosta, tem medo ou não tem medo, ri, chora ou grita em função dos seus estímulos interiores e exteriores, satisfazendo assim grande parte das suas necessidades básicas de sobrevivência.

Como resposta, a mãe promove contactos entre o seu corpo e o da criança, embala, amamenta, sorri e dialoga ou canta com uma voz quente e meiga. O desenvolvimento emocional está, necessariamente, ligado às emoções. Acontece, com alguma frequência, que emoções e sentimentos sejam designações usadas indiscriminadamente como sinónimos, o que segundo Damásio (2003a, 2003b, 2010) não é correto, pois são processos distinguíveis. Entende por emoção um programa complexo, dotado de grande automatização e de ações modeladas pelo processo evolutivo da espécie, as quais estão associadas a um programa cognitivo complexo, ou seja, emoções constituem ações que ocorrem no nosso corpo de forma automatizada e, muitas vezes modelada, incluindo desde as expressões faciais, às posições do corpo e às mudanças nas vísceras e no meio interno.

Por exemplo, o acelerar do ritmo cardíaco como resposta a uma situação inesperada e assustadora. Os sentimentos são, por outro lado, perceções daquilo que acontece no corpo e na mente quando sentimos emoções, ou seja, são imagens mentais das ações e não as ações em si mesmas, acompanhadas de pensamentos com certos temas e de um certo modo de pensar. Portanto, é lícito afirmar que, apesar da sua relação íntima e aparente simultaneidade, a emoção precede o sentimento (Damásio, 2003b, 2004).

No caso particular das crianças cegas congénitas, atos de comunicação como os sorrisos e as expressões faciais 14 do adulto, altamente gratificantes para o bebé vidente mas não percetíveis pelos cegos, devem dar lugar a contatos faciais, ao mesmo tempo que se vai falando com ele, para que ele se aperceba e aprenda a identificar quem lhe fala (Martín e Bueno, 1997; Dias, 1995; Peraita et al., 1992; Posner e Raichle, 2001; Vauclair, 2008).

Comparativamente a um bebé vidente, Barraga (1976, citado em Kirk e Gallagher, 2002), recomenda que se invista mais tempo com carícias, colo, toques, balanço e movimentação do bebé cego congénito. Estes resultados surgem corroborados num estudo mais recente, realizado por Eliana Ormelezi em 2000, em cuja maioria dos jovens adultos por si estudados, cegos congénitos, salientaram que “ a presença de alguém adulto que toca, cuida, acarinha, fala e ama é um aspecto fundamental para o ser humano nesse processo de diferenciar-se e tornar-se sujeito” (p. 190). Estas interações deverão, por exemplo, fomentar a curiosidade e a motivação da criança, estimulando-a a aproximar-se do mundo dos objetos, a manipulá-los e explorá-los, podendo fazer experiências com eles. Para estes autores, a adequação das interações afetivas das crianças cegas com as pessoas que a rodeiam é fundamental, nomeadamente para o desenvolvimento da linguagem verbal. A voz e o toque, em especial por parte dos adultos mais significativos, são fatores com destacada importância para Gil (2000), nomeadamente por se constituírem como formas eficazes de tranquilizar e confortar a criança. Sendo certo que os comportamentos da criança capazes de cativar a atenção e a reação do adulto não dependem da visão, como por exemplo chorar, sorrir e agarrar, estes podem cumprir plenamente as suas funções, também no caso das crianças cegas. Já as reações dos adultos às demandas da criança cega poderão, com frequência, não ser as mais adequadas, se fizerem apelo à perceção visual, minimizando os restantes órgãos sensoriais ao serviço da criança cega (Cunha e Enumo, 2003). Por exemplo, por mais autêntico, belo e sentido que seja um olhar e um sorriso silencioso, eles dificilmente serão captados pela criança cega. Mas as carícias, massagens, contar uma história, cantar ou simplesmente falar com ternura, partilhar brincadeiras e gargalhadas, poderão ser altamente gratificantes, tanto para a criança cega como para os seus interlocutores.

A construção de uma imagem equilibrada de si próprio, consciente e real, enquanto conjunto de elementos da personalidade considerados nitidamente como característicos do si, pode influenciar o desenvolvimento emocional. Consequentemente, sendo dependente, em parte, das experiências anteriores e da imagem que os outros projetam desse si, a criança poderá considerar-se capaz ou incapaz em função das avaliações alheias e da consciencialização acerca da própria eficácia ou ineficácia (Dias, 1995). Os profissionais que trabalham com adultos cegos numa perspetiva clínica destacam, entre as dificuldades mais importantes destes sujeitos, as relacionadas com a compreensão e/ou expressão das próprias emoções, o que poderá resultar da falta de feedback visual sobre as reações emocionais dos outros, nomeadamente nos atos de comunicação, assim como da crença de que as suas emoções são tão distintas dos restantes seres humanos, que não podem ou não merecem ser partilhadas (Díaz-Aguado et al., 1995). Dados empíricos revelam que as crianças cegas tendem a apresentar um baixo autoconceito, considerando-se menos populares e menos felizes que os seus pares videntes, sendo que as diferenças se acentuam na adolescência (Díaz-Aguado et al., 1995; Zafra, 1991). Não é assim de estranhar que a ansiedade patológica e a depressão tenham uma incidência maior nas crianças cegas que nos seus pares videntes, situação para a qual Zafra (1991) recomenda particular atenção por parte dos adultos envolvidos na educação da criança. Como conclui Nunes (2004), este baixo autoconceito pode influir negativamente no desempenho cognitivo dos sujeitos. Ao solicitar a crianças cegas congénitas que descrevessem verbalmente as suas representações mentais de vários conceitos obteve, muitas vezes, como resposta inicial “não conheço” ou “não sei dizer o que é” sendo que, posteriormente e por via de estratégias alternativas de inquirição obteve, desses mesmos sujeitos, representações corretas e elaboradas.

O conhecimento de si mesmo, das emoções e consequentes sentimentos é destacado por Kirk e Gallagher (2002), quando se referem a Ralph, uma criança de 11 anos com visão muito reduzida:

“… Talvez a principal preocupação para a sua adaptação escolar seja o modo como Ralph sente a si mesmo. Sua deficiência visual é suficientemente séria para que às vezes não tenha a certeza se pertence à comunidade dos que têm visão ou à comunidade dos cegos. Ele sente profundamente o fato de ser desajeitado e a sua incapacidade de se sair bem em atletismo – uma dimensão muito importante na vida de um menino de onze anos –, mas não discute isso com ninguém. […] Acima de tudo, Ralph está começando a se preocupar com o seu futuro: o que fará de sua vida quando crescer? Como poderá ser independente? Como poderá fazer amizade com o sexo oposto?...” (p. 190).

O trecho anterior chama-nos a atenção para a importância dos grupos de referência.

A este respeito, vários autores salientam a importância da criança cega se relacionar simultaneamente com múltiplos grupos de referência, nomeadamente um grupo dito macro, composto por crianças sem NEE e um grupo micro, preferencialmente inserido no anterior e composto por crianças com NEE, similares ou não (Díaz-Aguado et al., 1995; Garialde et al., 1992).

Ao estudarem o controlo e a expressão das emoções em crianças cegas e videntes, com idades compreendidas entre os 6 e os 13 anos, Cole e outros (1989, citados por Díaz- Aguado et al., 1995) relatam que (i) na tentativa de controlar as manifestações externas da deceção, ambos os grupos manifestam, com frequências e intensidades similares, expressões verbais de tipo positivo, assim como sorrisos, ao mesmo tempo que (ii) se observam diferenças significativas entre os grupos, nas crianças mais velhas, quanto à consciência dos seus comportamentos de dissimulação da deceção. Assim, (i) a cegueira congénita parece não impedir o controlo espontâneo de emoções negativas, mas (ii) afeta a consciência acerca desse controlo, sobressaindo a utilização consciente de controlos verbais em detrimento dos não-verbais, enquanto os videntes evidenciam, pelo contrário, maior consciência dos controlos não-verbais.


4. DESENVOLVIMENTO MOTOR

O sistema motor compreende as estruturas destinadas às funções da motricidade, a qual se entende como “o conjunto dos mecanismos que permitem ao nosso organismo mover o corpo e os membros em relação aos objectos que nos rodeiam e manter a nossa postura, isto é, a atitude do corpo no espaço” (Habib, 2003, p.89).

A maturação do sistema motor dos vertebrados, nomeadamente no que respeita ao tónus e às posturas, segue a lei da progressão céfalo-caudal e a lei próximo-distal. De acordo com Vauclair (2008), a primeira implica que a maturação ocorre de forma descendente, da cabeça para a parte inferior do corpo, logo desde a vida intrauterina, enquanto a segunda implica que a maturação ocorre do tronco para as extremidades.

Do nascimento aos três anos de vida as crianças devem desenvolver (i) a sustentação da cabeça, (ii) o rolar, (iii) o gatinhar, (iv) o andar, (v) o correr e (vi) o saltar (Gil, 2000). Este percurso, essencial ao desenvolvimento motor é particularmente sensível nas crianças cegas, particularmente nas cegas congénitas. Na primeira infância o défice visual levanta graves problemas no entanto, pouco notórios nos primeiros quatro meses de vida:

“… o desenvolvimento nesta etapa baseia-se na inteligência prática, na percepção de sensações recebidas do meio ambiente e sua interacção com este através dos primeiros movimentos. Até aos quatro meses a falta de visão não é ainda um factor determinante: o bebé segue um ritmo de desenvolvimento normal, exercitando os reflexos próprios e inatos com excepção da resposta reflexa a estímulos luminosos; adquire as primeiras capacidades, centradas no domínio do próprio corpo, como a sucção e a preensão dos objectos que estão em contacto com o seu corpo…” (Martín e Bueno, 1997, p. 325).

Entre os quatro e os nove meses, período em que os videntes desenvolvem a coordenação entre a visão e a preensão (Ormelezi, 2000; Peraita et al., 1992), as influências da cegueira congénita podem tornar-se mais notórias, como nos relatam Martín e Bueno (1997):

“… os bebés normovisuais começam a desenvolver, por um lado, o hábito de pegar nos objectos que percebem através da visão e, por outro, a permanência dos objectos, coisa que não se consegue até ao ano e meio ou dois anos, assim como a coordenação óculo-manual. Nos bebés cegos o processo é diferente, verificando-se um atraso considerável devido a que a coordenação áudiomanual é mais difícil e a sua aquisição é mais lenta. Da mesma forma, a um bebé cego será muito mais difícil adquirir a noção de permanência do objecto.

Para ele, um objecto deixa de existir no momento em que perde o seu contacto ou deixa de ouvir o seu som.

No bebé cego, o comportamento normal de agarrar um objecto não se verifica antes dos sete meses. Só a partir daí começa a procurar os objectos que antes teve na mão. Por volta dos nove meses começa a utilizar algumas formas de procura desses objectos e, a partir dos 12 meses, aproximadamente, procura objectos guiando-se pelo som que emitem mesmo sem antes ter pegado neles…” (p. 325).

Momentos aguardados com expectativa e vividos intensamente por qualquer progenitor ou cuidador são o sentar, o gatinhar e o caminhar, fortemente relacionados com o desenvolvimento da postura. A este respeito:

“… os bebés cegos seguem as mesmas linhas de desenvolvimento motor dos bebés normovisuais, mas têm mais dificuldade na mobilidade devido à ausência de estímulos visuais vindos do exterior. O início do gatinhar situa-se por volta dos 12 meses e a marcha pelos 19…” (Martín e Bueno, 1997, p. 325).

Como afirma Vauclair (2008), a motricidade e a perceção estão fortemente relacionadas. Ao não ser motivado por estímulos visuais, como um brinquedo com cores apelativas ou uma lâmpada que se acende, o bebé cego sentirá menor necessidade de erguer a cabeça, de rolar e de gatinhar, como forma de alcançar esses objetos visualmente apelativos, levando a que e segundo Gil (2000), os seus músculos possam tardar a desenvolver-se, o que por retroação dificultará o erguer da cabeça, o rolar e o gatinhar. A criança cega sente pouca motivação para se aventurar, por sua conta e risco, na exploração de um ambiente imprevisível, acrescentando alguma inércia ao desenvolvimento da mobilidade (Figueira, 1996; Santin e Simmons, 1977). Não é assim de estranhar que algumas crianças cegas, aos três anos de idade e sem qualquer restrição motora de natureza anatómica ou fisiológica, revelem atrasos significativos no desenvolvimento das suas competências de marcha (Figueira, 1996). No mesmo sentido Gil (2000) acrescenta que:

“… Frequentemente, os bebês com baixa visão preferem ficar em um ambiente constante e familiar, temendo as mudanças – mesmo que seja apenas uma mudança de posição. Alguns, por exemplo, querem permanecer de costas, escolhendo a estabilidade e a imobilidade para se proteger do desconhecido mundo ameaçador…” (p. 22).

Com base em Fraiberg (1977), Ochaita e Rosa (1995) traçam-nos o perfil de desenvolvimento típico de um bebé cego: em média, até aos sete meses de idade, um bebé cego não procura recuperar um brinquedo acabado de retirar da sua mão; entre os sete e os oito meses de vida, inicia a busca de objetos logo após ter contactado tactilmente com eles, por momentos breves e não evidenciando referências espaciais em relação ao último contacto; ainda entre os sete e os oitos meses, reage ao som de objetos perdidos, não os procurando, mas abrindo e fechando a mão como se quisesse agarrá-los; nesta fase, não reage a objetos sonoros que não foram tocados previamente; entre os oito e os onze meses, manifesta algumas referências espaciais, procurando objetos em torno do local onde os perdeu e se tocado previamente, procura já os objetos perdidos mediante o seu som; aos 12 meses procura objetos guiando-se somente pelo seu som, o que evidencia a coordenação definitiva entre o ouvido e a mão.

Do exposto anteriormente, resulta essencial estimular precocemente o desenvolvimento do domínio corporal, da coordenação motora e da orientação, competências pouco desenvolvidas nas crianças cegas, contribuindo simultaneamente para debelar o torpor muscular, a rigidez, as estereotipias e as dificuldades na estruturação espacial (Zafra, 2001). Além da importância que o desenvolvimento motor assume, em si mesmo, ele impactará significativamente no desenvolvimento de outras competências ao longo da vida, tanto de um cego como de um vidente (Jensen, 2002). No entanto, algumas especificidades merecem destaque no caso dos cegos, como por exemplo a aprendizagem da leitura e da escrita em Braille que requer o desenvolvimento de habilidades motoras finas, assim como de flexibilidade nos punhos e agilidade nos dedos (Gil, 2000, 2002).


5. DESENVOLVIMENTO SOCIAL

O desenvolvimento social e consequentemente a sociabilidade, compreendem potencialidades humanas que parecem estar inscritas nos genes da espécie. Somos, afinal, uma das espécies mais sociais da Biosfera. Nas palavras de Brazelton e Sparrow (2010) “os seres humanos são animais sociais desde o início” (p. 31). No seguimento do princípio anterior, Fernandes e Pinho (2007) afirmam que a sociabilidade “conduz o indivíduo a comportamentos imitativos, à tomada de consciência dos outros e de si-mesma, ao desenvolvimento de emoções e de afectos e à concretização de relações interpessoais que reforçam a sua autoconsciência” (p. 27).

Em termos gerais, Kirk e Gallagher (2002) salientam a inexistência de problemas sociais inevitáveis sentenciados pela cegueira, da mesma forma que a cegueira também não confere uma nobreza automática. Em suma, a cegueira acontece em seres humanos, que continuam humanos, com as suas limitações e os seus talentos. Segundo estes autores, a liberdade restringida e a limitação de experiências das crianças cegas, muitas vezes consequências por um lado da falta de estimulação e por outro, do desconhecimento das suas capacidades por parte dos cuidadores, assim como de estratégias para promover o desenvolvimento das mesmas, poderão resultar num estado de passividade e dependência ou inutilidade, aprendidas a partir da atitude dos adultos para com elas.

O desenvolvimento social assenta em construções e reconstruções (i) da conceção de si próprio, (ii) dos outros enquanto partes integrantes de um mesmo mundo e (iii) dos conhecimentos básicos acerca do mundo físico (Díaz-Aguado et al., 1995). Experiências comuns a um grupo de pessoas podem influenciar a construção de significados partilhados entre as mesmas (Paivio, 1990). Neste sentido, dois grupos de interações parecem desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento social de qualquer criança, particularmente das crianças cegas, os cuidadores adultos, que inclui a família próxima, os educadores e os professores, assim como os seus pares, outras crianças, cegas ou não, particularmente em contexto escolar. Assim, dedicaremos os pontos seguintes deste trabalho a cada um desses grupos.


5.1. O PAPEL DOS CUIDADORES ADULTOS

Existe evidência de que, se os adultos que interagem com a criança cega compensarem adequadamente a privação sensorial que a cegueira supõe, de forma estruturada e intencional, o desenvolvimento da criança cega pode ser muito similar ao de uma criança vidente (Díaz-Aguado et al., 1995). Todos os sujeitos de uma amostra de cegos congénitos estudados por Ormelezi (2000) destacam a importância de se terem relacionado com pessoas estimulantes, as quais criavam situações especialmente para eles, o que ajudava a compreender e atribuir significados às vivências em si mesmas, assim como às relações existentes entre diferentes vivências.

Se nos detivermos, por alguns momentos, no papel de um bebé cego, dar-nos-emos conta que o seu mundo circundante está dependente do espaço ocupado pelo seu corpo, da mobilidade do mesmo e dos sons que a rodeiam. Antes do desenvolvimento da linguagem verbal, estas restrições, impostas pela falta de visão, encontram-se agudizadas, podendo minimizar-se pela linguagem dos contactos corporais, que sabemos fundamentais também para o desenvolvimento emocional. Como afirmam Martín e Bueno (1997):

“… as relações afectivas e de apego do bebé com a mãe são de grande importância. Por isso, a família e, sobretudo, a mãe, devem conhecer as capacidades da criança, que aspectos fundamentais devem ser tidos em conta e como estimular a aprendizagem e o desenvolvimento do seu filho…” (p. 336).

Os trabalhos de Fraiberg (1977) e de Warren (1984), citados por Ochaita e Rosa (1995), revelaram que as respostas sociais diferenciadas dos bebés cegos aos objetos sociais, parece menos dificultada que aos objetos físicos. Assim, respostas como sorrir ao ouvir a voz da mãe, a partir dos quatro meses e medo como reação a vozes desconhecidas, a partir dos oito, indiciam um certo conhecimento da permanência das pessoas.

Efetivamente, o sorriso é considerado um poderoso e eficaz meio a favor da interação social, tendo já sido observado em bebés cegos congénitos em resposta a sons familiares (Sousa, 2003). Temos vindo a reiterar a necessidade suplementar de atenção e de estimulação de uma criança cega congénita, logo desde o nascimento. Na maioria das situações, Sousa (2003) recomenda que os adultos deverão ser proativos e não esperar que seja a criança cega congénita a tomar a iniciativa, pois a investigação vem mostrando que esta tende a ser passiva, sobretudo na relação com a mãe, não solicitando atenção. Com a expressão tende a ser, queremos sublinhar que não se trata de uma relação linear de causa efeito entre cegueira congénita e passividade social. Na verdade, os resultados obtidos pela autora citada demonstram que, alguns cegos congénitos, quando comparados com pares videntes de características equivalentes, apresentam frequências mais elevadas de atenção compartilhada na interação com as suas progenitoras, o que chama a atenção para uma outra variável, tanto ou mais importante que a condição visual, que é a qualidade das interações. A título de exemplo, uma mãe que se limite a acompanhar com um olhar vazio o que a criança está a fazer, seja esta cega ou vidente, que responde com monossílabos às suas indagações, que não demonstra motivação e prazer de estar a viver aquele momento, que para ela está a ser um “frete”, dificilmente poderá aglutinar de forma sincronizada a atenção da criança à sua, vivendo momentos de verdadeira partilha empática da atenção.

Referindo-se ao caso de Sarah, uma menina cega de nove anos, Kirk e Gallagher (2002) salientam o papel da mãe, afirmando que “sua mãe é carinhosa e compreensiva e tem lhe dado um grande apoio emocional” (p. 191). O necessário apoio emocional deve dirigir-se para a estimulação de crianças cegas conhecedoras de si próprias, base para erigir auto conceitos positivos. Assim, é crucial não confundir apoio emocional com proteção excessiva, conhecida como superproteção. Como lembra Nielsen (1999):

“… Os pais, assim como os professores, podem sentir a necessidade de proteger a criança de qualquer fracasso ou rejeição. Desta forma, esta é mantida à margem de qualquer actividade competitiva na qual pode existir o risco de a problemática se tornar óbvia ou de se registar qualquer fracasso. A superprotecção, porém, impede a existência de oportunidades para resolver problemas e tomar decisões e não potencia a independência da criança, nem o seu desenvolvimento social e emocional…” (p. 30).

Torna-se fundamental que a família e o universo social concebam e interajam com a criança cega enquanto ser humano completo que é, evitando uma focalização exacerbada na cegueira (Cunha e Enumo, 2003; Gil, 2000, 2002). Importa assim evitar atitudes demasiado protetoras e/ou permissivas, como impedir a criança de fazer algo ou permitir algo menos correto, pela simples razão de ser cego. Andar de bicicleta pode parecer, à primeira vista, uma atividade impossível para uma criança cega mas, com as adaptações necessárias e adequadas, como a utilização de uma bicicleta dupla e/ou a escolha de vias pouco acidentadas e pouco movimentadas, pode estar ao alcance de uma criança cega. É claro que existe o risco de se magoar, tal como existe para as crianças videntes. Por outro lado, se uma criança vidente derruba repetidamente e por puro prazer, um conjunto de objetos colocados numa mesa, esta atitude pode irritar bastante um adulto, entendendo-a como uma provocação e obrigando a criança a repor os objetos no local original. Se uma criança cega manifestar um comportamento semelhante, o mesmo poderá ser tendencialmente concebido como consequência da cegueira, “coitadinho, é cego, não viu, foi sem querer”, não o obrigando a repor os objetos. Tal atitude, aparentemente benévola e caridosa, poderá contribuir para a desresponsabilização e dependência da criança (Zafra, 1991), ao mesmo tempo que não incrementa as suas competências e a sua autoconfiança.

Estes exemplos fundam-se em casos reais de crianças cegas e seus familiares com quem temos mantido contato.

Outros adultos marcantes, uns mais outros menos, uns pela positiva outros pela negativa, são os professores. Estes devem assumir um papel ativo no fomento de relações sociais entre as crianças com e sem NEE mas não só, também entre NEE’s e entre videntes (Gil, 2000; Silva, 2008a; SNR, 1995), lutando contra possíveis mitos instalados ou receios (in)conscientes, por exemplo de que é mais seguro manter a criança cega na sala de aula, ao invés de permitir e orientar com diferentes níveis de diretividade, a sua participação no recreio (Horton, 2000). Seguindo as ideias de Echeita e Martín (1995), numa sala de aula confluem personalidades, dificuldades e talentos díspares, pelo que o estabelecimento de relações de amizade autêntica entre alunos (cegos ou não), baseadas em relações de afeto, respeito mútuo, empatia, carinho e simpatia, não resulta automático ou fácil, sendo imprescindível cultivar um ambiente de aceitação e valorização das diferenças, cultivo esse em que o professor deve constituir-se como modelo. Seguindo Garialde e outros (1992), trata-se de conseguir que as diferenças sejam assumidas como qualidades que aprendem e com as quais podemos aprender, ao invés de serem fatores de discriminação. Tal não é de somenos importância, pois como lembram Arbol e Arangurem (1995), por vezes, a própria organização escolar, podendo não ser causa de marginalização, pode alimentá-la com ambientes extremamente competitivos e individualistas.

Com base em estudos que recolheram os pensamentos de alunos cegos acerca das suas experiências escolares, Kirk e Gallagher (2002) resumem o que aqueles esperam dos seus professores:

“… «Não me trate como se eu fosse um desamparado. Não me faça nenhum favor especial. Deixe-me agir do meu modo.» A reacção de muitas pessoas que não tiveram experiência com deficientes é a de diminuir as exigências e expectativas mas esses alunos não querem esse tipo de «favores»…” (p. 197).

Na perspetiva de alguns autores, como Correia e Serrano (1999), Horton (2000), Kirk e Gallagher (2002), Nielsen (1999) e Ormelezi (2000), o papel dos professores, nomeadamente dos especializados em educação especial, não se restringe ao trabalho, por melhor que seja, com as crianças cegas. Defendem a inclusão e responsabilização dos pais ou encarregados de educação, enquanto parceiros que podem dar e receber. Podem, por exemplo, ajudar os professores a conhecerem melhor os seus educandos, ao mesmo tempo que poderão aprender novas formas de interação eficaz com os seus filhos ou educandos.


5.2. O PAPEL DOS PARES

A educação das crianças com NEE deve ser concebida, na maioria dos casos, integrada no contexto da chamada escola regular. Os cegos não são nem poderiam ser exceção, desde logo pelos ganhos que podem advir, entre outros, para o seu desenvolvimento social sendo que, segundo Martín e Bueno (1997), 70% destes alunos evidenciam relações sociais positivas, não obstante a dificuldade em se aperceber de expressões faciais, o que segundo Nielsen (1999) poderá obstaculizar o desenvolvimento de competências sociais. Entre os possíveis contributos, a literatura salienta o desenvolvimento (i) da independência pessoal, (ii) do trabalho autónomo, (iii) da psicoafetividade coerente e sem roturas com a sociedade em geral (Martín e Bueno, 1997).

Entre os 7 e os 11 anos de idade, as principais dificuldades sentidas pelas crianças cegas nas suas interações com as videntes acontecem nos momentos lúdicos, como as brincadeiras e os jogos, evidenciando preferência pelos videntes para trabalhar e pelos cegos para brincar ou jogar. Segundo Díaz-Aguado et al. (1995), tanto as crianças como os adolescentes cegos justificam que preferem trabalhar com videntes, com base na ajuda que podem obter deles, nomeadamente explicações verbais acerca dos fenómenos e dos objetos. As mesmas autoras afirmam que as crianças cegas tendem a ter menos iniciativas para iniciar e conduzir uma interação social, aproximadamente metade em relação aos seus pares videntes. O aparente desinteresse da criança cega, que parece pouco comunicativa aos olhos dos videntes e desinformada sobre o desenrolar das brincadeiras, associado à ausência de indícios visuais para iniciar e manter uma interação, como as expressões faciais e os gestos, contribui para explicar porque as crianças videntes parecem evitar a interação com os seus pares cegos (Santin e Simmons, 1977; Sousa, 2003). Por outro lado, os videntes, em relação aos cegos, têm o triplo de probabilidades de obter uma resposta positiva às suas iniciativas. Atendendo aos resultados obtidos por Díaz-Aguado e suas colaboradoras (1995), na comparação de crianças e adolescentes cegos e videntes a frequentar a escola regular, com crianças e adolescentes cegos a frequentar instituições especializadas:

  • a cegueira parece não afetar o conhecimento de estratégias de interação, influenciando sim os comportamentos adotados na prática;

  • a integração na escola regular favorece significativamente as relações da criança cega com os seus pares, favorecendo o desenvolvimento de estratégias mais eficazes, com consequências mais positivas;

  • os videntes tendem a ignorar os seus pares cegos da escola regular;

  • os alunos cegos da escola regular tendem a aceitar as escassas iniciativas de interação iniciadas pelos pares videntes;

  • interações assimétricas entre cegos e videntes na escola regular – os cegos emitem frequentemente pedidos de informação e de ajuda, recebendo poucas solicitações deste tipo;

  • os contextos de integração favorecem, nos alunos cegos, o desenvolvimento de condutas de colaboração;

  • os alunos cegos a frequentar a escola regular evidenciam representações mais favoráveis das crianças videntes;

  • no grupo de crianças, os videntes manifestam atitudes mais favoráveis à integração, quando comparados com os seus pares cegos, cujas representações parecem mais ambivalentes, baseadas essencialmente na necessidade de ser ajudado e na impossibilidade de ajudar;

  • as diferenças enunciadas no ponto anterior tendem a desaparecer na adolescência;

  • os adolescentes integrados valorizam significativa e simultaneamente a sua interação com os pares videntes e com outros cegos.

As relações sócio-afetivas dos alunos cegos e com baixa visão em contexto de aula regular, foram estudadas sociometricamente por Benito e García (1995), obtendo os seguintes resultados e interpretações:

  • as crianças cegas ou com baixa visão obtêm menor número de preferências para a realização de tarefas académicas, facto interpretado com base nas representações dos restantes alunos sobre as suas eventuais dificuldades e a necessidade de requerem mais ajuda do que a que podem prestar;

  • as crianças cegas ou com baixa visão não obtiveram qualquer rejeição, nem para tarefas académicas, nem para jogos;

  • o número de preferências para jogo obtido pelas crianças cegas ou com baixa visão foi semelhante aos seus pares videntes;

  • os resultados das crianças cegas foram mais favoráveis que os resultados dos seus pares com baixa visão, facto interpretado com base na maior indefinição pessoal associada às crianças com baixa visão.

Referimos anteriormente o papel do professor, o qual se estende, necessariamente, à promoção de interações positivas entre a criança cega e os seus pares videntes. Assim, Nielson (1999) recomenda que os professores formem os alunos videntes acerca da cegueira 15, com o objetivo de ajudá-los a ultrapassar quaisquer medos ou conceções incorretas acerca da cegueira. Sugere o recurso a simulações que permitam aos videntes experienciar algumas das vivências características dos cegos, em condições artificiais, o mais próximas possível da condição de cegueira. Usando vendas feitas de diferentes materiais de opacidade variável, podemos simular desde a cegueira total até diferentes graus de perceção visual. A visão em túnel pode também ser simulada, tentando ver através de um pequeno orifício feito numa folha de papel. A mesma autora chama particular atenção para a necessidade dos alunos videntes aprenderem a desempenhar o papel de guias, como forma de evitar atitudes incorretas, como procurar segurar no braço de um aluno cego, quando é este que necessita segurar o braço do vidente, para caminhar com plena confiança e sucesso.

Anteriormente, a propósito do desenvolvimento emocional, referimo-nos a Ralph, uma criança de 11 anos, estudada por Kirk e Gallagher (2002) que nos proporcionam também dados acerca do seu desenvolvimento social:

“… também tem alguns problemas interpessoais. Reage com linguagem agressiva e temperamento forte a quaisquer comentários rápidos ou negativos, reais ou imaginários, a respeito de sua deficiência visual. Consequentemente, muitos dos outros jovens tendem a ignorá-lo ou a evitá-lo, exceto quando a participação em classe exige interacção…” (p. 190).

A respeito dos processos de interação social na sala de aula, Nunes e Almeida (2005) lembram-nos que as intervenções específicas desenvolvidas tendo como meta auxiliar à construção de conceitos nas crianças cegas, poderão constituir-se como uma mais-valia para os seus pares videntes, pelas oportunidades que propiciam de desenvolver e aprender a partir de formas de perceção diferentes e, muitas vezes, subestimadas nos videntes.


6. A VARIABILIDADE INDIVIDUAL

Cegos e videntes partilham uma característica que diferencia cada sujeito dos restantes, inclusive dos membros do seu grupo de referência, essa característica é serem humanos. Os seres humanos não são máquinas programadas para agirem todas de forma idêntica. Por exemplo, devido ao polimorfismo genético, para 70% dos humanos, a feniltiocarbamida presente em alguns alimentos, nomeadamente vegetais, é extremamente amarga, enquanto os restantes 30% não detetam qualquer sabor (Mackay, 2009). Cada ser humano é constituído por uma carga genética e um conjunto de vivências, distintos de todos os outros. Da interação da carga genética com as vivências resultam múltiplas respostas comportamentais associadas à variabilidade individual que, em sentido lato e pela diluição da variabilidade, se poderão enquadrar em padrões gerais (Brazelton e Sparrow, 2010). Segundo vários autores (Fernandes, 2004; Paivio, 1990), os fatores genéticos impõem predeterminações, mas a aprendizagem por via das experiências vividas exercerá uma influência substancial sobre as mesmas, ajudando a determinar de forma significativa, o que vai ser aprendido e em que idade, sendo que a variação destes fatores conduz ao desenvolvimento de diferentes padrões no exercício de uma determinada competência. Como afirmam Martín e Bueno (1997), existindo padrões comportamentais genericamente característicos dos cegos, tal não significa que eles se incluam no reportório comportamental de todos os cegos na mesma extensão e com manifestações, frequências e significações semelhantes. No mesmo sentido, Díaz-Aguado e colaboradoras (1995) apontam a existência de diferenças individuais entre crianças cegas na mesma amplitude que entre videntes. Por outras palavras, Bardisa (1992) sublinha a necessidade de entender e sentir que cada ser humano, com particular relevância para as crianças, se encontra em crescimento e desenvolvimento, de forma dinâmica e suscetível de mudança, não sendo nem melhor nem pior que outros, apenas diferente, podendo convergir posteriormente com os demais, não sendo condição obrigatória que tal aconteça. Portanto, o importante é que a criança consiga realizar tarefas, não importa se antes ou depois dos outros, desfrutando de prazer ao realizá-las, sentindo-se bem consigo mesma e com os demais.

Num trabalho realizado para o Ministério da Educação do Brasil, Marta Gil salienta que:

“… O impacto da deficiência visual (congénita ou adqu irida) sobre o desenvolvimento individual e psicológico varia muito entre indivíduos.

Depende da idade em que ocorre, do grau de deficiência, da dinâmica geral da família, das intervenções que foram tentadas, da personalidade da pessoa – enfim, de uma infinidade de factores…” (Gil, 2000, p. 9).

O desenvolvimento da orientação e da mobilidade é um dos fatores suscetíveis de um largo espetro de variações individuais. Podem observar-se logo nas primeiras etapas da vida, enquanto algumas se orientam com grande facilidade, outras são incapazes de o fazer (Figueira, 1996). A bengala assume enorme importância, sendo que os processos de aprendizagem da sua utilização conduzem a graus diversos de destreza e desenvoltura, contribuindo para estas diferenças (i) a idade da cegueira, (ii) a idade em que a aprendizagem ocorre, (iii) a personalidade do sujeito, (iv) a sua aceitação ou não da cegueira, (v) a (des)motivação que familiares e amigos incutem, (vi) a capacidade de memorização e de síntese, (vii) a destreza corporal, (viii) a lateralidade, (ix) as competências auditivas e (x) as competências cinestésicas (Maia, 1998).

Os padrões de desenvolvimento social não escapam das influências da variabilidade individual. A este respeito, Romero (1995) lembra que as competências sociais são também determinadas pelas próprias situações, dependendo também, mas não somente, de dimensões pessoais (como idade, sexo, inteligência, etc.). Outros fatores passíveis de influenciar o desenvolvimento social são (i) as condições familiares de desenvolvimento, (ii) as oportunidades de experiências de relações interpessoais precoces, (iii) o tipo e a qualidade das mesmas, (iv) a idade e o sexo dos pares que participam da interação, (v) a familiaridade com os pares, (vi) o lugar onde transcorre a relação (em casa, na sala de aula, no recreio, etc.) e (vii) a natureza da própria interação (um jogo de equipa, uma atividade de sala de aula, uma conversa entre amigos, etc.).

Em suma, como afirma Robert Atkinson (Diretor do Braille Institute of America – California), se a natureza presenteou a todos os seres humanos com diferenças individuais, mais ou menos acentuadas, devemos ser extremamente cautelosos na generalização de características e na sua rotulagem nos sujeitos, sejam características positivas ou negativas, sejam sujeitos com ou sem NEE’s (IBC, 2005).


7. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS

A expressão adaptações educativas ou curriculares pressupõe uma atividade pedagógica centrada, não no mas em cada aluno. Utilizámos uma subtileza linguística para salientar a necessidade de olhar para cada aluno em concreto enquanto pessoa e não para o aluno em abstrato, perdido na massa socialmente homogeneizada da turma.

Tradicionalmente, quando se fala de adaptações educativas ou curriculares pensa-se em crianças ditas diferentes, que se convencionou designar de portadoras de NEE, como se todas as outras, as ditas normais, fossem todas elas iguais. Falemos com os pais e/ou os cuidadores de irmãos gémeos verdadeiros. Falemos de seguida com os próprios gémeos verdadeiros. Certamente que por trás de todas as semelhanças genéticas, físicas e até psicológicas, encontraríamos um manancial de diferenças nos gostos, nos interesses, nos talentos e na interação com o ambiente em geral. Se todas as crianças são diferentes, estamos em crer que a educação de cada uma delas deve assentar em uma adaptação educativa e curricular. Aceitamos a quota-parte de utopia no que acabámos de dizer mas, a alternativa, a criança que se adapta ao currículo imposto, embora parecendo florir aqui e além, tarda em frutificar. Assim reza a vasta literatura produzida na área do Desenvolvimento Curricular desde os anos 60 do século passado, um pouco por todo o mundo. São questões não para uma, mas para várias teses académicas, além do que nos detém neste trabalho. Assim, é legítimo questionar o porquê das linhas anteriores. Em primeiro lugar, pensamos que a utopia supracitada se desvanece se sugerirmos a individualização, pelo menos em relação a cada sujeito cego. Por outras palavras, as sugestões apresentadas neste ponto carecem ainda de adaptação a cada caso concreto, caso contrário, seria como querer que todos os cegos calçassem um mesmo sapato, independentemente do tamanho do pé. Por outro lado, estamos em crer que algumas das adaptações que apresentaremos de seguida serão uma mais-valia, não só para os alunos cegos, como para os videntes. Estamos a pensar, por exemplo, em atividades para estimular a audição ou o tato, ou ambos.

A literatura é unânime em considerar a necessidade das intervenções educativas destinadas às crianças cegas, como às restantes NEE, se iniciar o mais cedo possível de forma exaustiva, prolongada e sequenciada, no âmbito da chamada intervenção precoce, se possível desde o nascimento (Figueira, 1996; Gil, 2000; Gil, 2002; Horton, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Nunes, 2004; Sousa, 2003; Zafra, 1991). Quando dizemos destinadas às crianças cegas, não devemos negligenciar os contextos físicos e sociais que as cercam, pois como lembram vários autores (Correia e Serrano, 1999; Gil, 2000), as práticas de intervenção devem incluir também a família, ela própria apresentando necessidades específicas, muitas vezes por querer e não saber como contribuir para o desenvolvimento das suas crianças, indo desta forma ao encontro das necessidades das próprias crianças com NEE e/ou em risco.

Entre o nascimento e os cinco anos de idade, assumem particular relevância a aplicação de estratégias e técnicas para o desenvolvimento (i) sensorial, (ii) da imagem corporal e (iii) das competências motoras (Kirk e Gallagher, 2002). Gradualmente, outras competências devem ser trabalhadas, como (i) a orientação, (ii) a mobilidade, (iii) as atividades diárias, (iv) a leitura, a escrita e o cálculo, com materiais específicos e adaptados (Martín e Bueno, 1997).

O desenvolvimento de competências da vida diária também assume particular relevância nesta fase, pois além das necessidades pessoais básicas como a higiene, a alimentação, os hábitos à mesa, os cuidados com a casa e as atividades sociais, irá contribuir para a autoconfiança com todas as implicações daí decorrentes (independência, valorização das próprias capacidades, naturalidade, eficiência e desenvoltura nas relações sociais, entre outras) (Gil, 2000, 2002; Horton, 2000; Zafra, 2001). Para estimular a aprendizagem, a imitação e, posteriormente, a execução autónoma de gestos, tarefas e movimentos diários em crianças cegas, Maia (1994) sugere que as mãos dos adultos trabalhem em conjunto com as mãos das crianças, naquilo que podemos chamar “seguir com as mãos” por analogia com “seguir com os olhos”.

A utilização de representações em relevo merece um ponto destacado no trabalho de Martín e Bueno (1997), os quais afirmam:

“… É preferível apresentar à criança objectos reais em vez das suas representações, embora sejam muitas vezes empregadas como substitutos.

[…] Utilizam-se como recurso no ensino da Geografia; para mapas e planos em relevo; na Geometria, para as figuras e desenvolvimento de corpos, e em outras disciplinas que precisem desenhos, esquemas, etc…” (p. 332).

No âmbito das representações em relevo, enquadra-se o sistema de leitura e escrita, conhecido pelo nome do seu criador, o sistema Braille, destinado essencialmente a sujeitos sem resíduos visuais ou com resíduos visuais não funcionais. Os nossos propósitos não compreendem a apresentação exaustiva do mesmo, pelo que nos limitamos a apresentar algumas sugestões de leitura, nomeadamente Dias (1995), Gil (2000), Horton (2000); Kirk e Gallagher (2002), Martín e Bueno (1997), Nielsen (1999), Ochaita e Rosa (1995) e Silva (2008b). Para uma aprendizagem adequada da leitura Braille, é crucial a estimulação precoce do tato, para a qual Dias (1995) sugere: ensinar a criança a utilizar as duas mãos quando manipula e explora um objeto; mostrar como se pode encontrar um orifício numa placa, mantendo uma mão junto do orifício e com a outra, introduzir nele um prego de plástico; enfiar contas num fio, primeiro grandes e depois mais pequenas; atividades da vida diária como lavar, vestir e despir, abotoar e desabotoar; discriminar texturas, formas, pesos, sabores e temperaturas, associando os respetivos objetos; manipular materiais moldáveis como o barro e a plasticina.

As crianças cegas, tal como as videntes, necessitam saber tanto quanto possível acerca do que as rodeia. Não podendo ver, vários autores (Gil, 2000; Horton, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Nunes e Almeida, 2005) sugerem que se incentivem as crianças cegas, sempre que possível, a explorar tatilmente e/ou através dos restantes sentidos, fazendo acompanhar a exploração de descrições verbais, com referências a outras experiências e conhecimentos que a criança tenha já desenvolvido, descrições estas mais frequentes e pormenorizadas, que as habitualmente empregues com crianças videntes. Esta recomendação surge reforçada por força dos resultados obtidos por Ormelezi (2000), a qual afirma a linguagem e a interação social como condições primordiais para a construção de conceitos. Por exemplo, uma criança, cega ou não, não constrói um conceito válido de gato, simplesmente por ver ou tocar num gato, mas pela integração proativa de dados sensoriais de diferentes naturezas, com explicações verbais que lhe permitam identificar, descrever, relacionar, compreender, analisar, sintetizar e avaliar conhecimentos relacionados com gato (Batista, 2005). Assim, na busca de um equilíbrio entre o conhecimento sensorial e as respetivas descrições verbais, assume particular importância uma atitude de aferição permanente por parte do educador, em relação às reações da criança. Tal importância advém do facto de que o conhecimento sensorial apresentado de forma isolada poder surgir de forma desconexa e descontextualizada, dificultando a atribuição de significados e a relação com outros conhecimentos (passados ou contemporâneos). Por outro lado, descrições verbais apartadas dos respetivos conhecimentos sensoriais podem conduzir a retenção mecânica, baseada na retenção e repetição verbal, também elas desconexas e descontextualizadas, carentes de significado e compreensão, por falta de elaboração pessoal (Horton, 2000; Nunes e Almeida, 2005).

Quando nos referimos, nesta secção, ao desenvolvimento sensorial ao nível do tato, salientamos a importância das mãos enquanto órgãos tácteis por excelência. Assim, importa trabalhar para que a coordenação bimanual (das duas mãos) e a coordenação ouvido/mão se estabeleçam. Várias atividades são sugeridas por Gil (2000): bater palmas; segurar o biberão com as duas mãos; percutir dois objetos entre si horizontalmente ou um tambor; brincar com as sensações de temperatura e textura da pele, da chupeta, dos lençóis;

balanceamentos; colaborar no alcance e na movimentação de objetos; colocar objetos (sonoros ou não) sobre o peito ou próximo da criança, para que possa senti-los e procurálos;

incentivar a criança a gatinhar, atraindo-a com objetos sonoros num espaço aberto.

Como forma de preparar os recetores musculares da criança cega para antecipar e reagir adequadamente aos pesos dos objetos que procura agarrar, Bardisa (1992) sugere que se possibilite a interação com objetos de diferentes pesos, nomeadamente em situações em que eles resultem inesperadamente pesados ou leves. Por exemplo, se a criança está a brincar com blocos de madeira, podemos misturar entre eles uns quantos blocos de plástico (leves) e de metal (pesados), com tamanhos e formas mais ou menos semelhantes aos de madeira, mas não necessariamente iguais.

Para estimular o movimento da criança, Dias (1995) sugere: iniciar o bebé a gatinhar com um brinquedo que role, ajudando-o a empurrá-lo para a frente e para trás; ajudar a criança a pôr-se de pé, por volta dos dez, onze meses, encorajando-a a agarrar-se à mobília como forma de se levantar e de promover o sentimento de segurança; colocar os pés do bebé em cima dos de um adulto, pegando-lhe debaixo dos braços e andando, como forma dela sentir o movimento; com os pés da criança no chão, pegando-lhe nas mãos e estimulando a marcha; colocar uma corda esticada ao longo das paredes, à altura da cintura da criança, ajudando-a a caminhar e mais tarde a correr. Em contexto escolar, Silva (2008a) recomenda que a orientação e a mobilidade comecem a ser trabalhadas o mais cedo possível, desejavelmente a partir do ingresso na Educação Pré-escolar, à semelhança do que vem sucedendo no Reino Unido e nos estados Unidos da América.

Ainda a título de exemplo, Kirk e Gallagher (2002) apresentam a proposta de Huff e Franks (1973) para trabalhar os números fracionários com crianças cegas, podendo aplicar-se igualmente a videntes:

“… É bastante fácil oferecer uma compreensão intuitiva de metades e de quartos através de demonstração visual, mas para os alunos cegos tal compreensão precisa ser adquirida através do sentido do tato. Huff e Franks demonstraram que crianças cegas das primeiras séries (3ª série) podem dominar esses conceitos, se receberem círculos de madeira tridimensionais, e pedirmos para que os coloquem em uma base com formas em baixo relevo.

Depois de colocar um círculo inteiro, a criança pode aprender a montar os blocos que representam um terço de um círculo e colocá-los no lugar, formando um todo…” (p. 220).

Também a respeito da Matemática, Gil (2002) recomenda a estimulação e o desenvolvimento aturado do cálculo mental, desde o início da aprendizagem da aritmética, pela sua utilidade posterior na aprendizagem da álgebra.

Para a realização de qualquer tarefa, Nielsen (1999) recomenda a adaptação e o respeito pelo ritmo de cada aluno cego, em articulação estreita com o professor de EE, para que todos possam completar a tarefa solicitada. Assim, atrevemo-nos a sugerir que tal adaptação e respeito devem ser considerados em relação a todos os alunos, videntes incluídos. A mesma autora salienta a utilidade de permitir ao aluno cego gravar as aulas, de forma a poder ouvi-las mais tarde.

Pensando no fomento das relações sociais entre pares, Martín e Bueno (1997) sugerem que se faça a ponte entre o aluno cego e os companheiros, ensinando-os, primeiro a procurar e compartilhar situações lúdicas para todos desde os primeiros dias de escola.

Em segundo lugar, procurar e estimular a criança cega a participar em jogos em que a sua participação possa ser ativa. Em terceiro lugar, há que cultivar um ambiente social acolhedor de todos, com atitudes humanistas de valorização pessoal. Pelo contrário, se a atitude do professor se basear na desvalorização pessoal, naquilo que cada um não sabe ou não é capaz de fazer, então a criança cega ficará certamente em desvantagem pois, além de partilhar dificuldades comuns com os videntes, não consegue ver televisão ou cinema, não poderá conduzir um carro ou uma moto, etc.

O espaço físico da sala de aula deve ser tido em particular atenção, devendo encorajar-se o aluno cego a familiarizar-se com o mesmo, pelo que qualquer tipo de alteração implica a sua comunicação ao aluno cego e o seu reconhecimento percetivo (Nielsen, 1999).


CAPÍTULO III: REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Neste capítulo, abordamos o conceito de representação mental, (i) a sua evolução histórica, (ii) as suas conceções na atualidade, (iii) as características das representações mentais, (iv) casos particulares de representações mentais, como alucinações, sonhos e falsas memórias, (v) a atividade cerebral como caminho para a compreensão da cegueira e das representações mentais e (vi) o estado da arte no que respeita ao estudo das representações mentais em videntes e em cegos congénitos.
 

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO

O conhecimento e a compreensão das representações mentais, enquanto componentes do pensamento humano, têm merecido a atenção dos pensadores desde longa data. António Damásio fala-nos de uma tradição na formulação de conceitos relacionados com a mente, uma história rica, longa e variada, como a história da própria Filosofia (Damásio, 2010). Tendo como referência vários autores (Kosslyn, 1995; Paivio, 1971, 1990; Posner e Raichle, 2001; Thomas, 2007), podemos afirmar que o tema das imagens mentais mereceu a atenção de Platão e do seu discípulo Aristóteles, que o incluíram nas suas obras. Na sua obra Theaetetus, Platão comparou as imagens mentais com padrões semelhantes ao real e gravados em blocos de cera, sendo as diferenças individuais na capacidade para construir e trabalhar com imagens mentais resultado das diferenças na dureza e na pureza da cera. As ideias de Platão não deixaram de influenciar as de Aristóteles, seu discípulo na Academia, que as desenvolveu por extensão e interrelacionou com outras, construindo o que podemos considerar uma primeira teoria explicativa da cognição, a qual exerceu uma influência enorme e continuada, na forma como a cognição em geral e as imagens mentais em particular foram conceptualizadas pelas tradições ocidental e árabe. Este pensador concebia que as imagens mentais (phantasmata 16 na sua terminologia) desempenhavam um papel essencial e central na cognição humana.

Descrevia phantasmata como sendo (i) análogas a pinturas ou gravuras em cera, (ii) resíduos de impressões sensoriais ou (iii) resultado de uma atividade sensorial atual. Um outro grego deixou definitivamente a sua marca no conhecimento das imagens mentais.

Referimo-nos a Simónides e à utilização que este operou das imagens mentais como forma ou ferramenta mnemónica. Também a cultura latina romana mostrou interesse no assunto, entre outros, através de Quintiliano. Este pensador concordava que as imagens mentais visuais eram úteis na recordação de objetos, uma vez que, segundo os seus argumentos, as coisas materiais apelam à imagem. No entanto, mostrava-se renitente quanto à sua utilidade para recordar “noções” abstratas, para as quais as imagens teriam que ser inventadas ou (re)construídas.

As relações da perceção com as imagens mentais são ainda hoje, como eram há vários séculos, uma das traves mestras da investigação nesta área. Na primeira metade do século XVIII, Hume defendeu que as perceções (impressões na sua terminologia) e as imagens mentais (ideias na sua terminologia), não diferiam quanto ao tipo de fenómeno, diferindo apenas nas suas causas e no seu grau de vivacidade (clareza na sua terminologia) (Farah, 1988; Thomas, 2007). Para ele, as perceções eram “cheias de vida” enquanto as imagens mentais eram “desmaiadas” (Damásio, 2003a).

Chegados ao século XX e, salvo algumas exceções, o paradigma Behaviorista alimentava as ideias da época e assim aconteceu de forma marcante até à década de 60. No seu corolário básico, assente no estímulo-resposta, não sobejava espaço para as representações mentais, pelo que a tradição behaviorista pautou-se pelo ceticismo acerca das representações mentais, considerando-as mesmo um assunto subjetivo e inferencial, portanto de menor importância para a Psicologia, senão mesmo um anátema (Paivio, 1971; Thomas, 2007). Um dos pioneiros deste paradigma foi Skinner, considerado por alguns como um behaviorista radical, foi também um dos mais céticos do estudo dos processos mentais 17, onde se incluem as representações, defendendo que a representação dos acontecimentos na mente não era nem a causa nem a explicação dos comportamentos, mas apenas produtos colaterais (Paivio, 1990). Décadas mais tarde, estas ideias mereceram um comentário algo cáustico por parte de Allan Paivio, um dos mais reconhecidos académicos dedicados ao estudo das representações mentais. Nas suas palavras, que traduzimos da forma mais fiel possível, foi levado a concluir, baseado na incoerência de alguns princípios defendidos por Skinner, que os behavioristas radicais queriam ao mesmo tempo guardar o bolo e comê-lo! Eram fascinados o suficiente pela “vida interior” para tentar interpretá-la em termos behavioristas e, ainda assim, negavam qualquer influência dessa “vida interior” no comportamento (Paivio, 1990). Ainda em 1966, Jean Piaget e Bärbel Inhelder se debatiam contra os preconceitos behavioristas que, aqui e ali, ainda despontavam. Fica o seu relato na primeira pessoa:

“…É enfim importante fazer uma observação quanto ao título deste estudo 18, que vários colegas nos aconselharam a mudar, porque é suspeito de «mentalismo» e porque muitos autores já não acreditam na imagem ou pensam pelo menos que não se pode dizer nada de sério a este respeito. Mas confessamos ter poucas preocupações a respeito das modas em psicologia, e ainda menos acerca das proibições positivistas…” (Piaget e Inhelder, 1977).

No final dos anos 60 do século passado, com o estabelecimento do Cognitivismo como paradigma dominante e alternativo ao Behaviorismo, as representações mentais voltaram a assumir o seu interesse científico (Kosslyn, 1995; Thomas, 2007), situando-se ainda hoje, no centro de importantes debates científicos (Kalakoski, 2006). Uma constelação de ocorrências contemporâneas dessa época levou a que alguns académicos voltassem o seu trabalho, com uma força intrinsecamente renascida e motivada, para o estudo das imagens mentais. Dessas ocorrências, Thomas (2007) destaca (i) as investigações relacionadas com as drogas alucinogénias, (ii) os desenvolvimentos na eletroencefalografia, (iii) a descoberta da fase REM (rapid eye movement) do sono e a sua relação com o sonhar e (iv) a descoberta que a estimulação elétrica de algumas áreas cerebrais pode originar imagens visuais nítidas ou pseudoimagens. Por outro lado e com base no mesmo autor, surgiu nesta época uma linha de investigação com impacto significativo no interesse pelo estudo das imagens mentais. Dedicava-se aos problemas percetuais vividos por pessoas como operadores de radar, condutores de longo curso e pilotos de avião, cujos trabalhos requerem que permaneçam perceptualmente alerta, observando estímulos visuais monótonos, pobres e quase invariáveis por longos períodos de tempo, o que pode conduzir, como se veio a demonstrar em laboratório, à ocorrência de imagens mentais nítidas, intrusivas e, por vezes, bizarras, algo semelhante a “sonhar acordado”. Já na década de 70 do mesmo século, foram criadas associações como a International Imagery Association ou a American Association for the Study of Mental Imagery e revistas científicas como o Journal of Mental Imagery ou Imagination, Cognition and Personality, importantes indicadores do interesse dos académicos nesta área do conhecimento.

Apesar do hiato temporal ditado pelas ideias behavioristas, existe uma longa tradição de investigar os contributos da construção de imagens mentais para memória, a qual tem demonstrado, com segurança, que esses contributos existem e deles a memória tira partido. Veniamim foi um conhecido mnemonista russo, objeto de estudo do famoso psicólogo seu conterrâneo Alexander Luria. Veniamim necessitava apenas de uma leitura para decorar listas de setenta palavras, números ou sílabas, dispostos arbitrariamente, sendo capaz de repetir cada lista na íntegra, após vários anos, necessitando no entanto de recordar o contexto. Não era por acaso a necessidade de recordar o contexto, pois constatou-se que recorria a uma técnica altamente eficaz, convertendo as palavras em imagens, dispunha-as mentalmente ao longo de uma rua conhecida e colocava cada imagem frente a uma porta, podendo ainda construir histórias nas sequências mais difíceis (Ninio, 1994).
 

2. O CONCEITO NA ATUALIDADE

Em primeiro lugar, por uma questão de higiene conceptual, consideramos fundamental clarificar a utilização de alguns conceitos neste trabalho, ainda que as opções tomadas sejam discutíveis, situação que encaramos como natural num trabalho científico.

Na literatura científica e na investigação relacionada com a representação do conhecimento na mente, que mereceu particular destaque no século passado e continua a merecer nos dias de hoje, a nomenclatura utilizada tem sido, muitas vezes, opaca nos seus significados, sobrepondo e usando indiferenciadamente designações diferentes para um mesmo conceito, ou designando conceitos diferentes de forma semelhante (Farah, 1996). Tal é o caso de designações como imagem mental e representação mental. A primeira tem sido, em si mesma, suscetível a equívocos, confundindo-se com imagens mentais de natureza visual (Ochaita e Rosa, 1995). Sendo certo que a literatura e a investigação têm incidido com muito maior frequência nas imagens mentais visuais, não podemos olvidar ou negligenciar a existência de imagens mentais de outra natureza (táctil, propriocetiva, auditiva, olfativa e gustativa). Assim, é nosso entender ser necessário clarificar a natureza de uma imagem mental sempre que a mesma for referida. Por outro lado, as designações imagem mental e representação mental têm-se sobreposto numa utilização indiferenciada, sendo que e de acordo com as propostas concetuais de vários autores, as quais serão dissecadas neste e nos pontos seguintes, elas têm como referencial realidades cujas abrangências não são totalmente coincidentes, ainda que intimamente relacionadas e parcialmente sobrepostas. Assim, imagem mental refere-se a uma imagem de natureza percetiva 19 guardada e representada na memória ou imaginada criativamente, de forma decantada, ou seja, isolada de outras imagens e não evidenciando um processamento cognitivo sobre a mesma. Correspondem ao que no dia-a-dia se designa por visualização, ver com os olhos da mente, ouvir com a cabeça, imaginar sentir, etc. (Thomas, 2007). Por exemplo, a imagem mental visual de um determinado automóvel, ou a imagem mental auditiva do seu motor em funcionamento. Assim, sugerimos que uma representação mental resulta de elaborações mais complexas efetuadas sobre as imagens mentais, como sejam a combinação de diferentes imagens mentais (da mesma natureza ou não) e a elaboração de um processamento cognitivo e/ou criativo sobre as mesmas o que, de acordo com as propostas de Paivio (1971, 1990, 2006) poderá envolver a linguagem verbal. Por exemplo, quando combinamos mentalmente a imagem mental visual do automóvel com a imagem mental do seu motor em funcionamento e, ao mesmo tempo, refletimos sobre as causas de um ruído anómalo denotado nesse funcionamento. As combinações de diferentes imagens mentais podem ser lógicas, racionais e conscientes, como nos exemplos anteriores ou, resultarem em narrativas desprovidas de lógica racional e, em grande parte, inconscientes, tal como acontece nas alucinações e nos sonhos. Podem também resultar de um processo criativo consciente, que propositadamente contorna a lógica racional, originando representações mentais sem equivalente direto na experiência real e/ou sensitiva (Paivio, 1990). Por exemplo, posso imaginar um elefante de carne e osso a ler, um livro cujo título se podia visualizar na capa – Manual de Condução para Elefantes, sentado no tejadilho de um táxi com asas (imagem interativa), apesar de eu nunca ter visualizado este acontecimento, alternando e combinando nesta atividade o processamento paralelo das imagens visuais com o processamento sequencial das imagens verbais. Por outras palavras, podia visualizar simultaneamente e de forma interativa a imagem do elefante, a do táxi e a do manual (processamento paralelo) mas, necessitava de focar-me na frase escrita na capa do manual para a poder ler, uma palavra de cada vez (processamento sequencial). Da mesma forma posso construir combinações novas de palavras, nunca antes lidas ou ouvidas e aparentemente desprovidas de sentido, arte na qual a poesia é rica. Repare-se na frase meus braços perdidos na cintura do ar, além da representação verbal, não deixa de evocar, por exemplo, a imagem mental visual de um homem a abraçar uma figura feminina, de contornos altamente atraentes, mas feita de ar. O conceito de imagem mental assume-se como uma abstração teórica, pois temos que admitir a dificuldade de isolar e decantar imagens mentais como as concebemos nas linhas anteriores, uma vez que, a própria perceção, génese primordial da maioria destas imagens, está já contaminada pelas experiências prévias e/ou antecipadas, sob influência de informações oriundas de diferentes sistemas sensoriais (ver ponto 1.6. do capítulo II). No mesmo sentido, Ninio (1994) defende que estabelecemos interligações entre várias memórias percetivas de modo que, por exemplo, um odor pode evocar um lugar e uma pessoa, a pessoa evoca uma voz ou um nome e o nome um episódio do passado. Também Kosslyn e colaboradores citados por Mazard et al. (2004) defendem que as formas puras de imagens mentais são raras. Não estamos a desvalorizar o conceito de imagem mental, antes pelo contrário, pois sem ele não poderíamos conceber a representação mental, alvo de estudo neste trabalho, funcionalmente mais útil e próximo das vivências diárias do ser humano. Como não poderia deixar de ser, seremos o mais fiéis possível às terminologias adotadas pelos autores citados neste capítulo, pelo que aplicaremos o exposto anteriormente, de forma mais notória, a partir do capítulo seguinte.
 

2.1. O PAPEL DA MEMÓRIA NA CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

No ponto 1 deste capítulo referimos já os contributos da construção de imagens mentais, muitos deles conhecidos de há longa data, para o funcionamento da memória.

Procuraremos agora definir os contributos conhecidos da memória para a construção de representações mentais.

Na sua obra intitulada A Unidade do Conhecimento – Consiliência, o biólogo Edward Wilson dedica um capítulo à mente, no qual descreve os contributos da memória na construção das representações mentais. O seu discurso reconhecidamente preciso, claro e motivador leva-nos a transcrever um excerto, que por ser demasiado longo, desde já nos penalizamos. Nas suas palavras:

“… A memória de curto prazo é o estado de prontidão da mente consciente. Compreende todas as partes atuais e lembradas dos cenários virtuais. Consegue lidar apenas com cerca de sete palavras ou outros símbolos ao mesmo tempo. O cérebro leva cerca de um segundo para esquadrinhar totalmente esses símbolos e esquece a maior parte das informações em trinta segundos. A memória de longo prazo é adquirida em muito mais tempo, mas possui uma capacidade quase ilimitada e uma grande fração dela é retida por toda a vida. Pela activação propagadora, a mente consciente evoca informações do depósito da memória de longo prazo e conserva-as por um breve intervalo na memória de curto prazo. Durante esse tempo, processa as informações, a uma velocidade de cerca de um símbolo por 25 milissegundos, enquanto os cenários que surgem das informações competem pelo domínio. A memória de longo prazo evoca eventos específicos trazendo determinadas pessoas, objectos e ações para a mente consciente através de uma sequência de tempo. Por exemplo, ela recria facilmente um momento olímpico: o acender da tocha, um atleta correndo, os brados da multidão. Recria não apenas imagens em movimento e som, mas também o significado na forma de conceitos associados simultaneamente experimentados. O fogo é associado ao quente, vermelho, perigoso, cozido, paixão do sexo, ato criativo e assim por diante através de inúmeras vias de hipertexto selecionadas por contexto, às vezes formando novas associações na memória para futura evocação…” (Wilson, 1999, p. 105).

No geral, esta perspetiva é também a adotada por Stephen Kosslyn, eminente académico associado ao estudo das representações mentais, Professor da Universidade de Standford e Diretor do Centro de Estudos Avançados em Ciências Comportamentais desta Universidade. Afirma, de forma indubitável que é na memória a longo prazo que guardamos as informações necessárias para construir as representações mentais (Kosslyn, 1995). A evocação de informações guardadas na memória pode conduzir à visualização de lugares e objetos não imediatamente disponíveis no nosso campo percetual (Handy et al., 2004). No mesmo sentido, representações mentais evocadas a partir da apresentação de estímulos, não incluem todas as informações disponíveis perceptualmente acerca dos mesmos, incluindo em contrapartida informação não presente perceptualmente nesses mesmos estímulos (Kalakoski, 2006). Assim, em condições normais, o nosso cérebro caracteriza-se por uma capacidade admirável que faria corar de vergonha o mais potente dos computadores, a de apreender informação composta e reproduzi-la mais tarde, quer queiramos, quer não e segundo uma grande variedade de perspetivas (Damásio, 2010). É o que acontece aos veteranos de guerra, certamente contra a sua vontade, que vivem retrospetivas perturbantes e indesejadas da sua estadia na frente de combate, ouvindo os sons, sentindo os cheiros e vendo as imagens do campo de batalha. As emoções desempenham um papel fundamental nestes processos de memorizar e evocar (Fernandes, 2004; Damásio, 2010; Jensen, 2002). Nas palavras de António Damásio:

“… desde que na altura houvesse suficiente emoção, o cérebro apreende imagens, sons, odores e sabores, num registo multimédia, e irá recuperá-los na altura própria. Com o tempo, a recordação poderá desvanecer-se. Com o tempo, e com a imaginação de um fabulista, o material será embelezado, baralhado e voltará a ser ordenado num romance ou num argumento cinematográfico. Passo a passo, aquilo que começou como imagens fílmicas não-verbais poderá mesmo transformar-se num relato verbal fragmentado, recordável tanto pelas palavras de uma narrativa como por elementos visuais e auditivos…” (Damásio, 2010, p.168).

Outros autores alargam a abrangência conceptual e introduzem o conceito de memória de trabalho, enquanto mecanismo subjacente à manutenção e disponibilidade da informação relevante para determinada tarefa, como a compreensão linguística, a leitura, a construção de imagens mentais e a resolução de problemas, sendo que a construção de representações mentais requer a cooperação efetiva da memória de trabalho com a memória a longo prazo (Kalakoski, 2006).

Anteriormente, apresentámos a hipótese defendida por Gregory (1979) e por Jimenez (2002) segundo a qual, a perceção corresponde a uma hipótese antecipada sobre a realidade, formulada ao nível cerebral com base (i) nas representações preexistentes, (ii) no contexto e (iii) nos valores individuais, a qual é testada pelos dados sensoriais. Assim, sem memórias de (i) representações, (ii) contextos e (iii) valores, a perceção resultava um processo difícil, mais lento, menos eficaz e com dispêndio acrescido de energia.

Analogamente, sem memória, dificilmente poderíamos construir representações mentais, até porque, com alguma consistência, os estudos revelam que as imagens mentais de natureza visual ativam a maioria das áreas cerebrais ativas no decorrer de uma perceção visual, sugerindo que imagens mentais visuais e perceções visuais, poderão sobrepor-se como formas alternativas de representação ao nível da memória (Gonsalves e Paller, 2000).

Evaristo Fernandes propõe-nos uma classificação de memória baseada nos seus conteúdos:

“…a memória figurativa emana das imagens dos objectos anteriormente percepcionados e da memória dos movimentos realizados; a memória emocional dos sentimentos e afectos vivenciados; a memória semântica dos pensamentos ouvidos ou expressos; a memória lógico-verbal dos pensamentos exteriorizados através das palavras, que são o invólucro material do pensamento, e, a memória sensorial que emana da acção dos sentidos, sobretudo, da visão, da audição, do tacto, do paladar, do olfacto, etc” (Fernandes, 2004, p. 23).


2.2. MODELOS EXPLICATIVOS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS: A TEORIA DO PROCESSAMENTO DUAL DE ALLAN PAIVIO

Referindo-se ao caso particular das crianças cegas, Martín e Bueno (1997) referemse á linguagem como um “mediador entre o objecto e a sua representação” (p. 326).

Partilhando da conceção da linguagem enquanto mediador para a população em geral, Ormelezi (2000) alarga-a através da introdução explícita de uma influência unidirecional da linguagem nos “processos de aquisição do conhecimento – representação mental, pensamento e formação de conceitos” (p. 53). As conceções anteriores de linguagem parecem excluí-la da representação mental propriamente dita. Sendo esta mediação interna e protagonizada pelo mesmo órgão responsável pela representação, o cérebro, poderemos questionar se a linguagem não é, em si mesma e só por isso, já uma forma de representar com símbolos que lhe são próprios, logo uma representação.

O modelo teórico proposto por Allan Paivio nos anos 60 do século passado permite, pelo menos em parte, integrar e explicar o exposto no parágrafo anterior. Conhecido em inglês por Dual Coding Approach 20, tem vindo a evoluir desde então e continua a granjear respeito e grande aceitação no meio académico. Este modelo concebe a cognição humana como a atividade conjunta e interligada de diferentes sistemas representacionais especializados no processamento de informações de natureza diversa, com origem no ambiente, servindo objetivos comportamentais funcionais e adaptativos. Explica uma capacidade única na árvore da vida, a de lidar simultaneamente com a linguagem verbal – Sistema de Representação Verbal (SRV), e com objetos e acontecimentos de natureza nãoverbal – Sistema de Representação Imagético (SRI). A sua existência manifesta-se pela distinção estrutural e funcional entre eles. Estruturalmente, diferem na natureza das suas unidades representacionais e na forma como elas se organizam nas estruturas cognitivas de mais alto nível. Funcionalmente são autónomos, uma vez que, se podem ativar de forma autónoma, mas também em paralelo (Paivio, 1990, 2006). Em suma, eles são funcionalmente interconectados ainda que autónomos, de tal forma que a atividade em um deles pode despoletar a atividade do outro.

Uma experiência simples é-nos apresentada por vários autores (Ninio, 1994; Jimenez, 2002; Spitzer, 2007), a qual, no nosso entender, apoia existência de um SRI e de um SRV, ambos dotados de autonomia mas intrinsecamente relacionados. Se escrevermos a palavra vermelho com tinta verde e pedirmos a alguém que leia a palavra, esse alguém dirá vermelho, mas com duas décimas de segundo de atraso em relação ao seu tempo habitual de leitura:

“… Ao ler a palavra vermelho, captada pela memória gráfica, a memória visual evoca a imagem do vermelho. Para pronunciar a palavra, a memória gutural baseia-se por um lado no código gráfico e por outro na memória perceptiva, para ultrapassar quaisquer ambiguidades. No entanto, neste exercício muito artificial, a memória perceptiva integra simultaneamente a percepção do vermelho, activada pela palavra e a percepção do verde, evocada pela cor da palavra. Daí a tentação de dizer verde e a consequente perda de tempo…” (Ninio, 1994, p. 237).

Como resulta da experiência anterior, as relações entre as imagens mentais e as suas descrições verbais são complexas, estando dependentes de conexões funcionais entre elementos do SRV e elementos do SRI. Segundo Paivio (1971, 1990), estas relações não são lineares no sentido de que a uma representação verbal corresponde uma representação imagética e vice-versa. Defende o autor que as citadas relações são do tipo uma – várias e em ambos os sentidos, ou seja, da mesma forma que um objeto pode ser designado por várias palavras, a uma palavra podem corresponder vários referentes, logo, uma mesma palavra pode evocar diferentes imagens mentais dentro de uma categoria particular de fronteiras mais ou menos definidas (mesa, por exemplo), da mesma forma que a uma mesma imagem mental podem corresponder diferentes descrições verbais. Assim, a Teoria do Processamento Dual (Paivio, 1971, 1990, 2006) prevê que (i) a performance nas tarefas cognitivas é mediada pela atividade conjunta do SRV e do SRI, com contribuições relativas de cada um, dependendo das características das tarefas, das competências e dos hábitos de cada sujeito, (ii) quanto mais concreta ou de natureza imagética for a tarefa, maior será a contribuição do SRI, (iii) quanto mais abstrata ou de natureza verbal for a tarefa, maior será a contribuição do SRV, (iv) o SRI e as unidades representacionais a ele associadas organizam-se sincrónica e hierarquicamente 21, (v) o SRV e as unidades representacionais a ele associadas organizam-se de forma sequencial, (vi) são possíveis experiências associativas entre representações verbais (SRV), (vii) são possíveis representações associativas entre palavras (SRV) e objetos (SRI), (viii) o SRV e o SRI revelam-se funcionais para lidar com situações concretas, (xix) o SRV é mais funcional que o SRI para lidar com situações abstratas, (x) a atividade representacional pode, ou não, ser experienciada de forma consciente na forma de imagens mentais e/ou de discurso interior e (xi) os indivíduos diferem na extensão, na forma e na eficiência com que utilizam cada um dos sistemas de representação, de acordo com as suas competências e hábitos verbais e imagéticos.

Tem-se demonstrado que instruções verbais, que delimitem alternativas ou direcionem a atenção para caraterísticas particulares dos objetos, facilitam e promovem o sucesso dos processos de perceção (Paivio, 1971). No mesmo sentido, tem-se demonstrado que a linguagem falada pode influenciar a perceção das cores, facto que não será alheio ao processamento das cores predominantemente no hemisfério esquerdo 22 nos adultos 23, hemisfério que processa também a linguagem (Smith, 2008). Respondendo à questão implícita do final do primeiro parágrafo deste ponto, com base na Teoria do Processamento Dual, a linguagem constitui, ela mesma, um sistema representacional que pode simbolizar tanto conceitos puramente verbais, como por exemplo a classificação gramatical das palavras, como componentes do mundo percetual e comportamental (nomear e descrever objetos e comportamentos, por exemplo). Esta conceção da linguagem pressupõe, em linha com os princípios gerais do modelo, que a sua produção é cognitivamente controlada pela atividade cooperativa do SRV e do SRI. Numa conferência realizada em 2006, o psicólogo canadiano afirmava que a construção de representações mentais é um processo que se desenvolve progressivamente, desde as suas fases iniciais que serão de natureza exclusivamente imagética até ao estabelecimento dos primeiros rasgos de linguagem significativa, que dará início às fases posteriores dominadas pelo duplo processamento (imagético e verbal). O desenvolvimento inicia-se com a formação de um substrato representacional, de natureza imagética e imagético-mental, o qual resulta das observações e dos comportamentos realizados pela criança em interação com os objetos e acontecimentos, assim como das múltiplas relações que pode estabelecer a este nível. A linguagem vai desenvolver-se a partir deste substrato fundacional, permanecendo funcionalmente conectada com ele de forma irrevogável 24, de forma que a criança faça corresponder os nomes aos respetivos objetos e acontecimentos, tanto na sua presença como na sua ausência, assim como ela própria nomear os objetos e acontecimentos, tanto na sua presença como na sua ausência (Paivio, 2006). O referido substrato representacional continua a desenvolver-se ao longo de toda a vida, agora a par da linguagem, ou seja, ainda que com cadências inferiores às da infância, por toda a idade adulta estaremos a acrescentar novas perceções e novas palavras ao nosso reportório, assim como a estabelecer novas ligações (significados) entre perceções, entre palavras, entre perceções e palavras, assim como a reformular antigas ligações (significados). As representações mentais conservam as características do substrato que fornece os materiais da sua construção, pelo que Paivio (1990) defende que as estruturas e os processos de representação são específicos 25 e não amodais. As representações mentais enquanto produtos complexos e compostos de imagens mentais de diferentes modalidades sensoriais, assim como de representações verbais, podem considerar-se multimodais e com grandes intervalos de variação quanto às estruturas e às funções (Paivio, 1990). Por exemplo, a imagem mental visual de um telefone poderá estar associada à imagem mental auditiva do seu toque de chamada, embora nem sempre assim seja, da mesma forma que as experiências percetuais correspondentes podem, também elas, ocorrer de forma conjunta ou separada.

A par da Teoria do Processamento Dual, outras descobertas (Denis e Cocude, 1989; Knauff e May, 2005) convergem na ideia, segundo a qual, o processamento de informação verbal, ouvida ou lida, evoca imagens e representações mentais no entanto, certas condições podem tornar-se limitantes. Se as palavras são recebidas com baixa densidade e a uma velocidade reduzida, terão o tempo necessário para se evidenciar de forma consciente, pelo contrário, se ocorrer uma grande densidade de palavras a grande velocidade, as imagens e representações tendem a ser reprimidas, dando a falsa impressão de estar a ocorrer um processo puramente verbal (Ninio, 1994). Assim, é necessário proporcionar tempo, prática e condições ambientais adequadas, para que a informação verbal possa ser mobilizada na construção de imagens mentais, cujas propriedades estruturais são similares àquelas das imagens baseadas na perceção (Denis e Cocude, 1989). Por outras palavras, é necessário trabalhar e estimular as interligações entre o SRV e o SRI.

Embora não tenham merecido maior atenção no seu trabalho, Allan Paivio refere-se à ocorrência de reações emocionais, como estas estando associadas primariamente ao SRI porque, segundo ele, as reações emocionais são sentidas e representadas como acontecimentos de natureza não-verbal, embora possam ser evocadas a partir de representações mentais ou de estímulos reais, tanto de natureza verbal como imagética (Paivio, 1990). Salienta o autor que os objetos, os acontecimentos ou as palavras necessitam ser previamente processados, para que as reações emocionais possam acontecer e manifestar-se. Em continuação, afirma que as reações emocionais ou as suas representações mentais tendem a ser evocadas mais rapidamente por estímulos ou representações mentais de natureza imagética, que de natureza verbal. Na sua perspetiva, as reações emocionais são originariamente aprendidas como respostas às situações ou objetos, surgindo posteriormente associadas às representações mentais dessas situações ou objetos.


2.3. MODELOS EXPLICATIVOS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS: A CONVERGÊNCIA-DIVERGÊNCIA DE ANTÓNIO DAMÁSIO

No modelo que nos propõe para a explicação da consciência, Damásio (2010) atribui um papel importante às imagens mentais, ainda que não exclusivo. Entende imagens mentais como mapas cerebrais que constroem padrões mentais do corpo e daquilo que o rodeia, tanto concreto como abstrato, do presente, daquilo que foi anteriormente gravado na memória ou do que é antecipado, recorrendo a qualquer uma das modalidades sensoriais (Damásio, 2004, 2010). Lembramos que são as imagens mentais anteriormente guardadas na memória, o que nos ocupa neste trabalho. Já o conceito de mente que nos propõe afirma o seguinte: “a simples presença de imagens organizadas que se encadeiam numa corrente produz uma mente, mas a menos que se lhe acrescente um novo processo, a mente permanece inconsciente” (Damásio, 2010, p. 27). Na sua proposta, para que o conteúdo da mente se torne consciente, necessita incorporar uma nova propriedade que designa de subjetividade, a qual está fortemente relacionada com os sentimentos que percorrem as imagens e que experimentamos de forma subjetiva. Uma vez tornados conscientes, podemos apreender esses mapas na forma de imagens, as quais podemos manipular através do raciocínio. Os sentimentos surgem-nos como componente fundamental deste modelo, a par e interrelacionados com as imagens mentais. Por outras palavras, os sentimentos são, também eles, imagens mentais que traduzem aspetos dos estados corporais, das ações, das ideias, da fluência das ideias (lenta ou rápida) e da fixação ou alternância de imagens. Como referido anteriormente, os sentimentos são perceções (i) de estados corporais decorrentes de emoções reais ou simuladas, (ii) do estado de recursos cognitivos alterados e (iii) da evocação de certas ideias. Estas perceções podem ser desencadeadas por imagens de pessoas, objetos ou acontecimentos que estejam realmente a ocorrer no momento, que tenham sido evocadas do passado memorizado ou criadas de raiz na imaginação. Estas imagens despoletam uma cadeia de fenómenos em várias regiões cerebrais, de cuja atividade podem resultar (i) palavras com as quais se pode classificar determinado objeto e/ou (ii) evocações rápidas de outras imagens que nos permitem concluir algo sobre o objeto, etc. Num cérebro normal, os mecanismos essenciais das emoções são muito semelhantes entre indivíduos, mesmo de culturas muito diferentes, no entanto existe sempre uma componente individual não desprezível. As circunstâncias que tornam emocionalmente competentes certos estímulos de cariz menos universal são diferentes do sujeito A para o sujeito B. Há coisas que A receia e B não e vice-versa, coisas que A gosta e B não e muitas mais coisas que ambos receiam e adoram.

À semelhança de Paivio, Damásio (2010) considera que as imagens mentais podem ser processadas, de forma rápida, tanto em paralelo como em sequência, podendo assumir diferentes naturezas sensoriais, nomeadamente sons, texturas, cheiros, sabores, angústias e felicidades.

Este modelo (Damásio, 2003a, 2004, 2010) não estabelece nenhuma dualidade de processamento entre palavras e imagens, focando-se no processamento visual e/ou auditivo das palavras, ou seja, nas palavras enquanto imagens visuais e/ou auditivas. Assim, tanto palavras como símbolos abstratos (um algarismo, por exemplo) são, eles próprios, imagens. Por um lado, prevê que as palavras sejam primeiramente processadas como imagens verbais de natureza visual e/ou auditiva, podendo o seu processamento cerebral evocar um manancial de imagens não-verbais, as quais ajudarão à compreensão dos conceitos representados por essas palavras. Por outro lado, prevê também que as imagens de natureza não-verbal possam transformar-se em palavras, relatos verbais, cuja evocação pode ser acompanhada pelas respetivas imagens de natureza não-verbal. Não é possível inibir ou suspender esta tradução do imagético para o verbal. Estes postulados acompanham, no essencial, o defendido por Paivio, mas encontram uma explicação funcional viável nas zonas de convergência-divergência (ZDC) que explicaremos de seguida.

Enquanto componentes essenciais do modelo, os sentimentos e as emoções que representam podem, também, influenciar ou ser influenciados pela (re)construção de imagens mentais, verbais ou não verbais (Damásio, 2003b). Por exemplo, a tristeza conduz, geralmente, a uma produção reduzida de imagens mentais, geralmente de perda, nas quais se concentra uma atenção excessiva, enquanto os estados de felicidade conduzem, geralmente, a uma profusão de imagens em rápida sucessão, concentrando necessariamente pouca atenção. Por outro lado, a recordação de um acontecimento poderá evocar as emoções e respetivos sentimentos, experienciados aquando da perceção do mesmo ou, pelo menos, as emoções e os sentimentos mais salientes desse acontecimento.

Também estes postulados encontram uma explicação funcional viável nas zonas de convergência-divergência (ZDC).

As representações mentais construídas a partir de imagens mentais não-verbais, verbais e/ou sentimentais, podem ser manipuladas pela nossa mente através de múltiplas (re)construções criativas de pessoas, objetos e acontecimentos. Podemos inventar e incluir novas imagens mentais na representação, transformar imagens preexistentes como colocar a cabeça de alguém num corpo de cavalo, assim como representar abstrações como a figura de um átomo (Damásio, 2003b, 2004).

Em termos estruturais e funcionais o modelo proposto por Damásio assenta numa arquitetura neural de ligações corticais em rede, capazes de emitir sinais convergentes e divergentes em relação a determinados pontos de ligação, os nódulos ou ZDC 26. Por outras palavras, as ZDC “registam a coincidência de actividade em neurónios de diferentes partes do cérebro, neurónios esses que haviam sido activados, por exemplo, pelo mapeamento de um determinado objecto” (Damásio, 2010, p. 182). Prevê-se a existência de dois tipos de sistemas cerebrais, numa divisão claramente distinta da estabelecida por Paivio. Um dos sistemas aqui previsto é responsável pelo processamento de mapas ou imagens – sistema imagético (SI), verbais e não-verbais, enquanto o outro se encarrega de gerir disposições – sistema disposicional (SD) (Damásio, 2003a, 2004, 2010). No essencial, o SI é constituído pelo conjunto de córtices sensoriais primários e periprimários visuais, auditivos, somatossensoriais, etc. – por exemplo, o grupo de córtices visuais que rodeia o córtex visual primário ou área 17 de Brodmann, assim como por áreas subcorticais. Nele ocorrem imagens explícitas de todas as naturezas sensoriais, umas que se tornam conscientes, outras que permanecem inconscientes. Por sua vez, o SD inclui todos os córtices de associação, situados nos lobos temporal, parietal e frontal, assim como áreas subcorticais. Constitui a base implícita do conhecimento e permite a reconstrução e a evocação desse mesmo conhecimento, ou seja, orienta a (re)construção de imagens no SI, através das instruções que os seus padrões neurais enviam com o objetivo de ativarem outros padrões neurais, tanto os situados no SD como no SI, permitindo a atividade neural dos mesmos e com os quais existe uma forte interconexão. A ativação dos circuitos disposicionais leva ao envio de sinais para outros circuitos, levando à (re)construção de imagens e/ou de ações.

Atentemos no seguinte exemplo. Imaginemos que gostamos do aroma e do sabor de pipocas acabadas de confecionar. Ao caminharmos junto a uma barraca de confeção e venda desta guloseima temos a imagem visual da mesma e do seu interior, assim como o aroma intenso que dela emana, compramos algumas e deliciamo-nos com o seu sabor, ao mesmo tempo que sentimos um prazer imenso na degustação. Um modelo assente em ZDC prevê que a perceção simultânea destes fenómenos (imagem, aroma, sabor e prazer), processados inicial e respetivamente nos córtices visual, olfativo e gustativo primários, assim como no córtex pré-frontal ventromediano e no tronco cerebral para o prazer, venham a estar associados numa ZDC. Assim, no futuro, quando vivenciarmos apenas parte deste episódio, por exemplo uma fotografia da barraca de confeção e venda de pipocas, portanto sem aroma e sem sabor, o padrão induzido por esta imagem nos córtices visuais primários vai ativar a ZDC apropriada, a qual irá retroativar (i) nos córtices olfativo e gustativo primários a representação mental do aroma e do sabor e (ii) no córtex préfrontal ventromediano e no tronco cerebral o sentimento de prazer, que acompanharam a perceção original. Trata-se de uma aproximação, não de uma réplica nítida e precisa, no fundo, um regresso ao passado.


3. CARACTERÍSTICAS DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Hoje em dia, aceita-se que a origem das representações mentais assenta tanto no substrato biológico como no cultural. De acordo com a interpretação de vários autores (Paivio,1990; Wilson, 1999), tal significa que alguns processos representacionais são determinados biologicamente, enquanto outros o são culturalmente. Os processos biológicos resultam do longo alvorecer evolutivo das espécies e são, pelo menos em parte, partilhados com outros animais, particularmente os mamíferos e em especial os símios não humanos. Como exemplos gerais temos a memória não-verbal, as imagens mentais e alguns tipos de esquemas de ação, como a tendência inata a reagir tanto com medo como com fascínio diante das cobras, um exemplo daquilo que Wilson (1999) designa regras epigenéticas. Os processos culturais, eles próprios marcadamente biológicos 27, resultam da evolução e impregnação culturais e têm de ser aprendidos. Como exemplos gerais temos os comportamentos planeados, a linguagem, a Matemática, as artes, as religiões, o conhecimento do senso comum e o conhecimento científico. Exemplificamos com as cores normalmente escolhidas para os bebés em função do sexo, azul para os meninos e cor-derosa para as meninas, algo que nos é transmitido pelas convenções culturais, mas que acaba por se inculcar nas nossas representações ao ponto de, se no pedirem para imaginar um quarto de menino o imaginarmos azul e o de uma menina cor-de-rosa. Os autores ressalvam que as fronteiras entre o biológico e o cultural são ténues e nem sempre são identificáveis (Damásio, 2010; Paivio, 1990; Voland, 1999; Wilson, 1999).

Uma das caraterísticas fundamentais das representações mentais é a presença de informações de natureza contextual. São elas que nos orientam na identificação dos elementos constituintes, ajudando a atribuir-lhes um significado, assim como na recuperação posterior das informações retidas na memória a longo prazo (Jimenez, 2002; Paivio 1999; Vauclair, 2008). Por exemplo, se representarmos alguém a correr na nossa direção, tanto poderá significar um amigo ou um desconhecido que nos quer ajudar porque contextualmente acabámos de cair ao chão e estamos magoados, como poderá significar um amigo do alheio se contextualmente acabámos de levantar dinheiro de uma caixa multibanco. Sabemos que uma representação mental evocada pelo nome de um objeto evidencia características contextuais (Jimenez, 2002). O contexto ajuda também a explicar as variações representacionais acerca de um objeto ou situação por parte de um mesmo sujeito, ou seja, a diferentes contextos correspondem diferentes perceções e comportamentos, diferenças essas que se irão refletir nas respetivas representações mentais (Paivio, 1990). No âmbito da Teoria do Processamento Dual referimos que as representações associadas ao SRI se caracterizam por serem sincrónicas e hierárquicas no entanto, estas características têm revelado os seus limites (Paivio, 1990). Tal como a perceção visual, as imagens mentais de natureza visual têm um alcance limitado e, em certos casos, as diferentes partes de uma representação sincronicamente disponível terão de ser visualizadas sucessivamente. Tal situação ocorre, sobretudo, nas imagens mentais relativas a objetos complexos, como o interior de uma habitação. A divisão que fica inicialmente acessível na imagem mental depende do contexto em que se dá a evocação, pelo que a ordem de processamento não é aleatória. Aquilo que normalmente definimos como a memória de um objeto, não é algo que resulte de uma receção passiva, simples e digitalizada por parte do sujeito, é antes uma receção ativa, complexa e (re)construída, logo composta, das atividades sensoriais e motoras associadas à interação entre o organismo e o objeto, a qual é responsável por, muitas vezes, recordarmos contextos e não apenas coisas isoladas (Damásio, 2010).

Um fator não negligenciável em qualquer análise das características das representações mentais é a natureza do estímulo evocador. Ainda em 1966, nos primeiros tempos de trabalho na sua Teoria do Processamento Dual, Allan Paivio demonstrou que o tempo de reação requerido para a construção de uma imagem mental é menor, quando o estímulo é uma palavra concreta, comparativamente às situações em que o estímulo é uma palavra abstrata, tal como previsto pelo princípio teórico de que as representações verbais de natureza concreta (palavras concretas) apresentam mais conexões funcionais com o SRI, comparativamente às representações verbais de natureza abstrata (palavras abstratas) (Paivio, 1971, 1990). Existe também evidência de que (i) as palavras abstratas têm menor probabilidade de evocar imagens mentais que as palavras concretas, (ii) as imagens mentais evocadas pelas palavras concretas não se restringem às de natureza visual ou pictórica, podendo ser de natureza auditiva, táctil, olfativa, gustativa, cinestésica, interoceptiva ou sentimental e (iii) as imagens mentais evocadas a partir de estímulos semânticos tendem a ser menos nítidas e detalhadas, comparativamente às evocadas a partir de situações concretas e objetos específicos (Paivio, 1971, 1990; Thomas, 2007).

Pediu-se a 57 sujeitos do primeiro ano do Ensino Superior que, utilizando uma escala de Likert de sete níveis (1 - 7), classificassem um conjunto de frases, umas concretas, outras abstratas, quanto à sua potencialidade para evocar imagens mentais, tendo as frases concretas obtido níveis significativamente superiores (4,85) às frases abstratas (2,97) (Bellardinelli, 2004). No desenvolvimento da criança, as representações podem evoluir tanto no sentido de uma maior concretização, como de maior abstração (Paivio, 1971). Por exemplo, a representação mental evocada pela palavra cão, pode evoluir no sentido de uma maior concretização, passando a incluir, reconhecer e nomear diferentes raças, como pode evoluir no sentido de uma maior abstração, compreendendo o conceito de mamífero.

Ainda em relação à natureza dos estímulos, sabe-se que imagens mentais de natureza visual podem ser induzidas por estímulos de natureza diferente. Estudos realizados a este propósito têm demonstrado, que as imagens mentais visuais induzidas por estímulos auditivos tendem a ser menos detalhadas ou específicas, comparativamente às induzidas por estímulos tácteis (James et al., 2006). No caso particular dos cegos congénitos, a ausência de estímulos visuais, tem implicações na natureza das suas representações mentais (Heller e Ballesteros, 2006). Atendendo a que eles reconhecem os objetos essencialmente através da perceção táctil ativa, Paivio (1990) considera razoável supor que as suas representações mentais incorporem abundantemente elementos resultantes dessa experiência háptica.

As representações mentais podem caracterizar-se como sendo uma teoria individual acerca do mundo e da própria interação com ele. Assim pensa Allan Paivio que exemplifica com as representações mentais de natureza antecipatória, no sentido em que permitem prever e monitorizar objetos e acontecimentos, mesmo antes da sua ocorrência, o que permite deliberar e planear reações, assim como antecipar os resultados das mesmas (Paivio, 1990). Neste sentido, podemos afirmar que as representações mentais evoluíram na espécie humana como forma de potenciar a adaptação ambiental, caso contrário a capacidade de as construir não se teria imposto no nosso património genético. Pensemos numa caçada efetuada pelos nossos antepassados há cem mil anos atrás, quanto melhor o seu planeamento, quanto maior colaboração entre caçadores, melhor conhecimento do terreno e preparação da emboscada da presa, melhor antecipação das reações dos outros caçadores e da presa, maiores as probabilidades de sucesso no número de animais mortos e no seu tamanho, logo mais alimento, melhor sobrevivência e mais êxito reprodutivo.

António Damásio defende um mecanismo semelhante em relação às emoções, afirmando que o cérebro, com o contributo dos chamados neurónios espelho, pode criar rapidamente mapas do corpo (imagens mentais), em tudo comparáveis aos que seriam criados caso o corpo fosse realmente alterado por determinada emoção. Diz-nos, por outras palavras, que “o cérebro pode simular, em regiões somatossensoriais, certos estados do corpo, como se estivessem mesmo a ocorrer; e uma vez que a nossa percepção de qualquer estado do corpo se baseia nos mapas corporais das áreas somatossensoriais, apercebemo-nos do estado do corpo como se este de facto estivesse a ocorrer, mesmo que não seja esse o caso” (Damásio, 2010, p. 133). De forma mais simples, melhores representações mentais conduzem a melhores antecipações ou simulações avançadas, as quais permitirão, em conjunto com outras ferramentas como o raciocínio hipotético dedutivo, planear melhores reações e consequentemente, obter melhores resultados. Em linha com estas ideias, hoje em dia, a maioria dos cognitivistas atribuem um papel essencial às representações mentais na nossa “economia mental”, ou seja, permitem melhores desempenhos com custos energéticos mais baixos (Damásio, 2010; Thomas, 2007).

A natureza antecipatória das imagens mentais foi também defendida por Piaget e Inhelder (1977), a par das imagens mentais de natureza reprodutiva. Para eles, imagens antecipadoras são “as que representam por imaginação figural acontecimentos não percepcionados anteriormente, quer se trate de movimentos ou transformações ou dos seus fins ou resultados” (p. 18). Imagens reprodutoras são “as que evocam objectos ou acontecimentos já conhecidos” (p. 18). A capacidade de construir imagens mentais reprodutivas tem sido identificada em crianças muito antes dos sete anos de idade, enquanto as imagens antecipatórias tendem a tornar-se funcionais apenas após essa idade, parecendo desenvolver-se a par e em relação com as operações concretas (Paivio, 1971).

As imagens mentais não devem ser tidas como algo estático, consideram vários autores (Damásio, 2003a, 2010; Mackay, 2009), sendo dotadas de grande volatilidade, (re)construindo-se constantemente de forma a refletir as alterações que ocorrem nos neurónios que as alimentam, os quais refletem as mudanças no interior do nosso corpo e no mundo envolvente, mesmo nos adultos. Estas (re)construções são momentâneas e embora possam parecer réplicas de boa qualidade, são geralmente imprecisas e incompletas.

A componente imagética das representações mentais pode caracterizar-se pela sua claridade e pela sua vivacidade, sendo que uma imagem será tanto mais vívida quanto mais se assemelhar a uma perceção real, nomeadamente em termos de brilho, nitidez e dinamismo (Marks, 1995, citado em Beato et al., 2006).

Como resulta dos pontos anteriores, tanto a Teoria do Processamento Dual como o Modelo de Convergência-Divergência preveem, que os conteúdos das representações mentais possam ser traduzidos em palavras pelos sujeitos que os representam. Com base nestes relatos verbais, Almaraz (1997) propõe que se caracterizem as representações em termos de riqueza e de complexidade. Por riqueza entende o conjunto ou somatório dos substantivos, dos adjetivos, dos verbos e dos advérbios utilizados. A complexidade corresponde ao conjunto ou somatório das palavras de ligação entre as orações do relato verbal, ou seja, das conjugações e preposições.

As nossas representações mentais não são, na maioria dos casos, constituídas por informações particulares e isoladas, mas sim por generalidades. Como defendem vários autores (Spitzer, 2007; Vauclair, 2008), seria um dispêndio inútil de energia se tivéssemos de registar cada informação isolada que apreendemos do ambiente, isto porque esse ambiente é maioritariamente regido por regras. Assim, defendem os autores, necessitamos apenas de representar essas regras gerais através de um processo denominado categorização, conduta adaptativa humana que permite estruturar, organizar e reduzir a complexidade e a diversidade do meio físico e social. Por exemplo, certamente conhecemos e representamos detalhadamente os pormenores da casa que habitamos. Se nos solicitarem a (re)construir uma representação mental da mesma, muito provavelmente esses pormenores irão manifestar-se em virtude da nossa familiaridade com os mesmos (o nosso desagrado com desarrumação do quarto dos brinquedos, aquela mancha na parede, o ruído daquela porta, o aroma inebriante que emana da cozinha, etc.). Em contrapartida, se nos pedirem para representar uma casa qualquer, sem nenhuma familiaridade connosco, (re)construímos essa representação com base em características gerais que podem assumir múltiplos aspetos, como ter quatro paredes, um telhado, janelas, portas, varandas, etc. De outro modo, se representássemos na mente, de forma pormenorizada, todas as casas que já tivemos oportunidade de percecionar, teríamos uma pequena cidade na nossa cabeça. Um caso mais flagrante será, por exemplo, o das frutas. Não existem dois limões iguais, mas quando olhamos um percebemos quase imediatamente que se trata de um limão pela sua forma oval, pela sua cor e pela textura tipo “casca de laranja”, o que posteriormente é reforçado com o aroma cítrico e o sabor ácido. Se tivéssemos gravado cada limão que já observámos, como um limão isolado, então a nossa cabeça mais pareceria um cabaz cheio de limões isolados. Como explica Manfred Spitzer:

“… não só encheria a nossa cabeça de informação não importante como também não teríamos retirado nada desse conhecimento isolado. Só quando conseguimos abstrair algo de conteúdos isolados e formamos um conjunto e uma imagem global de um tomate a partir de um conjunto de indicações isoladas sobre tomates é que estamos em condições de, por exemplo, identificar os seguintes e saber logo que propriedades gerais têm (aspecto, cheiro, sabor, que podem ser comestíveis, cozinhados, secos, atirados, preparados em ketchup, etc.)…” (Spitzer, 2007, p. 83).


4. CASOS PARTICULARES: ALUCINAÇÕES, SONHOS E FALSAS MEMÓRIAS

Já anteriormente o referimos, as alucinações são casos particulares de representações mentais criadas na mente de alguém, desprovidas de lógica racional do ponto de vista do observador externo, desfasamento do qual o próprio sujeito criador não tem, geralmente, consciência, levando-o a confundir as suas próprias criações com a realidade, que pode estar completamente ausente ou manifestar-se de forma distorcida (Gregory, 1979). São várias as causas apontadas para a ocorrência de alucinações, nomeadamente patológicas, onde se destaca o exemplo dramático da esquizofrenia, consumo de drogas e estados induzidos pelos contextos físicos e/ou sociais, como a privação sensorial, o calor extremo acompanhado de desidratação ou eventos que nunca ocorreram, mas que conjuntos de muitas pessoas afirmam terem presenciado. Quanto há natureza dos seus conteúdos, eles podem ser visuais, auditivos, tácteis, gustativos ou olfativos, podendo mesmo combinar simultaneamente conteúdos de natureza diversa, situação que segundo Gregory (1979) provocará uma distorção esmagadora da realidade.

Foi demonstrada experimentalmente a possibilidade de induzir alucinações visuais, semelhantes às relatadas pelos pacientes do Síndrome de Charles-Bonnet, após dois ou três dias de privação visual. Segundo Pascual-Leone e colaboradores (2006), estas alucinações cessavam assim que terminava o período de privação visual, sendo descritas, no geral, como sendo bem formadas e representando situações apropriadas e semelhantes a perceções, sendo que os sujeitos, tal como no Síndrome de Charles-Bonnet, estão conscientes da irrealidade de tais vivências, não obstante o pormenor e a vivacidade relatados. Por exemplo, uma jovem de 29 anos relatou a seguinte alucinação: uma face esverdeada com grandes olhos, refletida num espelho. Acrescentou que foi a sua primeira alucinação visual e ocorreu quando estava em frente daquilo que ela sabia ser um espelho.

Gregory (1979) recorre às alucinações, enquanto criações da mente não controladas por informações sensoriais, para desmentir os empiristas clássicos, para quem as representações mentais eram uma transposição passiva de dados sensoriais para a mente.

Na verdade, se assim fosse, esta passividade dificilmente permitiria a ocorrência de alucinações, enquanto casos extremos de distorção da realidade, engendradas a nível cerebral, ou a ocorrência de ilusões de ótica como as de Mueller-Lyer e de Ponzo, para citar algumas das mais conhecidas, ou os avistamentos de objetos voadores não identificados (OVNI’s), fenómeno estudado por Jimenez (2002). Por norma, as ilusões de ótica são situações benignas e transitórias, também elas resultantes da atividade cerebral.

Não deixam por isso de ser intrigantes, ainda mais quando há evidência de que a estimulação táctil pode, por si mesma, despoletar ilusões de natureza visual (Millar, 2006).

Por outro lado, as ilusões não têm que ser, necessariamente, de natureza visual. A investigação tem demonstrado que a ilusão de Mueller-Lyer ocorre, também, na forma táctil aquando da perceção da mesma natureza e com algumas similitudes, como a ilusão ser mais notória quando o ângulo de abertura das “asas” das setas é mais reduzido, tanto na perceção táctil como na visual (Heller, 2006). Já a ilusão de Ponzo não ocorre na perceção táctil, o que poderá dever-se a duas razões: por um lado, o tato implica, quase obriga, a uma concentração em características localizadas atendendo ao relevo das linhas e de outros estímulos e por outro lado, sendo a visão particularmente adequada à perceção de configurações imagéticas vastas, é também mais suscetível a ilusões relacionadas com as relações de profundidade (Heller, 2006).

Num estudo com 236 sujeitos que afirmaram ter visualizado OVNI’s 28, Manuel Jimenez conclui que a atividade cerebral envolvida na perceção e na construção de representações mentais pode ser fortemente influenciada pelo interesse pessoal e pela cultura, nomeadamente livros e novas tecnologias da informação, ao ponto de a facilitar ou de a distorcer. Nas suas palavras, um exemplo de distorção:

“… pode comparar-se, para todas as pessoas interrogadas nesse inquérito, a precisão da descrição imaginária com a leitura de livros e com o visionamento assíduo de emissões sobre óvnis: existem correlações entre a leitura de livros e o seguimento de emissões e as modalidades mais precisas da distância, do tamanho e da velocidade imaginadas. Correlações análogas aparecem entre o facto de manifestar, no inquérito, um maior interesse pelos óvnis, e a precisão da descrição imaginária…” (Jimenez, 2002, pp. 116-117).

Também os sonhos podem considerar-se casos particulares de representações mentais, sendo as de natureza visual particularmente abundantes nos sujeitos videntes e as de natureza verbal quase ausentes. Segundo Ninio (1994), tal explica-se com base no facto de durante o sonho, o hemisfério direito do cérebro se encontrar em plena atividade, enquanto o esquerdo, responsável pela linguagem verbal, reduz ao mínimo a sua atividade, mínimo esse responsável pelas poucas referências de natureza verbal. Cerca de metade dos sonhos contêm também imagens mentais auditivas e menos de um por cento apresentam informações de outra natureza sensorial, nomeadamente gustativa, olfativa ou táctil (Hurovitz et al., 1999).

Em suma, imagens oníricas, alucinações visuais ou outras, como uma voz que julgamos ouvir, são construídas a partir de elementos esparsos guardados na memória, mas que se confundem facilmente com a realidade externa (Ninio, 1994). Duas experiências clássicas demonstram a proximidade das imagens mentais com a perceção da realidade externa:

“… Por volta de 1900, Perky apresentou uma hábil demonstração desse facto.

Colocou um indivíduo frente a um ecrã e pediu-lhe que pensasse com muita força num objecto, por exemplo uma banana, e procurasse visualizá-lo mentalmente no ecrã. Sem que o indivíduo soubesse, projectava-se uma imagem do objecto no ecrã. Nenhum dos indivíduos se apercebeu da projecção: todos julgaram ver uma imagem mental. Numa variante mais recente desta experiência, Segal pede ao indivíduo que pense num automóvel e tente visualizá-lo no ecrã. Sem que ele se aperceba, projecta uma cor verde de fraca intensidade, subliminal, ou seja, que não produz efeito consciente.

Quando se pede ao indivíduo que visualize um automóvel, ele vê-o verde…” (Ninio, 1994, p. 198).

Ao longo dos últimos séculos, uma questão tem permanecido em aberto no campo científico, não obstante a atenção que lhe tem sido devotada. Essa questão consiste em saber se os sonhos dos cegos, particularmente cegos congénitos, incluem ou não imagens mentais de natureza visual, negligenciando muitas vezes o conteúdo substantivo desses sonhos (Dávila, 2003; Hurovitz et al., 1999). A ideia que tem tido maior aceitação na comunidade científica, defendida entre outros por Hurovitz e Domhoff e respetivos colaboradores, nega a ocorrência de imagens mentais de natureza visual nos sonhos dos cegos congénitos (Hurovitz et al., 1999; Kerr e Dumhoff, 2004). Outros autores esgrimem factos e argumentos a favor de uma ideia alternativa, a de que os sonhos dos cegos congénitos são compostos, também, por imagens de natureza visual. Tal é o caso de Vecchi, para quem eles têm a capacidade de construir imagens visuo-espaciais (Bértolo, 2005; Bértolo e Paiva, 2001). Num estudo que envolveu cegos com idades compreendidas entre ao 21 e os 50 anos, Bértolo e Paiva (2001) recolheram dados polisonográficos 29, verbais (relatos oníricos) e gráficos. Concluíram pela possibilidade dos cegos produzirem imagens virtuais, em simultâneo com a ativação dos seus córtices visuais. Ao analisarem as descrições verbais dos relatos oníricos feitas pelos cegos, congénitos ou não, os autores não puderam deixar de manifestar alguma surpresa, pois ao contrário do esperado e indicado por alguma literatura, era grande a semelhança com os relatos oníricos de videntes, incluindo conteúdos visuais com descrições de cenas e de paisagens.

Paralelamente, alguns dos sujeitos foram capazes de representar graficamente alguns dos conteúdos oníricos descritos verbalmente, recorrendo a desenhos esquemáticos e simples, por exemplo de palmeiras, estrelas, nuvens e figuras humanas. Na interpretação destes dados, os autores do estudo afirmam a necessidade de se passar a considerar a hipótese de os cegos, incluindo os congénitos, serem capazes de construir imagens virtuais de natureza visual, as quais poderão ter origens genéticas, em lugares e por caminhos ainda não desvendados. Estes resultados vão de encontro aos obtidos pelo Professor Kenneth Ring da Universidade de Connecticut e sua colaboradora Sharon Cooper, os quais demonstraram que os sujeitos cegos congénitos experienciam as situações de quase morte de forma semelhante aos videntes, chegando mesmo a relatar a sensação de terem experienciado imagens visuais quando se encontravam neste estado (Williams, 2006). Conjugando os resultados obtidos por Bértolo e Paiva (2001), com os resultados obtidos em experiências de privação sensorial em animais, Dávila (2003) acrescenta uma outra hipótese que cremos compatível com a anterior, a de que certas regiões corticais estão determinadas geneticamente para construir imagens mentais de natureza visual, tendo por base preferencial as informações obtidas através da perceção visual mas, na ausência desta, sinais neurais originados em outras áreas corticais, nomeadamente as de natureza sensorial e as de natureza associativa, poderão constituir-se como estímulo para a construção de imagens mentais de natureza visual. Numa perspetiva algo integradora de ambas as posições, a favor e contra a existência de conteúdos de natureza visual, Ormelezi (2000) propõe-nos uma explicação alternativa: “a ideia de que o sonho provém da totalidade da experiência – as sensações, a síntese das percepções, a imaginação e o conhecimento” (p. 182). Efetivamente, esta explicação contempla as sensações abundantes de natureza táctil, auditiva, olfativa e gustativa, em função da sua proximidade à experiência percetiva do dia-a-dia dos cegos. Por outro lado, introduz o fenómeno da síntese das perceções. Sendo o tato um sistema sensorial baseado em análises parcelares, graduais e lentas, ele exige este fenómeno de integração, para que uma planta seja uma planta e não um aglomerado desconexo de folhas, caules, flores e aromas. A integração prevê igualmente os contributos dos restantes sistemas sensoriais, por exemplo integrar o aroma das flores na representação mental global da planta. Assim e com o contributo da imaginação e do conhecimento, estamos em crer que muitos dos conteúdos dos sonhos dos cegos estão para além das simples perceções podendo provocar, como relatam alguns sujeitos, uma sensação de “ver” o que se toca, de tocar sem tocar, algo mais que uma vontade de ver, por exemplo o rosto de alguém conhecido. Não é uma resposta cabal à questão da presença ou ausência de imagens de natureza visual nos sonhos dos cegos. Talvez esta seja uma falsa questão e nunca se venha a obter uma resposta cabal para a mesma, pois como resulta das linhas anteriores, ignora outros conteúdos dos sonhos, como as imagens mentais de natureza sensorial diferente e respetivas características, as imagens mentais de natureza sentimental, assim como os processos cerebrais de integração das mesmas, de imaginação e de construção de conhecimentos.

Referimo-nos no ponto anterior às representações mentais como sendo de natureza antecipatória, no sentido em que permitem prever e monitorizar objetos e acontecimentos, mesmo antes da sua ocorrência, o que permite deliberar e planear reações, assim como antecipar os resultados das mesmas. Numa perspetiva evolutiva, tal autoriza-nos a afirmar que as representações mentais evoluíram na espécie humana como forma de potenciar a adaptação ambiental, caso contrário a capacidade de as construir não se teria imposta no nosso património genético. Acontecem, por vezes, erros nesta monitorização da realidade, em que acontecimentos apenas imaginados, se representam na mente como se tivessem ocorrido de facto, representações essas conhecidas como falsas memórias. De forma experimental, Gonsalves e Paller (2000) demonstraram a possibilidade dos sujeitos, ocasionalmente, confundirem as suas memórias de um objeto imaginado, com as suas memórias de objetos realmente visionados. Posteriormente, os sujeitos relataram diferenças subjetivas entre as verdadeiras e as falsas memórias, as quais consistiam em mais detalhes percetuais nas verdadeiras memórias, comparativamente às falsas memórias.

Numa perspetiva extrema, nenhuma memória é absolutamente verdadeira, uma vez que, os acontecimentos relembrados são, pelo menos em parte, (re)construções e não representações fiéis da realidade (Paivio, 1971). O cérebro não é uma câmara de vídeo, ele não proporciona uma recordação exata dos acontecimentos vividos, ou seja, as memórias de acontecimentos específicos são (re)construídas no momento da recuperação, o que torna o processo de relembrar particularmente vulnerável a erros (Gonsalves e Paller, 2000).

Em suma, qualquer um dos três fenómenos tratados neste ponto sustenta que as imagens mentais visuais podem ser tão similares às perceções reais, que podem mesmo confundir-se com elas (Knauff e May, 2005). No entanto, tais similitudes são estruturais e não de conteúdo, ou seja, não significam reprodução fiel e exata de algo, pois como lembra Kosslyn (1995), os fenómenos representados mentalmente não têm que obedecer às leis da física, uma vez que, por um lado não correspondem à realidade externa tal e qual ela existe e por outro, não são entidades rígidas.
 

5. O ESTUDO DA ATIVIDADE CEREBRAL COMO CAMINHO PARA A COMPREENSÃO DA CEGUEIRA E DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

De acordo com Pascual-Leone e colaboradores (2006), a conceção tradicional e dominante acerca da organização do cérebro humano, postula a existência de vários sistemas sensoriais específicos, paralelos e organizados hierarquicamente: o sistema visual, o sistema auditivo, o sistema táctil, o sistema gustativo e o sistema olfativo. Cada um deles é, geral e tradicionalmente, caracterizado como possuindo sistemas de recetores periféricos, os quais transmitem a informação a regiões pré corticais, que funcionam como estações de retransmissão. Estas estações, como por exemplo o núcleo do tálamo, dirigem os sinais para áreas corticais sensoriais unimodais, uma vez que, tem-se pensado ao longo do tempo serem responsáveis pelo processamento de apenas um tipo de informação sensorial. Estas áreas sensoriais unimodais organizam-se hierarquicamente em função da sua complexidade funcional crescente: áreas primárias, áreas secundárias e áreas de associação (estas também unimodais). Só depois destas etapas, em que se tem acreditado a informação sensorial estar compartimentada por modalidades puras, a informação poderia aceder a áreas de associação multimodais e hierarquicamente superiores. Estas áreas de associação multimodais serão constituídas por células multissensoriais, as quais proporcionam os mecanismos neurológicos (i) para a integração das experiências sensoriais, (ii) para a modulação dos estímulos em função da sua saliência, (iii) para aceder à relevância afetiva e experiencial dos mesmos, proporcionando assim, tem-se acreditado, o substrato da experiência percetual final, completa e integrada. Os autores chamam a atenção para evidência recente, segundo a qual esta organização cerebral surge como demasiado simplista e compartimentada, assim como incapaz de explicar determinados factos, alguns dos quais apresentamos nos pontos seguintes (como a ativação do córtex visual primário em cegos congénitos através da exploração táctil), a par de novas perspetivas teóricas que têm vindo a ser propostas.


5.1. ATIVIDADE CEREBRAL E CEGUEIRA

Não será demais relembrar que os órgãos dos sentidos são os coletores e comunicadores de informações do meio ambiente, por outras palavras, vemos com os olhos mas não vemos nos olhos, assim como sentimos com a pele, mas não sentimos na pele, o mesmo acontecendo com os restantes órgãos dos sentidos. A informação coletada é então comunicada ao cérebro que a processará, integrando-a com outras informações de natureza sensorial diferente, atuais, guardadas na memória ou antecipadas, (re)construindo e instruindo as respostas mais adequadas. Assim, consideramos de todo o interesse tratar neste ponto o assunto que se segue. Na cultura do senso comum, assim como em algumas correntes científicas, sobrevive a doutrina da compensação sensorial segundo a qual, se uma fonte sensorial, como por exemplo a visão, for afetada de grave défice durante algum tempo ou permanentemente, os outros sentidos serão automaticamente reforçados, o que levou e poderá ainda levar a acreditar, por exemplo, que um deficiente visual desenvolve automaticamente a capacidade de ouvir e memorizar melhor, comparativamente a um vidente (Kirk e Gallagher, 2002). Tem surgido evidência que refuta, pelo menos em parte, a teoria anterior, particularmente numa das suas articulações vitais, o reforço automático, que parece não existir. Se este reforço fosse, efetivamente automático, pressupõe-se não serem necessárias medidas adicionais para estimular uma criança cega, comparativamente a uma vidente, pois a natureza e os seus automatismos tomariam as rédeas. Como resulta do ponto 8 do capítulo II, o arsenal de estratégias educativas e de estimulação que são lá apresentadas, sublinha a necessária proatividade que deve alicerçar o desenvolvimento das restantes funções sensoriais, tanto em crianças cegas como em videntes. Por outro lado, existem videntes com capacidades auditivas e de memórias tão boas ou melhores que alguns cegos. Em suma e partilhando da explicação de Kirk e Gallagher (2002), como resultado dos estímulos adequados ao desenvolvimento, é lícito continuar a considerar possível que as pessoas com deficiência visual grave, rentabilizem melhor as suas capacidades disponíveis em outras áreas. Por exemplo, um vidente poderá não prestar atenção em determinados sons do ambiente, os quais poderão ser significativos para uma pessoa cega, como aquele ruído característico do motor do autocarro que faz habitualmente uma determinada carreira.

A investigação tem demonstrado um enorme potencial plástico e adaptativo a nível do córtex cerebral, mantendo sempre a sua estrutura anatomofisiológica de base, ou seja, o seu padrão de base que é, aliás, semelhante de cérebro para cérebro, não obstante cada um deles ser único (Damásio, 2010; Habib, 2003). Algo semelhante ao que acontece com os nossos rostos, todos eles diferentes, mas assentes num mesmo padrão de base que localiza os olhos, o nariz, a boca e as orelhas segundo uma disposição ao mesmo tempo rígida (por exemplo, o nariz tem de estar entre os olhos) e ao mesmo tempo plástica (por exemplo, a distância entre os olhos e a espessura do nariz, podem ser maiores ou menores de indivíduo para indivíduo). Como demonstram as cirurgias plásticas, o padrão individual é suscetível de ser alterado, podemos por exemplo modificar a forma da boca, mas mantendo sempre o padrão de base. O cérebro possui uma capacidade, ainda que limitada, para se reorganizar a si mesmo após algum traumatismo ou privação sensorial, num período que vai de 2-3 meses até muitos anos, como acontece num acidente vascular cerebral ou numa perda sensorial como é a cegueira ou a surdez (Amedi et al., 2005; Heller e Ballesteros, 2006; Kupers et al., 2006; Mackay, 2009; Pascual-Leone et al., 2006). José Dávila fala de estudos de privação sensorial realizados em animais, os quais conduziram à reorganização dos circuitos corticais envolvidos na análise da informação sensorial. Continua, dizendo que estes estudos de natureza experimental consistiram em privar o animal de um determinado sentido, por exemplo fazendo a ablação dos olhos logo após o seu nascimento. Observouse que as regiões do córtex cerebral destinadas a receber e processar os impulsos de natureza visual, ao não serem estimuladas por sinais oriundos dos olhos, são colonizadas por axónios provenientes de regiões adjacentes, especializadas em receber e processar sinais emissários de outras modalidades sensoriais (Dávila, 2003). Estudos com humanos, recorrendo claro está, a condições menos extremas, corroboram as ideias de plasticidade mesmo na ausência de novas ligações corticais. Vários autores (Amedi et al., 2005; Pascual-Leone et al., 2006) relatam que a privação completa, mas temporária, da visão em sujeitos videntes durante cinco dias, revelou-se suficiente para ativar o córtex visual primário no processamento de informações tácteis e auditivas. Esta ativação deixou de ocorrer após a privação sensorial. Para estes investigadores, a velocidade destas mudanças funcionais é tão elevada (aproximadamente 24 horas), que é altamente improvável que se tenham estabelecido novas ligações corticais, pelo que as conexões somatossensoriais e auditivas ao córtex occipital deverão já existir previamente, “desmascarando-se” quando sujeitas a estas condições experimentais. Na verdade, existe evidência anatómica e eletrofisiológica de que o córtex visual primário dos mamíferos recebe informações de natureza não apenas visual, mas também auditiva e somatossensorial (Kupers et al., 2006).

Tal está de acordo com a ideia exposta por Damásio (2010), a qual refere que todas as regiões cerebrais envolvidas na construção das imagens mentais evidenciam padrões extremamente diferenciados de interconetividade, sugerindo uma capacidade complexa para integrar sinais 30. Numa investigação conduzida por Kupers e colaboradores (2006), estes constataram que a estimulação magnética transcraniana do córtex visual tende a induzir sensações tácteis, tanto em sujeitos com cegueira congénita como em sujeitos com cegueira adquirida. Os sujeitos descreveram estas sensações como sendo de curta duração, distintas na vibração sentida, de intensidade, extensão e topografia variáveis, em função da zona do córtex visual estimulada. Tais sensações não foram sentidas por sujeitos videntes, quando sujeitos às mesmas condições experimentais, tendo relatado apenas sensações visuais. Assim, afirmam os autores que as sensações sentidas e relatadas pelos sujeitos da sua investigação revelam que a atividade do córtex visual nos cegos, depois da sua reorganização em função da plasticidade cerebral, é de natureza táctil e não visual. Não obstante, deixam a ressalva de que nem todos os sujeitos cegos relataram terem sentido sensações tácteis, existindo assim uma variabilidade individual intersubjetiva para a qual não possuíam ainda uma explicação definitiva. Defendem estes autores, a par de outros como Pascual-Leone et al. (2006), que a reorientação da informação táctil para o córtex visual pode efetuar-se através da formação de novos padrões tálamo corticais, ou através do reforço dos padrões já existentes, os quais e em função do defendido por Amedi et al. (2005) e já referido anteriormente, se poderão encontrar “mascarados” nos sujeitos videntes, em função da maior adequação funcional do córtex visual às informações de natureza visual e da sua predominância nos mesmos, o que poderá ajudar a explicar que a estimulação magnética transcraniana do córtex occipital em videntes tenha resultado, apenas, em sensações visuais. Tal cointegração no córtex occipital de informações de natureza visual e de natureza háptica, poderá ajudar a explicar a proficiência e a eficácia de alguns dos nossos comportamentos, eventualmente fundamentais, senão para a nossa, para a sobrevivência dos nossos antepassados caçadores, recolectores e presas. Por exemplo, nota-se esta cointegração dos sentidos háptico e visual na execução de tarefas visuomotoras, como os movimentos do braço ou da mão, nos quais uma representação propriocetiva da mão no espaço é automaticamente e sem esforço, referenciada para o cálculo visual da posição da mão (James et al., 2006). Por outras palavras, é esta capacidade que nos permite de imediato e com uma margem de erro muito pequena, olhar para a nossa mão sem ter que a procurar visualmente no espaço, assim como permitia aos nossos antepassados aprender a manejar de forma primorosa as suas ferramentas de caça, como por exemplo o arco e a flecha.

Ao estudar um adulto de 52 anos de idade, cego congénito que havia recuperado a visão através de um transplante da córnea, R. Gregory e J. Wallace verificaram que ele iniciou rapidamente o reconhecimento de letras que já lhe haviam sido ensinadas via tato (Gregory, 1979; Ninio, 1994). Concluíram os autores que este sujeito se mostrava apto a utilizar a sua prévia experiência táctil em prol da visão recém-adquirida, evidência que corroborava a ideia de que o cérebro não era tão compartimentado como, de forma muito difundida, se acreditava nessa época. Por outro lado e durante muito tempo, a sua visão parece ter estado limitada aos conhecimentos previamente adquiridos por via do tato, manifestando grande relutância em compreender e utilizar a visão em situações novas.

Estes dados parecem apoiar a ideia defendida pelo próprio Gregory de que a perceção corresponde a uma hipótese antecipada sobre a realidade, formulada ao nível cerebral com base em conhecimentos previamente adquiridos, a qual é testada pelos dados sensoriais.

Tradicionalmente, acreditava-se que as crianças ao cegarem muito novas teriam poucas esperanças de aprender a ver, mesmo que a visão fosse restabelecida, daí a relutância em as submeter a tratamentos cirúrgicos de risco a partir dos cinco ou seis anos, por exemplo para a remoção de cataratas. Num estudo de caso recente relatado por Trafton (2007), investigadores do MIT descobriram que uma mulher cega até aos doze anos, idade em que a visão lhe foi restabelecida, executou aos trinta e dois anos e com uma performance quase normal, uma bateria de testes de visão de alto nível, incluindo reconhecimento de objetos e rostos, avaliação de profundidade e correspondência de formas a duas e três dimensões.

Esta investigação aponta indícios de que o cérebro mantém a sua plasticidade, mesmo em crianças mais velhas.

Segundo Amedi et al., (2005), a equipa de Sadato publicou em 1996 resultados que apontavam para a ativação do córtex visual, incluindo o primário, em ambos os hemisférios, enquanto sujeitos que cegaram até aos seis anos de idade realizavam leitura Braille. Esta ativação foi também evidente, embora em menor extensão, em outras tarefas de discriminação táctil, como a identificação de ângulos tateáveis e criados com pontos Braille. Noticiaram também os investigadores que a varredura passiva dos dedos por cima de um modelo homogéneo de pontos Braille, não desencadeou tal ativação. Estudos baseados na Tomografia por Emissão de Positrões 31, realizados por Büchel e colaboradores e publicados em 1998, têm demonstrado que as pessoas cegas congénitas ativam as áreas cerebrais responsáveis pela representação espacial durante a leitura Braille, enquanto os sujeitos que perderam a visão depois da puberdade, ativam também o córtex visual primário na realização da mesma tarefa (Knauff e May, 2005). Embora sejam convergentes na ideia geral de que o córtex visual, incluindo o primário, se pode ativar nos sujeitos cegos em tarefas de discriminação táctil, nomeadamente na leitura Braille, divergem no intervalo de idades em que os sujeitos cegaram. Enquanto Sadato identificou esta ativação em sujeitos que cegaram até aos seis anos de idade, Büchel apenas a identificou em sujeitos que cegaram precisamente a partir desta idade. A implicação do córtex occipital na leitura Braille foi reforçada com o estudo de pacientes com lesões cerebrais. O caso clínico de uma mulher cega precocemente, no passado altamente proficiente na leitura Braille, que se tornou incapaz de ler Braille após um golpe traumático na zona occipital, o qual lesou gravemente o córtex nessa região, apoia a ideia de uma conexão entre a capacidade de ler Braille e a função occipital (Amedi et al., 2005).

Coloca-se assim em questão a organização rígida do cérebro em sistemas unimodais e que descrevemos anteriormente. Uma hipótese alternativa é defendida por Pascual-Leone et al. (2006), a qual postula que o funcionamento cerebral assenta numa estrutura organizada em redes de operadores corticais, os quais executam determinadas funções independentemente da modalidade sensorial que proporcionou as informações.

Um determinado operador poderá processar preferencialmente informações provenientes de um determinado sistema sensorial, com base na sua adequação relativa. Esta tendência preferencial pode conduzir a uma seletividade específica do operador, a qual é reforçada com o tratamento preferencial de uma determinada modalidade sensorial de informação, situação que poderá ter induzido, ilusoriamente, a ideia de uma estruturação cerebral rígida em sistemas corticais paralelos e segregados, para cada uma das modalidades sensoriais.

De acordo com esta ideia, a especificidade sensorial do cérebro, por exemplo o “córtex visual”, pode acontecer apenas na presença da visão e porque o tipo de processamento que lá ocorre se adequa melhor a informação visual proveniente da retina. Por exemplo, podemos postular que o “córtex visual” está envolvido na discriminação precisa das relações espaciais e das características detalhadas dos objetos, situações particularmente adequadas à modalidade sensorial da visão, com vantagens sobre as restantes. No entanto e face a uma privação da visão, o córtex estriado 32 pode desmascarar a sua sensibilidade táctil e auditiva, de forma a implementar as suas funções multimodais de processamento de informação sensorial não-visual. Considerar o córtex visual primário como multimodal significa, para o autor, que a estrutura e a organização funcional cérebro assentam em funções particulares a desempenhar e não em modalidades sensoriais específicas, compartimentadas e estanques. A análise das funções a desempenhar revelam o córtex visual como um operador epicrítico na deteção táctil de características localizadas e na discriminação espacial precisa (como na leitura Braille), independentemente da modalidade de estimulação sensorial. Outros autores, como F. H. Lopes da Silva citado por Bértolo (2005), vão mais longe nas implicações de tais propostas, defendendo que os estímulos auditivos e hápticos, ao serem processados pelo córtex visual, poderão conduzir à formação de imagens mentais visuais, as quais se poderão revelar ao nível dos sonhos, como constataram Bértolo e Paiva (2001). Os sujeitos cegos congénitos seriam, desta forma, capazes de utilizar outras modalidades sensoriais, cuja cointegração dos estímulos no córtex visual, poderia conduzir a construções capazes de representação mental gráficovisual (Bértolo, 2005).


5.2. ATIVIDADE CEREBRAL E REPRESENTAÇÕES MENTAIS

As neurociências e o estudo da atividade cerebral têm vindo a alcançar o seu espaço na investigação relacionada com as representações mentais. Em alternativa ao verbo alcançar, poderíamos ter utilizado conquistar ou ganhar, mas estamos em crer que não se trata de uma conquista ou de uma vitória, no sentido de tomar posse do que até aí pertencia a outrem. Trata-se de ocupar um espaço próprio, o dos conhecimentos ligados à atividade cerebral propriamente dita, na construção das representações mentais. Como nos dizem Kay e seus colaboradores (2008), um dos objetivos mais desafiantes para as neurociências é virem a ser capazes de ler e descodificar o conteúdo mental resultante da atividade cerebral. Nos últimos anos têm-se feito avanços significativos no conhecimento da atividade cerebral, a qual se tornou acessível ao estudo graças ao desenvolvimento de um conjunto de técnicas não invasivas, as técnicas de neuroimagem, destinadas prioritariamente ao diagnóstico clínico mas, com enorme alcance e utilidade para a investigação dos fenómenos direta ou indiretamente relacionados com o cérebro. No estado atual dos nossos conhecimentos acerca das representações mentais, dispersos, incipientes e, por vezes, contraditórios, a humildade científica não pode deixar de contar com o contributo de novas disciplinas, como não pode menorizar as tradicionalmente envolvidas nesta demanda, como sejam a Psicologia e a Filosofia. Cada uma destas áreas tem o seu espaço por mérito próprio, mas devem canalizar cada vez mais sinergias para a colaboração convergente entre si, buscando aquilo que Edward Wilson sagazmente denominou de Consiliência, que segundo ele significa a unidade do conhecimento (Wilson, 1999).

Na sua obra, Paivio (1990) fala-nos das assimetrias funcionais entre os dois hemisférios cerebrais, as quais se têm revelado através de estudos envolvendo sujeitos com cérebros intactos (“normais”), doentes com lesões em apenas um dos hemisférios e doentes em que o corpo caloso (estrutura que estabelece a ligação entre os dois hemisfério) foi seccionado. O hemisfério esquerdo controla o discurso e revela-se mais eficiente que o hemisfério direito em várias tarefas envolvendo material verbal, enquanto o hemisfério direito está mais envolvido em tarefas não-verbais, como a identificação e memorização de faces, de outros padrões espaciais e o reconhecimento de sons não-verbais. Em consonância, pacientes com lesões no lobo temporal esquerdo evidenciam défices em tarefas de memória verbal, mas não em tarefas de memória não-verbal, enquanto pacientes com lesões no lobo temporal direito evidenciam défices em tarefas de memória não-verbal, mas não em tarefas de memória verbal (Paivio, 1990). Não obstante, ambos os hemisférios possuem sistemas representacionais para a recognição visual de objetos comuns.

Partilhando destas ideias, Kosslyn (1995) acrescenta que os processos envolvidos nas transformações de imagens mentais ocorrem, de forma mais efetiva, no hemisfério direito, tendo-se demonstrado que sujeitos com lesões no lobo parietal direito apresentam dificuldades em tarefas de transformação, como a rotação mental. Não obstante, sublinha que, de acordo com algumas investigações, o hemisfério esquerdo poderá desempenhar, também, um papel importante nas tarefas de transformação das imagens mentais. Não obstante as especificidades de cada hemisfério, Fernandes e Pinho (2007) lembram-nos a existência do corpo caloso, o qual com mais de dez milhões de fibras mielinizadas, une ambos os hemisférios numa unidade funcional. Alguns dados apresentados por Habib (2003), demonstram que as funções da linguagem não são um exclusivo do hemisfério esquerdo, existindo no entanto especificidades. Afirma o autor que “tal como o hemisfério esquerdo está encarregado de elaborar os aspectos instrumentais da linguagem, o hemisfério direito está por sua vez especializado no tratamento e na produção de toda uma componente, em particular emocional, da linguagem, designada por prosódia” (p. 20).

No ponto 3 deste capítulo, referimos diferenças entre as representações mentais evocadas por palavras abstratas e as evocadas por palavras concretas. Estas diferenças estão, segundo Paivio (1990, 2006) relacionadas com o hemisfério cerebral predominante no processamento das mesmas. Interpretando os resultados de várias investigações, sugere que as representações mentais evocadas por palavras concretas, com elevada probabilidade de evocarem imagens mentais, assim como os objetos a que as mesmas se referem, são processados em ambos os hemisférios, enquanto as representações mentais evocadas por palavras abstratas, com baixa probabilidade de evocarem imagens mentais, são processadas preferencialmente no hemisfério esquerdo. Para o autor, as diferenças na eficiência funcional de ambos os hemisférios cerebrais evidenciada nos parágrafos anteriores, quanto ao processamento verbal e não-verbal, constituem evidência consistente acerca da independência funcional dos sistemas de representação simbólica (SRI e SRV), assim como da interconetividade e interação dos mesmos, postulados pela sua Teoria do Processamento Dual. Atendendo às ideias de Mackay (2009), o hemisfério esquerdo assume a especialidade de discriminar finamente sequências temporais (processamento sequencial), logo é compreensível que Paivio situe predominantemente o SRV neste hemisfério, responsável pelo reconhecimento e compreensão da linguagem falada e escrita.

O mesmo autor afirma que o hemisfério direito discrimina combinações imagéticas com constrangimentos temporais flexíveis (análise espacial e sincrónica). Paivio situa o SRI predominantemente no hemisfério direito, proeminente no processamento do fluxo visual da linguagem escrita e no reconhecimento de vozes.

Os estudos baseados em neuroimagens têm acrescentado evidência, tanto a favor das ideias de Paivio como das de Damásio, quanto às interligações multimodais entre o SRV e o SRI. Assim, frases com conteúdos que apelam e facilitam a representação mental de natureza visual tendem a ativar as áreas cerebrais responsáveis pela visão (Knauff e May, 2005). Por exemplo, as palavras que designam cores ou ações (palavras concretas), ativam as mesmas áreas cerebrais que as respetivas cores e ações, quando percecionadas (Paivio, 2006). Assim, Farah (1988) considera as representações mentais de natureza visual como realmente visuais, não no sentido de representarem, necessariamente, informações adquiridas sensorialmente via visão, mas no sentido de dependerem, pelo menos em parte, do mesmo substrato neurológico que a visão, o que explica que sujeitos cegos sem lesões neurológicas, mesmo que congénitos, possam utilizar as suas áreas visuais corticais intactas para a construção de representações mentais. Para Paivio (1990), as representações mentais multimodais que integrem informações acerca de acontecimentos e objetos nãoverbais, estão relacionadas com a ativação de áreas corticais posteriores centrais, em estreita associação com os sistemas sensoriais primários. O seu carácter multimodal é o resultado de repetidas e variadas experiências sensoriais e motoras, as quais conduziram à construção de representações mentais sincrónicas e integradas, em que cada uma das modalidades sensoriais (visual, auditiva, háptica, olfativa e/ou gustativa) pode ativar a construção de uma representação mais holística. Acrescenta o autor que os padrões associativos se desenvolvem, também, entre diferentes representações, intra e inter hemisférios, de forma que a ativação de uma representação pode ativar outra(s), dependendo da informação sensorial e da sua natureza contextual. Os padrões associativos poderão explicar-se, de forma satisfatória, através das ZDC. Estas representações e associações ocorrem em ambos os hemisférios no entanto, um dos hemisférios, geralmente o direito, desenvolve maior proficiência, em atividades integrativas, associativas e transformacionais. Ainda segundo Paivio (1990), as relações entre o SRI e o SRV resultam do desenvolvimento de padrões associativos entre as representações neuronais visuo espaciais (não-verbais), localizadas nas regiões corticais posteriores centrais e as representações auditivo motoras (verbais), localizadas mais frontalmente, principalmente no hemisfério esquerdo. Conexões funcionais desenvolvem-se também entre as representações verbais e as representações não-verbais correspondentes a outras modalidades sensoriais (auditiva e háptica), localizadas mais centralmente. São estas interconexões que tornam possível que as palavras e as descrições verbais evoquem representações imagéticas em qualquer modalidade sensorial, ao mesmo tempo que permite a realização de atividades organizativas e transformacionais. De forma inversa, permite que objetos e imagens representados mentalmente possam ser nomeados ou descritos.

Também os resultados provenientes dos estudos de caso clínicos parecem apoiar as relações postuladas entre o SRV e o SRI. Farah (1988) fala-nos de uma paciente estudada por Beauvois e Saillant em 1985, cujas áreas visuais foram neuroanatomicamente desconectadas das áreas da linguagem em consequência de um acidente vascular cerebral.

Mostrou-se capaz de realizar tarefas puramente visuais envolvendo cores, uma vez que as áreas visuais, em si mesmas, não foram lesadas. As suas capacidades verbais não foram afetadas, obtendo pontuações elevadas num teste de QI verbal, uma vez que as áreas da linguagem também não foram lesadas. No entanto, se a tarefa implicar a coordenação entre elementos visuais e elementos verbais, como por exemplo nomear uma cor apresentada visualmente ou apontar uma cor em função da sua designação verbal, aqui as suas performances eram extremamente pobres, em virtude da desconexão neuroanatómica entre as áreas da visão e as áreas da linguagem.

Com o objetivo de determinar como é que o cérebro organiza representações de substantivos, os neurocientistas Marcel Just e Vladimir Cherkassky em colaboração com os cientistas informáticos Tom Mitchell e Sandesh Aryal, todos da Universidade de Carnegie Mellon, realizaram um estudo que demonstrou que o significado dos substantivos é processado de forma similar no cérebro de diferentes sujeitos, ou seja, quando dois sujeitos pensam, por exemplo, sobre a palavra martelo, os padrões de ativação cerebral são bastante similares nos dois casos (Ciencia PT, 2010). Atendendo a Damásio (2003b), esta descoberta não deveria surpreender, uma vez que ao sermos tão parecidos uns com os outros, no que à essência biológica diz respeito, é natural que um mesmo objeto provoque padrões neurais semelhantes, dos quais resultam imagens mentais semelhantes. O mesmo estudo (CienciaPT, 2010) evidenciou que a representação de um substantivo não ocorre independentemente a nível cerebral, ou seja, essa representação não ocorre num espaço encerrado em si mesmo, antes pelo contrário, ativa áreas responsáveis pela representação de substantivos afins. Por exemplo, a palavra apartamento, ainda que apresentada de forma isolada como todas as outras utilizadas no estudo, provocou a ativação em cinco áreas que se revelaram ativas na representação de outras palavras relacionadas com abrigo. Assim, a expressão rede de conceitos, enquanto conjunto de conceitos interligados com base num conjunto de características afins, parece fazer todo o sentido.

Na procura das localizações corticais mais pormenorizadas para o processamento das imagens mentais, têm-se publicado vários estudos, nem sempre convergentes nos resultados, tal como nos reportam Mazard et al. (2004). De acordo com a meta análise efetuada por esta equipa de investigadores, os aspetos figurativos das imagens mentais visuais e da perceção visual tendem a ser processados no córtex occipito-temporal ventral, enquanto as informações de natureza espacial tendem a ser processadas pelo córtex occipito-parietal dorsal. Notam que esta atribuição de funções não é absoluta, uma vez que alguns estudos referem também o envolvimento do córtex occipito-parietal ventral no processamento de imagens de natureza espacial. Em relação ao envolvimento do córtex visual primário (áreas 17 e 18 de Brodmann), no processamento de imagens mentais visuais, têm-se publicado resultados divergentes. Alguns investigadores reportam a ativação destas áreas corticais, enquanto outros não identificaram qualquer ativação.

Mazard e colaboradores apresentam uma explicação possível para esta discrepância.

Segundo eles, a maioria dos estudos que lidam com imagens mentais de natureza espacial não reportaram atividade no córtex visual primário, enquanto os estudos que lidam com imagens mentais figurativas tendem a identificar atividade nesta área cortical. Acrescentam que a ativação do córtex visual primário poderá estar, também, relacionada com as características individuais dos sujeitos, uma vez que quanto melhor for a performance individual na construção de representações mentais, mais áreas cerebrais tendem a ativarse e evolver-se em determinada tarefa.

Numa investigação baseada na utilização de imagens provenientes de Ressonância Magnética Funcional, Handy e colaboradores (2004) estudaram a atividade cortical quando (i) mantendo o conteúdo de uma determinada representação mental constante, (ii) se altera a estratégia de evocação da mesma. Os participantes foram observados enquanto procuravam representar mentalmente objetos comuns em duas condições diferentes: a) evocar imagens mentais de objetos a partir das respetivas imagens visualizadas a priori e b) evocar imagens mentais desses objetos a partir da visualização do seu nome. Os resultados revelaram (i) ativação bilateral do córtex frontal na condição a), (ii) ativação do córtex frontal esquerdo na condição b) e (iii) ativação das mesmas áreas do córtex temporo parietal nas duas condições. Segundo os autores, estes resultados sugerem que a rede neuronal posterior, ativada do decorrer das imagens mentais visuais, não varia com alterações na forma de evocação, nem com alterações na rede neuronal frontal, responsável por recuperar as imagens da memória e cujo padrão de ativação depende da forma de evocação.

Estruturalmente, Damásio (2010) afirma que as representações mentais resultam da atividade de pequenos circuitos neuronais, que se organizam em grandes redes, as quais são capazes de criar padrões neurais. Estes representam objetos e acontecimentos situados tanto fora como dentro do próprio cérebro. Os situados fora podem pertencer ao mundo exterior ou ao próprio corpo, enquanto os situados dentro, representam o próprio processamento de outros padrões. Os padrões neurais constituem mapas 33, uns simples e toscos, outros refinados, alguns concretos e outros abstratos. Construímos mapas quando interagimos 34 com objetos, como, por exemplo, pessoas, máquinas, locais e acontecimentos. Em suma:

“… o cérebro mapeia o mundo em seu redor, bem como o seu próprio funcionamento. Esses mapas são experienciados como imagens na nossa mente, e o termo imagem refere-se não só às imagens de tipo visual mas também a imagens com origem em qualquer sentido, sejam elas auditivas, viscerais, ou tácteis…” (Damásio, 2010, p.36).

O autor continua, afirmando que quando recordamos objetos, pessoas, lugares, melodias, estados de dor ou alegria e acontecimentos, bem como as múltiplas relações que puderam estabelecer entre si, a partir dos dados guardados na nossa memória, estamos também a construir mapas. Em condições normais, a construção de mapas é ininterrupta, não parando nem durante o sono, tal como demonstra a ocorrência dos sonhos.


6. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM VIDENTES

Quando questionadas, a maioria das pessoas refere que as imagens mentais se assemelham às perceções reais, apesar de menos nítidas, algo semelhante a esboços e difíceis de manter na memória consciente (Farah, 1996). A capacidade para construir representações mentais, nomeadamente de natureza visual, não se expressa nos extremos de tudo ou nada. Para Kosslyn (1995), as pessoas não são, em geral, boas ou más a construir representações mentais e apresenta-nos um dos seus estudos, realizado em 1984 com vários colaboradores, no qual solicitaram a uma amostra de sujeitos que realizassem 13 tarefas diferentes relacionadas com representações mentais, tarefas de retenção, rotação, geração, entre outras. Se a capacidade para construir representações mentais fosse uma capacidade una per se, então os sujeitos com níveis elevados de sucesso numa das tarefas, deveriam obter, igualmente, níveis elevados nas restantes, o que não se verificou. Surgiram mesmo várias correlações negativas, em que um nível elevado de sucesso numa das tarefas implicava insucesso em outra tarefa. O autor explica estes resultados a partir da ideia que tarefas diferentes de representação mental estão associadas a subsistemas diferentes.

Evidência favorável às ideias expressas pela Teoria do Processamento Dual, nomeadamente a existência de um SRI e de um SRV, autónomos mas intimamente relacionados, surge-nos dos trabalhos de Beavois e Saillant (1985), os quais nos são descritos por Farah (1996). Ao estudarem um paciente com desconexão visuo-verbal, constataram que este era capaz de realizar tarefas visuais puras, como agrupar objetos em função da cor, assim como era capaz de realizar tarefas verbais puras relacionadas com a cor, como responder à seguinte questão: Que cor está relacionada com a inveja? No entanto, era incapaz de realizar tarefas que implicassem uma associação entre representação visual e representação verbal, tal como nomear a cor de um determinado objeto.

Claramente inspirado pelo trabalho de Paivio, Almaraz (1997) estudou a construção de representações mentais em mais de duas mil crianças videntes, com idades compreendidas entre os 9 e os 11 anos. Os seus resultados apontam (i) um comportamento regular e indistinto da natureza dos estímulos (imagens, palavras ou sons), o qual se traduz numa correlação altamente positiva entre a pontuação total da representação mental (soma das pontuações de riqueza 35 e de complexidade 36) e as pontuações independentes de riqueza e de complexidade, (ii) as pontuações de riqueza, comparativamente às de complexidade, apresentam correlações mais elevadas com as pontuações totais (superiores a 0,97 em todos os casos) e (iii) as pontuações de riqueza correlacionam-se, em todos os grupos de estímulos, com as de complexidade, numa magnitude que varia de moderada a alta.

Consideramos neste trabalho, a par de algumas das principais orientações teóricas neste campo, a existência de imagens mentais que, para um mesmo conteúdo de base, apresentam diferentes características, nomeadamente em função da sua natureza sensorial de base. Por exemplo, podemos formar uma imagem mental visual simples de um rebuçado, como podemos formar uma imagem mental táctil simples do mesmo, assim como olfativa, gustativa, cinestésica, interoceptiva, auditiva ou sentimental.

Simultaneamente podem aflorar em nós imagens mentais de outros rebuçados, outros alimentos, da pessoa que estava connosco, do local onde tudo aconteceu, etc. Podemos também construir múltiplas combinações com estes vários tipos de imagens mentais simples, formando um conjunto estruturado que anteriormente designámos representação mental. Como explica Belardinelli (2004), a informação proveniente dos diferentes canais sensoriais acerca de um mesmo estímulo, tende a ser preferencialmente integrada numa única representação mental. James e colaboradores (2006) dizem-nos que a investigação tem demonstrado que a imagem mental visual de um objeto pode ser evocada tanto pela apresentação visual do estímulo, como pela sua apresentação háptica e vice-versa, a imagem mental háptica de um objeto pode ser evocada tanto pela apresentação háptica do estímulo, como pela sua apresentação visual. Os mesmos autores referem que um objeto estudado hapticamente de “um ponto de vista particular”, será melhor identificado numa apresentação visual posterior, se ela ocorrer segundo esse mesmo “ponto de vista particular”. No longínquo ano de 1971, já Paivio afirmava a existência de suporte teórico e empírico considerável, para apoiar a ideia de que a discriminação táctil das formas pode envolver imagens mentais de natureza visual.

Atrás referimos a proximidade anatomofisiológica entre o paladar e o olfato, ao ponto do último poder influenciar o funcionamento do primeiro. Basta pensarmos nas nossas constipações com congestão nasal e em como os alimentos parecem perder o seu sabor habitual. Conforme Djordjevic e colaboradores (2004), algumas investigações apontam para inter-relações também ao nível das imagens mentais de natureza gustativa e de natureza olfativa, embora estes resultados não sejam corroborados de forma unânime.

De encontro com esta ideia, esta equipa de investigação demonstrou que as mudanças na perceção dos sabores podem ser induzidas, em alguns casos, não só por odores reais e fisicamente presentes, mas também e seguindo padrões semelhantes, pelas imagens mentais olfativas desses mesmos odores.


7. O ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS EM CEGOS CONGÉNITOS

Como nos lembram Ochaita e Rosa (1995) e de encontro às ideias que temos vindo a expor no presente capítulo, não obstante a privação visual, os cegos dispõem de uma ampla gama de possibilidades para percecionar, perceber significativamente e representar o mundo que os cerca. Está bem documentado que a performance dos sujeitos cegos congénitos, em várias tarefas que envolvem imagens mentais, nomeadamente de natureza visual, é similar à performance dos sujeitos videntes, mas nem sempre idêntica (Kerr e Domhoff, 2004). Por exemplo, demonstrou-se que tanto os sujeitos cegos congénitos, como os videntes, são capazes de aplicar com sucesso as imagens mentais à mnemónica, assim como à imaginação de formas ou objetos, os quais podem mudar as suas orientações e posições no espaço. Os investigadores que compararam as imagens mentais dos cegos congénitos e dos videntes têm concluído, em geral, que elas são funcionalmente equivalentes em muitos aspetos no entanto, as imagens mentais dos cegos congénitos surgem desprovidas de características visuais como a cor e o brilho (Kerr e Domhoff, 2004). Saliente-se que a equivalência ocorre a nível funcional e não, necessariamente, a nível de processos, conteúdos e sua natureza, até porque Kerr e Domhoff são muito críticos dos defensores da ocorrência de imagens mentais de natureza visual nos cegos congénitos, como é o caso de Teresa Paiva e Hélder Bértolo.

Deve estimular-se a construção de imagens mentais em crianças cegas congénitas a partir das experiências percetivas vividas de forma direta ou indireta, em interação com as explicações verbais obtidas por diferentes meios (videntes, livros, televisão, rádio, novas tecnologias da informação, etc.) (Cunha e Enumo, 2003).

Várias investigações têm sido realizadas para estudar as possíveis relações entre o sistema háptico e as representações mentais de natureza espacial. Como exemplo típico, Ochaita e Rosa (1995) apresentam o trabalho de Carpenter e Eisenberg (1978), que consistia em avaliar tactilmente se a imagem de uma letra (P ou F) era a correta, quer quando as letras se encontravam em posição normal, quer em diferentes ângulos de inclinação. Os cegos de nascença mostraram-se capazes de identificar tactilmente as alterações de forma nos eixos horizontal, vertical e oblíquo do espaço euclidiano.

Concluem os autores do trabalho que o sistema háptico pode construir representações mentais válidas e fiáveis de natureza espacial. Outras investigações têm conduzido a resultados e interpretações menos otimistas. Tal é o caso dos trabalhos de Knauff e May (2005) que, segundo os próprios, vão de encontro aos resultados de outros estudos que compararam sujeitos cegos com videntes, num conjunto alargado de tarefas visuoespaciais, nas quais os sujeitos cegos evidenciaram performances menos corretas e mais lentas, ainda que baseadas na construção e aplicação de representações mentais de natureza espacial. Não obstante alguma evidência que sugere atrasos na compreensão do espaço por parte dos sujeitos cegos, Heller e Ballesteros (2006) salientam outras investigações, as quais têm demonstrado que as crianças cegas ou com baixa visão, entre os 3 e os 16 anos de idade, podem obter melhores performances que os seus pares videntes da mesma idade, quando sujeitos a testes de natureza espacial desenhados para avaliar a compreensão espacial de (i) figuras de fundo, (ii) estrutura dimensional, (iii) orientação espacial, (iv) deteção e (v) identificação de simetrias. A visão assume-se como a fonte mais óbvia e imediata de informação espacial, sobretudo se esta questão for analisada na perspetiva dos videntes. No entanto, os resultados anteriores mostram que a experiência visual podendo ser necessária, não é essencial na resolução de problemas de natureza espacial, tal como defendem Millar e Ittyerah (1991) e Millar (2006). Recorrendo à teoria de Revesz, Millar (2006) lembra que as informações propriocetivas, gravitacionais e cinestésicas, originadas pelo corpo e pela postura corporal, proporcionam referências espaciais efetivas, particularmente na ausência da visão. Assim, a autora sublinha a importância para os sujeitos cegos, da consciência dos estímulos que podem, potencialmente, ser utilizados como referências espaciais em determinadas situações ou tarefas, assim como do conhecimento processual sobre como aceder e utilizar essas mesmas referências.

No ponto 1.2. do capítulo II, caracterizámos a perceção táctil como requerendo análises parcelares, graduais e lentas, com posterior integração num todo global. Segundo Bardisa (1992), estas características manifestam-se igualmente nas representações mentais, pois quando se pergunta a um cego o que está na sua mente quando desenha cuidadosamente, por exemplo uma cadeira, as suas respostas retratam uma sucessão gradual das parcelas do objeto (braço direito da cadeira, braço esquerdo, assento, encosto, pernas, etc.). A adoção de processos diferentes, entre crianças cegas e videntes, na realização de desenhos, não obsta a que os resultados finais partilhem muitas das suas características. Segundo Kennedy e Juricevic (2006), os desenhos das crianças cegas partilham muitas características com os desenhos dos seus pares videntes, sobretudo quando os cegos são encorajados e estimulados a desenhar desde os primeiros anos de vida. Investigações conduzidas por Kennedy em 1993 e 1997 demonstraram que, as pessoas cegas são capazes de desenhar figuras bidimensionais, com características similares às desenhadas pelos videntes, em termos de profundidade, movimento, perspetiva, superfícies, contornos e outras características. O investigador interpretou estes factos com base na sobreposição das informações obtidas pelos sistemas percetuais visual e táctil defendendo que, apesar da visão e do tato constituírem sistemas percetuais distintos, um responsável por processar os estímulos luminosos e outro por processar a pressão, as informações que aportam são processadas numa mesma área cerebral que integra os elementos comuns (Kerr e Domhoff, 2004).

Numa outra investigação relacionada com as imagens tácteis, sujeitos cegos e sujeitos videntes com os olhos vendados, perante uma imagem alvo tangível, foram solicitados a selecionarem a melhor combinação possível perante um grupo de quatro outras imagens, também elas tangíveis (instrumento musical com instrumento musical, animal com animal, etc.). Os resultados indiciaram os sujeitos cegos como significativamente mais rápidos a completar a tarefa, provavelmente devido a competências hápticas mais desenvolvidas, não obstante ambos os grupos terem atingido elevados níveis de precisão, com aproximadamente 90% de acertos (Heller, 2006). Na identificação de imagens em relevo não familiares, um grupo de crianças cegas congénitas, com idades compreendidas entre os 8 e os 13 anos, identificaram um maior número de imagens do que os seus pares videntes com os olhos vendados, não obstante estas diferenças, as imagens que se revelaram mais difíceis de identificar para um dos grupos, foram também as mais difíceis de identificar pelo outro grupo (Kennedy e Juricevic, 2006).

Um dos trabalhos de Aleman e colaboradores é-nos descrito por Bértolo (2005).

Nesse trabalho procuraram estudar a capacidade dos sujeitos cegos congénitos na execução de tarefas que, nos sujeitos videntes, são mediadas pelas imagens mentais visuais. Uma das tarefas consistia em comparar mentalmente formas de objetos, enquanto a outra solicitava aos sujeitos que representassem um caminho imaginário em matrizes bi e tridimensionais. Apesar dos cegos congénitos terem obtido valores inferiores aos videntes, mostraram-se capazes de executar ambas as tarefas.

Ao estudarem a discriminação tonal dos sons em crianças cegas, Gougoux et al. (2004) demonstraram que os sujeitos cegos, comparativamente aos videntes, identificam melhor as mudanças tonais entre sons. Os cegos de nascimento, ou que cegaram nos primeiros tempos de vida, evidenciaram esta mesma capacidade, mesmo quando a velocidade da mudança era dez vezes superior para eles, em relação aos videntes. Em suma, quanto mais precoce for a cegueira melhor é a performance na discriminação tonal, o que leva os autores a salientar a importância e a influência da plasticidade cerebral nos cegos congénitos e precoces.

Ao estudarem as representações de categorias naturais em crianças cegas no início da escolaridade básica (primeiro e segundo anos), Peraita e colaboradoras (1992) obtiveram os resultados que apresentamos a seguir:

  • dificuldade em caracterizar categorias gerais, como por exemplo animal, enumerando exemplos da mesma com algumas das respetivas características (a vaca tem cornos ou o camelo corre);

  • referência a contextos muito próximos e imediatos (no jardim do colégio há um pinheiro);

  • utilização abundante de gestos para explicar formas, tamanhos, localização das partes e utilizações;

  • erros de classificação (uma planta é uma folha);

  • utilização frequente de analogias (uma pêra é como uma maçã);

  • desconhecimento dos intervalos de tamanhos possíveis para animais, plantas e objetos em geral, conduzindo frequentemente a sobredimensionamento;

  • ausência quase total de referências a cores;

  • explicação detalhada de aspetos funcionais.

Nos terceiro e quarto anos da escolaridade básica, os padrões de resposta e os esquemas conceptuais das crianças cegas começam a aproximar-se dos identificados nas crianças videntes:

  • caracterização precisa de categorias gerais, como animal ou planta, o que não se manifestou, em absoluto, no grupo anterior;

  • tendência em incluir categorias mais específicas noutras mais gerais;

  • persistência de alguns erros de classificação, como por exemplo o animal é um ser humano;

  • caracterização de tipo avaliativa, como por exemplo gosto ou é bonita;

  • surgem as relações entre as partes e o todo, algo que não ocorreu no grupo anterior;

  • diminui a frequência de exemplos específicos citados para cada categoria mais geral;

  • surgem referências às cores;

  • surgem referências aos intervalos de tamanhos possíveis para animais, plantas e objetos em geral, com mais precisão que no grupo anterior;

  • utilização de analogias mais complexas, como por exemplo o animal é como o Homem, só que não raciocina.

Entre o quinto e o oitavo ano da escolaridade básica, parece ocorrer uma explosão de conhecimentos sobre as categorias e os objetos, com esquemas conceptuais mais completos e complexos. Em relação ao grupo anterior, destaca-se:

  • conhecimento preciso das aplicações e funções dos objetos;

  • conhecimento da variabilidade de formas, cores, tamanhos e materiais, em relação a um determinado objeto;

  • aplicação sistemática de conhecimentos adquiridos em contexto escolar, como as taxionomias que permitem classificar os seres vivos;

  • pontualmente, caracterização e classificação das palavras quanto às suas propriedades lexicais e gramaticais.

Ao longo deste trabalho, por várias vezes referimos a importância da linguagem verbal para o desenvolvimento e para o dia-a-dia dos cegos, assim como a linguagem verbal enquanto fator constituinte das próprias representações mentais. Com base em vários trabalhos sobre a utilização de verbalismos pelos cegos, Peraita e suas colaboradoras (1992) salientam a ocorrência de processamento semântico, por exemplo ao julgarem a adequação de um adjetivo a um determinado substantivo (bola – redonda, rosa – vermelha, gato – voador, neve – negra), uma vez que as latências de resposta se revelaram mais longas nos pares inapropriados (neve – negra, por exemplo), em resultado de processos ativos de pensamento utilizados na busca de inferências corretas.

Num estudo que pretendia contribuir para o conhecimento e para a explicação dos processos de construção dos conhecimentos em cegos congénitos, Ormelezi (2000) estudou cinco jovens adultos portadores de cegueira congénita e obteve os seguintes resultados 37:

  • possibilidade do ser humano captar informações relevantes da realidade e construir conhecimentos acerca da mesma, mesmo na ausência da visão;

  • para o cego, constituem fontes privilegiadas de informação (i) a experiência percetiva, considerando-se particularmente relevante o tato, (ii) a experiência afetiva e (iii) as explicações de outros (por exemplo, em relação às cores);

  • fundamental introduzir recursos concretos acessíveis ao cego, como ferramenta para trabalhar e construir conceitos;

  • importante fundir a palavra a objetos representativos da realidade na formação de conceitos não acessíveis, senão pela visão (lua, por exemplo);

  • desvalorização, por parte dos sujeitos da amostra, das figuras em relevo enquanto fontes de informação;

  • valorização, pelos sujeitos, das figuras tridimensionais enquanto fontes de informação;

  • há conceitos considerados secundários e acessórios pelos cegos congénitos;

  • construção do conceito de cores com base em critérios e relações disponibilizadas pelos videntes;

  • os sonhos são constituídos, predominantemente, a partir da realidade que vivem, ou seja, por imagens mentais tácteis, olfativas, auditivas e cinestésicas, sendo que a maioria dos sujeitos relatou que, ao sonhar, sente que vai além da realidade correspondente à perceção, como se estivesse a ver.

Nas palavras de Isabel: “«vejo» as características que sinto das coisas quando toco… é como se estivesse tocando as coisas sem as tocar… na verdade sinto, mas é mais que sensação… é mais global” (p. 181):

Já em 2004, Sylvia Nunes conduziu um estudo com objetivos congéneres, tendo estudado crianças cegas congénitas com idades compreendidas entre os nove e os treze anos. Destacam-se os seguintes resultados:

  • a representação da maioria dos conceitos baseia-se nos seus atributos definidores, ou seja, características essenciais que atribuem uma identidade distinta dos demais 38;

  • as categorias mais utilizadas para a definição de conceitos foram, por ordem decrescente, (i) comportamentos/exemplos, (ii) função, (iii) características físicas tateáveis e (iv) características físicas não tateáveis;

  • os sujeitos podem recorrer a informações de natureza visual nas suas representações, às quais têm acesso através das descrições verbais feitas pelos videntes, ou dos meios de comunicação (como livros, televisão, internet, rádio, etc.);

  • os conceitos concretos tateáveis, como bola ou telefone, tendem a ser representados pela sua função útil e pelas suas características físicas;

  • os conceitos concretos não tateáveis e não cognoscíveis de forma direta pelos restantes sentidos, em virtude da enorme distância física que os separa dos sujeitos, como são os casos da lua e da nuvem, tendem a ser representados pelas suas características físicas não tateáveis e pela sua localização;

  • os conceitos naturais, como vento, trovão, nuvem e arco-íris tendem a ser representados de forma contextualizada;

  • recurso a analogias na representação de conceitos dificilmente apreensíveis pelo tato;

  • os conceitos abstratos tendem a ser representados através de comportamentos e/ou exemplos considerados ilustrativos dos mesmos, assim como pela negação dos seus opostos;

  • a linguagem utilizada pelos sujeitos não foi um mero reflexo mecânico do conhecimento disponibilizado pelos videntes, representando efetivamente os conceitos que formaram a partir das suas experiências percetivas e cognitivas.


8. IMPLICAÇÕES EDUCATIVAS DO ESTUDO DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Se as representações mentais evoluíram como forma de potenciar a nossa adaptação ambiental, permitindo mais e melhores desempenhos cognitivos com mais baixo custo energético, então um processo educativo será tanto melhor quanto mais e melhores representações mentais permitir desenvolver.

Está demonstrado, com algum consenso, que a utilização de mnemónicas baseadas em imagens mentais melhora a retenção de material verbal (Kalakoski, 2006; Paivio, 1971, 1990; Thomas, 2007). Ainda em relação com os processos mnemónicos, várias investigações têm demonstrado que (i) relembrar e relatar livremente imagens se revela mais eficaz que relembrar e relatar as respetivas legendas, (ii) objetos e imagens são relembrados mais facilmente que palavras concretas, (iii) palavras concretas são relembradas mais facilmente que palavras abstratas e (iv) a recordação de palavras está positivamente correlacionada com a sua capacidade para evocar imagens mentais de natureza visual e cinestésica (Paivio, 1971).

Na aprendizagem da leitura, Paivio (1990, 2006) afirma que a aprendizagem das palavras concretas é mais rápida quando as mesmas são acompanhadas pelas respetivas imagens referentes, em comparação com a sua pronúncia verbal simples, logo recomenda-se a utilização de material verbal de natureza concreta e de estímulos sensoriais, como forma de melhorar a compreensão da leitura, a memorização e a evocação, tanto em crianças como em adultos. Acrescenta o autor que a construção de imagens mentais no decorrer da leitura melhora a aprendizagem de novo vocabulário e a compreensão.

O recurso à concretização, à construção de imagens mentais e aos princípios do duplo processamento (SRI e SRV), permite escrever com mais significado e de forma mais memorável (Paivio, 2006).

Outros autores, como Paivio (1990) alargam as funções que as representações mentais e os processos a elas associados podem desempenhar. Além da mnemónica, defendem o seu papel ativo nas tarefas de avaliação da informação e de motivação para a ação. Alguns exemplos associados às funções de avaliação são (i) analisar as representações mentais de mapas para determinar as distâncias relativas entre localizações, (ii) estimar o tamanho relativo de um objeto através da sua representação mental, (iii) ler em voz alta a informação contida numa matriz representada mentalmente, (iv) comparar objetos através das respetivas representações mentais (tamanho, cor, peso, etc.), (v) cálculo mental, (vi) análise estrutural e semântica de palavras representadas mentalmente (número de sílabas, número de vogais e consoantes, significados, sinónimos, etc.), (vii) análise estrutural e semântica de frases representadas mentalmente (classificar as palavras nas respetivas categorias gramaticais, significados, etc.) e (viii) tarefas de transformação e/ou criação (imaginar um cubo a ser cortado em 10 cubos iguais, por exemplo). A execução destas tarefas poderá envolver e, regra geral, envolve o SRI e o SRV. Por exemplo, analisar as representações mentais de mapas para determinar as distâncias relativas implica, entre outros, o processamento da imagem mental do mapa, eventualmente com diferentes distâncias focais, da imagem mental das cores, nomeadamente das linhas representativas das vias de comunicação (estradas nacionais, auto estradas, vias férreas, etc.), assim como das palavras associadas aos nomes das localidades e das cores das linhas.

Paralelamente, muitas vezes de forma involuntária, podem assomar à mente outras imagens associadas à representação geral, ainda que insignificantes para a tarefa, como a sensação de atrapalhação na dobragem de um grande mapa ou o som produzido pela manipulação do papel.

Tradicionalmente, as Neurociências têm-se descuidado no estudo das emoções (Damásio, 2004). As Ciências da Educação seguiram-lhes os passos, ignorando ou mesmo ostracizando e reprimindo as emoções e respetivos sentimentos na aprendizagem, considerando-os não só dispensáveis como contraproducentes (Fernandes, 2004; Fernandes e Pinho, 2007). Nos seus últimos avanços, as Neurociências têm agora tratado as emoções e os sentimentos com maior cuidado, revelando não só a sua presença em qualquer ato de conhecer, sobretudo das primeiras, como a sua importância “para a direcção adequada da atenção, uma vez que fornece um sinal automatizado acerca da experiência passada do organismo com certos objectos e providencia, deste modo, uma «razão» para prestar atenção a um determinado objecto ou para desviar a atenção desse objecto” (Damásio, 2004, p.312). Acrescenta o mesmo autor que “tanto em ratos como em seres humanos, demonstrou-se que o recordar de factos novos é reforçado pela presença de certos níveis de emoção ao longo da aprendizagem” (p. 336). Objetos em educação podem ser, entre outros, a própria escola enquanto espaço físico e social, uma determinada disciplina e respetivos conteúdos, como pessoas importantes da história passada e atual (todas as disciplinas têm os seus personagens históricos), assim como os seus feitos, lugares, imagens ou objetos tridimensionais e respetiva composição (os órgãos do corpo, por exemplo), um determinado raciocínio matemático ou o significado de uma palavra. A Escola e cada professor em particular têm que assumir como objetivo crítico a educação dos afetos, pelas emoções e pelos sentimentos, desde logo valorizando-os e tendo plena consciência da sua presença constante no ato educativo. Neste sentido, Fernandes (2006) afirma a necessidade do ato educativo ter em conta as várias dimensões que constituem o indivíduo, ou seja, a sua natureza biopsíquica, social, emocional, afetiva, mental, intelectual, interpessoal e transcendental. Argumentarão os céticos que se trata de pura perda de tempo, face às aprendizagens, essas sim importantes, da Matemática e da Língua, entre outras. Outros, mais abertos, dirão que estão de acordo com este objetivo crítico, mas falta tempo, pois os horários estão já sobrecarregados com as disciplinas tradicionais. A uns e a outros diremos que não se trata de incluir ou não as emoções e os sentimentos nos currículos, porque eles já lá estão, associados a cada um dos conteúdos contemplados, pois como referimos anteriormente, as Neurociências têm demonstrado a sua presença em qualquer ato de conhecer. Podemos ignorá-las, fazer de conta que lá não existem ou dizer que não são importantes, mas não faz sentido, por essa razão, discutir a sua inclusão ou não no currículo. Também não faz sentido falar da falta de tempo pois, como dissemos, a emoção acontece no ato de conhecer, portanto não se trata de reservar umas quantas aulas para abordar emoções ou sentimentos, nem tão pouco dar a sua definição teórica e está cumprido o programa. É em cada ato de conhecer que se educa a emoção e o sentimento, a emoção de semear uma semente (feijão por exemplo), ver as primeiras folhas a brotar da terra, medir regularmente a altura da planta e rejubilar de alegria porque cresceu em relação à última medição, desenhá-la e nomear os diferentes órgãos, pesquisar as funções de cada órgão, é a felicidade estampada no rosto ao ver a primeira flor e a vontade de registar o momento em fotografia, é a ansiedade que os frutos amadureçam para serem colhidos e com eles confecionar uma sopa coletiva. Da parte do professor, é saber que esta estratégia de aprendizagem envolve mais emoções e de natureza positiva, que a simples apresentação da imagem do feijoeiro retirada de um manual ou a colocação de sementes em algodão e água, sem viabilidade de sobrevivência além da germinação. Atendendo à funcionalidade das ZDC, importa cultivar o estabelecimento de redes neurais alargadas, quer através da interligação lógica entre conteúdos diferentes mas interrelacionados, o que pode ser feito, por exemplo, através dos chamados mapas conceptuais ou redes de conceitos, ou através da interligação com vivências anteriores dos alunos em relação a determinado objeto. Em suma, há que ter presente que o cérebro, órgão da aprendizagem por natureza, é constituído por conjuntos de redes neuronais, por outras palavras, por enredos neuronais. Diz-nos Spitzer (2007) que este órgão prefere aprender histórias com enredos contextualizados e significativos, a fatos isolados.

 

CAPÍTULO VIDISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Neste capítulo procuramos interpretar os resultados obtidos em relação (i) às representações mentais da realidade física (identificação, riqueza, complexidade, valor total e natureza das informações), (ii) às representações mentais da realidade social escolar (integração no EBER) e (iii) às relações entre as representações mentais da realidade física e as representações mentais da realidade social escolar.
 

1. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA

1.1. IDENTIFICAÇÃO DE ESTÍMULOS PERCETIVOS

Na identificação de estímulos percetivos de natureza diferente, a performance dos sujeitos, tanto cegos congénitos como videntes, saldou-se numa frequência reduzida de erros de identificação. Outras investigações têm demonstrado que a exploração táctil ativa se revela particularmente eficiente na identificação de objetos tridimensionais (Ballesteros e Reales, 2006).

No caso dos cegos congénitos da nossa mostra: objetos tridimensionais – um erro em vinte e quatro possíveis, figuras em relevo – sete erros em vinte e quatro possíveis e sons – três erros em vinte e quatro possíveis.

No caso dos videntes: objetos tridimensionais – zero erros em vinte e quatro possíveis, figuras em relevo – dois erros em vinte e quatro possíveis e sons – três erros em vinte e quatro possíveis.

Para a boa performance geral dos sujeitos, muito terão contribuído a simplicidade ou identificabilidade e a familiaridade dos estímulos utilizados no nosso dispositivo de recolha de dados. Tratam-se, na sua maioria, de objetos, figuras e sons do quotidiano e de contornos simples. Em conformidade com esta ideia, o estímulo com mais erros de identificação, seis no total dos dois grupos de sujeitos, foi a figura em relevo casa, uma figura mais complexa e composta por outras mais simples (triângulos, retângulos e círculos). Sendo percecionada hapticamente e atendendo à sua complexidade, para a sua identificação eram necessárias análises parcelares, graduais e lentas, para uma posterior integração num todo global (Dias, 1995; Gil, 2000; Heller e Ballesteros, 2006; Nunes, 2004; Ochaita e Rosa, 1995), integração essa que se revelou difícil nos sujeitos que falharam a identificação, uma vez que, a maioria destes conseguiu análises parcelares corretas, identificando algumas das figuras geométricas que integravam o todo. Com quatro erros de identificação surge o piano, um som que no seu estado puro, tal como foi apresentado, desacompanhado de voz e de outros instrumentos musicais ou seja, de outros elementos contextuais, poderá ser menos familiar a alguns dos sujeitos. A identificação do som galo a cantar saldou-se em dois erros de identificação, erros cometidos em função da afinidade com o som das galinhas, uma vez que foi esta a resposta dada por ambos os sujeitos que erraram a identificação. Trata-se assim de um som com uma identificabilidade menor.

A identificabilidade dos estímulos é um fator crítico apontado pela literatura, tendo sido estudado por Almaraz (1997), o qual identificou influências do mesmo nos níveis de riqueza e de complexidade das representações mentais. Também a familiaridade é apontada como fator crítico por Heller e Ballesteros (2006), nomeadamente na perceção háptica.

Nas análises estatísticas efetuadas, não identificámos qualquer diferença significativa no entanto, alguns dos resultados merecem-nos reflexão. No caso dos cegos congénitos, a comparação estatística das identificações de estímulos tácteis com as identificações de estímulos sonoros evidencia a ausência de diferenças significativas, com om’s muito próximas, o que poderá estar relacionado com a proficiência e a familiaridade destes sujeitos, na utilização quotidiana de ambas as modalidades de identificação. Quando comparamos as identificações das duas categorias de estímulos tácteis, não obstante a ausência de diferenças significativas, verificamos que os sujeitos cegos foram melhor sucedidos na identificação de objetos tridimensionais que na identificação de figuras em relevo, facto explicável pela menor familiaridade com as representações em relevo e que podemos constatar na aplicação das entrevistas, com vários sujeitos a revelarem ser o primeiro contacto com esta forma de representação. A mesma razão estará subjacente ao facto das figuras em relevo estarem associadas ao pior desempenho, quando comparamos as identificações das três categorias de estímulos (objetos tridimensionais, sons e figuras em relevo), ainda que sem diferenças significativas.

Os sujeitos videntes, ao contrário do que seria de esperar, evidenciaram melhores performances na identificação de estímulos tácteis que na identificação de sons, ainda que sem diferenças significativas. Dizemos ao contrário do que seria de esperar porque, no dia-a-dia, a utilização do tato pelos videntes é, muitas vezes, substituída pela visão ou combinada com ela, uma vez que, em condições normais, um vidente não poderá tatear nada que não esteja, igualmente, ao alcance da visão. O mesmo não acontece com a audição, que é um sentido de longo alcance, pelo que os videntes são confrontados, muitas vezes, com sons que procuram identificar, mas que não estão ao alcance da visão, como por exemplo, um cão a ladrar por detrás de um muro alto. No entanto, numa análise mais detalhada dos resultados, verificamos uma diferença em relação ao padrão evidenciado pelos cegos congénitos, segundo a qual os videntes apresentam melhores performances na identificação de figuras em relevo que de sons. Sendo certo que os videntes estavam vendados aquando da exploração háptica das figuras em relevo, permanecia um fator para nós impossível de neutralizar, as memórias visuais destas figuras familiares 39 permaneciam disponíveis, podendo ser mobilizadas como auxiliares na identificação dos estímulos.

Como afirmam James e colaboradores (2006), a exposição a objetos reais através da visão ou, em alternativa, do sentido háptico, afeta a identificação posterior desses mesmos objetos, respetivamente através do sentido háptico ou da visão.

Comparando a performance dos sujeitos cegos congénitos com a dos videntes, verificamos a ausência de diferenças significativas na identificação de sons e diferenças próximas do limiar de significância na identificação de estímulos tácteis (p=0,058).

Quando comparamos os dois grupos na identificação de objetos tridimensionais e de figuras em relevo, verificamos om’s próximas e ausência de diferenças significativas no primeiro caso, enquanto as diferenças no segundo caso se situam próximas do limiar de significância (p=0,057). Recuperando explicações apresentadas anteriormente, face á pouca familiaridade de ambos os grupos de sujeitos com esta forma de representação, as memórias visuais dos videntes parecem ter desempenhado um papel não negligenciável na identificação dos estímulos. Face à maior familiaridade com a representação tridimensional dos objetos e com a sua exploração táctil, por parte de ambos os grupos de sujeitos, seguramos um limão para cortar ou espremer, seguramos uma bola quando jogamos, assim como seguramos pedras para as atirar, as memórias visuais dos videntes terão desempenhado um papel menos importante na identificação de objetos tridimensionais, resultando em om’s muito próximas com os sujeitos cegos congénitos.
 

1.2. RIQUEZA, COMPLEXIDADE E TOTAL DAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Analisando (i) a riqueza, (ii) a complexidade e (iii) o total das representações mentais, destacam-se os seguintes resultados:

  • as representações mentais evocadas por estímulos semânticos apresentam valores significativamente mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) total, comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos percetivos, tanto em cegos congénitos como em videntes;

  • as representações mentais evocadas por palavras abstratas apresentam valores significativamente mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) total, comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no grupo de sujeitos videntes;

  • as representações mentais evocadas por palavras concretas apresentam valores significativamente mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) total, comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no grupo de sujeitos videntes;

  • ausência de diferenças significativas (i) na riqueza, (ii) na complexidade e (iii) no total das representações mentais evocadas por estímulos de natureza diferente (palavras abstratas, palavras concretas, objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons), no grupo de cegos congénitos;

  • ausência de diferenças significativas (i) na riqueza, (ii) na complexidade e (iii) no total, entre as representações mentais evocadas por cegos congénitos e as representações mentais evocadas por videntes.

A riqueza e a complexidade são duas componentes daquilo que temos vindo a designar de representação mental total (= riqueza + complexidade). Estas duas componentes são apresentadas na literatura como apresentando correlações positivas fortes, as quais se evidenciaram nos nossos resultados, tal como explicita o quadro 10. Não é assim de estranhar que a riqueza e a complexidade apresentem resultados com padrões semelhantes, sendo que os resultados de uma têm de ser, necessariamente, explicados tendo em atenção os resultados da outra. O total das representações mentais, enquanto resultado da adição da riqueza com a complexidade, apresentado estas componentes padrões semelhantes, era expectável que recapitulasse o padrão partilhado pela riqueza e pela complexidade, o que se verificou. Assim, é nossa convicção que devemos concentrar os nossos esforços na compreensão dos resultados da riqueza e da complexidade e suas interações, como forma de compreendermos os resultados das representações mentais totais.

O facto dos estímulos semânticos evocarem representações mentais mais ricas que os estímulos percetivos, não está de acordo com o relatado por Almaraz (1997) que, utilizando uma base teórica e metodológica equivalente à nossa, encontrou resultados inversos. Sendo a diferença nos resultados de ambas as investigações um facto indiscutível, podemos apenas discutir os critérios de comparação dos resultados das duas investigações a partir de algumas especificidades metodológicas. No seu trabalho, Almaraz concebia as representações mentais como a evocação mnemónica e imagética do estímulo e das características diretamente associadas a ele. Por exemplo, a palavra tacho deveria evocar a imagem de um tacho, sendo esta a única imagem que deveria ser descrita, estando implicitamente proibidas ligações contextuais com outros objetos, ou com pessoas, lugares, acontecimentos e pensamentos. Não é assim de estranhar que estímulos percetivos tivessem evocado representações mentais mais vívidas e mais ricas. Por entendermos que esta conceção de representação mental é redutora da sua complexidade, da sua dinâmica e da sua natureza multimodal, na evocação das representações mentais, não só não proibimos ligações contextuais, como as incentivámos, no sentido em que solicitávamos aos sujeitos que durante 30 segundos representassem nas suas mentes, não só o estímulo propriamente dito, mas também lugares, pessoas, acontecimentos e pensamentos que surgissem nas suas mentes, como naturalmente associados. Por exemplo, face à palavra tacho, o sujeito podia representar aquele acontecimento em que ajudou a sua mãe a confecionar uma refeição.

Era esta representação global que pretendíamos que os sujeitos nos relatassem e não, apenas, o tacho utilizado. Dito isto, apenas explicámos o porquê das diferenças em relação a outras investigações, carecendo ainda explicar os nossos resultados propriamente ditos.

A existência de diferenças significativas na riqueza e na complexidade das representações mentais evocadas por estímulos semânticos, em relação às evocadas por estímulos percetivos, vai de encontro aos postulados da Teoria do Processamento Dual a qual, como já referimos, prevê a existência de dois sistemas de representação mental autónomos mas interligados, um SRI mais vocacionado para as informações de natureza imagético percetiva e um SRV, mais vocacionado para as informações de natureza simbólico verbal.

Para melhor explicarmos e compreendermos o porquê das representações mentais evocadas por estímulos semânticos serem mais ricas e mais complexas que as evocadas por estímulos percetivos, a análise da enunciação revelou-se um precioso auxiliar na interpretação dos resultados estatísticos. Estatisticamente, a complexidade das representações mentais evocadas por estímulos semânticos é, em consonância com a riqueza, significativamente superior à das representações mentais evocadas por estímulos percetivos. A nosso ver, tal está relacionado com algumas das características das representações mentais reveladas pela análise da enunciação, as quais passamos a explicar: em ambos os grupos de sujeitos, as representações mentais evocadas por estímulos percetivos e de forma mais evidente nos estímulos tácteis, centraram-se na representação mnemónica da imagem mental dos estímulos propriamente ditos, de forma vívida e com abundância de informações de natureza imagética. Corroboram-se assim os resultados de Nunes (2004), segundo os quais os conceitos concretos tateáveis, tendem a ser representados pelas suas características físicas. Ocorreram menos ligações com outros objetos, lugares, pessoas, acontecimentos e pensamentos, o que nos relatos verbais se manifestou na utilização de um menor número de orações, logo de palavras de ligação como são as conjunções e as preposições. Esta centração na representação do estímulo percetivo propriamente dito, com escassez de ligações a outros referentes, como sejam objetos, lugares, pessoas e acontecimentos, explica a menor riqueza das representações mentais evocadas por estímulos percetivos. Por seu turno, as representações mentais evocadas por estímulos semânticos revelaram-se mais complexas, na procura de contextualizar as palavras estímulo em situações e acontecimentos concretos, ocorrendo abundante inclusão de objetos, lugares, pessoas e acontecimentos, mais como forma de dar significado à palavra que de descrever exaustivamente esses elementos, recorrendo mais a informações de natureza verbal que imagética. Estes resultados vão de encontro aos relatados por Nunes (2004), ou seja, os conceitos abstratos tendem a ser representados através de comportamentos e/ou exemplos considerados ilustrativos dos mesmos. Como nos diz Damásio (2003b, 2004), as representações mentais construídas a partir de estímulos não-verbais e verbais, podem ser manipuladas pela nossa mente através de múltiplas (re)construções de pessoas, objetos, lugares e acontecimentos, podendo inventar e incluir novas imagens mentais na representação.

Atendendo aos nossos resultados, as representações mentais evocadas por estímulos verbais parecem dispor de maior liberdade e maleabilidade na sua manipulação e (re)construção. As palavras, sejam abstratas ou concretas, tendem a evocar acontecimentos, lugares, pessoas, objetos e pensamentos, os quais já se encontram integrados em redes interligadas na memória a longo prazo. Por outras palavras, a palavra bola não se refere a nenhuma bola em particular, pelo que o cérebro irá recuperar informações guardadas na memória, com grande probabilidade de integrarem vivências concretas dos sujeitos marcadas emocionalmente. Como defende Vigotski (2001), “a palavra nunca se refere a um objecto isolado mas a todo um grupo ou classe de objectos” (p. 9). Em contrapartida, a evocação de uma esfera ou de uma bola específicas, percecionadas apenas há alguns minutos atrás, conduz o sujeito a centrar-se nesses mesmos objetos, sobretudo quando o intervalo de tempo que medeia a perceção e a evocação da respetiva representação mental é demasiado reduzido para permitir a sua integração nos esquemas conceptuais e representativos pré-existentes. Como reconhecem vários autores (Horton, 2000; Nunes e Almeida, 2005), o conhecimento sensorial apresentado de forma isolada pode representar-se de forma desconexa e descontextualizada, dificultando a atribuição de significados e a relação com outros conhecimentos (passados, contemporâneos e/ou futuros).

Podemos assim dizer que as representações mentais evocadas por estímulos percetivos, sendo quantitativamente menos ricas, revelam-se qualitativamente mais vívidas ou, por outras palavras, mais nítidas e com abundância de informações de natureza imagética, enquanto as representações mentais evocadas por estímulos semânticos, sendo quantitativamente mais ricas, revelam-se qualitativamente menos nítidas e com abundância de informações de natureza verbal. Por outras palavras, maior frequência de pessoas, objetos, lugares, acontecimentos e pensamentos, mas sem descrições pormenorizadas das suas características e/ou das suas ações.

No grupo de cegos congénitos, não encontrámos diferenças significativas nem na riqueza, nem na complexidade das representações mentais evocadas por estímulos de natureza diferente (palavras abstratas, palavras concretas, objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons), o que parece revelar um processamento equilibrado e integrado das informações, independentemente da sua natureza. Analisando estes resultados à luz da Teoria do Processamento Dual, eles poderão estar relacionados com interligações robustas entre o SRI e o SRV, as quais não permitem diferenciar significativamente a riqueza e a complexidade das representações mentais resultantes do processamento de palavras abstratas ou de palavras concretas por um lado, da riqueza e complexidade das representações mentais resultantes do processamento de objetos tridimensionais, de figuras em relevo ou de sons, por outro lado. O modelo de convergência – divergência também nos pode ajudar na compreensão destes resultados. Sendo este baseado numa arquitetura neural de ligações em rede capazes de emitir sinais convergentes e/ou divergentes em relação a diferentes ZDC’s, as quais “registam a coincidência de actividades em neurónios de diferentes partes do cérebro, neurónios esses que haviam sido activados, por exemplo, no mapeamento de um determinado objecto” (Damásio, 2010, p. 182), é plausível que a familiaridade dos cegos congénitos com as perceções táctil e auditiva, assim como com o processamento de palavras abstratas e de palavras concretas, se desenvolvam nestes sujeitos arquiteturas neurais mais ricas em redes corticais, tanto de natureza táctil, como de natureza auditiva e simbólico-verbal, de forma que a ativação de uma determinada ZDC poderá, com um dispêndio de energia mínimo, ativar várias outras redes neuronais e ZDC’s, que por sua vez poderão ainda ativar outras redes neuronais e ZDC’s. Tal parece ocorrer nos cegos congénitos sem que nenhuma das redes ativadas, seja por informação táctil, auditiva ou simbólico-verbal, predomine sobre as restantes, quer na disponibilidade de disparo, quer na disponibilidade quantitativa das informações que permitem evocar.

No caso dos sujeitos videntes, a menor familiaridade com a perceção táctil por um lado e a simplicidade dos estímulos figuras em relevo por outro, ajuda no nosso ponto de vista a explicar a riqueza e a complexidade significativamente maiores, das representações mentais evocadas por palavras abstratas e por palavras concretas, em relação às representações mentais evocadas por figuras em relevo. A menor familiaridade com a perceção táctil de figuras em relevo poderá estar associada a uma menor disponibilidade de redes corticais e de ZDC’s associadas a esta forma de representação, não sendo as memórias visuais suficientes para colmatar esta carência. Por outro lado, a simplicidade dos estímulos associada a uma maior centração nos mesmos, leva a uma menor disponibilidade de elementos referenciais e potenciais ativadores de disparos em ZDC’s.

Por exemplo, houve sujeitos que se limitaram a uma representação tão simples como “Retângulo [hes.] a forma que ele tinha parecia-se com um retângulo” (C2), ou “Bola. assim do feitio de um balão” (F2).

Na comparação das representações mentais evocadas pelos cegos congénitos com as representações mentais evocadas pelos videntes, não encontrámos qualquer diferença significativa na riqueza e na complexidade das mesmas, logo no valor total. Desde logo, podemos afirmar, com alguma segurança, que as memórias visuais dos videntes, as quais parecem ter sido mobilizadas como auxílio à identificação das figuras em relevo, parecem não ter influenciado significativamente a riqueza e a complexidade das representações mentais. Um outro fator a ter em conta na compreensão destes resultados, surge-nos da análise da enunciação ao conteúdo das representações mentais, através da qual identificámos padrões de categorização transversais a ambos os grupos de sujeitos, ou seja, as representações mentais (re)construídas por ambos os grupos de sujeitos partilham um conjunto de categorias abstratas nas quais se podem classificar as respetivas informações, pelo que o processamento cognitivo destas informações em ambos os grupos de sujeitos surge, também ele, como fator de aproximação entre os dois grupos. Verifica-se assim o defendido por Vauclair (2008), para quem a categorização permite estruturar, organizar e reduzir a complexidade e a diversidade, tanto do meio físico, como do social. Com base na categorização, uma competência que se manifesta desde muito cedo nos seres humanos, desde a idade de alguns meses (Vauclair, 2008) e pela qual o cérebro humano parece ter um apetite insaciável (Spitzer, 2007), sem que se apercebam disso, os sujeitos simplificam o seu pensamento e aproximam as suas representações mentais uns em relação aos outros, sobretudo da perspetiva de quem analisa com base em categorias puramente abstratas, como o fazem os investigadores e nós também. Por outras palavras, a propósito do objeto esfera, os sujeitos E2, E1 e F1, (re)construíram representações diferentes do mesmo, afirmando E2 que poderia ser uma bola de futebol, E1 que seria um globo terrestre e F1 que poderia ser um objeto de decoração. Apesar das diferenças, estas representações podem classificar-se numa categoria abstrata comum, a aplicação funcional do objeto.

Estes sujeitos procuraram, entre outros aspetos, definir aplicações para o objeto. Não obstante a natureza abstrata das categorias identificadas, é possível atribuir-lhes algumas características que ajudam a objetivá-las. Assim, as representações mentais evocadas por palavras abstratas evidenciaram de forma transversal a ambos os grupos de sujeitos (i) contextualização em situações concretas, vivenciadas ou não pelos sujeitos e (ii) influências sociais no conteúdo, com a higiene da casa, pessoal e do ambiente a serem mais valorizadas que outras formas de higiene, como a da bicicleta ou do automóvel, surgindo estas influências sociais fortemente associadas à figura materna 40. As representações mentais evocadas por palavras concretas evidenciaram, de forma transversal a ambos os grupos de sujeitos, (i) a centração em torno de categorias geográficas e ambientais, atendendo a que estas palavras evocavam elementos naturais (montanha, neve, estrela e nuvem) e (ii) caracterização das imagens mentais evocadas nas representações. As representações mentais evocadas por objetos tridimensionais, em ambos os grupos de sujeitos, centraram-se na caracterização das imagens mentais dos estímulos, em torno de 10 categorias, duas das quais se manifestam nas representações mentais evocadas pelos quatro objetos tridimensionais (a forma e a textura), enquanto outras três se manifestam nas representações mentais evocadas por três dos quatro objetos tridimensionais (a cor, a dureza e as aplicações funcionais). A prevalência da caracterização mental de possíveis aplicações para os objetos tridimensionais, salienta a procura da funcionalidade, aspeto característico destas representações mentais. A procura da função útil foi uma das características identificadas por Nunes (2004) na representação de conceitos concretos tateáveis, ao estudar uma população de cegos congénitos. Na mesma linha de pensamento, as representações mentais evocadas por figuras em relevo centram-se, para ambos os grupos de sujeitos, na caracterização das imagens mentais dos estímulos, em torno de uma mesma categoria dominante e presente nas representações mentais evocadas pelas quatro figuras em relevo, a forma. As categorias emergentes da análise da enunciação às representações mentais evocadas pelos sons revelam uma maior dispersão no entanto, podem considerar-se centradas em torno de dois conteúdos essenciais, de forma transversal a ambos os grupos de sujeitos, o objeto produtor do som e as características do som.

Estamos em crer que esta forma de processamento cognitivo, a tendência para a categorização, que ficou evidente nos resultados da análise da enunciação, contribuiu para aproximar as representações mentais dos cegos congénitos e dos videntes, uma vez que a maioria das categorias identificadas são transversais a ambos os grupos de sujeitos. Tal como outros investigadores que compararam representações mentais de sujeitos cegos congénitos com as de sujeitos videntes (Kerr e Domhoff, 2004), concluímos que elas são funcionalmente equivalentes em muitos aspetos.

Apesar de não termos recolhido dados neuroanatómicos e neurofisiológicos, nomeadamente neuroimagens, que nos autorizem a dizê-lo, os resultados de outras investigações fazem-nos crer que a enorme plasticidade cortical desempenhou aqui e ao longo do desenvolvimento dos nossos sujeitos o seu papel e que, como afirma Damásio (2010), todas as regiões cerebrais envolvidas na construção de imagens mentais evidenciam uma capacidade complexa para integrarem sinais, ou seja, o córtex cerebral parece não ser tão constituído por áreas independentes, como sem tem vindo a acreditar.

Por exemplo, Kupers et al. (2006) apresentaram evidências de que o córtex visual primário dos mamíferos recebe informações de natureza não apenas visual, mas também auditiva e somatossensorial. O facto deste processamento intersectorial ocorrer tanto nos cegos congénitos, como previsto desde há muito tempo, mas também nos videntes, poderá contribuir para aproximar os processamentos cognitivos nas respetivas (re)construções da(s) realidade(s). Nesta linha de pensamento, o facto de os videntes apresentarem sistematicamente valores de riqueza, complexidade e total superiores, para as representações evocadas por estímulos de natureza táctil, em relação às representações evocadas por estímulos auditivos, padrão inverso ao manifestado pelos videntes, pode estar relacionado com as descobertas de Kupers e colaboradores (2006), as quais revelam a existência de uma significativa atividade de natureza táctil no córtex visual dos cegos, após uma reorganização cortical em função da plasticidade cerebral. Assim, nos cegos congénitos, as representações mentais de natureza táctil parcem beneficiar em mais larga escala desta reorganização, em comparação com as representações mentais de natureza auditiva.

Em suma, parecem assumir-se como fatores críticos para a (i) riqueza, (ii) a complexidade e (iii) o total das representações mentais, (i) a natureza semântica ou percetiva dos estímulos, com a primeira associada a melhores performances, (ii) a capacidade de mobilizar informações guardadas na memória a longo prazo como forma de enriquecer e complexificar as representações, com os estímulos de natureza semântica a evidenciarem melhores performances a este nível, (iii) a familiaridade com as formas de processamento cognitivo necessárias em função da natureza do estímulo, (iv) a simplicidade dos estímulos, (v) a tendência humana para o pensamento categorial e (vi) as influências sociais.


1.3. NATUREZA DAS INFORMAÇÕES NAS REPRESENTAÇÕES MENTAIS

Da análise à natureza das informações presentes nas representações mentais, destacam-se os seguintes resultados:

  • as representações mentais evocadas por estímulos percetivos apresentam valores significativamente mais elevados de informações de natureza imagética, comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos semânticos, no grupo de cegos congénitos;

  • as representações mentais evocadas por estímulos semânticos apresentam valores significativamente mais elevados de informações de natureza sentimental, comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos percetivos, no grupo de cegos congénitos;

  • ausência de diferenças significativas na natureza das informações, entre as representações mentais evocadas por estímulos semânticos e as representações mentais evocadas por estímulos percetivos, no grupo de videntes;

  • as representações mentais evocadas por objetos tridimensionais apresentam valores significativamente mais elevados de informações de natureza imagética, comparativamente às representações mentais evocadas por palavras abstratas, tanto em cegos congénitos, como em videntes;

  • as representações mentais evocadas por palavras abstratas apresentam valores significativamente mais elevados de informações de natureza sentimental, comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no grupo de cegos congénitos;

  • as representações mentais evocadas por palavras concretas apresentam valores significativamente mais elevados de informações de natureza verbal, comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo, no grupo de videntes;

  • ausência de diferenças significativas na natureza das informações, entre as representações mentais evocadas por cegos congénitos e as representações mentais evocadas por videntes.

As representações mentais evocadas por estímulos percetivos apresentam valores mais elevados de informações de natureza imagética, comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos semânticos, tanto no grupo de cegos congénitos, como no de videntes. No entanto, as diferenças apenas assumem significância estatística no primeiro grupo. Estes resultados eram expectáveis à luz da Teoria do Processamento Dual. Como afirmam vários autores (Paivio, 1971, 1990; Thomas, 2007), as imagens mentais evocadas a partir de estímulos semânticos tendem a ser menos nítidas e detalhadas, comparativamente às evocadas a partir de objetos específicos. Estando o SRI particularmente vocacionado para o processamento de informações de natureza percetiva, o seu envolvimento destaca-se na (re)construção mental dos estímulos percetivos, o que também ajuda a explicar a maior centração das representações mentais em torno dos estímulos percetivos, centração essa que temos vindo a aludir desde os pontos anteriores, particularmente nos estímulos tácteis. A maior familiaridade dos cegos congénitos com o processamento de informações de natureza táctil e auditiva, certamente terá contribuído para a significância das diferenças neste grupo de sujeitos. Como afirma Paivio (1990), se os cegos congénitos, no seu quotidiano, reconhecem os objetos essencialmente através da perceção táctil ativa, é razoável supor que as suas representações mentais incorporem abundantemente elementos resultantes dessa experiência háptica. Apesar de, no conjunto dos estímulos percetivos e dos estímulos semânticos, os videntes não denotarem diferenças significativas nas informações de natureza imagética presentes nas respetivas representações mentais, analisando o conjunto de estímulos de natureza diferente (palavras abstratas, palavras concretas, objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons), verificamos que, tal como no grupo de cegos congénitos, as representações mentais evocadas por objetos tridimensionais apresentam valores significativamente mais elevados de informações de natureza imagética, comparativamente às representações mentais evocadas por palavras abstratas. Este facto vai, também, de encontro às ideias vinculadas à Teoria do Processamento Dual (Paivio, 1971, 1990), segundo as quais as palavras abstratas estão associadas a escassas conexões funcionais com o SRI, enquanto os objetos tridimensionais, pela riqueza de elementos percetivos que podem encerrar e por convidarem à exploração táctil ativa, permitem mais conexões funcionais com este sistema de representação.

Assumindo, como Paivio (1990, 2006), que o SRV está particularmente vocacionado para lidar com a linguagem verbal, os resultados demonstram uma predominância das informações de natureza verbal nas representações mentais evocadas por estímulos semânticos, em comparação com as evocadas por estímulos percetivos, tanto no grupo de cegos congénitos como no de videntes. No entanto, em nenhum destes grupos as diferenças são significativas, o que poderá indicar, por um lado, o envolvimento em mais larga escala e a vocação do SRV para lidar com estímulos semânticos, por outro lado, a interligação do SRV com o SRI, nomeadamente como forma de atribuir significados às informações de natureza imagética e de estabelecer interligações de ideias. Ainda em relação às informações de natureza verbal e no caso concreto dos sujeitos videntes, verificamos que as representações mentais evocadas por palavras concretas apresentam valores significativamente mais elevados, comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo. Dada a pouca familiaridade dos videntes com a perceção táctil de figuras em relevo e consequente representação mental das respetivas informações, assim como a simplicidade das próprias figuras em relevo, os sujeitos centraram-se, quase exclusivamente, na descrição das imagens mentais das informações tácteis que haviam coletado, não procurando atribuir significados a essas informações, nem estabelecer interligações de ideias. Estes resultados parecem salientar a importância de fazer acompanhar as explorações percetivas, sempre que possível, de descrições verbais, com referências a outras experiências e conhecimentos que a criança tenha já desenvolvido, tanto no caso dos cegos congénitos como no dos videntes.

Atendendo à literatura relevante na área das emoções e dos sentimentos (Damásio, 2003a, 2003b, 2004, 2010; Fernandes, 2004, 2006; Fernandes e Pinho, 2007; Spitzer, 2007), sentimos a necessidade e considerámos adequada a introdução de uma categoria de análise que denominámos informações de natureza sentimental, informações essas que, no fundo, simbolizam um sistema de representação autónomo além dos já referidos SRI e SRV, mas em estreita ligação com eles. Este sistema de representação é o responsável pelo processamento das informações emocionais, as quais se expressam e representam mentalmente na forma de sentimentos. Lembremos que, para que o cérebro possa apreender imagens, sons, odores, sabores e palavras, assim como para que possa recordálos mais tarde, é necessário que no momento da apreensão exista suficiente emoção (Damásio, 2010). Interpretando estritamente esta ideia de António Damásio, a qual é partilhada por outros autores (Fernandes, 2004; Spitzer, 2007), só poderemos considerar a existência de um SRI e de um SRV, se simultaneamente considerarmos a existência de um SRS (sistema 41 de representação sentimental). Centrando a nossa atenção nos dados propriamente ditos, verificamos que as representações mentais evocadas por estímulos semânticos tendem a incluir maior quantidade de informações de natureza sentimental, comparativamente às representações mentais evocadas por estímulos percetivos, tanto em cegos congénitos, como em videntes. No entanto, no grupo de cegos congénitos as diferenças foram estatisticamente significativas. Como defendemos no ponto anterior, a utilização de estímulos verbais (palavras abstratas e palavras concretas) revelou-se mais eficaz na evocação de informações armazenadas na memória a longo prazo, pessoas, lugares, objetos, acontecimentos e pensamentos, em comparação com os estímulos percetivos que conduziram a uma maior centração em torno das respetivas características percecionadas e posteriormente representadas. Os resultados das investigações têm revelado o envolvimento essencial das emoções no processamento de informações na memória a longo prazo, envolvimento esse menos notório no processamento de objetos e sons percecionados pouco tempo antes e cujas informações representacionais são processadas, essencialmente, nesta fase, ainda ao nível da memória de trabalho. Assim, havendo nas representações mentais evocadas por estímulos semânticos, maior disponibilidade de informações recuperadas da memória a longo prazo 42, é compreensível uma maior abundância de informações de natureza sentimental, geralmente as mesmas emoções e respetivos sentimentos presentes aquando da apreensão dessas informações e que, pensando em termos de ZDC’s, a ativação de determinadas ZDC’s correspondentes a informações imagéticas ou verbais, faz disparar as ZDC’s correspondentes aos sentimentos relacionados e apreendidos em simultâneo com essas informações. Compreendem-se assim as abundantes referências a acontecimentos reais vivenciados pelos sujeitos, nas representações mentais evocadas por estímulos semânticos, em oposição à sua escassez nas representações mentais evocadas por objetos tridimensionais e total ausência nas evocadas nas figuras em relevo. Como defende Cury (2006), as experiências vividas envolvendo mais emoção, sejam prazer ou sofrimento, tranquilidade ou medo, são memorizadas de forma privilegiada, pelo que “recordamos facilmente sobretudo os momentos mais marcantes das nossas vidas” (p. 109). A respeito das informações de natureza sentimental verificamos, no grupo de cegos congénitos, que as representações mentais evocadas por palavras abstratas apresentam valores significativamente mais elevados, comparativamente às representações mentais evocadas por figuras em relevo. Mais uma vez, a centração quase exclusiva na descrição das imagens mentais das informações tácteis que haviam recolhido das figuras em relevo, não se abrindo a interligações com informações guardadas na memória a longo prazo, ajuda a explicar a escassez de informações de natureza sentimental, nas representações evocadas por figuras em relevo. A ser assim, é lícito questionar por que razão, tais resultados e diferenças não se verificaram no grupo de videntes, nomeadamente a ausência de informações de natureza sentimental nas representações mentais evocadas por figuras em relevo. A análise da enunciação permitiunos verificar que, a maioria das informações sentimentais incorporadas pelos videntes nestas representações, eram de dúvida, dificuldade e hesitação, dada a sua pouca familiaridade com esta forma de representação.

Comparando os resultados obtidos pelo grupo de cegos congénitos com os obtidos pelo grupo de videntes, não encontrámos qualquer diferença significativa na natureza das informações presentes nas respetivas representações mentais. São vários os fatores que poderão ter contribuído para este facto. Desde logo, as imagens mentais de natureza visual guardadas na memória dos videntes, não terão influenciado as representações mentais dos mesmos, no sentido de serem significativamente mais ricas em informações de natureza imagética, em relação aos videntes. No caso das representações mentais evocadas por estímulos percetivos, é compreensível a não influência das memórias visuais dos videntes, uma vez que estas representações se centraram, maioritariamente, nas imagens mentais do que havia sido percecionado momentos antes, ou seja, foram aqueles objetos, aquelas figuras em relevo e aqueles sons, foram as suas características que povoaram as respetivas representações mentais. Por outras palavras, foi aquele estímulo em forma de esfera que os sujeitos representaram, o seu material, a sua dureza, a sua textura e as suas irregularidades e, não tanto, outras esferas que, certamente, os sujeitos conheciam. No caso das representações mentais evocadas por estímulos semânticos, ambos os grupos de sujeitos evocaram informações tanto de natureza imagética, como verbal e sentimental, de acordo com as suas vivências e memórias que, não obstante a falta de visão dos cegos congénitos, se revelaram plenas de riqueza e complexidade. Não queremos, nem podemos afirmar que as memórias visuais dos videntes não assomaram às suas mentes na (re)construção das várias representações mentais, apenas podemos afirmar que, não obstante a sua existência e possível evocação pelos videntes, as diferenças no conhecimento do mundo físico entre cegos congénitos e videntes, a existirem poderão ser mais na forma de conhecer e recolher informações, que no conhecimento propriamente dito, na sua natureza e no seu processamento. Havíamos verificado no ponto anterior que estas memórias visuais, também não terão influenciado a riqueza e a complexidade das representações mentais. Por outro lado, podemos afirmar que os cegos congénitos não recorrem às informações de natureza verbal com mais frequência que os videntes, ou seja, o conhecimento do mundo físico por parte dos cegos congénitos não é uma mera abstração verbal daquilo que ouviram ou leram mas inclui, de forma interrelacionada, conteúdos de natureza percetiva e sentimental. Podemos assim afirmar que, não obstante o conteúdo explícito das representações mentais variar de sujeito para sujeito e, consequentemente, entre cegos congénitos e videntes, quando esse conteúdo é classificado em função de categorias abstratas e gerais, as semelhanças sobrepõem-se às diferenças, pelo que os processos cerebrais e cognitivos em particular, utilizados por cegos congénitos e videntes na (re)construção das respetivas representações mentais, se equivalem.


2. REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR

As representações acerca da integração social dos alunos cegos congénitos no EBER foram estudadas recorrendo a um questionário sociométrico aplicado às turmas frequentadas pelos sujeitos e a entrevistas individuais de carácter não estruturado. Os resultados sociométricos indicam-nos que a maioria dos sujeitos cegos congénitos se encontra em situação de isolamento (D1, E1 e G1) ou próximos da mesma (C1 e F1).

Apenas H1 se pode considerar como popular na respetiva turma. Os sujeitos E1 e G1 não receberam qualquer preferência dos seus pares videntes. As preferências recebidas pelos restantes cegos congénitos tiveram origem em videntes com um estatuto social equivalente ou inferior. Todos os cegos congénitos partilhavam o respetivo estatuto social com outros alunos videntes, ou seja, nas respetivas turmas não eram os únicos isolados, os únicos populares ou os únicos sem significância estatística. Por outro lado, comparando estatisticamente o número de preferências recebidas pelos cegos congénitos com as recebidas pelos respetivos pares videntes, as diferenças não são significativas. Não obstante a “atipicalidade” da cegueira, pela estranheza que impressiona nos videntes, poder favorecer a exclusão (Bastin, 1980), não é lícito atribuir à cegueira congénita responsabilidades exclusivas pelo estatuto social dos seus portadores, o que vai de encontro às ideias de Kirk e Gallagher (2002), segundo os quais a cegueira, em si mesma, não sentencia problemas sociais inevitáveis. Como corolário, não podemos deixar de salientar que, ao pensarmos, definirmos e implementarmos uma escola integrada, esse pensamento, essa definição e essa prática devem incluir, necessariamente, todos os alunos, com e sem NEE, uma vez que, como evidenciam os nossos resultados, o isolamento social em contexto escolar não é um exclusivo dos alunos ditos com NEE.

Refletindo sobre as preferências emitidas, verificamos que os videntes emitiram significativamente mais preferências que os respetivos pares cegos congénitos. Este é o único indicador sociométrico onde se verificaram diferenças significativas entre cegos congénitos e videntes. Tal facto poderá estar relacionado com alguma passividade, não raras vezes identificada nas crianças cegas (Kirk e Gallagher, 2002), passividade essa, que muitas vezes se inicia logo na primeira infância na relação com a mãe, como demonstrou Sousa (2003), onde as crianças cegas tendem a ser passivas, não solicitando atenção. Na mesma linha, outros estudos têm evidenciado que as crianças cegas tendem a encetar menos iniciativas para iniciar e conduzir uma interação social, aproximadamente metade em relação aos seus pares videntes (Díaz-Aguado et al., 1995). Também não podemos excluir, a existência de critérios mais restritos na definição de amizade, por parte dos sujeitos cegos congénitos. Nas entrevistas realizadas aos mesmos, verificou-se que estes valorizam nos videntes as relação de ajuda que estes lhes prestam, relações essas que C1 define como simpatia. Nos seus trabalhos, Díaz-Aguado et al. (1995) encontraram resultados semelhantes, com as crianças e os adolescentes cegos a justificarem as suas preferências em relação aos videntes, com base na ajuda que podem obter deles. As preferências dos cegos congénitos isolados (D1, E1, G1) foram emitidas, apenas, em relação a videntes de estatuto social superior, tendência comum segundo Bastin (1980), para quem os alunos excluídos ou isolados têm “tendência para emitir preferências não realistas, escolhendo indivíduos que ocupam pontos muito altos na escala sociométrica e que não o escolherão” 43 (p. 166). Não podemos olvidar que as respostas dos sujeitos são representações da sua integração social escolar e não a sua integração social escolar real.

As preferências dos cegos congénitos não significativos (C1 e F1) e populares (H1), foram emitidas no seio do grupo de videntes com estatuto social semelhante e, no caso de H1, também em relação ao grupo de não significativos. Estas podem considerar-se preferências mais próximas da realidade, porque tendencialmente baseadas nas experiências sociais autênticas (Bastin, 1980).

As preferências recíprocas constituem-se como um indicador sociométrico importante para avaliar a frequência e, sobretudo, a robustez das relações sociais estabelecidas por determinado elemento no seio de um grupo. Na nossa amostra, verificamos que os sujeitos isolados não manifestaram qualquer preferência recíproca, o que não deixa de reforçar a sua situação de isolamento e que resulta, em certa medida, do facto dos isolados tenderem a emitir preferências em relação a estatutos sociais superiores e destes tenderem a não emitir em relação aos estatutos sociais inferiores. Não obstante, não se verificaram diferenças significativas nas preferências recíprocas, entre o grupo de cegos congénitos e o grupo de videntes que emparelha com o primeiro.

Olhando para o conjunto das turmas frequentadas pelos sujeitos cegos congénitos, evidencia-se um padrão homogéneo na distribuição dos alunos populares e dos alunos isolados. Assim, as turmas de C1 e de G1 apresentam dois alunos populares e dois isolados, as turmas de E1 e F1 apresentam dois alunos populares e três isolados, a turma de H1 apresenta quatro alunos populares e quatro isolados, enquanto a turma de D1 apresenta dois isolados e nenhum popular.

As entrevistas realizadas junto dos pares videntes, evidenciaram atenção e vontade de estes conhecerem melhor a cegueira e a condição de ser cego, valorizando algumas das capacidades manifestadas pelos seus pares cegos congénitos, como as competências mnemónicas. Esta vontade manifestada, ainda que implicitamente, pelos videntes deve ser aproveitada e trabalhada, assim como se deve promover nos cegos congénitos um melhor conhecimento da vidência e da condição de ser vidente. Este conhecimento cruzado poderá ajudar a ultrapassar algumas das situações relatadas pelos sujeitos que, em nosso entender, se devem a um desconhecimento ou a um conhecimento incompleto e distorcido dos videntes em relação aos cegos e vice-versa. Estamos a refletir, nomeadamente, acontecimentos relatados por C1, nos quais os colegas de turma videntes pareciam não compreender a utilidade e a necessidade de C1 utilizar a máquina Braille nas aulas, querendo impor-lhe como método alternativo o computador. Por outro lado, a rigidez de C1 ao recusar-se a utilizar o computador, ainda que pontualmente e em determinadas situações. Outra situação foi-nos relatada a propósito de D1, ocorrendo essencialmente nos corredores de acesso às salas de aula, onde os videntes exibiam comportamentos pouco adequados esperando, por exemplo, que D1 se desviasse para que pudessem passar, esquecendo que D1 não poderia notar a sua presença, se estes não a fizessem notar de forma adequada. Por outro lado, as reações de agressividade de D1 em relação a estes acontecimentos, não funcionam, certamente, como facilitadores do estabelecimento de relações sociais positivas. Através da promoção do conhecimento mútuo, estaremos a ir de encontro às ideias de Díaz-Aguado e colaboradores (1995), para quem o desenvolvimento social assenta, também, em construções e (re)construções dos outros enquanto partes integrantes de um mesmo mundo. Os professores devem assumir um papel ativo no fomento das relações sociais entre as crianças videntes e as cegas congénitas, assim como entre cegos, cultivando um ambiente de conhecimento, aceitação e valorização das diferenças, constituindo-se como modelos para os alunos, com base na premissa essencial de que, atendendo à variabilidade individual que perpassa a espécie humana, todos somos diferentes. Neste sentido, recuperamos a recomendação de Nielson (1999), advogando a necessidade de os professores formarem os alunos videntes acerca da cegueira, com o objetivo de ajudá-los a ultrapassar quaisquer inseguranças ou conceções incorretas. A estas recomendações, acrescentamos a enumerada anteriormente, de também os cegos, sobretudo os congénitos, porque nunca vivenciaram a vidência, serem formados acerca da vidência e da condição de ser vidente, incluindo as inseguranças e conceções incorretas destes em relação à cegueira.

Nas entrevistas realizadas com os sujeitos, assim como em conversas informais com os respetivos professores, foram relatados alguns comportamentos associados a instabilidade emocional, nomeadamente em E1 e H1. O primeiro referiu nem sempre lidar bem com o facto de ser cego, sentindo-se, por vezes, triste e revoltado, sentimentos que tem dificuldade em partilhar, quer com os adultos próximos, quer com os seus pares. Em relação ao segundo, foi a sua professora de ensino regular que referiu dificuldades em aceitar que não poderá vivenciar determinadas situações de forma equivalente aos videntes, como ver televisão ou, um dia mais tarde, conduzir um automóvel ou uma moto. Existe evidência clínica que uma das dificuldades mais importantes dos cegos está relacionada com a compreensão e/ou expressão das próprias emoções crendo, muitas vezes, que as suas emoções são tão distintas dos restantes seres humanos, que não podem ou não merecem ser partilhadas (Díaz-Aguado et al., 1995). Estamos em crer que a escassez de contactos com outras crianças cegas ajuda a explicar estes episódios de instabilidade, uma vez que o ser humano necessita relacionar-se com múltiplos grupos de referência. Vários autores (Díaz-Aguado et al., 1995; Garialdi et al., 1992) salientam a importância da criança cega se relacionar, simultaneamente, com um grupo dito macro, composto por crianças sem NEE e um grupo micro, preferencialmente inserido no anterior e composto por crianças com NEE similares ou não.

Cruzando os dados das entrevistas efetuadas aos diferentes sujeitos pertencentes a um mesmo contexto, cegos congénitos, videntes e professores, foi possível identificar a ocorrência de comportamentos agressivos, de natureza essencialmente verbal, em D1, E1 e G1, dirigidos aos seus pares videntes. Estes são os cegos congénitos que a análise sociométrica revelou estarem isolados nas respetivas turmas. A sua agressividade não será o único fator explicativo do isolamento mas, certamente, presta o seu contributo, tal como no caso de Ralph, uma criança cega de 11 anos estudada por Kirk e Gallagher (2002). No caso específico de G1, esta agressividade parece estar associada a uma competitividade académica excessiva em relação aos seus pares. A competitividade excessiva é apontada por Arbol e Arbol e Arangurem (1995) como fator promotor da marginalização.

Nas suas intervenções, os cegos congénitos valorizaram as relações de ajuda prestadas pelos seus pares videntes, relações essas que parecem acontecer essencialmente em contextos formais, emergindo algumas dificuldades relacionais em contextos menos estruturados e de natureza lúdica. Estes resultados vão de encontro aos relatados por outros investigadores, nomeadamente Díaz-Aguado et al. (1995). Segundo esta equipa de investigadores, entre os 7 e os 11 anos de idade, as principais dificuldades sentidas pelas crianças cegas nas suas interações com os videntes aconteceram nos momentos lúdicos, como as brincadeiras e os jogos, evidenciando preferência pelos videntes para trabalhar e pelos cegos para brincar ou jogar, justificando que preferem trabalhar com videntes com base na ajuda que podem obter deles, nomeadamente explicações verbais acerca dos fenómenos e dos objetos.


3. RELAÇÕES ENTRE AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE FÍSICA E AS REPRESENTAÇÕES MENTAIS DA REALIDADE SOCIAL ESCOLAR

Atendendo aos resultados respeitantes às relações da integração social no EBER, nas suas várias dimensões (preferências recebidas, valores relativos tendo em consideração as ordens das preferências recebidas, preferências recíprocas e preferências emitidas), com as características de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) valor total, das representações mentais da realidade física, destacam-se os seguintes resultados:

  • o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está positivamente relacionado, no limiar de significância (p=0,059), com a complexidade das representações mentais evocadas por (i) estímulos percetivos, (ii) figuras em relevo e (iii) sons;

  • o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversamente relacionada, no limiar de significância (p=0,059), com as diferenças entre a riqueza das representações mentais dos cegos congénitos e a dos videntes, quando os estímulos evocadores são objetos tridimensionais e o total dos estímulos (semânticos + percetivos);

  • o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversamente relacionado, no limiar de significância (p=0,059), com as diferenças entre a complexidade das representações mentais dos cegos congénitos e a dos videntes, quando os estímulos evocadores são de natureza percetiva;

  • o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversamente relacionada, no limiar de significância (p=0,059), com as diferenças entre o total das representações mentais dos cegos congénitos e o dos videntes, quando os estímulos evocadores são objetos tridimensionais;

  • o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está significativa e inversamente relacionada com as diferenças entre (i) a riqueza e (ii) o total das representações mentais de cegos congénitos e videntes, considerando a totalidade dos estímulos (semânticos + percetivos);

  • ausência de relações significativas ou no limiar de significância, entre a integração social no EBER dos videntes e as suas representações mentais da realidade física.

No ponto anterior, o número de preferências emitidas revelou-se como o único indicador sociométrico com diferenças significativas entre os cegos congénitos e os videntes, com estes a emitirem maior número de preferências. Também as relações entre as representações mentais da realidade física e as representações mentais da realidade social escolar surgem particular e unicamente afetadas por este indicador. Desde logo e com significância estatística, nas representações da realidade física resultantes da totalidade dos estímulos (semânticos + percetivos), as diferenças entre (i) a complexidade e (ii) o valor total entre cegos congénitos e videntes é tanto menor, quanto maior o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos. Existem outras relações com este indicador social, no limiar de significância (p=0,059), como enumerado anteriormente. No nosso entender, as razões que assistem a esta influência das preferências emitidas pelos cegos congénitos, na (re)construção da realidade física, poderão estar relacionadas com uma menor tendência para a passividade, por parte dos sujeitos que emitem maior número de preferências. Efetivamente, os contactos sociais entre crianças videntes e cegas congénitas, só poderá ocorrer se existir disponibilidade de parte a parte. Por outras palavras, pouco adiantará a alguém receber muitas preferências, se esse alguém não se sentir motivado a interrelacionar-se, nomeadamente com aqueles que o escolheram, sendo assim levado a emitir poucas preferências. Tendencialmente, os cegos congénitos que emitiram mais frequências foram, também, os que foram mais escolhidos e com maior reciprocidade, reunindo assim condições necessárias ao estabelecimento de relações sociais autênticas. Só assim estarão reunidas as condições previstas por Paivio (1990), segundo as quais, experiências comuns a um grupo de pessoas, podem influenciar a construção de representações partilhadas entre as mesmas, no caso em análise, nomeadamente através de explicações verbais proporcionadas pelos videntes acerca de fenómenos e de objetos (Díaz-Aguado et al., 1995; Gil, 2000; Horton, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Nunes e Almeida, 2005). Atendendo ao conjunto de resultados, são as representações mentais evocadas por estímulos percetivos, as que parecem ser mais afetadas pela integração social escolar, sobretudo na dimensão complexidade. Assim, estamos em crer, que as informações sobre a realidade física que a integração social disponibiliza aos sujeitos cegos congénitos, são integradas nas representações mentais (re)construídas pelos mesmos, resultando mais complexas, no sentido que permitirão o estabelecimento de um maior número de interrelações entre os conteúdos das mesmas.

Do exposto anteriormente, não deve resultar uma relação de causa efeito entre a integração social escolar dos cegos congénitos e as suas representações mentais da realidade física. A integração social escolar, nomeadamente o número de preferências emitidas, surge apenas como mais um fator explicativo, entre outros. Esses outros incluem, desde logo, outros contextos sociais vivenciados pelo sujeito (passados e contemporâneos), como sejam a família, o grupo de amigos extra escola e a frequência de outras atividades (música, informática, desporto, dança, etc.). Além dos vários contextos sociais, influirão também fatores genéticos (Ninio, 1991), assim como as experiências individuais de cada sujeito, mesmo no período pré natal (Vauclair, 2008), com particular relevância para a ocorrência e qualidade da estimulação precoce (Dias, 1995; Figueira, 1996; Gil, 2000; Horton, 2000; Kirk e Gallagher, 2002; Nunes, 2004; Sousa, 2003; Zafra, 1991). No caso dos sujeitos videntes, a integração social escolar parece não ter exercido influência nas respetivas representações mentais da realidade física, pelo que, possivelmente, os contextos sociais extra escola, passados e contemporâneos, os fatores genéticos e as experiências pessoais, terão exercido as suas influências de forma mais marcante neste grupo de sujeitos.

Pensando novamente no caso dos sujeitos cegos congénitos, as relações identificadas entre a integração social escolar e as representações mentais da realidade física podem assumir uma natureza bidirecional, portanto de duplo sentido. Refletimos anteriormente sobre as possíveis influências da integração social escolar nas representações mentais da realidade física. No entanto, entendemos que a ocorrência de menores diferenças entre o total das representações mentais evocadas pelos cegos congénitos e o total das representações mentais evocadas pelos videntes poderá, reforçar a integração social dos cegos congénitos no grupo de videntes, uma vez que, poderá facilitar a aproximação e a partilha de representações levando os cegos congénitos a gerir positivamente algumas das suas inseguranças, emitindo um maior número de preferências em relação aos seus pares videntes. Assim, podemos estar na presença de um circuito retroalimentado, cujos componentes se reforçam mutuamente, com níveis melhores de integração social a aproximarem as representações mentais dos cegos congénitos com as dos videntes, resultando desta aproximação melhores níveis de integração social.


CAPÍTULO VIICONCLUSÕES

Como complemento às interpretações apresentadas no capítulo anterior anterior, apresentamos as nossas conclusões, procurando ser concisos, mas completos e coerentes com o trabalho desenvolvido. É nossa convicção que uma das melhores formas de obter essa concisão, essa completude e essa coerência, será atendendo às hipóteses colocadas e as quais procurámos testar ao longo deste trabalho. Assim, começamos por apresentar as hipóteses consideradas plausíveis com base nos nossos dados e de seguida, as refutadas. Apresentaremos também as implicações.


Hipóteses aceites

Com base nos resultados do nosso estudo, consideramos aceites as seguintes hipóteses:

H1.: As crianças cegas congénitas a frequentar o EBER identificam igualmente estímulos evocadores de natureza percetiva diferente.

H4.: As crianças cegas congénitas e as crianças videntes, quando expostas aos mesmos estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem, o EBER, identificam igualmente estímulos de natureza percetiva diferente.

H5.: Não existem diferenças significativas nas representações mentais (riqueza, complexidade e total) construídas (i) pelas crianças cegas congénitas e (ii) pelas crianças videntes, quando expostas aos mesmos estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem, o EBER.

H6.: Não existem diferenças significativas na natureza da informação (imagética, sentimental e verbal), presente nos relatos verbais das representações mentais construídas (i) pelas crianças cegas congénitas e (ii) pelas crianças videntes, quando expostas aos mesmos estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem, o EBER.

H 9.: Não existem relações significativas entre a integração social das crianças cegas congénitas em turmas do EBER e as suas representações mentais (riqueza, complexidade e total).

Hipóteses refutadas

Com base nos resultados do nosso estudo, consideramos refutadas as seguintes hipóteses:

H2.: Não existem diferenças significativas nas representações mentais (riqueza, complexidade e total) construídas pelas crianças cegas congénitas a frequentar o EBER, em função da categoria dos estímulos evocadores.

As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas pelo conjunto de estímulos semânticos (palavras abstratas e palavras concretas), obtiveram valores significativamente mais elevados, na riqueza, na complexidade e no valor total, em relação às representações mentais evocadas pelo conjunto de estímulos percetivos (objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons).

H3.: Não existem diferenças significativas na natureza da informação (imagética, sentimental e verbal), presente nos relatos verbais das representações mentais construídas pelas crianças cegas congénitas a frequentar o EBER, em função da categoria dos estímulos.

As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas pelo conjunto de estímulos percetivos, obtiveram valores significativamente mais elevados de informações de natureza imagética, em relação às representações mentais evocadas pelo conjunto de estímulos semânticos.

As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas pelo conjunto de estímulos semânticos, obtiveram valores significativamente mais elevados de informações de natureza sentimental, em relação às representações mentais evocadas pelo conjunto de estímulos percetivos.

As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas por objetos tridimensionais, obtiveram valores significativamente mais elevados de informações de natureza imagética, em relação às representações mentais evocadas por palavras abstratas.

As representações mentais dos cegos congénitos, evocadas por palavras abstratas, obtiveram valores significativamente mais elevados de informações de natureza sentimental, em relação às representações mentais evocadas por figuras em relevo.

H7.: O número de preferências recebidas pelas crianças cegas congénitas a frequentar o EBER, emitidas pelos seus pares de turma videntes, não é estatisticamente significativo.

Três dos sujeitos cegos congénitos (D1, E1 e G1) receberam um número de preferências significativamente baixo, considerando-se isolados. O sujeito H1 recebeu um número de preferências significativamente elevado, considerando-se popular. Apenas C1 e F1 não obtiveram valores significativos no número de preferências recebidas.

H8.: Não existem diferenças significativas entre a integração social das crianças cegas congénitas em turmas do EBER, e a integração social na mesma turma dos seus pares videntes com características desenvolvimentais equivalentes. Os sujeitos videntes emitiram um número significativamente superior de preferências, em relação aos seus pares cegos congénitos a frequentar a mesma turma.

H10.: Não existem relações entre a integração social das crianças cegas congénitas em turmas do EBER, e as diferenças das suas representações mentais (riqueza, complexidade e total) em relação às representações mentais construídas pelas crianças videntes, a partir dos mesmos estímulos e no mesmo contexto de aprendizagem.

O número de preferências emitidas pelos cegos congénitos está inversa e significativamente relacionado com as diferenças na complexidade e no total das suas representações mentais, evocadas pelo conjunto dos estímulos (semânticos + percetivos), em relação à complexidade e ao total das representações mentais evocadas pelos videntes, a partir do mesmo conjunto de estímulos. Assim, quanto maior o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos no seio da sua turma do EBER, mais próximas se encontram as suas representações mentais da realidade física das dos videntes, em termos de complexidade e de valor total, considerando a totalidade dos estímulos. Por outro lado, maior proximidade entre as representações mentais da realidade física dos cegos congénitos e dos videntes, em termos de complexidade e valor total, considerando a totalidade dos estímulos, melhora a integração social escolar dos cegos congénitos, por via de um maior número de preferências emitidas.


Implicações

Dos antigos gregos, nomeadamente Platão, Aristóteles e Simónides (ponto 1 do Capítulo III), chegaram aos dias de hoje documentos que relatam as suas preocupações e os seus trabalhos, em torno das relações entre as imagens mentais e os processos mnemónicos. Estas relações têm merecido e continuam a merecer a atenção dos investigadores. Estamos convictos de que os nossos resultados e as interpretações que nos mereceram, podem contribuir para um melhor entendimento destas relações, em particular no caso dos sujeitos cegos congénitos a frequentar o EBER. Assim, a utilização de estímulos percetivos, nomeadamente objetos tridimensionais, figuras em relevo e sons, poderão constituir-se como ferramentas potenciadoras das competências mnemónicas, assim como da compreensão, uma vez que, como demonstram os relatos verbais das representações mentais evocadas por estímulos percetivos, (i) estas representações tendem a centrar-se nos próprios estímulos evocadores, facilitando dessa forma a identificação e seleção das informações mais relevantes as quais, após processamento na memória de curto prazo, poderão transitar para a memória de longo prazo, (ii) assim como tendem a incluir maior número de informações de natureza imagética. Com o intuito de promover esta transição, ganha relevância a utilização combinada de estímulos percetivos com estímulos semânticos, nomeadamente de natureza concreta, contribuindo para estabelecer relações (i) entre diferentes imagens mentais percetivas, (ii) entre representações mentais concretas e abstratas, (iii) entre as novas representações mentais e as anteriormente construídas, (iv) entre as novas representações mentais e as suas possíveis aplicações. Por outras palavras, a utilização de estímulos percetivos em combinação com estímulos semânticos, poderá conduzir à (re)construção de representações mentais mais complexas e ricas, mas com significado para o sujeito que (re)constrói e aprende. Por outro lado, os estímulos semânticos, ao estarem associados a representações mentais com maior abundância de informações de natureza sentimental poderão, também por esta via, contribuir para a retenção, pois como têm demonstrado diversas investigações, a retenção de informações, sobretudo ao nível da memória de longo prazo, é enormemente facilitada quando estas se constituem como estímulos emocionalmente competentes, ou seja, capazes de evocar e fazer sentir emoções no sujeito que representa. Pensando na futura evocação destas representações mentais, ela será também facilitada pela presença destas informações emocionalmente competentes, pelo que a utilização adequada de estímulos semânticos nos parece essencial na evocação de representações mentais, como demonstram os valores mais elevados de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) total, em relação às representações mentais evocadas por estímulos percetivos.

Do exposto anteriormente, não nos parece uma abordagem adequada afirmar numa relação livre, como por vezes surge em alguns trabalhos, que os estímulos percetivos são melhores, ou piores, auxiliares da retenção e/ou da evocação, em relação aos estímulos semânticos. Em primeiro lugar, importa salientar a importância de uma combinação criteriosa de estímulos percetivos e de estímulos semânticos, enquanto educadores e/ou sujeitos de aprendizagem, na (re)construção de uma determinada representação mental.

Como nos lembra Batista (2005), uma criança, cega ou não, não constrói um conceito válido de gato, simplesmente por ver ou tocar num gato, mas pela integração proativa de dados sensoriais de diferentes naturezas, com explicações verbais que lhe permitam identificar, descrever, relacionar, compreender, analisar, sintetizar e avaliar conhecimentos relacionados com o conceito nuclear, neste caso o de gato.

Por outro lado, importa ponderar se o objetivo principal é a retenção ou a evocação.

Estamos em crer que a retenção deve assentar nuclearmente em estímulos percetivos, criteriosamente combinados com estímulos semânticos emocionalmente competentes, enquanto a evocação deverá envolver nuclearmente estímulos semânticos, de preferência emocionalmente competentes, apoiados por estímulos percetivos. Devemos salientar que estas implicações se aplicam ao tipo de representação que estudámos, representações (re)construídas livremente pelos sujeitos face a determinados estímulos. Estão assim reunidas as condições para que as mesmas se constituam plenas de significado para o sujeito que representa. Trata-se de uma abordagem diferente da utilizada na maior parte das investigações acerca da retenção e da evocação, nas quais se solicita aos sujeitos que memorizem uma lista de palavras ou objetos para posterior evocação. Na maioria das situações são listas sem qualquer significado interno, nem concetualmente, nem para o sujeito. Tentaremos exemplificar, operacionalizando hipoteticamente o que acabámos de afirmar. Um professor de Ciências pretende conduzir os seus alunos cegos congénitos na (re)construção das respetivas representações mentais do corpo humano. Para tal convida-os a explorar tatilmente um modelo tridimensional do tronco humano, com acesso aos órgãos internos. Se não se completarem estas explorações táteis com outras imagens mentais, como a localização dos órgãos no próprio corpo, assim como com explicações verbais, nomeadamente acerca das características funcionais, as representações das crianças resumir-se-ão às imagens mentais das suas perceções táteis, as quais poderão fazer mais ou menos sentido nas suas mentes, conforme os seus conhecimentos anteriores e as relações concetuais que foram capazes de estabelecer por si mesmos. Não obstante, estas representações conterão elementos mais próximos da realidade, do que se a sua (re)construção estivesse assente, exclusivamente, em relatos verbais do professor, sem qualquer referencial percetivo. De forma adequada a cada situação, o professor poderia completar a exploração do modelo tridimensional recorrendo a estímulos semânticos, explicações verbais com níveis diferenciados de riqueza e complexidade. Centrando-nos no coração, poderia apenas referir a sua designação, como poderia acrescentar (i) a sua cor, (ii) o seu tamanho e (iii) a sua forma, como podia ainda acrescentar as suas funções e suas inter-relações com outros órgãos, o papel metafórico do coração nas emoções e consequentemente na poesia, os cuidados de saúde, etc. No futuro, ao pretender evocar nestas crianças as representações mentais agora construídas, ele poderia colocar uma de duas perguntas, entre outras possíveis. Duas perguntas aparentemente iguais, mas com resultados diferentes. Podia perguntar, após localizar os sujeitos cegos, Que órgão é este? Fala-me dele!, ou podia perguntar Onde se situa o coração? Fala-me dele! Na segunda questão, a utilização do estímulo semântico coração, poderia conduzir á evocação de representações mentais mais ricas e complexas, porque com maior carga de informações de natureza emocional. Estas ideias não deixam de merecer aprofundamento e teste em futuras investigações. Não obstante, atendendo a que, quando analisadas em separado, as representações mentais dos cegos congénitos e dos videntes, evidenciaram padrões semelhantes e, quando comparadas, não evidenciaram diferenças significativas, estamos em crer que as implicações apontadas ao caso dos cegos congénitos, se podem estender aos videntes, com as adaptações necessárias, nomeadamente o recurso à visão, aos estímulos visuais e às imagens mentais de natureza visual.

No que respeita às representações mentais da realidade social no EBER, parece-nos pertinente um trabalho de aproximação entre a população de cegos congénitos e a de videntes. Falamos de aproximação e não de aceitação, pois esta parece existir, de parte a parte, como demonstra, nomeadamente, o interesse dos videntes em conhecerem mais acerca da cegueira e da condição de ser cego. No entanto, a aproximação merece ser trabalhada, não só dos videntes em relação aos cegos, como destes em relação aos videntes, como demonstra o número de preferências emitidas pelos cegos congénitos em relação aos pares videntes, que é significativamente inferior ao número de preferências emitidas pelos videntes em direção ao mesmo grupo de sujeitos. Assim, recuperamos as recomendações de Martín e Bueno (1997), as quais sugerem que façamos erguer pontes entre os alunos cegos e os seus pares videntes. Se necessário e até que as mesmas se consolidem, que sejamos parte dos pilares dessas pontes, fomentando a procura e a partilha de situações lúdicas e prazerosas para todos, sendo fundamental que todos possam ter uma participação ativa, ao mesmo tempo que zelamos pela dispersão, germinação e cuidado das sementes para o estabelecimento de um ambiente social acolhedor de todos, com atitudes humanistas de valorização pessoal. Por outro lado, as crianças cegas poderiam tirar proveito, nomeadamente para o seu desenvolvimento emocional e social, de contactos alargados com outros sujeitos cegos, contacto esse muito escasso nos casos estudados. O contato com outras crianças cegas poderia contribuir para o autoconhecimento, nomeadamente porque se estariam a debater com questões semelhantes e enfrentando as mesmas dúvidas, os mesmos sentimentos e as mesmas exigências de desenvolvimento, ou pelo menos, semelhantes.
 

Limitações

Uma das limitações que não podemos deixar de apontar ao nosso trabalho, prendese com o reduzido efetivo da amostra. Ao longo do trabalho, tivemos oportunidade de explicar as razões subjacentes a tal fato no entanto, ele não deixa de se constituir como um fator limitante. No nosso entender, implica limitações na validade externa dos resultados e das conclusões deles extraídas sendo que, com segurança, podemos apenas propor a sua transferência e aplicabilidade para sujeitos e contextos com características semelhantes à nossa amostra.

O recurso à análise lexical e sintática para medir as caraterísticas de (i) riqueza, (ii) complexidade e (iii) total, havia já sido experimentado, com sucesso, em outras investigações, nomeadamente Almaraz (1997). Procurámos introduzir algumas melhorias neste processo, tal como explicámos nos capítulos IX e X. A principal dessas melhorias consistiu na análise, não apenas da palavra em si mesma, enquanto unidade de registo, mas também das respetivas funções na oração, funções essas que ajudaram a determinar o estatuto e a relação de cada unidade de registo com a variável dependente representações mentais, nos seus níveis de riqueza e complexidade. Cada conjunto, constituído por uma palavra (ou locução) e respetiva função era contabilizado apenas uma vez, numa determinada oração. Por outras palavras, quando uma determinada palavra se repetia, no exercício de uma mesma função e numa mesma oração, contabilizou-se apenas uma ocorrência. Desta forma, pensamos ter contribuído para melhorar a aplicação deste método de análise às representações mentais, incrementando desta forma a validade interna do nosso estudo. Não obstante, reconhecemos a necessidade de continuar a melhorar este método, seja em investigações no campo das representações mentais, seja em investigações com a finalidade de testar o próprio método, nomeadamente a pertinência e o contributo de cada uma das categorias gramaticais, nomeadamente dos advérbios, para as caraterísticas de riqueza e complexidade.
 

Sugestões

A primeira das nossas recomendações resulta de uma das limitações que apontámos ao nosso trabalho, a reduzida dimensão do efetivo da amostra. Assim, futuros estudos com objetivos afins dos nossos deverão abranger um maior número de sujeitos cegos congénitos e respetivos pares videntes, libertando-se dos constrangimentos que colocámos quanto ao nível de ensino, alargando o contexto da amostra também ao Ensino Secundário e ao Superior. A nosso ver, as questões tratadas na nossa investigação, por um lado as representações mentais da realidade física por outro, a integração social escolar dos cegos congénitos poderão, no futuro, justificar linhas de investigação distintas, ainda que e tal como demonstrámos, necessariamente interrelacionadas. Nesta sequência, a investigação das representações mentais da realidade física em cegos congénitos poderá avançar para abordagens verdadeiramente experimentais, por exemplo para aprofundar e determinar com maior clareza, as influências dos estímulos semânticos e dos estímulos percetivos na (re)construção das representações mentais, nomeadamente em termos de retenção e de evocação. A investigação da integração social escolar poderá estudar, não só a perspetiva dos alunos cegos e dos seus pares videntes, mas também de outros atores educativos, como professores do ensino regular, professores de EE, encarregados de educação de alunos cegos e de videntes.

A nossa investigação procurou estudar, essencialmente, as representações mentais associadas ao período que compreende a escolaridade básica, assim como as influências da integração social escolar nessas mesmas representações. Tem-se vindo a construir um corpo crescente de evidência acerca das influências das experiências vividas nos primeiros anos de vida, inclusivamente no período pré natal, no desenvolvimento das crianças videntes. Um percurso de investigação semelhante deve ser seguido em relação aos cegos congénitos, procurando identificar e caracterizar as experiências mais significativas vividas antes da escolaridade formal, aos seis anos de idade e possíveis influências no desenvolvimento dos cegos congénitos, nomeadamente na riqueza e complexidade das suas representações mentais. Também poderão ser estudadas possíveis influências destas experiências de vida, na integração social escolar das crianças cegas congénitas.

Um outro percurso de investigação poderia estudar as influências de variáveis como (i) a idade, (ii) o género e (iii) o nível de escolaridade, nas representações mentais de sujeitos cegos congénitos, crianças e adultos.

Numa perspetiva de natureza mais qualitativa, poderiam recolher-se histórias de vida de sujeitos cegos congénitos e não congénitos, crianças e adultos, masculinos e femininos, profissionalmente ativos e não ativos, a frequentar o ensino regular ou uma instituição especializada. Enfim, estudar sujeitos cegos com experiências de vida diversificadas.

 

Notas

1 Dual Coding Approach no original.

2 Que implica representações mentais de diferentes naturezas: visuais, auditivas, tácteis, olfativas, gustativas, propriocetivas, sentimentais e simbólico-verbais.

3 A palavra “tio” era utilizada na aldeia onde cresci, como aliás em muitos outros locais, como um epíteto marcador de afinidade e não, necessariamente, de laços de consanguinidade.

4 Habitualmente designados “olhos” ou grelos.

5 Borg havia sido responsável pela criação de uma instituição equivalente em Estocolmo.

6 Acuidade visual é a capacidade de perceber a figura e a forma dos objetos (Martín e Bueno, 1997).

7 Campo visual é o espaço em que pode ser visto um objeto, enquanto o olhar permanece fixo num determinado ponto (Martín e Bueno, 1997).

8 Enriquecimento significa a elaboração de uma representação mental integrada, a qual contempla o conhecimento dos objetos, das pessoas, dos acontecimentos e, mais tarde, da linguagem verbal, segundo diferentes perspetivas e diferentes modalidades sensoriais (Paivio, 1990).

9 Ver ponto 1.1. do capítulo II.

10 Duas conhecidas figuras de séries de televisão infantis.

11 Na sequência da abordagem ao desenvolvimento cognitivo dedicamos um título ao desenvolvimento da linguagem.

12 Entende-se por assimilação um conceito de Piaget que “consiste em integrar um objecto exterior a uma estrutura de acção, a um esquema” (Vauclair, 2008, p. 24).

13 Entende-se por acomodação um conceito de Piaget que “consiste em transformar uma estrutura de acção a um esquema […] com vista a ajustar-se a um objecto exterior” (Vauclair, 2008, p. 24).

14 As expressões faciais são, de acordo com Damásio (2003, 2004, 2010) um dos programas de ação que permitem expressar e identificar as chamadas emoções universais (receio, fúria, tristeza, felicidade, nojo e surpresa). Designam-se universais porque manifestam-se e são reconhecíveis independentemente das culturas e com programas de ação semelhantes.

15 De salientar que os autores estendem esta ideia às restantes NEE.

16 Phantasma no singular.

17 O Behaviorismo defendia o estudo dos comportamentos observáveis em vez dos processos mentais (Vauclair, 2008).

18 A obra em causa intitula-se, precisamente, “A imagem mental na criança”, a qual foi editada originalmente em França no ano de 1966.

19 Natureza percetiva refere-se, neste contexto, ao conteúdo da imagem e não à imagem propriamente dita.

20 Esta expressão pode traduzir-se para português por Teoria do Processamento Dual.

21 Como exemplo de organização sincrónica, temos a face humana, que é constituída por olhos, nariz, lábios e outros componentes, mas que são percebidos holisticamente como um todo. Hierarquicamente, é ao mesmo tempo um componente do corpo humano e os seus constituintes são, também eles, compostos por componentes mais pequenos. No caso dos olhos pela íris, pela pupila, pelo cristalino, etc.

22 De acordo com os resultados publicados por Paul Kay em 2008, na revista Procedings of the National Academy of Sciences (Smith, 2008).

23 Os bebés, até ao desenvolvimento da linguagem, processam as cores predominantemente no hemisfério direito (Smith, 2008).

24 Em condições normais. Excluem-se assim estados patológicos como a afasia.

25 Neste sentido, estamos em crer que esta ideia se aproxima do conceito de imagem mental que defendemos no ponto 2 deste capítulo.

26 As páginas 180 a 187 de Damásio (2010) incluem esquemas figurativos que representam quer a estrutura quer o funcionamento das ZDC.

27 De acordo com Damásio (2010), Voland (1999) e Wilson (1999).

28 De referir que, por exemplo, a observação de uma nuvem lenticular pode interpretar-se como sendo um “disco voador”, se o observador acreditar que estes objetos existem e pensar que pode efetivamente sê-lo (Jimenez, 2002).

29 Eletroencefalograma, eletroculograma, eletromiograma, eletrocardiograma, fluxo respiratório, movimento torácico, ressonar, oximetria e pulso.

30 Padrões extremamente diferenciados de interconetividade e uma capacidade complexa para integrar sinais, são dois dos postulados essenciais do modelo de Convergência-Divergência do mesmo autor e já apresentado neste trabalho.

31 Uma das técnicas genericamente designadas neuroimagens.

32 Designação atribuída ao córtex visual por referência à sua textura.

33 Na obra em questão, Damásio utiliza os termos imagem, mapa e padrão neural como equivalentes.

34 O autor considera da maior importância o termo interação.

35 Soma dos valores correspondentes à presença das seguintes categorias gramaticais nos relatos verbais das representações mentais: substantivos, adjetivos, verbos e advérbios.

36 Soma dos valores correspondentes à presença das seguintes categorias gramaticais nos relatos verbais das representações mentais: conjunções e preposições.

37 Atendendo à sua extensão, apresentamos apenas aqueles que consideramos mais relevantes.

38 Em detrimento dos atributos característicos, mais aparentes e superficiais, não essenciais á definição de um determinado conceito.

39 Todos os videntes haviam já contactado com imagens visuais bidimensionais de quadrados, triângulos, círculos e casas.

40 No caso de E1 a figura materna é a avó com quem vive desde os primeiros anos de vida.

41 Há semelhança do SRI e do SRV, a utilização do vocábulo sistema não deve ser confundido com área cerebral isolada e bem delimitada, uma vez que sistema representa precisamente um conjunto de várias áreas cerebrais a trabalhar de forma sincronizada para o processamento e representação de determinada informação.

42 Posner e Raichle (2001) demonstraram que numa tarefa de geração de verbos, “os sujeitos associavam conscientemente pensamentos ou emoções com informação retida na memória de longo prazo” (p. 231).

43 Em acordo com esta ideia, relembramos que as preferências emitidas em relação aos cegos congénitos, com exceção de H1 considerado popular, tiveram origem em videntes com estatuto social igual ou inferior.

 

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excerto de
CEGUEIRA CONGÉNITA NA CONSTRUÇÃO DA REALIDADE BIOFÍSICA E PSICOSSOCIAL
autor: Fernando Jorge da Costa Figueiredo
Dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Ciências da Educação
Universidade de Aveiro
Ano 2012
texto integral da dissertação aqui.

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7.Jan.2019
Maria José Alegre