D. Maria dos Prazeres falava agora da imagem nova de Nossa Senhora do
Montouro que tencionava oferecer à igreja nos próximos festejos à santa
tutelar da freguesia. Encarregara-se da obra o mestre António, um oleiro
do sítio, que trocara há muito o fabrico da louça pelas imagens
sagradas:
― Fui a semana passada à oficina dele e a Nossa Senhora vai
adiantada. Cego, padre Abel, mas duas mãos abençoadas a mexer no barro.
― Com efeito, extraordinário. Eu conheço-lhe um Santo António em
Corrocovo que pede meças a qualquer outro.
― Quando Deus queria do norte chovia, disse a D. Violante que era um
adagiado vivo.
E erguendo a cabeça do bordado explicou-se melhor:
― Quando Deus quer, até os cegos vêem.
― A imagem é de tamanho natural. Dos ombros da Virgem desce um grande
manto, que há-de ser todo a oiro e branco. O Menino ao colo, meio
agasalhado nas dobras do manto. O rosto da santa, que está quase
acabado, é um primor. O padre Abel verá.
― Lá irei ver, D. Prazeres; e, se mo permite, dar o meu conselho,
porque enfim sempre há certas coisas canónicas a vigiar; o cânone é por
assim dizer...
Estendeu a mão para a garrafa, voltou a encher o cálice.
*
Levou o resto da manhã às voltas com a ideia e tanto lhe mexeu que a
deixou a sangrar: o sangue farto das feridas recentes. Espantava o sono
com goladas duma garrafa de aguardente que escondia no cofre. Pouco a
pouco, ressuscitava nele o homem implacável que a intensa amargura
dalguns dias arrancava ao desespero a que descia, como se o vento desse
na poeira da sua consciência desmoronada e as pedras limpas se
reerguessem umas sobre as outras. Nesses acessos tornava-se rígido,
cruel. Orelhas surdas a lágrimas ou rogos. Por exemplo, saltava às suas
terras, ao pegar do trabalho, e camponês que não chegasse a horas já
sabia, a jorna descontada ou despedido pura e simplesmente. A
indiferença dum capataz na roça. No geral, porém, semelhante crueza de
carácter era sol de pouca dura. Anoitecia depressa para longas insónias
de remorso e avé-marias. Bebeu outra golada de aguardente. Por dentro,
no recesso da alma, o homem voluntarioso e efémero, sem escrúpulos,
alcançava entretanto a estatura dum gigante. Olhava então com piedade
para as próprias fraquezas, prometia à força momentânea: nunca mais,
nunca mais. Em todo o caso, alguma coisa de dúbio passava da alma velha
à alma nova. O que é, transformava-se-lhe o medo em cálculo, o terror
religioso cedia o passo a uma crença firme e sem complicações na
generosidade divina, que existe para tudo cobrir com o seu manto de
perdão. E o remorso lá estava, mas encaroçado. Um quisto à margem do
organismo em que se enconcha. À génese destas grandes transformações não
era estranho o espectro da miséria que o pai lhe metera pelos olhos
apavorados desde a infância, porque muita da fereza que o empedernia, da
ganância cíclica que o empolgava, vinha daí, dessa longa lição
individualista de que o homem é o lobo do homem e, portanto, entre
devorar e ser devorado, o melhor é ir aguçando os dentes à cautela.
Desta vez o ânimo impiedoso irrompia da sombra para saltar sobre o
ruivo, que encarnava, por uma necessidade premente de fixar a angústia,
o bode expiatório, o inimigo, a própria angústia. De semelhante ideia,
mexida e remexida, é que o sangue brotara, e com tal ímpeto que o sentia
correr pelo corpo todo, passar de simples razão mental a sustento do
coração, a seiva que tomava a existência possível, e também a morte, se
a fonte donde manava estiasse de repente. Daí que se pusesse a chamar o
marçano aos berros, para lhe ordenar com a ânsia de quem empenha tudo na
cartada:
― Dá-me um salto à olaria do cego. Que venha cá. Que preciso de lhe
falar urgentemente.
*
― Fogo, moribundo à espera de sacramentos, ou que raio é?
Álvaro Silvestre fechou a porta do escritório:
― Nem fogo nem moribundo. A sangria desatada é outra.
Feições que pareciam navalhadas numa carrasca de pinheiro. Todo ele,
altíssimo e curvado, lembrava um desses alentados troncos que a força do
vento acaba por empenar no desabrigo da planície. Tinha a voz áspera, os
dentes arranhavam-lhe as palavras, e ouvi-lo era desagradável como ouvir
um raspar de unhas sobre vidro. Tacteou a cadeira de espaldar maciço:
― Com que então a sangria desatada é outra...
E sentou-se:
― Só se for pelos patacos que me tem fiado na mercearia.
― Também não é pelos patacos. Claro que temos de acertar as contas
qualquer dia, mas não se trata disso agora. Prepare-se para um golpe
duro.
― Venha de lá o golpe. Já fui curtido por muito fumo e aguento.
Ficou à espera, de queixos apertados, tenso.
― A verdade não precisa de grande palavreado e aí vai: a sua filha
desgraçou-se.
Cingiu os lábios de tal forma que os transformou numa espécie de
lancetada roxa. Alisou-se-lhe a pele da testa, as veias das têmporas
encordoaram. Quando conseguiu falar, a linguagem tinha perdido o torn
chalaceador e saiu-lhe mais rude, sem as senhorias devidas de campónio a
burguês:
― Vamos conversar, Álvaro Silvestre, vamos conversar um bocado e ou
isso é uma mentira refinada e a conversa há-de ter que se lhe diga ou é
verdade e o cão que me mordeu a filha não morde em mais ninguém.
― Hoje de madrugada, a sua filha e o meu cocheiro estavam deitados na
palha do curral onde vocemecê recolhe o gado.
Estendeu vagarosamente a mão enorme, fincou os dedos no pulso de
Álvaro Silvestre:
― Qual cocheiro? O Jacinto?
― Não tenho outro cocheiro.
Dobrava o corpo para a frente e falava-lhe quase sobre a cara:
― Quem lhe disse a você que estavam no palheiro?
― Ninguém mo disse, fui eu que dei com eles.
Casar a filha com um lavrador. Desde o nascimento de Clara que
embalava o sonho de sair da pobreza pela mão da rapariga: a pobreza, que
é a maior cegueira.
― Jure pela salvação da sua alma.
― Juro pela salvação da minha alma.
Toda a estrutura de emoções, juízos, sentimentos, se definia agora em
Álvaro Silvestre pelo perfil da paixão que o determinava: deitar o ruivo
em maus lençóis. Pô-lo na rua para já, impedi-lo depois de arranjar
trabalho noutras casas nem que tivesse de recorrer a invenções
(patifarias, roubos, etc.), mas pressentia que a sua verdadeira vingança
começava a concebê-la o ânimo do cego, e portanto:
― Eu bem o preveni que o golpe ia doer. A vida dá-nos grandes pares
de coices. Agora é arribar. E lembre-se que dívidas destas importam
muito mais que meia dúzia de patacos fiados na mercearia. Os patacos
podem esperar. Dívidas destas é que não. A mim, pagavam-mas depressa e
com língua de palmo.
Peso, conta e medida nas palavras. Sim, senhor. Que irá sair daqui?
Ergueu-se bruscamente. Era de facto um gigante:
― O seu cocheiro vai dançar na corda bamba, Álvaro Silvestre.
Abanava a cabeça guedelhuda e repetia:
― Dançar na corda bamba, aprender quantas cabaças de água são
precisas para matar a sede no inferno.
*
Passou o dia a retocar a imagem de Nossa Senhora do Montouro, que D.
Maria dos Prazeres lhe encomendara. O servente cuidava das tarefas
miúdas, amassava o barro, esquecia os olhos nas mãos ágeis do velho a
modelar. Os dois em silêncio. Até que o crepúsculo chuvoso arrefeceu de
todo a oficina.
― Deve ser tarde, não?
― Ainda não deram as trindades. Mas pouco falta, mestre.
― O tempo voa. Mal a gente cuida, lá se vai outro dia.
E de súbito, sem o rapaz contar:
― Sempre é verdade que gostas da Clara? Quero isso em pratos limpos:
sim ou não?
Apanhado de surpresa, o moço gaguejou:
― Ora esta... ora esta...
― Sim ou não?
O certo é que a voz intimativa do mestre não tinha o azedume
habitual. E o moço sempre se atreveu a confirmar:
― Vocemecê está farto de saber que gosto.
― E se eu ta desse para casar, o que é que dizias?
― Deixe-se lá de brincadeiras.
― O que é que dizias? Sim ou não?
A insistência tentadora
alvoroçou-o:
― Dizia que sim três vezes, mestre António.
― Pois dou-ta. Trago aí
umas contas em aberto e se me ajudares a liquidá-las dou-ta.
O pasmo e a felicidade
transtornaram-no. Nem era para menos. Habituara-se a ouvir: tira a ideia
da moça, olha que sou capaz de te rachar. E agora aquilo, o próprio
mestre a oferecer-lha, toma lá, é tua, amanha-te com ela. Muito grande é
o poder de Deus para se atrever a um milagre destes. E a promessa
saltou-lhe da boca, rápida, que podia o deslumbramento desfazer-se em
fumo:
― A paga é boa. Tem homem para o ajudar. Nisto, sentiram os passos de
Clara no terreiro. A rapariga assomou à porta, de cântaro no braço:
― Vou à fonte num instante. O caldo já ficou ao lume.
Havia luz ainda para se lhe ver o redondo dos seios aconchegados na
blusa justa, o cachiné de ramagens azuis sobre o cabelo negro que devia
ser fino como a seda, as pernas altas, pouco vulgares nas camponesas.
Olhou-a com um amor diferente. Pela primeira vez, Clara descia das
nuvens a calcar o mesmo chão do que ele.
Sumiu-se a rapariga. Mas a sua presença breve bastou para encher a
olaria toda. Foi preciso que o mestre gritasse para o acordar do
encantamento:
― Temos de ir atrás dela. Ouviste ou não, Marcelo?
Perguntou, estremunhado:
― Atrás dela, porquê?
― Já vais saber.
Saíram-lhe no rasto, cuidadosos corno dois ladrões, e foram
acoitar-se entre o arvoredo ao pé da fonte.
― Quem é que está com ela?
― Não se vê quase nada, mas penso que é o ruivo.
― O cocheiro do Silvestre?
― Parece-me que sim.
― Parece-te ou é mesmo?
Firmou a vista no crepúsculo:
― É ele.
― Toca para a azinhaga.
― Fazer o quê, mestre António?
― Há-de por lá passar o cão no regresso da fonte.
A chuva engrossava pouco a pouco. Ao longe, o fogo de um relâmpago
abriu o céu.
― Aí vem a trovoada. Sente-a?
― Não.
Rodearam a fonte e cortando pelas terras de cultivo chegaram à
azinhaga.
― Já é noite cerrada?
― Quase.
Estiveram em silêncio algum tempo abrigados nas moitas. Depois o moço
insistiu um pouco receoso:
― Que vamos nós fazer?
― Estás a roer a corda, malandro? Queres ou não queres a rapariga?
A chuva, cada vez mais pesada, ia ajoujando os silvedos. O vento
crescia e arrastou da distância o marulho de um trovão maior.
― Ouviu agora, mestre?
― Cala-te. O que eu oiço são passos.
Ficaram alerta, de respiração suspensa.
― Vai agarrando no cacete.
O vulto surgiu no alto da azinhaga. Uma sombra móvel entre montões de
espinheiros derreados de água. Cantarolava. Reconheceram-lhe a voz e o
velho ciciou:
― Arreia-lhe a matar.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos
olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anónima
e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas.
Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia. A cajadada
apanhou o ruivo pela cabeça:
― Ai!
Abriu os braços e foi de escantilhão aninhar-se no lamaçal da
estrada. Chape. Inerte como um pedregulho.
― Temos de o deixar escondido no silvedo e dar um pulo a casa, não vá
a rapariga suspeitar da ausência. Come-se o caldo e, mal ela der as
boas-noites, saltamos ao palheiro. Traz-se o jumento, como quem não quer
a coisa, põe-se-lhe o corpo em cima, amarra-se, e ala para o mar. As
águas lá se encarregam de lhe dar sumiço.
*
Ali iam agora, com a chuva a fustigá-los. A cada passo para o litoral
a invernia adensara. Seguiam ombro a ombro, o moço aterrado, o velho ora
agreste ora chalaceador. Pela tempestade dentro.
Alcançado o grande areal que separa do mar as terras interiores,
começavam a trepar a encosta da primeira duna. O aguaceiro enrijecia o
chão de sílica e facilitava um tanto a marcha, mas o vento batia no cume
do frágil monte e atirava de mistura com a chuva um granizo de areia.
― Paremos aqui. Vou cego com estas chapadas de terriça na cara.
― Para que diabo queres tu os olhos na escuridão, tratante? Fecha-os.
Mais cego que nós vai esse, aí, no lombo do jumento.
Um clarão recortou os vultos do velho, do rapaz e do burro com a
carga suspeita sobre o dorso, o trovão estalou.
― Ui!
― Que é lá, Marcelão?
E antes que o moço pudesse responder:
― Bendita Santa Bárbara dos cegos, poupa-me sempre o fogo dos
relâmpagos.
Gritavam as palavras para vencer a chuva, o céu furioso. Marcelo
segurava numa das mãos o cabresto do animal e na outra a chibata. O
demónio à solta pelas dunas. A noite de água, a torrente sem leito. O
velho indagou:
― Deste-lhe a matar?
― Sei lá, puxei o cajado atrás das costas... Mestre, temos meia noite
andada, deixemo-lo mesmo aqui.
― Só paramos no mar. Há-de uma onda levá-lo para os baldões da água.
Se alguma vez tornar à costa, vão lá saber quem era.
*
Quando atingiram o alto dos pequenos alpes movediços, a ventania
feriu-os cara a cara.
― Ele irá morto, mestre?
Palavras não eram ditas, acendeu-se um relâmpago ainda maior, o burro
relinchou de espanto, empinou-se nas patas traseiras e arrastou consigo
o moço entontecido, o moço ao cair desequilibrou por sua vez o velho, e
rolaram todos pela encosta da duna.
Houve um silêncio breve, um segundo apenas, mas bastou para o rapaz
dar conta de um gemido ténue, coisa como se uma criança adormecida
chorasse.
― É vocemecê que geme?
― É o raio, é o inferno que geme.
― Então é ele, que nunca ouvi um burro gemer assim.
O que foste dizer. Já a voz do mestre o intimava:
― Arreia-lhe outra, malandro.
Lá isso, não. Não lhe arreio mais nenhuma, nem que me rache uma
faísca de meio a meio.
― Acaba-me com ele de uma vez.
Mas agora, que o moço emergia do letargo em que viera, meio cobiçoso,
meio atormentado, a insistência do cego batia-lhe no coração como a
chuva no mar, inutilmente, porque o sentimento de ter vendido a alma,
que o lacerara toda a viagem, começava a desvanecer-se com a certeza de
que o ruivo ainda vivia: não e não, mestre António, estou farto de
aguentar esta loucura cheia de água, a escuridão, o moer da consciência.
Nisto, a areia rodopiou com mais força em torno deles, ouviu-se um
tropel desenfreado, o rapaz pensou de novo no demónio mas de repente
compreendeu: a laçada da arreata desprendeu-se-me do pulso e o jumento
abalou.
― Agarra o animal, agarra-o ou estamos perdidos.
A rebeldia do moço encontrou por fim as palavras precisas:
― Cá vou atrás do burro (avançava já no areal convulso), cá you atrás
do vento, mas não volto.
― Podes dizer adeus à rapariga (procurava retê-lo, não era nenhuma
brincadeira ficar para ali ao abandono, com a tempestade a embravecer e
o burro levando o corpo do ruivo, a romper no Montouro, a descobrir o
crime), volta para trás, havemos de encontrar o bicho, havemos de atirar
o ruivo ao mar (mas o que veio foi um novo trovão em que a chuva, o
moço, o vento, os gritos, se sumiram), Marcelo, Marcelo.
*
Caminhava, disposto a levar a fuga por diante, quando foi apanhado
pela mesma descarga que deixara o velho atónito. Caiu a um fundão de
areia, enovelou-se no capote e murmurou:
― Mestre, mestre.
Como se rezasse. Ciclos sucessivos de luz entravam-lhe nos olhos,
apesar de ter apertado as pálpebras com força. O fogo lambia a
tempestade baixa como faz à lenha húmida, sem a queimar. Parecia o fim
do mundo.
A olaria, as imagens a cozer no lar do forno antes de subirem aos
oratórios e aos altares das capelas; tardes cheias de paz, a pintar sob
as ordens do mestre as roupagens de uma infindável população celeste;
feiras barulhentas, a vender S. Gonçalos, o S. Miguel Arcanjo, o frade
Santo António, os Anjinhos da Guarda, a Virgem e o Menino, os Presépios,
a Fuga; a bem amada Clara sobre essas coisas familiares e doces como o
sol sobre a terra.
A chuva fazia da cova onde ele tombara um poço transbordante. Ou saía
dali ou morria afogado. Marinhou pelo declive fincando as mãos na areia,
na urze rala, até ao bordo da cratera; esfarrapou as calças, o casaco; o
gorro de lã voou-lhe; que hei-de eu fazer no meio disto, senão voltar
atrás? Os relâmpagos permitiam-lhe o regresso sobre o próprio rasto, mas
tinha de apressar-se porque o dilúvio ia alisando a praia, destruindo os
indícios das pegadas. Um bicho acossado a fugir, mestre, mestre, o
instinto de conservação, o resíduo do sonho, Clara, Clara. Até que a luz
providencial lhe mostrou o cego alapado no sopé da duna. Não viu o corpo
do ruivo que o mestre agasalhava com o seu próprio corpo. O capote do
velho, desdobrado, ondulante de vento, parecia uma ave enorme e trémula
que a tempestade despenhara na praia.
Deu as últimas passadas arquejante e deixou-se cair de joelhos:
― Mestre António, voltei.
― Voltaste?
― Aqui estou. E agora precisamos de encontrar o burro...
― Voltaste. Cá me parecia que não eras homem para deixar a obra a
meio.
― O burro e o ruivo. Temos de dar com eles.
― Não te rales com isso. O burro foi para casa e o ruivo ficou a
guardar-me o medo enquanto não vieste.
Outro clarão. O mestre levantou o dorso rígido; uma aparição de pedra
roída; antiga e implacável:
― Agarra no cacete. São horas de acabar a festa.
― Pega-se nele e arruma-se ao mar.
― Lerias.
― Já não há precisão de mais cacete.
― Chega-lhe, malandro. O seguro morreu de velho.
― O mar dava conta do serviço.
― Arreia-lhe, tratante.
― E a rapariga? Ainda é minha?
― Arreia-lhe e veremos.
Segurou no cacete; precisava apenas de uma chispa de luz para
desfechar o golpe; a cabeça ruiva iluminou-se e a cacetada veio, de alto
a baixo, rasgando a chuva densa.
― Acertaste-lhe?
― Agora tem que ma dar.
― Acertaste-lhe ou não?
― Tem que ma dar, mestre António.
― Já acabámos o serviço, já o atirámos ao mar?
Às apalpadelas, o velho segurou nas pernas do ruivo:
― Apanha-o pelos sovacos...
O moço obedeceu.
― E vamos indo.
*
A tempestade afastava-se para o interior, a chuva decrescia. Galgada
a última duna, ouviram o quebrar das ondas no areal. À beira da água, o
vento era pouco mais que uma aragem mansa, gelada. Entraram três ou
quatro passos pelo mar dentro, cautelosos, e tomando balanço atiraram o
corpo à ressaca. Só depois é que o cego rosnou:
― Lá se foi, Marcelão, que o mar lhe seja leve.
A orla marinha; o sargaço e os limos a enredarem a marcha.
― Sabes porque o matámos?
― Foi vocemecê que mandou.
― Boa resposta, sim senhor.
― E a rapariga, mestre António?
― Talvez a tenhas ganho.
As serras longínquas, onde a tempestade se despedaçara, os altos
picos raiados de um alvor de dia.
― Apressemo-nos, mestre, a madrugada vai nascer.
― Deixa-a nascer.
E quanto à rapariga... ― Vocemecê já disse que ma dava.
― Mas tornei a pensar...
O tinido breve das conchas na maré.
― E julgo que a perdeste.
*
O som matinal das trindades ondeou pela aldeia. Entrando no quarto de
Clara, apanhou-a acordada. Não veio ao palheiro, faltou à promessa que
me fez na fonte; o temporal impediu-o com certeza. A noite em branco. E
agora, debruçada sobre o lavatório, esfregava os braços, a cara,
penteava os longos cabelos negros, com o prazer involuntário que lhe
vinha sempre de passar as mãos nas tranças macias, macias como o pêlo
duma coelha nova, não é, Jacinto? Acabou de arranjar-se e foi à cozinha
preparar a dejua. Nem o pai nem Marcelo davam sinais de vida. Acendeu o
lume, fez o café, cortou as fatias da broa, e nenhum deles apareceu
entretanto. A demora espantou-a e decidiu ir acordar o velho.
Empurrou-lhe a porta do quarto, mas que é dele? Correu à olaria.
Fechada. Da olaria correu ao palheiro. Estranhara qualquer coisa quando
lá tinha ido na véspera à noite; enquanto esperava pelo ruivo na
escuridão, o seu faro de camponesa, habituada a lidar com os bichos
desde a infância, pressentira a ausência do jerico. Dali saltou à janela
do servente:
― Marcelo!
Ninguém. Indício sobre indício, a suspeita encorpava. Parou a meio do
terreiro, indecisa, ofegante, e nisto chegou-lhe do alto um grasnar de
aves. Ergueu a vista ao firmamento, que a tempestade não limpara de
todo, e viu um bando de patos bravos, a caminho do sul. Quando baixou os
olhos (Nossa Senhora do Montouro!) Marcelo e o velho apareciam ao fundo
do caminho, trôpegos como os bêbedos, com lama até à boca. O rapaz ern
guedelha e a cabeça caída sobre o peito. O velho exausto, mas de pescoço
firme, a cara levantada e o dia a cobrir-lha de um torn de cera
mortuária. Desatou aos gritos. A evidência embateu na suspeita; e a
suspeita, sob a luz gelada do céu à terra, transformou-se em verdade:
mataram-no, meu Deus, mataram-no. Largou pela azinhaga abaixo, passou
por eles sem parar, galgando a lama, de braços abertos como se fosse
voar do chão, sumiu-se entre os espinheiros, rápida como as aparições,
estou só no mundo com o meu filho...
*
Nenhum dos íntimos da casa presenciou os acontecimentos da manhã. Uma
série pouco vulgar de coincidências, acasos, ou coisa parecida.
O dr. Neto largou para a Fonterrada ao alvorecer: a terceira mulher
do lavrador Gonçalves outra vez de parto; o velho, à beira dos oitenta,
continuava com firmeza a faina de povoador (quinze filhos vivos e trinta
e cinco netos e bisnetos) mas queria mais: até ao lavar dos cestos é
vindima; um prodígio patriarcal.
O padre Abel, dita a missa das sete, partiu para Corgos metendo a
charrete cautelosa por um mar de barrancos (a reunião mensal do
arciprestado: de puro carácter religioso estas assembleias periódicas do
clero, não se trata de política como pretendem os agitadores da vila,
coordena-se, orienta-se, aprofunda-se a missão católica, mas no seu foro
próprio que é o do espírito, política só conhecemos uma, a salvação das
almas).
A D. Violante aproveitou a viagem do irmão (há anos que se
encarregava de vestir os anjos que saíam na procissão da Senhora do
Montouro e agora a festa estava à porta) para ir falar com a D. Serafina
Teles, a sua fornecedora de asas, túnicas, sandálias, resplendores.
A D. Cláudia passou o dia no Montouro, como se o tivesse passado na
lua, mais ou menos, e entreviu o tumulto (soube do que era pelos poucos
alunos que lhe puseram os pés na aula) mas ao fim da lição, como morava
no próprio edifício da escola, pôde evitar a rua e refugiou-se logo na
saleta dos folhetins e dos bordados, abriu o estojo de pirogravar,
perdeu-se entre os choupos, as nuvens, a paisagem da almofada que
tencionava oferecer ao dr. Neto pelo Natal.
*
― Os guardas vieram pelo meio da tarde buscar o cego e o rapaz.
― Lá estão a dar contas à justiça dos homens.
― Cá se fazem, cá se pagam.
― Quando pagam. Desta vez, se não fosse a rapariga denunciar o pai, o
que é um verdadeiro atentado à moral familiar...
― Repugnante, padre Abel, tem razão. Mas o povo é assim.
― Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Também há virtudes no povo. Há
qualidades.
― E frescas. Mancebia, arruaças, assassínio.
― Com efeito, o que se passou abona pouco.
― Muito pouco.
*
No consultório, quando o último doente saiu, o dr. Neto encostou-se à
janela a enrolar o cigarro. Também ele tinha ajudado, anos e anos,
aquela obra de pintar, repintar, a colmeia dos Silvestres, sem atender a
que lá dentro o enxame apodrecia. Riscou um fósforo, acendeu o cigarro.
Pensaria nisso mais tarde. Agora, preocupava-o a situação de Clara:
pobre rapariga.
Uma noite longínqua que lha tinham trazido quase morta, sufocada pelo
garrotilho, o rosto aflito, o olhar com pouca luz; uma festa escolar que
a D. Cláudia organizara e a moça, no bibe de riscado azul, a adiantar-se
para entregar um ramo de rosas ao senhor Inspector (o momento solene),
quando o diabo do pé se lhe prende no degrau do estrado: chorou toda a
manhã.
Acendeu o cigarro outra vez. Atravessou a casa, saiu pelo quintal,
metendo ao caminho da olaria. Estugou o passo entre silvas e fundões
barrentos. Ao dobrar as enormes moitas de espinheiros, esbarrou num
grupo de mulheres que vinham à procura dele:
― Acuda, senhor doutor, a Clara atirou-se ao poço da olaria.
Arredou-as e largou a correr. Gente excitada rodeava a oficina.
Acabavam de tirar a rapariga do poço. Rompeu o ajuntamento e foi dar com
ela no poial da cozinha. Roxa, desfigurada; um certo halo de distância,
que ele conhecia bem. Mesmo assim, tentou reanimá-la, farto de saber que
era inútil. Tentou, como da outra vez, quando havia ainda alguma luz no
olhar assustado. Virou-a de bruços, comprimiu-lhe as espáduas para
aliviar os pulmões carregados de água. Inútil, mas continuou até o suor
lhe correr pela cara. E as lágrimas também, apesar da sua velha
convivência com a morte. Em volta, os homens rosnavam pragas ao
acusa-cristos do Silvestre, as mulheres lamuriavam o responso.
De regresso a casa, ao entrar no quintal, começou a chover.
Acolheu-se às ramagens da laranjeira grande. Cigarro sobre cigarro;
difíceis de acender: tabaco húmido, muito vento. A chuva luminosa
parecia deslizar numa superfície de cinza.
A noite longínqua, o rosto aflito; o bibe de riscado, as rosas, o
diabo do pé; o chocalho da água nos pulmões.
Desfigurados, verdadeiros, sob o reflexo das chamas. A D. Cláudia,
não: incorruptível, pura, não lhe toca o fogo.
Por hábito, lançou os olhos às colmeias, que lhe ficavam mesmo em
frente, dez ou doze metros, se tanto, e viu uma abelha voar da Cidade
Verde. Baptizava as colmeias conforme a cor de que as pintara, Cidade
Verde, Cidade Azul, Cidade Roxa. A abelha foi apanhada pela chuva:
vergastadas, impulsos, fios do aguaceiro a enredá-la, golpes de vento a
ferirem-lhe o voo. Deu com as asas em terra e uma bátega mais forte
espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem
acabou por levá-la com as folhas mortas.
FIM
Excerto do filme 'Uma Abelha na Chuva' realizado por Fernando Lopes em 1971
ϟ
excerto de
Uma Abelha na Chuva
Carlos de Oliveira
1.ª Edição: Coimbra Editora, 1953
romance
Livraria Sá da Costa Editora
25.ª Edição, 1996