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Introdução
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'A visão que o cego tem do mundo é de uma riqueza única, incomparável e deve
passar a ser vista
como uma apreensão integral da realidade, não uma carência de visão, não uma
castração de um
órgão, mas a existência suficiente de um ser humano completo'. (Monte Alegre,
2003, p.12)
Quando se pensa em cegueira, algumas indagações
são comuns: como é a vida cotidiana sem a visão? O que o
cego é capaz de fazer? Que tipo de vida pode levar? Como
ele é capaz de aprender? Neste trabalho, tais indagações
são analisadas e, a partir desta análise, a situação do cego
na vida escolar é discutida.
A ideia do presente artigo surgiu da percepção sobre
o reduzido número de artigos referentes ao aluno cego, suas
características, os preconceitos que o cercam e suas potencialidades
como aprendiz. Pressupomos que profissionais
das áreas de Psicologia e Educação devem ter conhecimentos
sobre os diferentes tipos de deficiências, as limitações
reais impostas por cada deficiência e, principalmente, as
infinitas possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem
desses sujeitos. Assim, objetiva-se neste artigo apresentar
e analisar informações sobre a cegueira e o aluno cego a
partir da literatura teórica e de pesquisas na área de modo
a salientar suas reais limitações, mas, ao mesmo tempo,
enfatizar as potencialidades do aluno cego, uma vez que tais
possibilidades estão com demasiada frequência encobertas
pelo manto dos preconceitos.
I. O que é cegueira?
A cegueira é uma deficiência visual, ou seja, uma limitação
de uma das formas de apreensão de informações do
mundo externo - a visão. Há dois tipos de deficiência visual:
cegueira e baixa visão.
Devido às muitas discussões sobre a deficiência e
seus estigmas, é comum a preocupação com os termos utilizados
a fim de que eles não sejam pejorativos nem reflitam
preconceitos. Em face disto, algumas pessoas preferem o
termo deficiente visual à palavra cego. Todavia, esses termos
não são equivalentes. O conceito de deficiência visual é
mais abrangente visto que engloba não só a cegueira como
também a baixa visão. Embora haja quem acredite ser o termo
“cego” preconceituoso ou pejorativo, não compartilhamos
dessa premissa. Utilizamos a palavra por seu caráter descritivo:
cego é aquele que é privado de visão, segundo o dicionário Houaiss. E é dessa realidade que estamos tratando. Não
há preconceito na utilização do termo cego. O preconceito
está em pressupor que o cego é um sujeito menos capaz.
Segundo Amiralian (1997), a primeira preocupação
com a cegueira foi a da medicina, que a percebia como uma
consequência de doenças e buscava minimizar essa deficiência
com o objetivo de tornar a pessoa normal novamente.
Os médicos se interessavam sobre quanto uma pessoa com
deficiência visual era capaz de ver, o que levou à definição
de medidas para avaliar a capacidade visual. A medida mais
usada, desde então, é a avaliação de duas funções oculares:
acuidade visual - que consiste em discriminação de formas
- e campo visual - relativo à capacidade de percepção da
amplitude dos estímulos. A capacidade visual é avaliada por
essas medidas, com todas as correções ópticas possíveis
(óculos, lentes etc.). No entanto, começou-se a perceber
que alguns cegos, com a mesma medida de acuidade visual,
apresentavam capacidade visual diferente. Alguns deles,
inclusive, ao aprender o sistema braile, conseguiam utilizar a
visão residual para ler o braile com os olhos, isto é, algumas
pessoas diagnosticadas como cegas aproveitavam a pouca
visão que tinham para apreender as informações do mundo.
Isto levou à formulação da distinção entre cegueira e baixa
visão. Assim, a partir de 1970, o diagnóstico de deficiência
visual deixou de considerar apenas a acuidade visual para
avaliar as formas de percepção do sujeito: se ele apreende o
mundo por meio do tato, olfato, cinestesia etc., esta pessoa
é considerada cega; se, no entanto, tiver limitações da visão,
mas ainda assim conseguir utilizar-se do resíduo visual de
forma satisfatória, então, seu diagnóstico é de baixa visão.
Tal concepção permite a indicação de auxílios ópticos (óculos,
lentes de aumento específicas, lupas etc.); concessão de
benefícios sociais e medidas educacionais (como o uso do
código braile ou letra comum).
Para compreender melhor a condição de cegueira e a
forma como ela é vivenciada pelo indivíduo, é importante conhecer
a idade e a causa da perda visual. Segundo Amiralian
(1997), os cegos que perdem a visão a partir dos cinco anos
são considerados cegos adventícios ou adquiridos. Os casos
de cegueira anterior a essa idade são chamados de cegueira
congênita. A delimitação da idade de cinco anos para o diagnóstico
de cegueira adquirida é fruto de pesquisas que não
identificaram memória visual em cegos que perderam a visão
antes dessa idade.
A autora afirma que, quanto mais cedo ocorre a perda
da visão, mais essa condição influencia o desenvolvimento
do sujeito e, quanto mais tarde a cegueira se apresenta, mais
as características de personalidade anteriores à perda têm
peso maior na formação do indivíduo.
A ausência da visão é um fenômeno complexo e diverso.
As causas da deficiência, o momento e a forma da perda
visual (progressiva ou repentina), o contexto psicológico,
familiar e social influenciam o modo como a pessoa vive sua
condição de cegueira. Assim, ainda que possamos pensar
em pontos comuns entre os cegos - principalmente no que
diz respeito às formas de percepção - o desenvolvimento de
cada um é peculiar, como o é de todo vidente, o que justifica
pensarmos que o desenvolvimento da pessoa com cegueira
está muito mais próximo ao de outras pessoas com características
próximas (idade, condição socioeconômica, influência
cultural etc.) do que a de outro cego. No entanto, ainda
que não exista apenas um caminho de desenvolvimento para
os cegos, algumas condições são importantes para melhorar
e/ou viabilizar suas condições de aprendizagem.
Como já dissemos, em casos de baixa visão, recursos
ópticos podem ser utilizados para maximizar o resíduo visual.
O mesmo não ocorre com a pessoa cega. Então, é preciso
fazer com que a informação visual chegue até ele por outras
formas. Para tal, outros canais sensoriais devem ser utilizados,
como o tato e a audição.
A importância da linguagem no desenvolvimento humano
é inquestionável. Para o cego, a linguagem assume um
papel ainda maior, porque as informações visuais a que ele
não tem acesso podem ser parcialmente verbalizadas. Nesse
sentido, Lira e Schlindwein (2008), que discutem a inclusão
da criança cega na escola por uma leitura vigostskiana,
relacionam a linguagem e as funções psíquicas superiores
para o cego:
A criança cega pode perfeitamente se apropriar das
significações de seu meio e participar das práticas sociais, pois
dispõe do instrumento necessário para isso – a linguagem.
Além disso, a concepção de que, com o desenvolvimento
das funções psíquicas superiores, o homem transforma sua
relação com o mundo e nela introduz a dimensão semiótica,
minimiza a dimensão da perda decorrente da cegueira. (Lira
& Schlindwein, 2008, p. 187)
Segundo Amiralian (1997), o cego substitui o que ele
não vê por meio da linguagem, o que pode justificar algumas
palavras não compreensíveis ou parcialmente compreensíveis que eles falam. Além disso, o sujeito cego percebe o
mundo por meio de todos os sentidos que não a visão (tato,
olfato, paladar, audição), mas o significado das coisas lhe é
transmitido, em sua maioria, por videntes que utilizam muito
menos esses sentidos e muito mais a visão como fonte de
informação e conhecimento. A consequência deste impasse
é que a pessoa cega tem que fazer constantes “ajustes” entre
aquilo que ela conhece por meio de suas percepções e
aquilo que chega pela fala dos que a rodeiam.
Rabêllo (2003) afirma que algumas pessoas cegas
“(...) se tornam extremamente sensíveis aos matizes de inflexão,
de volume, de cadência, de ressonância e das várias
intensidades dos sons das falas dos outros, que passam despercebidos
aos videntes” (p. 78). É por meio da linguagem e
das percepções táteis e cinestésicas que podemos explicar
seu desenvolvimento cognitivo, uma vez que a linguagem
assume ainda mais uma função organizadora e planejadora,
fundamental para o desenvolvimento humano.
Em relação ao tato, Ochaíta e Rosa (1995) diferenciam
dois tipos, baseados em Gibson: tato passivo - recepção
da informação de forma passiva e não intencional pela
pele e pelos tecidos subjacentes, por exemplo, sensação
de calor causada pela roupa - e tato ativo ou sistema háptico
- busca de informação de modo intencional por meio do
toque. Neste tipo de tato, estão envolvidos não só a pele e
os tecidos subjacentes, mas “(...) receptores dos músculos e
tendões, de maneira que o sistema perceptivo háptico capta
a informação articulatória motora e de equilíbrio” (Ochaíta &
Rosa, 1995, p.185).
Em comparação à visão, o tato é uma forma mais
lenta de captação da informação. Isso porque a exploração
háptica se dá de forma sequencial. Por exemplo, o cego
precisa percorrer uma mesa para conhecê-la, enquanto a
visão permite uma identificação mais rápida. No entanto,
Batista (2005) lembra que não é só o tato que tem o caráter
sequencial: música, discurso, livros, textos, todos são formas
sequenciais de transmissão de informação e, nem por isso,
são consideradas melhores ou piores do que a informação
captada visualmente. Muito pelo contrário, é comum ouvirmos
que ler um livro permite um aprofundamento maior da
história do que ver o filme correspondente.
O tato possibilita o conhecimento por meio das características
dos objetos: textura, formato, temperatura etc.
Mas ele é mais útil para objetos próximos e permite menos
informações no caso de objetos grandes e/ou distantes. Esta
possibilidade de discriminação pelo tato e pelos outros sentidos
leva a crer que o uso dos sentidos pelo cego não é
uma mera compensação do órgão falho, mas envolve uma
reorganização biopsicossocial, que permite o acesso e o processamento
de informações.
Camargo, Nardi e Veraszto (2008), ao pesquisarem
a comunicação entre alunos com deficiência visual e seus
professores, afirmam que “(...) utilizando-se maquetes e
outros materiais possíveis de serem tocados, vinculam-se
os mencionados significados a representações táteis e, por
meio da estrutura mencionada, esses significados tornam-se
acessíveis aos alunos cegos ou com baixa visão” (p.3401)
Isso significa que, sem acesso a materiais gráficos
(desenhos e figuras em relevo) em situações de aprendizagem,
restringe-se uma ampla possibilidade de conhecimento
do mundo para o deficiente visual.
Mas, embora o tato seja uma importante via de informação
para o sujeito cego, obviamente não é a única. O sistema
cinestésico é um dos sistemas que fornecem informações
sobre a orientação espacial, o movimento e o equilíbrio,
possibilitando a percepção de posição, da direção do vento,
da velocidade do movimento e orientação do corpo.
Uma vez que nem todos os objetos podem ser percebidos
diretamente pelo tato, alguns conceitos só podem
ser entendidos pelas crianças por explicações orais ou outras
analogias, como maquetes ou outros tipos de representação.
Também o olfato e a gustação são dois sentidos importantes
para o desenvolvimento da criança cega. A gustação auxilia
na apreciação dos alimentos e o olfato ajuda o cego a reconhecer
pessoas, objetos, caminhos etc.
Pensando nas possibilidades de compreensão do
mundo pelos sentidos que não a visão, é interessante refletir
sobre trabalhos que enfocam a vivência da arte pelo sujeito
cego. Oliveira (2002), por exemplo, em sua obra Do essencial
invisível: arte e beleza entre os cegos, discorre sobre as possibilidades
de experiência estética dos cegos. A questão que
fundamenta o livro é: o cego, em função de sua perda visual,
é capaz de vivenciar a experiência estética? É evidente que,
por trás da pergunta, está a noção de que a estética se limita
ao visual. O autor discorda desta noção e defende que a arte
não é apenas visual e, portanto, é acessível ao cego.
Em primeiro lugar, ele afirma que a arte não se restringe
à pintura, à escultura e à arquitetura, pois também a
literatura, a dança e a música são expressões artísticas. Ou
seja, as artes e a beleza não são usufruídas apenas pela
visão, mas também pelo tato e pela audição, como ocorre,
por exemplo, quando da apreciação de esculturas pelo tato e
de músicas e literatura pela audição. Oliveira (2002) parte de
uma concepção de beleza que considera a percepção da unidade
em meio à diversidade, como pressuposto de vivência
estética. Este princípio de unidade não se restringe à percepção
visual: o tato pode inferir beleza ou não em contornos e
texturas tridimensionais. Há limitações nessa percepção de
beleza porque diversas estruturas tridimensionais não são
inteiramente captadas pelo tato. No entanto, nesse pensamento,
o cego é capaz de ter a experiência estética por meio
de seus sentidos e suas vivências.
Ferrari e Campos (2001) partem de outra definição
de estética para falar da beleza para os cegos. As autoras
afirmam que há uma intrínseca relação entre beleza e prazer,
não estando a beleza unicamente ligada à imagem visual.
Assim, por mais que a experiência estética esteja baseada
na experiência sensorial – seja qual for o sentido – ela só é
possível pelo uso conjunto da razão. Se a apreciação da beleza
se dá pela inter-relação entre sentidos e racionalidade,
e não unicamente pela visão, então, ela é possível ao cego.
Ele é capaz de experenciar a beleza por meio do toque, da
cinestesia, da audição etc.
As coisas do mundo têm qualidades múltiplas, muitas
delas não visuais. É a partir dessas qualidades que temos
que pensar o trabalho com cegos. Propostas como as de
Ferrari e Campos (2001), em que crianças e adultos deficientes
visuais visitam museus, mostram que estes não são
espaços culturais predominantemente visuais. Pois, tanto no
que se refere à apresentação quanto à divulgação do acervo,
há possibilidades de experiências estéticas acessíveis aos
deficientes visuais.
O teatro é outra forma de vivência estética e cultural
para o cego. Vale lembrar que a palavra “teatro” tem, em seu
histórico etimológico, relação com o contemplar algo pela
visão. Assim, em um primeiro momento, a experiência teatral
estaria restrita a quem vê: como ator e como espectador.
A lógica da concepção etimológica de teatro e a exclusão
cultural que esse segmento da população vive justificam a
dúvida sobre essa experiência por parte do cego. Mas Rabêllo
(2003), em sua tese de doutorado, mostra o quanto
essa experiência é possível e enriquecedora para o desenvolvimento
do deficiente visual, tanto pela oportunidade de
trabalho sensorial, corporal e expressivo, quanto pelo acesso
a uma importante forma de manifestação cultural por meio de
algumas adaptações e ênfase nas informações e vivências
não visuais necessárias para a experiência teatral.
Em suma, a aquisição de informações pela pessoa
cega se dá pela conjunção das sensações táteis, cinestésicas
e auditivas aliadas às experiências mentais passadas já
construídas pelo sujeito. Isso quer dizer que, sem a visão, o
cego percebe a realidade de forma diferente do que as pessoas
que veem. O que não quer dizer que a percepção do
cego seja melhor ou pior. A questão está na diferente organização
sensorial de cegos e videntes. É nesse sentido que
Vygotsky (1934/1997) afirma que a vivência da cegueira não
é como a do vidente de olhos tapados. O cego de nascença
percebe o mundo de forma diferente e só experimenta a cegueira
como deficiência por meio de interações sociais que
lhe mostram isso.
Assim, a cegueira por si só não é um impedimento
ao desenvolvimento. Há a imposição de caminhos diferenciados
devido à ausência da visão, mas o desenvolvimento
do cego é pleno de possibilidades e limitações como o de
qualquer ser humano. É o que também parece pensar Amiralian
(2007) que, após estudar o desenvolvimento emocional
de crianças cegas congênitas, afirma “(...) Há, portanto, entre
as crianças com cegueira congênita, uma grande variedade
de possibilidades de desenvolvimento” (p.130).
No entanto, a deficiência visual – assim como os outros
tipos de deficiência – assume na sociedade em que vivemos
uma diferença que é considerada uma desvantagem.
A forma como a cegueira tem sido concebida restringe o que
a criança é à sua falta de visão, pois o enfoque é dado à
imperfeição e à falta. Assim, quando um vidente conhece um
cego, é comum que a relação se estabeleça primeiro com a
deficiência e, depois (talvez), com o ser humano que existe
para além da cegueira.
Podemos pensar que, ao considerar as particularidades
da cegueira, o profissional que trabalha com alunos cegos
estará mais bem capacitado a estabelecer vínculos com
os mesmos, entendendo que eles têm a cegueira com uma
condição (dentre muitas outras que esse indivíduo também
tem: classe social, gênero, cor/raça etc.). É inegável que tal
condição impõe limitações ao seu processo de aprendizagem
e ao seu desenvolvimento como um todo, mas, uma vez
que as informações do mundo podem chegar por diferentes
e variadas vias, o indivíduo cego tem tantas possibilidades de
se desenvolver quanto as crianças videntes.
II. Como o cego é visto?
Em terra de cego quem tem olho é rei, e em terra de
olho quem é cego é o quê?
Em nosso mundo visual, muitas informações são tratadas
como exclusivamente visuais quando, na verdade, não
são. Podemos perceber isso em algumas ações como encontrar
objetos em bolsas, digitar números de telefone, tocar
instrumentos, vestir-se etc. A visão é, possivelmente, o “guia”
dessas ações, mas sua ausência não é demasiadamente
prejudicial para a execução da ação (Batista, 2005).
Porém, como vivemos em um mundo de videntes,
à visão é dado um papel essencial no desenvolvimento humano
e sua ausência assume, muitas vezes, uma dimensão
maior do que ela realmente tem.
Essa ideia de restrição do desenvolvimento do cego
justifica-se pela supervalorização da visão na aquisição do
conhecimento. Existem autores que estimam ser a visão a
responsável por 80% do conhecimento, como Oliveira (2002).
Batista e Enumo (2000) questionam essa afirmação considerando
que, que ainda que a visão seja uma importante via de
informação, ela não é a única.
Tal ideia também está amplamente arraigada em nossa
linguagem. No cotidiano, é fácil perceber que utilizamos
o verbo ver não só para a ação de olhar algo, mas também
no sentido de conhecer. Por exemplo, com muita frequência,
falamos: “Você viu o que aconteceu com fulano?”. Tal uso do
verbo “ver” tem mais relação com o conhecimento do fato
do que exclusivamente com o ato de ver. Essa atribuição de
significados para além da visão não acontece apenas com
esse verbo. Muitos outros termos derivados das palavras ver
e olhar também estão imbuídos de outras significações relacionadas
à supremacia da visão, como, por exemplo: visões
de mundo, pontos de vista, revisão, mau olhado, amor cego,
fé cega, olho gordo, olho comprido, frieza do olhar, estar de
olho etc.
Amiralian (1997) nota dois polos opostos quando se
fala em cegueira: a) o cego pode ser visto como indefeso,
como um coitado; ou como detentor de um saber sobrenatural,
mais capacitado para desvendar mistérios do que os
videntes; b) em relação à bondade/maldade também existe
esse paradoxo: ou o cego é percebido como estritamente
bom, ou como o vilão da história.
Debora Kent (1989) também evidencia isso ao estudar
a concepção de cegueira na literatura. De modo geral,
há uma oscilação entre bondade ou maldade extremas;
sabedoria; punição dos pecados; intensa relação com Deus
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etc. Essas características são abordadas como se fossem
inerentes à falta de visão.
As pessoas cegas, frequentemente, são tidas como
especiais, como portadoras de características profundamente
diferenciadas das outras pessoas, tanto na literatura como
na mídia em geral. Esse preconceito impede que se perceba
o cego como um ser humano.
O estereótipo do cego está relacionado à forma como
historicamente ele foi visto. Vygotsky (1934/1997) define três
momentos principais na concepção de cegueira. O primeiro
momento é chamado período místico e compreende a Antiguidade,
Idade Média e parte da Idade Moderna. Nesse período
vigoraram duas noções principais: ou o cego era considerado
alguém indefeso, infeliz, que vivia em desgraça, ou era tratado
com respeito pelos poderes místicos que se acreditava ter.
Devido à falta de visão, o sujeito era visto como mais capaz
de se desenvolver espiritualmente, pois se entendia que ele
estava livre do envolvimento nas ilusões mundanas.
Em nosso meio, a primeira autora deste trabalho participou
da realização de uma pesquisa sobre as concepções
de cegueira congênita em alunos do primeiro e quarto anos
de um curso de Pedagogia. Um dos entrevistados expressou
que a pessoa cega “(...) se desenvolve em um âmbito
muito mais espiritualista do que materialista pelo fato dela
não concretizar o que ela vê” (Viegas e cols., 2004). Nessa
curta frase, podemos perceber claramente esta ideia de um
maior desenvolvimento espiritual do sujeito cego e também
a incompetência em “concretizar” as informações que recebe
do mundo. Como salienta Amiralian (2002), o mundo mental
do cego é um enigma para o vidente. Natural que o seja,
dada à diferença que a visão provoca. No entanto, conceitos
distorcidos como este deixam o cego em desvantagem, já
que a ele são atribuídas capacidades e limitações que nada
têm a ver com a falta de visão.
Também na pesquisa de Caiado (2003, p.35), a ideia
de incapacidade/espiritualidade fica evidente na seguinte
fala: “Há o professor que acredita que o deficiente visual não
aprende porque é um deficiente global e, outros, que acreditam
que, porque ele não tem a visão, desenvolveu uma
inteligência extraordinária”.
O segundo momento, denominado período biológico
e ingênuo, ocorreu durante o Iluminismo (século XVIII).
Como sabemos, a ciência passa a ser bastante valorizada
nesse período, reduzindo-se muito o espaço para explicações
metafísicas. Ao mesmo tempo, cresce a necessidade
de “esclarecer” a população em geral e, assim, são criados
vários centros de educação em massa, principalmente na
Europa. Todos esses acontecimentos dão um novo sentido à
cegueira, que passa a ser vista como objeto de estudo científico.
Além disso, inicia-se o movimento de educação dos
cegos por meio da criação de institutos e escolas específicos
para eles. Este movimento educacional permitiu maior inclusão
social da pessoa cega.
Data deste período a criação da teoria da substituição,
segundo a qual a falta de um órgão seria compensada pelo
melhor funcionamento de outros. O salto qualitativo entre o
primeiro e o segundo período é notável, uma vez que a explicação
mística para a cegueira cede lugar a uma teoria que
pressupõe a capacidade de adaptação do cego. No entanto,
mesmo este segundo período ainda guarda uma concepção
equivocada do cego, qual seja, a de que a compensação da
falta de visão pelos outros sentidos é simples e automática.
Ainda hoje existem práticas pedagógicas que enfatizam unicamente
a estimulação dos outros sentidos - o que é consequência
de uma concepção biologizante e restrita de ser humano.
Num estudo sobre conceituação de cegueira por
estudantes do primeiro e quinto anos de Psicologia de uma
universidade estadual paulista, mais uma vez esta ideia foi
expressa nas respostas dos participantes agrupadas na categoria
Compensação Sensório-Cognitiva, que inclui termos
referentes à compensação da visão pelos outros sentidos ou
às capacidades cognitivas do cego como um processo automático
e natural, e não como um resultado da aprendizagem
passível a qualquer ser humano (Lomônaco, Nunes, & Sano,
2004).
E, finalmente, o período científico ou sociopsicológico
é marcado pela percepção do cego como capaz de se reorganizar
para compensar a deficiência visual. Essa compensação
não se limita ao desenvolvimento dos outros órgãos dos
sentidos, mas à reorganização da vida psíquica por inteiro, a
fim de compensar o conflito social advindo da deficiência do
órgão. Aqui, podemos perceber outro salto qualitativo entre o
segundo e o terceiro períodos. De uma concepção meramente
biológica, o homem passou a ser visto como um ser social
e histórico que, por meio dos grupos sociais de que faz parte,
desenvolve uma linguagem e, ao se comunicar, constrói significados
para si e para os outros.
Vygotsky (1934/1997) não nega as limitações da
cegueira enquanto restrição biológica, mas afirma que, socialmente,
não há limitações, porque o cego, por meio da
palavra, pode se comunicar e apreender significados sociais.
No entanto, a inter-relação do indivíduo cego com o ambiente
não se dá sem conflitos. Mas, segundo o autor, é devido ao
fato do conflito existir que há forças para sua superação.
Claro que, devido à limitação visual, o indivíduo cego
vai precisar de um ambiente diferenciado e adaptado, que
dê conta de garantir a satisfação de suas necessidades. E
toda essa vivência diferenciada define uma estrutura mental
diferente daquele que vê, pois a pessoa cega precisa usufruir de outros caminhos
para conhecer o mundo, o que marca
outras formas de processo perceptivo e, por consequência,
da estruturação e organização do desenvolvimento cognitivo.
Este fato pode ser evidenciado com os conceitos de espaço e tempo. No caso do
espaço, os elementos que dão as informações espaciais são diferentes para o
vidente e para o cego: quem vê se utiliza muito mais da visão do que dos outros
sentidos, enquanto o cego se utiliza mais de uma exploração tátil-cinestésica do
ambiente. Levando em conta esses aspectos, Amiralian (2002) afirma: Devemos ter
sempre em mente que, para os videntes, o mundo mental dos cegos é um conceito
nebuloso, organizado por analogias ou inferido de situações que consideramos
semelhantes às deles. Dessa mesma
maneira, o mundo mental dos videntes é construído pelos
cegos. Por exemplo, para nós é muito difícil pensar em uma
representação mental sem a imagem visual, ou o que seja
o conceito tátil-cinestésico de cadeira, assim, como para os
cegos congênitos, a visualização dos objetos é um dado
impossível. (p. 207)
III. O cego na sala de aula
Amiralian (2002) considera duas concepções de inclusão
do deficiente visual. A primeira proposta foi influenciada
pela prática estadunidense e está mais voltada a programas
de treinamentos que visam tornar o deficiente visual mais
parecido com o vidente. Esse processo, chamado normalização,
é bastante criticado. Primeiro, porque não é possível tornar
uma pessoa aquilo que ela não é. Além disso, a questão
da normalização traz nas entrelinhas a ideia de que ser deficiente
visual é ser inferior e faltante. Isto dificulta ainda mais
a vivência dessa condição pelo deficiente, porque se todas
as suas percepções e conceitos são considerados inferiores,
então, resta a esta pessoa a busca constante dos conceitos
visuais que não lhe são acessíveis, a não ser pela fala dos
videntes, o que os deixa novamente dependentes.
É possível outra forma de inclusão do deficiente visual
que o aceite sem valorizar demais as suas incapacidades,
mas buscando respeitar o que ele é. Essa concepção de
inclusão não enfoca os limites e déficits das pessoas cegas,
mas busca compreender a forma como essa pessoa se constitui
e percebe o mundo, de modo a não querer transformar
os cegos em videntes, e nem tampouco impor conceitos, padrões
e valores dos que veem. Em vez disso, tenta entender
as limitações da ausência de visão e analisa as condições de
vida na família, escola e em outros grupos de referência que
possam facilitar o desenvolvimento desse indivíduo.
O aluno cego, em sua vida escolar, necessita de materiais
adaptados que sejam adequados ao conhecimento
tátil-cinestésico, auditivo, olfativo e gustativo – em especial
materiais gráficos tateáveis e o braile. A adequação de materiais
tem o objetivo de garantir o acesso às mesmas informações
que as outras crianças têm, para que a criança cega
não esteja em desvantagem em relação aos seus pares.
A educação do deficiente visual é marcada pela relação
intrínseca com o atendimento especializado, capaz de
suprir as necessidades especiais advindas da falta de visão
e assegurar o ensino formal deste aluno. Esse atendimento
especializado deve ser garantido pela chamada educação
especial.
A educação especial é uma modalidade de ensino que
deve caminhar paralelamente ao ensino regular, em todos
os seus níveis: educação infantil, ensino fundamental, médio
e superior. Esta concepção de modalidade não está isenta
de discussões e divergências. Pressupomos que o ensino
especializado deve acompanhar a criança/pessoa com deficiência
em toda a sua vivência educacional sem, com isso,
se transformar em substituto do ensino regular. Segundo a
Lei n.º 5.540/68, a função do professor especializado é a de
atuar como docente e especialista. Ele atua como docente
porque é responsável por atividades de ensino e aprendizagem
e como especialista porque é um agente facilitador
do processo educacional ao orientar a escola, a família e a
comunidade. Dessa forma, a ênfase da atuação do professor especializado depende
do lugar onde ele está desenvolvendo
seu trabalho, que pode ser: classe especial, sala de recursos
ou ensino itinerante.
A estigmatização do deficiente visual prejudica sua
personalidade e autoestima. Por isso, é preciso um ambiente
educacional o mais adequado possível para o desenvolvimento
integral do cego. Monte Alegre (2003) constatou
a falta de apoio especializado nas escolas comuns - ditas
“inclusivas” -, tanto pela falta de materiais e recursos para
o trabalho com as crianças cegas, quanto pela falta de preparo
dos docentes da sala de aula comum, o que leva a um
trabalho pedagógico técnico, espontaneísta e muitas vezes
inadequado por não dar conta das necessidades do aluno
cego. As professoras da sala comum de alunos com deficiência
visual demonstraram incertezas sobre como lidar com
esses alunos e desconhecimento dos materiais adaptados
para o cego - inclusive o braile.
No entanto, algumas delas afirmaram que o convívio
com alunos deficientes visuais permitiu a percepção das capacidades
destas crianças, a superação de preconceitos e a
representação da criança como um ser que tem “(...) características
gerais de normalidade, de autonomia, de relações
sociais satisfatórias, de virtudes cognitivas, curriculares, de
desenho, de locomoção, verbais, do interesse pelo conhecimento
e como merecedoras de uma projeção de futuro
satisfatório” (Monte Alegre, 2003, p. 275).
Assim, ainda que o autor faça uma crítica aos poderes
públicos pela falta de investimento e iniciativa na área de educação
especial (em alguns casos, o professor compra os materiais
com seus próprios recursos), o convívio escolar dessas crianças com professores
abertos a situações novas e criativas
não deixa de ser um ganho significativo. Claro que isso
não pode ser motivo para não se lutar por melhores condições
de ensino desta população, uma vez que isso lhe é de direito.
Mas a experiência citada mostra o quão importante é a convivência
com a diferença, se esta é respeitada. No entanto, se
o professor não está preparado, ele pode demorar a perceber
(se vier a perceber) a capacidade de seu aluno cego e, com
isso, desperdiçar um precioso tempo da vida desse aluno, o
que não ocorreria se o professor já tivesse em sua formação
um contato e uma reflexão sobre a deficiência visual.
Masini (1994) analisa várias propostas de educação
para deficientes visuais e nota que o referencial utilizado é o
do vidente; deste modo, a comparação do deficiente visual
com o vidente coloca o primeiro em constante desvantagem.
Esse fato tem uma consequência grave para o deficiente visual,
qual seja, a de não ser percebido como ele de fato é,
mas sempre com o olhar daquilo que ele não é. Outro ponto
levantado pela autora refere-se aos instrumentos propostos
nos programas, que refletem uma concepção subjacente
de processos mecânicos de aprendizagem, pois as tarefas
baseiam-se em associação simples do mundo externo, descontextualizadas da forma
global de percepção do deficiente
visual.
A concepção de cego com base no vidente, além de
minimizar as possibilidades de entender o cego como ele
realmente é, enfatiza suas limitações e não suas possibilidades.
E isso, em um mundo de videntes, faz com que o
deficiente visual seja ainda mais prejudicado. Mas como um
educador vidente pode ensinar um cego? Claro está que um
vidente não tem como saber diretamente como se organiza o
“mundo” do cego, pelo fato daquele usar a visão como sentido
principal de suas ações. Mas isso não impede que pais, professores
e profissionais possam ir além de suas experiências
como videntes e consigam perceber que as possibilidades
de aprendizagem de uma criança ou adulto com deficiência
visual são tão grandes como a de qualquer ser humano, pois
a visão não é a única fonte de informação.
A educação do deficiente visual pode ser orientada
por um professor especializado, o que não quer dizer colocá-lo em uma escola especial. Ao contrário, o aluno deve ser
regularmente matriculado em uma escola regular, mas receber
o apoio de um professor especializado para assegurar a
satisfação das suas necessidades, até o momento que isso
for preciso.
Caiado (2003), num estudo sobre as vivências escolares
dos cegos, entrevistou seis pessoas cegas cuja perda
visual foi anterior à alfabetização e que aprenderam a ler pelo
braile e no ensino regular. Dentre as categorias criadas pela
autora para analisar as entrevistas, duas chamam a atenção: o preconceito vivido em sala de aula, em grande parte pela
falta de preparo do professor, e a falta de recursos adaptados
para os alunos cegos.
Essa falta de materiais adaptados fazia com que
os alunos tivessem a fala do professor como único recurso
pedagógico. Claro que a voz do professor é de extrema importância
em sala de aula para qualquer aluno. No entanto,
desenhos, mapas, fórmulas, escrita na lousa etc. são frequentemente
utilizados para enriquecer a aula e facilitar a
apreensão dos conteúdos. Nesses momentos, o que fazer
com o aluno cego? Alguns poucos professores conseguiam
fazer adaptações ou dedicavam uma atenção especial aos
alunos cegos. Mas a maioria não fazia essa adaptação de
recursos e deixava os alunos cegos excluídos de certos conteúdos,
delegando unicamente a eles próprios a responsabilidade
pela sua aprendizagem. Alguns pais de alunos cegos
confeccionavam os materiais adaptados. Mas a maioria dos
alunos relatou que concentravam todos os seus esforços na
fala do professor: foi pela aprendizagem a partir do que o
professor falava em sala que eles estudaram para provas
escolares, vestibulares e concursos.
Também Camargo e cols. (2008) notaram a importância
da fala na aprendizagem do aluno com deficiência
visual. Entretanto, os autores, ao estudarem a comunicação
em sala de aula no ensino de física, notaram as dificuldades
comunicacionais ocorridas entre professores e alunos. As
dificuldades mais frequentes referem-se à apresentação de
conteúdos vinculados a representações visuais, sem a devida
adaptação.
Tal dado nos mostra que não é pelo fato do professor
falar que o aluno cego tem garantido o acesso ao conhecimento.
São necessárias adaptações na fala do professor
para que o conteúdo não seja estritamente visual. Para tal, é
preciso lançar mão de outros recursos (como maquete, esquemas
táteis, sonoros etc.), de modo a garantir que o aluno
está compreendendo o que está sendo dito pelo professor.
Caiado (2003) lembra o quanto a educação dos alunos
com deficiência no Brasil teve um histórico de assistencialismo
e filantropismo, de modo a não ser vista como um direito,
mas como uma ação benevolente de algumas pessoas. Só
recentemente os direitos das pessoas com deficiência têm
sido assegurados por lei e, como consequência, têm sido objeto
de reivindicações e lutas – ainda que timidamente – para
o cumprimento da lei.
Em decorrência do pouco conhecimento sobre a
deficiência visual, os professores frequentemente têm baixa
expectativa quanto à aprendizagem do aluno. A crença
equivocada da pouca capacidade de aprendizagem do aluno
cego prejudica-o muito, uma vez que tende a minimizar as
propostas pedagógicas do professor. Outro ponto negativo
quanto à educação do cego é a possibilidade do professor,
por falta de preparo, adotar procedimentos educacionais
tendo, como parâmetro, as formas de aprender do vidente.
Em última instância, isso significa a recusa total do professor
de encarar a deficiência e perceber suas possibilidades e
limitações. Caiado (2003) nos dá um exemplo disso no depoimento
de uma das participantes de sua pesquisa: “Essa
professora, ao invés de falar comigo, perguntava para o meu
companheiro do lado; outros professores não gostavam de
ditar, porque já tinham passado a matéria na lousa” (p. 84).
O hábito de escrever a matéria na lousa como único
recurso deve sofrer adaptações quando há um aluno cego
em sala de aula. Não é possível ao professor simplesmente dizer para si e para
os outros que esse é o seu jeito e que
não pode mudar para não prejudicar os outros alunos. Esse
tipo de atitude demonstra não só a dificuldade do professor,
mas a cristalização de preconceitos que leva o aluno cego à
exclusão dentro da lógica da inclusão: ele está em sala de
aula, mas as barreiras atitudinais não estão favorecendo seu
aprendizado.
Esse é um jogo perigosíssimo porque, se esses preconceitos
não forem revelados, a mensagem da instituição
escola é: estamos fazendo a nossa parte, estamos aceitando
“alunos de inclusão”, estamos incluindo. Mas, na realidade,
nada foi alterado ou adaptado para esse aluno, que fica marginalizado
dentro da sala de aula. Se ele não aprender, ou se
desistir de estudar, a escola sentir-se-á eximida de culpa. É
uma lógica cruel e, infelizmente, real.
Também Lira e Schlindwein (2008) notaram que
professores de alunos cegos se negaram a mudar as estratégias
de ensino em prol da aprendizagem do seu aluno.
As pesquisadoras apresentam um estudo em que três estudantes
universitários cegos foram entrevistados. O objetivo
foi relacionar o percurso escolar com a vivência da inclusão/
exclusão. Várias dificuldades foram apontadas pelos entrevistados
além da supracitada: falta de material em braile e de acessibilidade do ambiente
físico. Segundo as autoras,
os problemas de escolarização apontados não se referem
a limitações intelectuais ou de abstração do cego, mas da
falta de preparo do sistema educacional e da escola específica
em que estavam estudando, pois não houve suficiente
adaptação dos recursos didáticos para potencializar a aprendizagem
dos alunos.
Montilha, Temporini, Nobre e Kara-José (2009) relatam
uma pesquisa em que 26 alunos com deficiência visual,
cegueira e baixa visão, com média de idade de 17 anos,
responderam a um questionário sobre o seu processo de
escolarização. Os resultados apontaram alto nível de repetência
dos alunos. Além disso, a dificuldade mais apontada
pelos sujeitos foi a de ler os livros didáticos. E a relação
com o professor, dentre a relação com colegas e diretor, foi
a mais escolhida como influente no processo de aprendizagem.
Nesse sentido, podemos pensar que, segundo esses
alunos, um bom relacionamento com o professor auxilia mais
na compreensão dos conteúdos escolares. Porém, esse bom
relacionamento nem sempre ocorreu, pois 73,1% dos alunos
tiveram alto índice de repetência.
No estudo realizado por Nunes e Lomônaco (2008),
alunos cegos de uma instituição especializada foram solicitados
a definir conceitos concretos e abstratos. Nem todos os
participantes apresentaram definições claras e corretas dos
conceitos em questão, porém, aqueles que o fizeram afirmaram
terem aprendido tais conhecimentos na escola. Para
nós, isso significa que o cego, como qualquer aluno, precisa
ter oportunidades de aprendizado. Dada a ausência de visão,
são necessárias adaptações para que as informações
visuais lhes cheguem por outras vias. Mas a capacidade de
abstração do cego não é diferente da capacidade daquele
que enxerga. A questão é que, independente da cegueira,
para aprender, é preciso ter oportunidade de aprendizagem.
Em resumo, nos estudos apresentados sobre a educação
do aluno com deficiência visual, percebemos pontos
comuns: falta de recursos, falta de preparo do professor e
falta de conhecimento sobre a capacidade de aprendizagem
do cego. Quanto à falta de recursos, os estudos mostraram
que a fala do professor constitui praticamente o único recurso
para a aprendizagem do cego. Ainda que a linguagem seja
fundamental no desenvolvimento, ela não consegue substituir
tudo, por isso a importância de utilizar outros materiais
adaptados.
Além disso, para que a linguagem seja uma fonte de
informações para o aluno cego, é preciso que esteja adaptada
às suas necessidades, a fim de que os conhecimentos
trazidos pelo professor possam fazer sentido. Assim, notamos
que a discussão sobre integração/inclusão, frequente
desde a década de 1990, ainda se faz necessária. Pois não
basta que os alunos cegos estejam em sala de aula. É preciso
que a escola adapte-se a esse aluno. Sem a oferta de
oportunidades de aprendizagem, não há garantia do direito
à educação.
Ao comentar a escassez de materiais adequados para
o cego, Monte Alegre (2003) desabafa: “(...) é injusto com os
estudantes cegos que eles fiquem fadados a uma pedagogia
espontaneísta, improvisativa e realizada por principiantes”
(p.118).
Mais do que injustiça trata-se de um desrespeito às
leis que asseguram os direitos dos alunos com deficiência. A
emenda constitucional n.º 12, de 1978, afirma que “(...) é assegurado
aos deficientes a melhoria de sua condição social
e econômica, especialmente mediante educação especial e
gratuita”; e no artigo 208, lemos no inciso III, da Constituição
de 1988: “(...) atendimento educacional especializado aos
portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular
de ensino”.
Será que o direito do aluno com deficiência está
garantido se não são dadas condições adequadas de preparação
do professor e se não são feitas as adaptações
necessárias para que ele seja um aluno regular realmente
incluído em sala de aula comum? Para Lira e Schlindwein
(2008), “a escola pode auxiliar a enfrentar as dificuldades
impostas pela diferença visual em uma sociedade essencialmente
visual”. (p.173). É nesse sentido que acreditamos que
a reflexão sobre o que é a cegueira, bem como a abertura à
experiência com o aluno cego são caminhos facilitadores da
aprendizagem deste aluno.
IV. À guisa de conclusão
Como destacado nas seções anteriores, a cegueira
tem sido pensada unicamente pela falta e pela incapacidade.
Isso é evidenciado no susto e na admiração das pessoas ao
se depararem com algumas habilidades cotidianas de indivíduos cegos. O espanto e a descrença parecem ainda maiores quando se trata da
formação e práticas profissionais desses
últimos. São comuns comentários comparativos com cegos
bem sucedidos e conclusões de que é uma vergonha que
eles consigam algo grandioso enquanto nós (videntes e perfeitos...)
não temos o mesmo (ou melhor) desempenho profissional.
Parece existir uma expectativa de frustração para a
vida do cego e o espanto está em perceber seu sucesso ou,
melhor dizendo, sua capacidade de chegar ao mesmo ponto
que o vidente. Essas falsas ideias evidenciam a expectativa
de limitações muito maiores e mais amplas da pessoa cega
do que aquelas realmente decorrentes da deficiência.
Esta concepção do cego como ser faltante dificulta
muito as relações sociais da pessoa cega, principalmente
pelo desconhecimento de sua real condição, o que pode
causar um impacto afetivo negativo, uma vez que o imaginário
social está enviesado por estereótipos de limitação e
sofrimento na vida do cego.
O prognóstico desfavorável para pessoas deficientes,
muitas vezes se baseia demasiadamente nas limitações da
deficiência. Essa percepção organicista valoriza excessivamente
o defeito orgânico. É evidente que não se trata de
negar a cegueira enquanto uma limitação que exige adaptações.
No entanto, há algumas décadas, pesquisadores que
trabalham com cegos, tal como Amiralian (1990), questionam
os resultados que mostram atrasos no desenvolvimento do
deficiente visual em pesquisas comparativas com videntes.
Para além da comparação, nossa proposta, de acordo com os autores aqui citados,
é pensar em processos diferentes,
com diferentes tempos de desenvolvimento, mas lembrando
que o cego é capaz de aprender, simplesmente porque é um
ser humano, ou seja, um ser de aprendizagem. Isso quer
dizer que pais, professores e profissionais devem facilitar e
possibilitar ao máximo tal aprendizagem.
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O aluno cego: preconceitos e potencialidades
Sylvia Nunes & José Fernando
Bitencourt Lomônaco (Sylvia Nunes (sylviasnunes@yahoo.com.br):
Universidade Federal de Itajubá, Itajubá - MG |
José Fernando Bitencourt Lomônaco (jfblusp@usp.br):
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo - SP) Artigo publicado na Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional ,
SP. Volume 14, Número 1, Janeiro/Junho de 2010: 55-64.
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