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 Sobre a Deficiência Visual


Vamos Falar de Sexo?

Joyce Guerra Jobis

Blind woman Doll - Tip Toland, 2001
Boneca cega - escultura de Tip Toland, 2001 | porcelana, vidro, cera, mohair, pastel)


Nota: o texto abaixo fala de sexo. Só pra deixar claro mesmo.

Em uma sociedade tão estruturada pelo que se vê e se observa, a deficiência, em si mesma, é a derrota suprema. Um braço que não existe não pode ser reparado. Uma prótese ocular é a falha máxima da oftalmologia. Como julgamos a parte pelo todo, a ausência ou precariedade de uma única parte é a falta de todo o resto. Ao acreditar-se literalmente que a mulher é feita do pedaço de uma costela, convertemo-la, de cara, em algo incompleto, deficitário. Quando dessa parte algo mais não está, derivamos a mulher deficiente.

Dos eventos artificialmente enrosecidos, nos quais exaltam-se nossa força, nossa garra, nossa luta, raramente são reconhecidas as contribuições sociais aos desafios que enfrentamos. A mulher com deficiência é comumente assexuada. Somos anjos azuis, princesinhas, eternas meninas, bonequinhas. Isso quando temos sorte. De um jeito ou de outro, comumente acredita-se que o que não temos trace nosso destino, o que não temos determinando o que jamais faremos. Socialmente, estamos condenadas a passar de tutela em tutela, se tivermos sorte. Quem cuidará de nós quando nossos pais se forem? Que familiar vai se responsabilizar por nosso asseio, nossos medicamentos, por nossos anseios, por nos proteger de homens ferozes que talvez não respeitem nossa condição?

Houve mulher com deficiência que recebesse um vibrador da família, para curar-se da própria virgindade. Era mais tolerável um falo industrializado a desdobrar-lhe a intimidade que a ideia de um homem real a descobri-la.

Porque, se os corpos das mulheres não lhes pertencem, das mulheres com deficiência pertencem ainda menos. Quantas de nós não temos autonomia para escolher o cumprimento de nossas roupas, de nossos cabelos, se usaremos ou não maquiagem? Quantas mulheres com deficiência foram impedidas de casar por suas famílias zelosas e preocupadas com seu destino?

Corpos intactos, indesejáveis e indesejantes, a sexualidade da mulher com deficiência é considerada de mau tom, mesmo perante a indústria pornô. Quando associamos tanto perfeição física ao direito ao amor e à plenitude da vida, imaginar corpos cegos, surdos, distorcidos, paralisados e amputados em pleno gozo consentido não soa poético, não soa literário, não soa em absoluto minimamente natural.

Santo será o homem que nos *assumir*. Missionário será o homem que, podendo ter a mulher que quiser, escolha a uma de nós: teremos de o valorizar e agradecer o que vier, porque ele nos *aceitará*, dedicará sua vida ao nosso cuidado quando poderia ter uma esposa perfeita.

O capacitismo nos rouba a autonomia, os sonhos, as vontades e, se permitirmos, até os orgasmos. Claro, há alternativas que são construídas e assumidas no seio das casas, em gestos de coragem que tantos vivem e morrem sem conhecer. A mulher cega aguardando o rapaz que conheceu via Rede Social num encontro não é uma pobre coitada, tampouco uma guerreira lutadora; é apenas uma mulher apostando pra ganhar no seu potencial de dar e receber amor. Ele se aproxima, o corpo dela pode virar-se, mesmo sem o ver. Alguém pode dizer “é ele!” e ela se sentir num frenesi: dá tempo de ajeitar alguma coisa? Estarei bonita? Será que isso importa? Talvez eles se esbarrem. Talvez os corpos ajam antes de pensar. Talvez se beijem rindo, o que pode produzir um efeito meio estranho em termos de dentes. Talvez ela lhe descubra os contornos do corpo, e talvez seja sua primeira vez; talvez a trigésima que ainda assim soe como a primeira.

Talvez ela more com os pais e precise de malabarismos pra transar. Talvez ela more sozinha e corra tudo bem e quando ele chegue na sua cama, ela entenda porque um poeta disse que todo o mundo cabe numa cama.

Debaixo d'água e na cama as diferenças aparentes se atenuam. De algum modo, são estados diferentes do existir. Talvez ela descubra novos usos e tons para a própria voz. Talvez ela entenda que não existem apenas olhos na ponta dos dedos, mas da língua, dos lábios, e talvez ela nunca mais veja uma mecha de cabelo ou a parte interna das coxas com a mesma neutralidade.

Talvez seu gozo, óbvio, intenso, despudorado anuncie para qualquer desavisado que tem alguém se divertindo. E ali, naquele momento, ninguém pensará nela como “coitada”. ninguém dirá: “tadinha, é tão linda!”. Saberão apenas que ela está se divertindo e, como em poucas ocasiões, aceitarão que ela é “normal”.

Talvez não se fique por ali. Talvez muitos creiam que seu companheiro seja um puro abnegado, sem saber o que sabem os estrados da cama do casal… A mesa da cozinha,a pia do banheiro, o sofá da sala e todas as superfícies imagináveis de lugares inconfessáveis.

E talvez continue ainda mais. Talvez seu ventre cresça. Talvez seu corpo abrigue outro ser. Talvez eles continuem amando e transando muito e talvez riam quando alguém disser que pensava que eles não faziam aquilo.

O mundo das “futuras mamães” - ai, como esse termo incomoda aqui, por sua infantilização! - não contempla mulheres cegas. Alguém já viu mulher com deficiência fazendo comercial de bebê? O estereótipo da mãe feliz é branco e curvilíneo, da capa da revista para a mesa de cirurgia. Mesmo assim ela está lá: barriga inchando, assustada e poderosa, mesmo assim, ou poderosa porque assustada. Ela, seus dedos investigativos, seu corpo finalmente devolvido a sua dona. O jeitinho, não de princesinha adormecida, mas de mulher ativa, proativa e, por que não, se ela quiser, procriativa?

Claro, desabará sobre ela tudo que ela não sabe - como raios se coloca uma fralda? O que eu faço quando ele golfar? - mas, mais que isso, germinará sobre ela tudo que poderá aprender. E, se tiver espaço, se tiver coragem, ela aprenderá. E germinará em saberes, fazeres, afazeres e gentilezas! As comportas afetivas abertas pela sexualidade assumida e consentida poderão fazer com que ela sinta um acréscimo de estima por si mesma, facilmente extensível ao resto do mundo. Então, quando nascer o bebê, a mulher também renascerá. E as pessoas ainda dirão, porque são tolas: “Fico impressionado contigo, feliz, mesmo assim!”.

E talvez aí ela lembre dos boletos, da casa bagunçada, das noites mal dormidas, do marido com quem ela queria transar, mas está tentando arrumar tempo e responda: “é porque eu estou viva!”

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PS: Não pretendi defender que é um homem que faz “a mulher ser mulher”, mas que o exercício consciente e consentido da sexualidade e dos direitos reprodutivos pode ser uma ferramenta valiosa para o amadurecimento feminino. Existem muitos caminhos e esse é um deles.

FIM

fotografia de Joyce Guerra Jobis
Joyce Guerra, mais conhecida como Jobis, é escritora, palestrante e ativista, mãe de Estevão, Marilis e Cristovão, casada desde 2004 e cega.

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post de Joyce Guerra Jobis
Facebook | 21 de julho de 2020
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15.Nov.2022
Publicado por MJA