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 Sobre a Deficiência Visual

 

Um Mergulho na Escuridão

Joyce Stranger

The Blind Boy and his Beast - Clive Hicks-Jenkins
imagem: The Blind Boy and his Beast - Clive Hicks-Jenkins

SINOPSE | Steve Drake sempre se esforçara por ser o melhor e quase sempre com êxito. Até agora. Ficara cego - sem defesas - devido a um desastre de automóvel, e a independência feroz que anteriormente o ajudara a vencer isolava-o agora na derrota. Mas ainda há esperança. Nos amigos, velhos e novos, que o ajudam. No dia-a-dia da vida na sua exploração agrícola na Escócia. E no próprio Steve, se for capaz de abrir os braços e aprender a ver com o coração.


CAPÍTULO I

STEVE Drake subia o monte a assobiar. Sentia-se muito feliz e não trocaria de lugar com ninguém. Lig, o seu border collie, voltou a cabeça para ver se os seus serviços eram necessários, mas Steve estava de folga, a descansar da sua vida activa. Lig continuou a correr, uma figura preta e branca veloz, uma silhueta escura de encontro ao fundo de pedras cinzentas e erva escassa, seguindo entusiasticamente um trilho de raposa que serpenteava monte acima.

Steve sorriu, olhando para o cão. Lig era o melhor cão de pastor que já tinha tido, um animal inteligente, calmo e sensato, já com seis anos. Steve conhecia bem o cão, e o cão conhecia o dono. Mesmo no meio da brincadeira, Lig mantinha-se vigilante, olhando constantemente para Steve, para ter a certeza de não o perder de vista. Steve sentou-se numa pedra arredondada para almoçar. Era um homem alto, bem constituído, de pele curtida pelo vento constante dos montes. O cabelo abundante e encaracolado formava umas patilhas dos lados da cara. Os seus olhos cinzentos eram mais expressivos do que a cara, traindo muitas vezes os seus sentimentos, que raramente revelava em palavras.

Olhou para baixo com satisfação. O maior campo da sua exploração estava cheio de ovelhas com os seus borregos. Várias delas tinham três crias e o número de gémeos atingira um recorde naquele ano. Além disso, nenhuma das ovelhas tinha perdido crias.

Espraiou o olhar até mais longe, ao campo onde se erguia a sua casa, abrigada junto ao sopé da encosta. Pertencera em tempos à exploração do pai, High Hollows, mas Andrew Drake tinha-a dado ao filho juntamente com metade das suas terras. Andrew agora tinha de levar uma vida mais calma, se bem que não quisesse renunciar completamente à vida agrícola. Nascera e fora criado no campo e havia de morrer na vacaria, dizia às vezes, com uma gargalhada alegre e sonora.

Era uma vida boa.

As silhuetas escuras das árvores subiam pela montanha e desciam até ao loch, onde a areia prateada brilhava ao sol e as águas azuis iam dar ao mar. Lá longe, na ilha, as ruínas de um velho castelo recortavam-se no céu, sombreadas pelas nuvens. A ilha tinha uma história sombria de homens que de lá vinham de noite, nos seus barcos, para saquear as terras da Escócia, deixando atrás de si lendas de desgraças e histórias de fantasmas que choravam e gemiam na noite.

As nuvens corriam varridas por um vento forte. E agora não havia quaisquer vestígios de histórias sombrias no brilho das pedras. Steve desejou saber pintar, registar as cores variáveis da terra, para as recordar quando viessem as compridas e escuras noites de Inverno e ele ficasse preso dentro de quatro paredes, ansiando pelos espaços livres.

Olhou novamente para baixo, para os seus campos. Os borregos brincavam, com os seus corpinhos pequenos e musculosos, rijos e cheios de saúde. Corriam e pulavam, jogando à apanhada, mas depois lembravam-se de repente de que eram pequeninos e não viam a mãe. Corriam em círculo, balindo, e os seus mé-més agudos eram ecoados pelas notas mais profundas da voz das ovelhas. Steve nunca se cansava de contemplar aqueles encontros, de ver como as mães reconheciam as suas crias. Os borregos puxavam pelas tetas cheias, com os rabinhos a dar, a dar.

A Primavera era para Steve a felicidade total. Seria incapaz de desempenhar as tarefas de um burocrata, de trabalhar num escritório ou em qualquer outra ocupação em que não pudesse realizar-se ajudando a criar novos seres.

Lig estava cansado. Voltou para junto de Steve, deitando-se a seus pés. O cão levantou a cabeça, com as orelhas deitadas para trás, em sinal de submissão, pedindo uma festa. Steve acariciou-o. O collie estava em plena forma: a pelagem era nova, nascida depois da muda, de um preto-brilhante e de um branco tão puro como a lã de um borrego recém-nascido; espetava as orelhas, vigilante, e os olhos brilhavam, cheios de vida. Lig já era um campeão. Steve tinha-o levado aos concursos nacionais e internacionais e ganhara o Troféu dos Agricultores. Tivera recentemente o grande prazer de ser convidado pela BBC para participar no programa televisivo Um Homem e o Seu Cão. E Steve estava convencido de que ele e Lig tinham muitas hipóteses de ganhar o Troféu da Televisão, disputado pelos participantes no programa.

Estava a ter um ano memorável. No Outono, Mara Hastings, a sua noiva, voltaria da América. Os preparativos para o casamento já iam adiantados. Já tinham marcado a data na igreja, estabelecido a lista dos convidados e a mãe de Steve, Nettie, estava a fazer a Mara um vestido de noiva digno de uma princesa. Só havia um pequeno senão. A mãe dele não andava a passar bem, ainda que não se soubesse porquê. Mas os preparativos para o casamento ajudavam-na a esquecer a sua falta de saúde.

Mara era pequena, esbelta e elegante, com um cabelo escuro que formava uma nuvem sombria em volta da sua cara e uns olhos escuros sempre risonhos. Era filha de agricultor, mas trabalhava como professora primária, e este ano tinham-lhe proposto estagiar durante um ano numa escola do Texas, num programa de intercâmbio de professores. Faziam tenção de casar na Primavera, mas era uma oportunidade a não perder. Steve insistira com ela para aceitar o convite e o casamento fora adiado por uns meses para lhe permitir tirar partido dessa oportunidade única.

Ele tinha na algibeira naquele momento a última carta que ela lhe escrevera do Texas. Estava recheada de pormenores interessantes sobre a sua vida e as crianças da sua aula, a quem chamava o Pelotão Amotinado. Visitara um rancho espantoso, com milhares de cabeças de gado e uma extensão de terra interminável. Comia ao pequeno-almoço "pãezinhos ingleses", que ninguém em Inglaterra reconheceria.

A carta de Mara evocou uma recordação muito viva da sua autora. A casa de Steve, baptizada com o nome incongruente de Convento, porque fora construída num local onde houvera antigamente um convento, estava quase pronta para a receber. Steve e o pai andavam a trabalhar na casa há um ano, com a ajuda dos trabalhadores da quinta que tinham algum tempo livre. Haviam acrescentado duas divisões - uma casa de banho nova e um quarto de dormir - às quatro divisões iniciais, duas em cada andar, da casa de pedra. Tinham aberto um arco para a antiga vacaria, que fora transformada numa cozinha moderna. O antigo celeiro dera lugar a uma sala de estar comprida, de tecto baixo, cujas janelas abriam para os montes.

Mara e ele poderiam sentar-se aí à tarde para gozarem o espectáculo do pôr do Sol, das nuvens tingidas de bronze que coroavam as montanhas quando o Sol se extinguia todas as noites, em raios de cores brilhantes, sobre as ilhas Western. Ao crepúsculo, veriam o nevoeiro fantasmagórico que escondia o castelo e ouviriam o piar dos mochos.

O presente de casamento de Steve para Mara seria um jardim.

Ela gostava muito de flores. Ele tinha murado uma parte do campo onde ficava a casa, erigindo uma parede de tijolo para conservar o calor do sol. Plantara um renque de coníferas multicores para abrigar o jardim do vento, misturando a folhagem dourada, verde-azulada, verde-viva e verde-acinzentada das diferentes espécies num conjunto decorativo, que chamava a atenção, apesar de as árvores ainda serem pequenas. Mais tarde, o efeito seria esplêndido.

Steve sempre tinha tido muito gosto por cores, formas, pelas belas paisagens. Para ele, era um prazer ver o jardim começar a definir-se. Quando Mara voltasse, estaria pronto para recebê-la. Ele tinha pavimentado uma faixa de terreno junto à casa e plantado clematites. Dispusera também roseiras, que formariam arbustos esplêndidos, carregados de flores de cor viva, que perfumariam o jardim.

Pintara a casa de branco e descobrira um batente antigo num ferro-velho - uma cabeça de cavalo dentro de uma ferradura. Polira-a até ficar bem brilhante e, mesmo dali, conseguia ver o brilho do metal quando os raios de sol incidiam nele.

Lig levantou-se, impacientando-se de repente, com a cauda a abanar, pois sabia que eram horas de voltar para casa. Steve levantou-se também, relutantemente. Assobiou ao cão para o animal o acompanhar e desceu a encosta.

Quando chegou a casa, o telefone estava a tocar. Levantou o auscultador e ouviu a voz da mãe.

- Steve? Desculpa, meu amor. Mas não me sinto muito bem. O pai foi à feira de gado e prometi-lhe que ia buscar a carne congelada ao talho. Mas acho que era melhor não guiar. Tens tempo para ir buscá-la?

Steve não tinha tempo, mas arranjava-o. Podia tratar dos borregos mais tarde. Havia sempre crias que tentavam meter-se pela sebe ou saltar por cima dela e ficavam com ramos de espinheiro e silvas presos na lã. Até parecia que ele andava a criar Houdinis em miniatura. Precisava de ter olhos na nuca, mas felizmente que Lig supria essa falta.

Quando saiu de casa, parou junto do portão para dar uma palavra a Jack Farthing, o mecânico da garagem da vila. Jack andava a passear o seu novo cachorro golden retriei?er, uma cadelinha brincalhona que tentou morder a cauda de Lig. Lig, muito digno, afastou-se para fora do alcance da cadela.

- Que é que te parece? - perguntou Jack, ansioso por ouvir elogios, apesar de já saber o que Steve ia dizer.

Steve acariciou a cadela e riu-se.

- Devias arranjar um cão como deve ser - comentou. - Já me conheces. Só gosto de collies. Não há nada que lhes chegue aos calcanhares. Não queria outros cães nem dados.

- Cada um é como é - disse Jack. - Não vale a pena tentar que mudes de ideias. Sempre foste casmurro. Mas é verdade que te dava o que tu quisesses pelo Lig.

- Não o vendia nem por todo o dinheiro do Mundo - respondeu Steve.

Fez sinal ao cão, e Lig, percebendo que devia ficar a guardar o pátio, foi-se deitar no degrau da porta.

Jack afastou-se, com o cachorro aos pulos à sua frente. Steve ficou a olhar para ele, abanando a cabeça. Jack não sabia ensinar um cão. Os cães dele eram sempre muito desobedientes.

Steve entrou para a velha carrinha pesada, de modelo muito antigo, que usava para andar no campo. Começou a descer a encosta, sentindo os olhos de Lig fixos nele enquanto se afastava. O cão detestava que ele se fosse embora sem o levar.

Steve guiava bem, atento aos perigos, sempre pronto a prever as manobras dos outros condutores. Dedicava toda a atenção ao que estava a fazer. Só parou uma vez para ver os borregos que estavam no campo situado atrás da garagem de Jack.

Quando chagou, a carne congelada estava pronta para ele a levar, e o homem do talho ajudou Steve a arrumar as caixas na parte de trás da carrinha. Ficou a olhar para Steve enquanto este entrava no carro.

- O carro tem feito bom serviço, não tem? É um veterano.

- Pois é - respondeu Steve. - Mas está na altura de o trocar.

No outro dia tive um problema com os travões, mas Jack Fanhing esteve a vê-los e disse que não era nada importante. É só uma impressão. Até à vista.

Engrenou a primeira. As crianças estavam a sair da escola, correndo alegremente pela rua da aldeia. Steve meteu outra mudança para fazer a curva fechada e descer a encosta íngreme que passavam em frente da escola. Saiu um carro do pátio da escola e ele carregou no travão.

Mas o carro não reagiu.

Puxou o travão de mão e tentou parar o carro com ele, mas a encosta era íngreme demais para que isso servisse de alguma coisa.

Viu as caras das crianças por detrás das janelas do pequeno automóvel que estava à sua frente. Viu a expressão aterrorizada da condutora, que tentou acelerar, mas percebeu que ela não ia conseguir sair do caminho a tempo.

Voltou bruscamente o volante.

A carrinha derrapou descontroladamente, sem travões, e bateu numa parede com um estrondo que ecoou por toda a rua. A jovem mãe tapou a cara com as mãos, a tremer, sem coragem para sair do carro e ir ver o que tinha acontecido.

O último som que Steve ouviu foi um grito de criança.

Depois disso, ficou tudo escuro.


CAPÍTULO 2

A VIDA estava sempre a mudar.

Anna Leigh estava à porta da sua casa de quinta, nos arredores de Manchester, olhando para o campo. Engordara com a idade, e o cabelo, outrora de um negro-azulado, estava a ficar grisalho.

O Inverno já tinha acabado. As aveleiras estavam em flor, e o sol brilhava nos pedúnculos compridos que baloiçavam ao vento. A pata mais valiosa, chamada Monstro, estava no choco; era um dos patos-marrecos de Dan.

Anna relembrou o passado. Já lá iam quinze anos desde que a quinta original dos Leighs tinha sido destruída pelas escavadoras que abriram caminho para a estrada. Compton Hall era só uma recordação, apesar de muitas gerações da família do marido terem aí passado as suas vidas. Olhou para a casa confortável, aninhada à sombra das árvores, construída a partir de duas velhas casinhas degradadas. Chamava-se Setter's Dene.

De princípio, tinha detestado morar ali, detestara a vida sem animais. Mas depois haviam conseguido comprar mais terra e as primeiras cabeças de gado. Sentia a falta dos filhos, que já tinham saído de casa. Philip casara e montara um consultório de veterinário num bairro dos arredores de Londres. Lisetta era investigadora num hospital londrino. Setter's Dene. Um nome que era famoso pelos seus cães. Não só por causa dos belos pastores alemães que Anna criava, mas também pelos cachorros que ajudava a educar para o Centro dos Cães-Guias, que ficava a cerca de oito quilómetros, na cidade vizinha. Dave Masterson era o chefe dos treinadores do Centro. Como ninguém tinha tempo lá para tratar das ninhadas, quando Anna se ofereceu para ajudar, Dave entregou-lhe a primeira cadela prenhe.

Anna dedicava todo o seu tempo à manutenção de Setter's Dene.

Há seis meses, o marido, Dan, voltara para casa depois de ter estado a trabalhar com uma égua nova, dizendo que estava estafado e que ia deitar-se. Anna foi fazer-lhe um chá, sem grandes preocupações.

Dan queixava-se muitas vezes de cansaço; tinha quase sessenta anos e o trabalho do campo era muito duro.

Quando entrou no quarto, Dan estava mono.

De um momento para o outro tudo acabara. Sem mais nem menos. Conseguiu sobreviver nas semanas que se seguiram, vivendo o dia-a-dia como podia. Philip veio passar a primeira semana com ela e disse-lhe que ia ser avó dentro de pouco tempo. Dan teria gostado muito de ter um neto.

Nunca se sabe como é o dia de amanhã, como Dan costumava sempre dizer. Mas Anna não pensava assim, gostava de fazer projectos, e os projectos dela eram sempre para os dois. Mas desde

então tivera de aprender a sobreviver sozinha.

Sam, o seu golden retriever, veio até junto dela e esfregou-se nas suas pernas. Detestava que o esquecessem. Trouxe-lhe as luvas, pedindo-lhe pura o levar a dar um passeio a qualquer lado, para variar.

Uma voz chamou-a do outro lado da vedação.

Susan, a rapariga cega que morava mais adiante, estava de férias do seu emprego no Centro dos Cães-Guias. Abriu o portão, precedida pela sua cadela, Zanta, que puxava pelo arreio, ansiosa por cumprimentar Anna, que a criara no seu canil. Uma das primeiras ninhadas de Dave Masterson. Sue largou Zanta, que correu para Sam, na brincadeira.

- Vim tomar chá consigo - disse Susan. - Há bolo de cerejas?

- Não há bolo de cerejas.

Anna falou em voz terna. Conhecia Susan há quinze anos e custava-lhe a crer que ela já tivesse feito vinte e sete. Apesar dos seus olhos muito azuis serem cegos de nascença, Sue era uma das raparigas mais bonitas que Anna já tinha visto. O facto de ser cega nunca afectara Sue. Tirava prazer de muitas pequenas coisas. Adorava visitar Anna, brincar com os cachorros e os gatinhos, passear pelo campo, acariciar as crias, cheirar uma flor, tocar nas pétalas frágeis.

- Vem ver a nova ninhada do Dave - disse Anna.

Levou-a até ao estábulo onde, na última baia, Mellie, uma bonita cadela labrador do Centro de Cães-Guias, estava a criar uma ninhada procriada por Sam, o cão de Anna. Dave tinha a certeza de que as crias produzidas por esse cruzamento seriam inteligentes e fortes.

Os cachorros tinham três semanas - uma idade em que já eram suficientemente sociáveis para poderem aprender a confiar nos seres humanos desde o início da sua vida. Dentro de pouco tempo, seriam confiados a "passeadores de cachorros" - famílias que os ensinariam de modo a não os estragarem para os seus futuros donos.

Todos menos um cachorro, dissera Dave a Anna, que ficaria em casa dela para ser "passeado". Destinava-se a um homem que ficara cego há pouco tempo, um lavrador escocês.

- Uma destas crias é linda - disse Anna, inclinando-se para acariciar a cabecinha macia do animal. - É a que vai ficar em minha casa. Chamei-lhe Gemma. É muito mais precoce do que o resto da ninhada e já consegue andar. O pior é que me vai custar muito separar-me dela quando chegar a altura de se ir embora para ser ensinada.

Pegou na cadelinha e pô-la nos braços de Susan. A cara desta tornava-se muito mais expressiva quando mexia em animais pequenos.

- Querida Anna - disse Susan em voz ansiosa. - Nunca se vá embora daqui, está bem? Nem quero pensar que podia vir outra pessoa morar nesta casa e seria incapaz de perder o contacto com os cachorros. As pessoas que não gostam de animais nem sabem o que perdem.

- Duvido que possamos mudá-las - disse Anna. - Foi-me sempre muito difícil explicar às pessoas porque é que sentia tanto a falta de Compton Hall quando viemos para aqui. "Vai habituar-se a viver sem animais", diziam-me, "e vai poder descansar." Riu-se.

- Quem é que quer descansar? Eu quero morrer de pé.

- Não pode morrer já. Não consigo habituar-me à morte do Dan.

A Mellie ganiu, chamando pelo filhote. Susan agachou-se e procurou pelo tacto os outros cachorros, deitando cuidadosamente o animalzinho ao lado dos irmãos. Mellie, satisfeita, começou a amamentá-los.

- Também não consigo habituar-me a viver sem o Dan - disse Anna. - Só demasiado tarde é que percebemos tudo o que o outro parceiro fazia.

Não acrescentou que os serões que passava sozinha eram muito tristes. Susan já tinha muito com que se preocupar, com o seu trabalho e uma mãe possessiva, que se refugiara na doença crónica, usando um sopro no coração como uma arma para manter Susan em casa.

Zanta, novamente presa pelo arreio e sabendo que Anna ia dar-lhe um bocado de queijo, estava a puxar na direcção da casa.

- Já sabe o que a espera - disse Susan. - Não devia deixá-la puxar por mim, mas é a única altura em que faz isto.

Uma vez em casa, Anna foi buscar o queijo para Zanta e começou a fazer café. Susan sentou-se pacientemente no banco da janela, ali perto, gozando o calor do sol que lhe batia na cara.

- Consegue manter Setter,s Dene a funcionar sem o Dan? -- perguntou.

Nunca ninguém falava de Dan, a não ser Sue. A maioria dos amigos de Anna pareciam ter apagado Dan da memória, e quando ela falava nele, mudavam ansiosamente de assunto, não compreendendo a necessidade que ela tinha de falar do passado. Susan parecia compreender, mas os cegos de nascença muitas vezes tinham uma intuição especial.

- Ainda não resolvi todos os problemas - disse Anna. - Tenho de arranjar uma maneira de aumentar as minhas receitas. Recebi alguns animais doentes cujos donos não podiam tratar deles, mas nestes últimos meses tenho andado um bocado aérea. Parece que não me dou bem conta do que se passou. Estou sempre à espera de que o Dan entre pela porta, como se ele estivesse fora, numa longa viagem.

Susan pegou na chávena de café, tacteando a mesa a seu lado e verificando que a chávena estava suficientemente afastada da borda para não cair.

- Podemos trazer os cachorros .para aqui? - perguntou.

Os cachorros distrairiam Anna, fazendo-a rir. A tristeza era uma companheira demasiado constante.

Anna saiu com o grande cesto dos cães e voltou com os cachorros a ganirem lá dentro. Mellie seguia-a ansiosamente e examinou com atenção todas as cabeças quando Anna pôs o cesto no chão.

Susan ajoelhou no chão para acariciar os cachorros. O seu desejo de lhes tocar não era totalmente egoísta. A ideia era de que a maior parte deles fossem cães-guias e, como tal, precisavam de muito mais contacto humano desde o princípio das suas vidas para serem animais felizes e sociáveis que pudessem ir para toda a parte e estivessem habituados a todos os seres humanos. Anna brincava todos os dias com os seus cachorros durante várias horas, pelo que era uma criadora ideal, do ponto de vista de Dan.

- Há borreguinhos no campo que fica ao lado da nossa casa. -- disse Susan. - Adoro ouvi-los.

- Este ano têm o focinho e os joelhos pretos; o teu vizinho comprou outro carneiro - disse Anna. - Um deles ficou ó áo.

Está ali fora no barracão, daqui a pouco tenho de ir dar-lhe um biberão.

- Eu dou - disse Susan. - Zanta precisa de arejar.

Tirou o arreio ao cão e Anna abriu a porta para o animal sair.

Entretanto, Susan pegara no cachorro mais bonito da ninhada e apertava-o nos braços.

- Esta deve ser Gemma. Scott também me falou nela. Diz que é uma das crias mais inteligentes que ele já viu.

Scott Lewis era o veterinário da terra.

- Tem razão - retorquiu Anna. - É um animalzinho engraçado, com uma cara de velha solteirona, muito séria, e duas rugas na testa. Olha para mim como se estivesse a querer adivinhar o que eu estou a pensar. E é sempre a primeira a mamar.

Anna recostou-se na grande cadeira de braços. Susan era uma companhia agradável, que não tinha exigências, só queria uma oportunidade para brincar com os cachorros. Anna espreitou pela janela.

O sol brilhava na outra ponta do campo.

Gemma saíra do colo de Sue e estava sentada aos pés de Anna, de cabeça levantada, a olhar para ela com uma expressão inquiridora.

Mellie aproximou-se, abocanhou Gemma e foi lá para fora, regressando para ir buscar os outros cachorros, um por um.

- Mellie acha que eles já estiveram aqui tempo suficiente. -- disse Anna. - Está a levá-los outra vez para o canil. Está sempre a tirar-mos. Daqui a pouco, os cachorros precisam de estar muito comigo e dava-me jeito ter uma ajuda. Quantos dias de férias é que ainda tens, Sue?

- O resto da semana - respondeu Susan. - Onde está o biberão do Barulhento? Ele chama-se Barulhento, não é`.' O Scott conta-me tudo.

O veterinário, que morava ao fundo do caminho, numa casa onde

tinha também o consultório, costumava entrar muitas vezes em casa de Susan e da mãe para ver se Zanta estava bem. A mãe de Susan andava sempre tão preocupada com os seus próprios males que nem queria saber da cadela.

Susan pegou no biberão que Anna lhe estendia e saiu. Não precisava que Zanta lhe ensinasse o caminho. Abriu a porta do barracão, sendo recebida com uma marrada e um balido ruidoso. Depois, só se ouvia o som do borrego a chupar o biberão e o corpinho rijo do animal encostava-se a ela, ansioso por contacto, sentindo a falta da mãe.

Anna olhou pela janela. Tinham-se acumulado entretanto nuvens que anunciavam chuva. Estava na hora de levar os cães para dentro de casa. Guardar a égua na cavalariça. Meter as galinhas e os patos no galinheiro. Estava quase na hora de fechar a porta de casa e de se encerrar lá dentro na solidão, só com Sam a seu lado e o gato cinzento ao colo, para ajudá-la a aguentar as horas de escuridão.

Susan trouxe o biberão para dentro e foi até ao lava-loiça para o lavar.

- O Dave quer que eu vá morar para o Centro - disse. - Mas a minha mãe não quer ouvir falar nisso. Não é independente como a Anna.

"Eu tive de aprender a ser independente", pensou Anna. Olhou para os cães, lá fora, para as flores que começavam a nascer no jardim - coisas que Susan nunca veria - e tentou animar-se. Zanta veio buscar o arreio, percebendo que Susan estava para se ir embora. A cadela esperou pacientemente, com os olhos fixos na cara de Susan. A dona era para Zanta a única pessoa que existia no Mundo.

- Amanhã volto - disse Susan, encostando a cara à de Anna.

- Querida Anna. Não esteja triste.

Foi-se embora e Anna desejou ser capaz de esconder melhor os seus sentimentos. Era capaz de escondê-los do resto do mundo, mas não de Sue. A rapariga adivinhava o seu estado de espírito com a segurança de um animal, como Sam o adivinhava também. O cão levava o serão a trazer-lhe presentes - os seus brinquedos e ossos, a carteira e o estojo dos óculos, uma almofada, a escova do cabelo -, até que ela não resistia e começava a rir, e um Sam encantado começava a fazer palhaçadas no meio da sala, correndo atrás da própria cauda como se fosse um cachorrinho.

O cão acabava de entrar, com a cabeça de lado, e ladrou. Estava na hora de lhe dar de comer.

Anna executou todas as suas tarefas e a sua última visita do dia foi ao canil da ninhada para dar de comer a Mellie. Encontrou-a a dar de mamar aos cachorros, com uma expressão extasiada. Anna contou as cabeças. Devia haver oito, mas só viu sete. Gemma, a pérola da ninhada, desaparecera.

Anna pousou a tigela. Mellie levantou-se, sacudindo os cachorros. A fome tornava-a impaciente e estava esfaimada. Anna espreitou para trás do caixote. Viu Gemma, deitada no canto, a respirar com dificuldade e a tossir, com a boquinha aberta para aspirar o ar.

O melhor cachorro da ninhada. Porque é que tinha de ser sempre o melhor? Anna pegou na cadela, aconchegando-a de encontro à camisola, e correu para dentro de casa para telefonar a Scott, pedindo-lhe que viesse depressa, pois tinha a certeza de que o animal estava a morrer.

Mais uma vez, tivera confiança demais no futuro. Não tinha emenda. Scott Lewis estava a começar a jantar quando Anna telefonou.

- Problemas - disse, enfiando o casaco, e Roz, a mulher dele, habituada a estas emergências, levou-lhe o prato para dentro para o manter quente.

Scott sabia que quando Anna dizia que era urgente é porque era mesmo urgente. Ele e Dan Leigh tinham sido amigos e continuava a ter saudades de Dan. Custava-lhe sempre ver a cadeira vazia ao pé da lareira e também que Dan não viesse recebê-lo ao portão com o seu sorriso amável.

Agora só havia Anna, e depois da morte de Dan estava tudo a correr para o torto. Scott correu até ao portão de Anna, subindo depois o caminho até à porta de casa. Anna tinha a porta aberta e segurava a cria nos braços, enrolada num cobertor.

Ele pegou no animal. Esta cadelinha, se sobrevivesse, sairia ao pai, e não à mãe. O pêlo macio era quase branco. A pelagem das orelhas era castanho-dourada, o que indicava a cor da pelagem do animal adulto. Porém, esta cria provavelmente não chegaria à idade adulta. Respirava cada vez com mais dificuldade, com grande esforço.

Scott olhou para a cadela.

- Não vejo nada - disse instantes depois. - Podia ser uma torção do intestino, mas tem a barriga mole. A garganta ... Espere aí. Sou parvo de todo.

Levou o animal para cima da mesa da cozinha, por debaixo da luz, e abriu-lhe a boca. Depois tirou um pequeno fórceps da algibeira. O animal estava cada vez mais fraco; não se debateu. Olhava para ele com uma expressão de grande sofrimento, ofegando.

Scott meteu o fórceps na garganta da cadela e apertou-o suavemente. Puxou-o novamente para fora.

- Era um elástico. Deve tê-lo encontrado no chão, começou a roê-lo e engasgou-se. Já está melhor.

A cadelinha já não ofegava. Espetou as orelhas. Anna pegou-lhe e colocou-a no tapete. Ouviu-se um ganido e uma pata a arranhar na porta das traseiras. Anna abriu a porta para Mellie entrar na cozinha. A cadela abocanhou a cria e lambeu-a, e Gemma começou a mamar.

- Que esquisito - disse Anna. - Mellie não tinha dado pela falta dela. A cadelinha estava fora do caixote, ao frio, e Mellie não ligava.

- Pode ter achado que ela estava a morrer e afastou-a do resto da ninhada - disse Scott.

- Como é que ela soube que a cadelinha estava melhor`.'perguntou Anna.

- Eles percebem. Têm instintos mais apurados do que os nossos. De qualquer maneira, agora a Gemma está óptima.

- É um excelente animal - disse Anna. - Teria muita pena se ela morresse. Quer um chá, Scott?

Scott ia recusar. Tinha o jantar à espera em casa. Mas depois lembrou-se de que o serão era comprido e Anna estava sozinha.

Acenou afirmativamente e instalou-se confortavelmente na cadeira de Dan, olhando para a cadelinha, aninhada ao lado da mãe, a dar ao rabo.

- Anna, queria pedir-lhe um favor - disse Scott, pegando na chávena de chá. Estava ansioso que Anna dissesse que sim, pois sabia que ela tinha muito pouco dinheiro. Não queria que ela percebesse que os seus motivos eram totalmente altruístas. Precisava realmente de ajuda, mas a mulher, Roz, teria podido encarregar-se desse trabalho tão bem como Anna.

- Se eu puder...

Anna pegou na cadelinha e encostou-a a si. O corpinho do animal, que já respirava normalmente, espreguiçando-se, tranquilizava-a, dava-lhe esperança. Talvez o sofrimento acabasse um dia e ela ainda tivesse futuro.

- Tenho uma cliente que está no hospital. É criadora de cavalos de corrida. Tem uma égua cheia que precisa de cuidados especiais.

Pode tomar conta dela?

- E se as coisas correrem mal? - perguntou Anna, olhando para Gemma.

- Se tiver de correr mal, tanto faz que a égua esteja em sua casa como na minha ou na de um estranho. Não podemos adivinhar o futuro, Anna. Temos de fazer o nosso melhor e mais nada. Fica com a égua?

- Fico - respondeu Anna.

Gostava de poldros.

- Só que ando com pouca sorte. Primeiro foi o Dan, depois uma raposa comeu as minhas galinhas e um idiota qualquer deu um tiro no meu pato de criação e matou-o por engano.

- Salvámos a Gemma - disse Scott com firmeza. - É o princípio de uma nova fase.

Ouviu-se um carro a parar ao portão.

- Tem outra visita - disse ele, levantando-se. - Tenho de ir.

Trago-lhe a égua na quarta-feira.

Lá fora, Scott sorriu ao homem moreno e entroncado que se dirigia para a porta de casa.

- Olá, Dave. Veio ver os cachorros?

- Vim, mas preciso também de pedir um favor à Anna - respondeu Dave Masterson.

Tinha uma cara de querubim que o fazia parecer mais novo do que os seus quarenta e dois anos.

- Hoje estou a ser muito solicitada - disse Anna, acenando a Scott e acompanhando Dave até dentro de casa.

O chefe dos treinadores do Centro dos Cães-Guias era já um velho amigo. Interessava-se tanto como ela pela criação de bons cães.

- Tive uma ideia - disse Dave, depois de se ter instalado comodamente ao pé da lareira, examinando os cachorros, que Anna trouxera para lhe mostrar.

Os animais, de barriga cheia e ensonados, estavam muito encostados uns aos outros, formando uma massa de pequenos corpos, de cabeças juntas. Mellie estava deitada a seu lado, vigilante. Sam deitou a cabeça nos joelhos de Dave. Anna colocou em cima da mesa um tabuleiro com café e bolos e olhou para Dave.

- Como sabe, tivemos de reduzir o número de pessoas que trabalham no Centro por causa do incêndio no ano passado - explicou ele.

Anna acenou afirmativamente, deitando o café nas chávenas. O incêndio destruíra uma ala do velho edifício.

- Importava-se de alojar um cego aqui em casa, Anna? Pagávamos-lhe o mesmo que teríamos de gastar com ele se ficasse no Centro. Cegou há pouco tempo e precisa de aprender a viver de uma maneira completamente diferente, tem de recuperar a confiança em si mesmo. Além disso, também precisa de conviver com animais; você é a pessoa ideal para recebê-lo. Sei que passou muito pouco tempo depois da morte do Dan, mas a Anna podia proporcionar a este homem uma oportunidade que ele de outra maneira só teria daqui a muito tempo. Se corresse tudo bem, poderíamos arranjar-lhe outro hóspede quando este se fosse embora. Susan vem muito a sua casa; você não tem dificuldade em lidar com cegos, como acontece com algumas pessoas. E não está constantemente a mostrar que tem pena deles, o que os irrita.

- Isso é por eu estar tão habituada à Sue - disse Anna. - Ela não parece sentir-se incomodada pelo facto de ser cega.

- A Sue é muito especial - respondeu Dave com ardor. - Quem me dera que ela deixasse aquela megera da mãe e vivesse a vida dela.

- Se ela fizesse isso, não era a Sue - retorquiu Anna. - Não

sei se seria capaz de receber aqui uma pessoa, Dave. Tenho de pensar no assunto. Para já, uma pessoa cega há pouco tempo poderia andar por aí a tropeçar nos meus animais.

- Então teria de aprender a evitar isso - disse Dave. - O nosso objectivo é ensinar as pessoas a viverem uma vida normal, e não fechá-las numa redoma.

- Acho que preciso de algum tempo para pensar - disse Anna.

- Não há pressas. O homem de quem estou a falar é o tal escocês a quem tenciono entregar Gemma, depois de a ensinar. Ainda tem de curar os ossos partidos antes de podermos ajudá-lo. A Sue pode ensinar-lhe braille aqui em casa, no princípio. Nem sei como é que nos arranjávamos sem a Sue. Anda por aí com tanta facilidade que mete vergonha às outras pessoas, incitando-as a tentar fazer o mesmo. Não há nada como o exemplo para despertar o entusiasmo.

Depois de Dave se ter ido embora, Anna recostou-se na cadeira, mantendo Mellie e a ninhada ao pé de si para ajudar a passar o tempo. Se recebesse um hóspede, já teria companhia ao serão. Mas como é que seria essa companhia? A de um homem azedo, revoltado com as cartas que recebera do destino?

Ao fim de algum tempo, levou Mellie e os cachorros de volta para o canil de criação, sentindo-se mais intensamente só do que nunca. Podia gritar, mas só as vacas a ouviriam no barracão ao lado.

Pensou em Dan, que morrera entre uma pulsação e a outra, e o medo acompanhou-a de regresso a casa. E se ela também morresse assim, abandonando os animais que dependiam dela?

Uma ave nocturna piou ao longe. Reinava o silêncio no canil e no estábulo e os campos que se estendiam mais além estavam também silenciosos. Brilhavam luzes na cidade distante.

Sam seguiu-a até dentro de casa. O vazio que aí reinava abalou-a. Se ao menos estivesse alguém sentado na cadeira de Dan. Qualquer pessoa.

Anna preparou o seu jantar e comeu, olhando para a televisão que Dan e ela raramente acendiam. Faziam tantos projectos, tinham tantas coisas para dizer um ao outro. Agora não tinha ninguém com quem pudesse falar.

O programa acabou e Anna subiu as escadas atrás de Sam. O cão foi-se deitar no seu canto, de onde podia vigiar Anna e a porta. Os seus olhos castanhos foram a última coisa que Anna viu antes de apagar a luz.

Ficou deitada a ouvir o tiquetaque do relógio, o ruído do motor da arca congeladora, a ausência de som lá fora. la aceitar o hóspede de Dave. Qualquer coisa era melhor do que isto.

Adormeceu rapidamente, sem se dar conta sequer de que tinha virado uma página, que começara a pensar no futuro.


CAPÍTULO 3

Steve estava num mundo escuro de dor lancinante. Além das outras lesões, sofrera um traumatismo grave. Não sabia que o pai estivera sentado ao lado da cama dele durante quase duas semanas. Não sabia que um telefonema feito a Mara a tinha trazido de volta, lá do outro lado do Mundo. Não sabia que a mãe, quando lhe haviam contado do desastre, sofrera um enfarte e estava no mesmo hospital.

Andrew passava o tempo de um quarto para o outro. Nettie estava a recuperar, mas quando voltasse para casa precisaria de descanso.

Andrew Drake estava desesperado. Sem Nettie e sem Steve, a vida seria impossível.

Steve também não sabia que era um herói. A fotografia dele, com Lig a seu lado, fora publicada em todos os jornais, acompanhando a notícia que relatava a avaria nos travões e a maneira como ele tinha ido propositadamente de encontro à parede para não matar as crianças. A sua velha carrinha não tinha cintos de segurança. Fora projectado através do pára-brisas de encontro à parede de tijolo. Era uma sorte ainda estar vivo.

Havia flores junto à cama. Flores mandadas pelas crianças e pelos pais, por pessoas que tinham visto Steve apresentando Lig nos concursos nacionais e internacionais, pelos produtores de L?m Homem e o Seu Cão. que lamentavam o facto de Steve já não poder concorrer.

Steve flutuava num mundo assustador em que os ruídos lhe martelavam o cérebro, sentia facas trespassando-lhe a cabeça e as dores eram uma companhia constante. Tinha dores nos braços, nas costelas e nas pernas. Doía-lhe a cabeça - uma dor profunda e aguda que só se atenuava quando lhe davam sedativos. Nem sequer sabia quem era. Ouvia a voz de Andrew, mas era uma voz irreal.

Mara veio sentar-se a seu lado, mas ele não a reconheceu.

Steve só acordou para a realidade no terceiro dia da terceira semana que passou no hospital. Tinha uma perna engessada, suspensa por uma roldana; um dos braços também tinha gesso. As costelas estavam ligadas. Apalpou com a mão as ligaduras enroladas à volta da cabeça e dos olhos. O pai chamou-o em voz baixa: - Steve?

Recuperou a memória. Lembrou-se do pequeno automóvel, da parede avançando para ele.

- As crianças! Estão bem?

A resposta era muito importante, tinha de ter a certeza de que não tivera o desastre para nada, a certeza de que não morrera nenhuma criança por causa dele.

- Estão óptimas - disse Andrew. - Mandaram flores. Rosas encarnadas.

Pôs uma flor na mão de Steve. O pé tinha espinhos. Evolava-se das pétalas um perfume ténue. Steve levou-as aos lábios.

- É dia ou noite? - perguntou.

- Dia - respondeu Andrew.

Estava cheio de medo da pergunta seguinte.

- Quando é que me tiram as ligaduras dos olhos?

- Falta pouco - disse uma voz alegre de mulher, ali ao lado.

Uma enfermeira. Ajeitou-lhe a almofada.

- Basta de conversas por agora. Tome, isto vai tirar-lhe as dores. Dói-lhe muito a cabeça?

- Dói - respondeu Steve, cansado. A dor na vista era o pior de tudo, uma sensação de ter areia nos olhos, lá muito no fundo, com uma dor aguda por trás. Começou a sentir um vago receio, mas não se atreveu a exprimi-lo.

O sono apoderou-se dele.

- Já está fora de perigo - disse o médico em voz baixa, uns minutos depois. - Vá para casa descansar, Mr. Drake. O senhor está estafado.

- Quando é que vai dizer-lhe?

- Só quando considerar que está na altura - respondeu o médico.

Andrew Drake olhou para a figura envolta em ligaduras que estava deitada na cama. Não se via nada da cara de Steve, a não ser o queixo. Um azar súbito, um pequeno elo do motor que falhava no momento crítico e a vida ficava de pernas para o ar. Steve, que três semanas antes tinha tudo, era agora um dos desgraçados deste mundo.

Quando Andrew chegou a casa, Mara tinha uma refeição pronta.

Estava instalada em High Hollows, ajudando nos trabalhos do campo.

- O Steve já sabe? - perguntou em voz desolada.

- Ainda não. Não sei como é que ele vai reagir. Não é nada paciente e nunca esteve doente.

Depois do jantar, Andrew subiu para descansar. Mara ficou a cozinhar, a fazer as limpezas e a ordenha da tarde. Obrigou o seu espírito a concentrar-se no trabalho em curso para não pensar em Steve, lá no hospital, sem poder ver. Lig andava atrás dela tristemente.

Quando Steve acordou novamente, a dor atenuara-se.

Continuava presente, mas já era suportável, desde que não tentasse mexer-se. Estava deitado, com a cabeça amparada em almofadas, sentindo o calor na cara e ouvindo sons: as portas do elevador a bater ao longe, as rodas de um carrinho no corredor, passando em frente da porta do quarto. Estava desorientado. encurralado dentro do seu próprio cérebro.

Ouviu um melro a cantar lá fora. Isso queria dizer que era dia. O calor que sentia nas faces devia ser do sol a bater-lhe na cara. Começou a escutar os passos e a diferenciá-los: passos leves e rápidos; passos masculinos pesados: e depois umas passadas de elefante, que pararam à sua porta e se aproximaram da cama.

Uma voz profunda perguntou: - Está acordado?

- Estou - disse Steve.

- Óptimo. Já é tempo de voltar para junto de nós.

Uma mão firme agarrou-lhe no pulso. Steve ouvia o tiquetaque rápido de um relógio. Estavam a contar-lhe as pulsações. A escuridão era irritante.

- Quando é que me tiram as ligaduras? - perguntou. - É horrível não ver nada.

Fez-se um longo silêncio. Se não fosse a mão que lhe agarrava o pulso, pensaria que o médico se fora embora. Tinha vontade de se agarrar a essa mão para ter a certeza de que havia outras pessoas no Mundo além dele. Doíam-lhe os olhos, ardiam-lhe como se estivessem cheios de areia. Tinha vontade de os esfregar. Levantou a mão para puxar pelas ligaduras, mas alguém a agarrou e reteve imediatamente.

- Não.

Era uma voz paciente, sonora, talvez de um homem mais velho.

Uma voz bondosa. Uma boa voz.

- Lamento, mas não vai ver, mesmo quando lhe tirarem as ligaduras. Tinha os olhos cheios de vidros. Operámo-lo, mas não pudemos fazer mais nada. Vai precisar de tratamento durante um tempo, talvez um ano ou dois, por causa da inflamação. Estamos a fazer tudo o que é humanamente possível.

Steve não tinha palavras para responder. Não percebia o que lhe tinham dito. Não queria perceber. Era pior do que uma sentença de morte. Nunca mais ver as ovelhas ou Lig a correr pelo monte acima.

Nunca mais entrar nos concursos onde tanto gostava de ir, com o melhor cão que tivera em toda a sua vida. Não casar com Mara! Não podia condená-la a viver com um cego.

O médico estava à espera com um ar ansioso. Mark Lathom era muito mais novo do que Steve imaginava, mas já fora afectado pela sensação de derrota provocada pela incapacidade de curar as pessoas que vão morrer ou de dar vista aos cegos. Deveria ter esperado mais tempo para dizer a verdade a Steve? Teria avaliado mal a capacidade de resistência ao choque deste homem". Mas não queria que Steve arrancasse as ligaduras e descobrisse assim a verdade.

Apertou com mais força a mão de Steve, encorajando-o a vencer o terror, a aceitar a sua sorte.

- Steve, todos nós lamentamos muito.

A voz dele exprimia esse sentimento.

Steve não se mexeu. Não era capaz de se voltar, não era capaz de fechar os olhos ao desespero. Estava cego. Nunca mais ia ver. Queria gritar de revolta contra o acidente que lhe roubara tudo aquilo que tinha na vida, insurgir-se contra o homem que lhe tinha dado a notícia, mas engoliu a sua raiva.

O médico sabia que só ao fim de muito tempo Steve absorveria todo o significado do que ele lhe tinha dito. E ninguém podia fazer nada para ajudá-lo a aguentar o choque.

Steve queria dormir. O sono afugentava os pensamentos.

- Estou cansado - disse.

O Dr. Lathom chamou a enfermeira. A picada súbita de uma agulha sobressaltou Steve, mas trouxe um alívio temporário. O ruído dos passos que se afastavam soou-lhe aos ouvidos como um dobre de finados.

Steve acordou, sentindo que estava alguém sentado ao lado da sua cama.

- Pai?

- O seu pai já cá veio e já se foi embora. E a sua noiva também.

- Mara esteve aqui?

Não queria que ela viesse ali por pena, uma pena que se substituiria ao amor. Sabia que ela casaria com ele, que lhe daria apoio, mas não ia consentir nisso.

- Não quero que ela venha cá, está a ouvir?

- Está bem, meu filho. Eu trato disso.

A enfermeira Hancock exercia a sua profissão há trinta anos. Já tinha visto de tudo, muito sofrimento e muita desgraça, e compreendia as razões de Steve. Era preciso mantê-lo calmo a todo o custo. Ia ter de dizer à rapariga que a presença dela não ajudava nada.

"Meu Deus, não é justo", disse ela de si para consigo, mas quando falou com Steve, fê-lo numa voz alegre.

- Eu sou a enfermeira Hancock. Estou aqui sentada a fazer tricô, porque estou de folga e a sua poltrona é mais cómoda do que a do meu gabinete. Por isso, achei que vinha até aqui dar dois dedos de conversa. Quer uma chávena de chá?

"Oferecem chá aos moribundos", pensou Steve histericamente.

De repente, teve uma enorme vontade de rir, de soltar um mar de gargalhadas e de inundar tudo; mas depois teve vontade de uivar como um cão. Era melhor tomar uma chávena de chá. Estava a descontrolar-se completamente.

- Trago-lho numa chávena das que não entornam. Assim, é mais fácil.

Ouviu os passos dela a atravessar o quarto e a sair pela porta. Uns ruídos misteriosos foram interpretados como o som de uma máquina automática de fazer chá.

- Agora sente-se na cama e tome isto - disse a enfermeira Hancock quando voltou.

- Não sou capaz de me sentar sozinho - retorquiu Steve com azedume.

- É, pois. Puxe-se para cima na cama. Não está paralisado.

- Antes estivesse - disse Steve com uma fúria repentina, satisfeito por poder descarregar o seu mau-humor em alguém.

- Está na altura de deixar de ter pena de si mesmo - declarou com firmeza a enfermeira Hancock. - Claro que é capaz de se sentar, se fizer o possível. Julguei que não era desses que desistem à primeira. A vida não acabou. Vai continuar numa direcção diferente.

- Que vida? - perguntou Steve.

- Tome o seu chá e pense nas coisas boas - disse a enfermeira Hancock com rispidez.

Não devia manifestar a sua compaixão, pois de outra maneira ele ia ter ainda mais pena de si mesmo.

- Pode servir-se da mão esquerda. Vá, pegue na asa da chávena.

Eu ajudo-o a levá-la à boca. Vai ter de aprender a fazer isso sozinho.

Steve descobriu que era capaz de mudar de posição na cama.

Sentia-se menos impotente assim, recostado nas almofadas. O chá estava quente, tinha muito açúcar e soube-lhe bem.

Não lhe apetecia falar. Estava satisfeito por ter companhia, por ouvir o tinido das agulhas, que lhe assegurava que ela não se tinha ido embora. Tinha muito tempo para pensar e chegara a altura de o fazer.

Era lavrador, sempre fora lavrador. Sabia que a vida era imprevisível. A morte vinha à socapa, de tantas maneiras diferentes: cólicas nos cavalos, acidentes súbitos. Pensou em nascimentos: os borregos no campo, os cachorros no canil.

- Nunca mais vou poder trabalhar no campo - disse.

- Cinco crianças vivas e sem uma beliscadura. Preferia ter conservado a vista à custa delas? A Polícia disse que de outra maneira teriam morrido todas: o seu carro era grande e pesado e elas iam dentro de uma lata de sardinhas. Agora pode parecer-lhe que mais valia ter morrido, mas o tempo sara todas as feridas.

- Que é que sabe disso? - perguntou Steve amargamente.

- Perdi o meu marido na guerra. Não chegou a conhecer o filho.

Parece uma história de telenovela, mas é verdade. Tive o meu filho durante vinte e três anos. Morreu porque rebentou uma bomba num bar quando ele estava de férias. Uma coisa estúpida, malvada, incompreensível. Pelo menos o senhor fez com que algumas mulheres não perdessem os filhos. Aquela mãe tinha ido buscar crianças de cinco famílias, contando com a dela.

Steve não podia dizer nada. Teve um assomo de vergonha, que depois passou. O tinido das agulhas de tricô continuou.

- A minha mãe ainda não veio visitar-me - disse.

- Teve um pequeno enfarte quando soube do seu desastre. Está muito melhor, mas o médico acha que não é prudente deixá-la vir aqui. Manda-lhe muitas saudades e flores. Cravos. De qualquer maneira, mais tarde ou mais cedo, ia ter um enfarte. Devia andar a trabalhar demais há anos. O trabalho do campo é muito mais duro do que as pessoas julgam.

Steve pensou na mãe, que também estava a sofrer por causa dele.

Carregava com fardos de feno, ajudava na ordenha, pintava os celeiros por dentro e, além disso, fazia as limpezas, cozinhava e lavava a roupa.

Não podia condenar Mara a uma vida dessas. Ele ia ser um fardo constante, daria muito mais trabalho do que um marido normal. De repente, viu-a perfeitamente na sua mente: pequena e esbelta, de feições miúdas e olhos grandes e expressivos, que se riam para ele.

A dor súbita que o trespassou era mais do que ele podia aguentar, mas não havia alívio. Não podia fazer mais nada senão ficar ali deitado, soçobrando num desespero que era como um poço sem fundo.

Deu um gemido e uma mão pegou na dele, apertando-a com força. O aperto de mão da enfermeira Hancock dizia: "Estou aqui. Estou a fazer tudo o que posso. Não me vou embora enquanto precisar de mim."

Steve apertou a mão dela como se só ela o pudesse salvar do desespero total. Adormeceu. Sonhou que estava no monte, com Lig, que corria à vontade, e que via lá em baixo os borregos brancos a balir, chamando pelas mães. Mas de repente, sem aviso, Lig afastou-se das ovelhas a correr, para muito longe de Steve, desobedecendo às suas ordens.

Acordou, ouvindo passos que se aproximavam da cama.

- Steve?

Era a voz do pai. A grande mão apertou a sua com força e Steve retribuiu, precisando mais do pai agora do que quando era pequeno, mas sabendo que o pai era velho e precisava dele e que ele lhe ia fazer muita falta. Andrew não seria capaz de fazer tudo sozinho.

- Onde é que está o Lig? - perguntou Steve, pensando no cão, com que nunca mais poderia trabalhar.

- Está lá em casa. Com a Mara. Ela quer vir ver-te.

- Não! - disse Steve quase "um grito. - Não quero vê-la. Ela não pode casar com um cego. Não seria justo. A minha vida está acabada. Não vou estragar a dela.

- Acho que ela é que tem de resolver isso, filho - respondeu Andrew docemente, pois conhecia bem Mara, melhor que Steve, ao que parece.

- Não vou casar com ela. Nem pensar - disse Steve.

Doía-lhe o corpo todo. E doíam-lhe os olhos de tanto se esforçar por ver, mesmo através das ligaduras. Tinha a sensação de que seria capaz de ver.

- Ela está à espera para te vir visitar, Steve - disse Andrew pacientemente.

- Não quero vê-la - repetiu Steve.

Sentia a raiva a revolver-lhe a alma - raiva contra o destino imprevisível que lhe avariara os travões, raiva contra a condutora do pequeno automóvel, que se tinha metido à frente dele, raiva porque os outros viam e ele não.

A enfermeira Hancock olhou para Andrew, que suspirou e se sentou pesadamente. Custava-lhe muito aparentar uma confiança que não sentia. Steve ajudava-o tanto; só agora é que percebia que era Steve que fazia quase tudo nas duas quintas.

Mara viera tomar o lugar de Nettie em High Hollows, fazendo o mais que podia, e o pai dela mandara-lhe o velho Hennessey, um dos seus empregados, para trabalhar como pastor no Convento. Mara achava que tinha obrigações para com Andrew e Nettie, mesmo antes de casar. Ia todos os dias ao Convento para pôr o aquecimento a trabalhar e para controlar Hennessey, apesar de ele perceber muito mais de ovelhas do que ela.

- O Lig está bom? - perguntou Steve a Andrew. Também fazia falta ao seu cão.

- O Lig está óptimo.

A verdade é que Lig estava deitado junto ao portão do pátio, voltando ansiosamente a cabeça sempre que ouvia um carro na estrada.

- Quando é que posso ir para casa? - perguntou Steve.

- Ainda falta muito para isso - respondeu a enfermeira Hancock. As agulhas de tricô começaram novamente a tinir.

Os pensamentos atropelavam-se na cabeça de Steve e ele teve a sensação de que as pessoas o ouviam gritar, mas não saiu nenhum som dos seus lábios. A escuridão pesava-lhe sobre a cabeça, palpável, aterradora. Escuridão e mais escuridão para todo o sempre, até ao fim da vida, ámen. Começou a rir.

Mas a enfermeira Hancock estava a postos. O sedativo trouxe-lhe rapidamente o sono. Andrew ficou sentado ao lado da cama do filho, sofrendo por ambos. Para ele, não havia alívio.


CAPÍTULO 4

A MAIORIA das pessoas subestimava Mara quando a via pela primeira vez. Era pequena, mas a sua aparência de fragilidade era completamente ilusória. Não só era capaz de dirigir a casa e a quinta, como também estava à altura da maioria das crises, de lidar com um cavalo assustado que se recusava a entrar na sua baia ou com um touro tresmalhado, que era capaz de desviar habilmente com um forcado.

Agora, na sala de estar de High Hollows, ouvia em silêncio o relato de Andrew. Já estava à espera de que houvesse problemas com Steve, que era muito independente. Casar este ano estava fora de questão. Quando chegasse a data marcada para o casamento, ele ainda estaria no hospital.

- Vou tentar convencê-lo, só uma vez - disse Mara. - Não vou insistir. Ele precisa de tempo ... Todos nós precisamos de tempo.

- Porque é que não voltas para a América até ao fim do ano? -- perguntou Andrew. - Steve queria que aproveitasses esta oportunidade.

- Já lá estive sete meses. Agora faço falta aqui. Vou tomar conta do Convento até ao regresso de Steve. Depois, logo se vê do casamento. Nunca gostei de mais ninguém nem nunca vou gostar.

Posso esperar.

Andrew assentiu com um aceno de cabeça. Ele e Nettie costumavam achar graça à rapariguinha de tranças que andava sempre atrás do filho. Quando Steve fizera vinte anos, Mara já não precisava de andar atrás dele; estavam mesmo bem um para o outro e o futuro estava garantido. Mas ambos queriam fazer coisas primeiro. Mara queria ser professora e fora para a universidade, e Steve dedicara-se a desenvolver a exploração agrícola, a bem dos dois. Nenhum deles tinha pressa.

Mara tinha gostado muito da América, adorara a agitação frenética de Nova Iorque. Também tinha gostado dos grandes espaços que se estendiam para além da cidade; a Natureza era tão mais vasta e variada do que na sua terra; e as crianças eram vivas, espertas, achavam graça ao sotaque dela.

Tinham sido todos muito bons para ela quando chegara a notícia do acidente de Steve. Trazia as malas cheias de presentes dos alunos, que arrumara cheia de saudades: o frasquinho de perfume de Wistar, o ursinho de peluche de A1, a bonequinha preta, para se lembrar de Cara. Há poucas semanas, quando o futuro lhe sorria, todos eles faziam ainda parte da sua vida.

Olhou em volta, para a sala de estar. Conhecia-a tão bem como a sua própria casa e não tencionava renunciar a ela.

- Steve tem de fazer as coisas à maneira dele - disse. - Sempre foi assim, mas no fim eu conseguia levá-lo. Tem de ser com jeito. Nunca gostou que mandassem nele, pois não?

- Nunca - respondeu Andrew, lembrando-se de quando Steve era criança, dos ataques de mau génio que tinha porque queria fazer tudo sozinho, queria ser sempre melhor do que os outros. Era ainda muito pequeno e já teimava em carregar sozinho os leitões na carroça para os levar ao mercado ou em escovar um cavalo maior do que ele. Aos sete anos, já ensinava os cães de pastor.

Lig estava deitado ao pé da janela. Nunca despegava os olhos do portão. Nunca perdia a esperança. Durante as duas primeiras semanas, o cão quase não comia. Mara, tão teimosa como Lig, alimentava-o à mão, tentando conquistá-lo, mas o cão não queria nada com ela. Sempre que ouvia o motor de um automóvel, levantava-se cheio de esperança, agitando ligeiramente a cauda. Mas depois aparecia um estranho e Lig deitava-se outra vez, desiludido.

- Não é preciso dizer ao Steve que eu estou a olhar pelas coisas aqui no Convento - disse Mara. - Pode dizer-lhe que está arrendado, e é verdade.

- Mas tu não pagas renda, rapariga - disse Andrew. - Valha-me Deus, eu é que devia pagar-te a ti.

Mara pôs-lhe os braços à volta do pescoço e beijou-o.

- Vai ser meu sogro, quer o Steve queira, quer não - disse. -- Hoje à tarde vou visitá-lo. Vou fazer o possível para o convencer a mudar de ideias. Se casássemos no hospital, era uma esperança para o futuro dele.

- Eu levo-te - disse Andrew. - Podemos ordenhar as vacas antes de sairmos e depois guardamos os animais.

Na ordenha, os pensamentos de Mara eram sombrios. Sabia que Steve ia ser quixotesco e teimoso e que não ia querer nada com ela. Pensou com uma lucidez lancinante que ela teria feito o mesmo, que se teria recusado a que ele casasse com ela por piedade. Mas de qualquer maneira ia tentar.

Quando saíram de casa, daí a pouco, abraçou Lig. O cão não lhe ligou, deitando-se outra vez na almofada, com o focinho entre as patas. Tinha ficado apático com a ausência de Steve.

Mara não falou no caminho até ao hospital. Quando chegaram, Andrew deixou-a na ponta do corredor e seguiu para a enfermaria das doenças cardíacas pára visitar Nettie. O quarto de Steve ficava no andar de cima, depois da enfermaria das crianças, onde se viam vários corpinhos estranhamente silenciosos, vítimas de desastres de automóvel. Se não fosse Steve, estariam lá mais cinco. Se tivessem tido sorte ...

Pensou nos seus alunos da escola americana. O Pelotão Amotinado. Eram uns marotos, mas com ela portavam-se bem. Sempre tivera jeito para crianças, cavalos e cães. A única pessoa no Mundo que não conseguia domar era Steve.

Não lhe tinha trazido nada. Havia flores na mesa do quarto, que era pintado de cores vivas. Steve estava imóvel. A única coisa que se via dele era a boca. Mara tentou dominar-se e falar calmamente.

- Olá, Steve.

- Disse-te para não vires cá - respondeu Steve em voz inexpressiva ao fim de um silêncio que parecia interminável. Fechou a mão saudável com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.

- Por favor, Mara, vai-te embora.

- Podíamos casar aqui no hospital, Steve - disse ela.

Steve ouviu as palavras dela e pensou no seu estado, reduzido à incapacidade e à dependência. Mara precisava de um homem que lhe desse uma vida decente. Estava a tentar fazer o maior sacrifício da sua vida, renunciar a Mara, e ela estava a resistir-lhe. Não tinha forças para discutir.

O futuro dele estava arruinado. Perdera Mara e perdera Lig.

Ambos se agarrariam a ele, se ele deixasse; sabia-o. Mas Lig precisava de correr nos montes, de guardar as ovelhas. Não podia condenar um cão de pastor a ficar deitado à lareira, dependente das necessidades de um dono cego. E não podia condenar Mara a tratar toda a vida de um homem que precisava que ela lhe emprestasse os seus olhos, a sua coragem e a sua protecção num mundo que era incapaz de enfrentar.

- Steve. Nada tem importância, só nós. Não vês?

Foi a palavra errada.

Steve não era capaz de falar. Queria acima de tudo ficar sozinho com o seu sofrimento e a sua dor. Se ao menos tivesse exigido uma revisão completa aos travões. Se se tivessem casado na Primavera passada.

Mara inclinou-se sobre ele, cheia de vontade de o abraçar, de lhe fazer festas na cara. Tentou pegar-lhe na mão. Steve tinha vontade de gritar há dias. Tinha-se dominado, escondendo o seu terror, mas isto era demais. De repente, foi invadido por um sofrimento insuportável. Tentou empurrar Mara, mas estava preso às roldanas e o gesso era rígido como um caixão.

- Vai-te embora! - gritou Steve, empurrando a mesinha-de-cabeceira com toda a força. Mara desequilibrou-se e caiu de encontro à cadeira que estava ao lado da cama dele, ofegando com a dor repentina. A mesa deslizou e foi bater no armário com um estrondo; tudo o que estava em cima do tampo caiu ao chão.

Mara foi invadida pela cólera. As semanas de espera, a dor na perna, a irracionalidade estúpida da rejeição de Steve, foram mais fortes do que ela.

- Deixa de pensar só em ti - gritou. - Pensa também em mim.

Sabes muito bem que quero casar contigo. Não me interessa que sejas cego, surdo ou aleijado ... Não me importo ... Não me importo!

Foi sacudida pelos soluços. Nunca chorava e ainda ficou mais irritada com essas lágrimas.

Steve não disse nada. Ficou tenso, desejando que Mara se fosse embora antes de ele lhe pedir para ficar, de a ligar a ele para sempre pelos laços da piedade.

Mas a enfermeira Hancock e o Dr. Lathom tinham ouvido o barulho e já ali estavam, a enfermeira Hancock a ajustar as roldanas e as ligaduras e o Dr. Lathom a pegar no braço de Mara, levando-a com firmeza para longe do quarto, para o seu gabinete, onde a ajudou a sentar-se numa cadeira.

- Ele é um homem orgulhoso - disse o médico. - Além disso, agora está fora de si e vai ficar assim durante muito tempo. Está muito doente. As pessoas mudam quando estão doentes.

- A minha vida é ao lado dele, quer ele queira, quer não - disse ela.

O Dr. Lathom assentiu com um aceno de cabeça.

- Tem de dar-lhe tempo.

Era tudo o que podia dizer.

O TRABALHO fazia esquecer as preocupações. Andrew estava no campo a consertar uma vedação. O som do manelo era um ruído de fundo que acompanhava os outros sons da quinta. Lá longe, um borrego balia, chamando pela mãe; respondia-lhe um balido mais profundo; uma galinha cacarejava com um ruído insistente e estúpido.

Mara não tinha tido tempo para pensar em todo o dia. A porca, Magnólia, não tinha leite, apesar de comer quatro vezes mais do que qualquer outra porca parida, por isso era preciso alimentar os leitões a biberão. Mara foi até à pocilga, levando os biberões, e os animaizinhos correram para ela, ignorando a mãe, que não desempenhava qualquer função nas suas vidas. Mara e Andrew eram as únicas fontes de alimento para eles. Magnólia grunhiu, irritada, porque também queria o seu jantar, mas teria de esperar.

Andrew regressou, cansado, atrumando o manelo e juntando-se a Mara na pocilga para alimentar metade dos leitões. Era um trabalho irritante e estavam ambos tão cansados que não tinham vontade de falar. Os leitões mamavam nos biberões, todos satisfeitos, esgotando o leite todo. Mara e Andrew seguravam um biberão em cada mão. Tinham de alimentar catorze leitões.

Finalmente, acabaram. Os animais estavam todos acomodados para a noite e agora chegara a sua vez de jantar. Havia sopa, salada, queijo e pão fresco. Os gatos procuravam as migalhas por debaixo da mesa.

- Amanhã vou instalar-me no Convento - disse Mara. - Steve não volta para casa antes de um ano. Talvez entretanto ganhe mais juízo.

- E se não ganhar? - perguntou Andrew, pensando como seria bom se pudesse fazer um gesto com a mão e apagar do calendário as últimas semanas.

- Nessa altura, fico para tia - disse Mara. - Steve é o homem da minha vida e nunca vou querer outro. Fico aqui para ele me ter quando voltar. O meu pai disse c?ue eu podia ficar com o Hennessey para me ajudar, se eu quisesse. E muito fone, apesar de não ter aspecto disso.

- Ele só é seis anos mais velho do que eu, rapariga - disse Andrew impacientemente. - Mas fico muito satisfeito por tu ires para lá. A casa estraga-se com a humidade, se ficar fechada.

Mara tinha-se aproximado da janela, até ao pé de Lig, que vigiava o que se passava lá fora, e acariciava a pelagem macia do pescoço do cão.

- Levo o Lig comigo para me ajudar a tomar conta do rebanho.

Talvez se habitue a viver sem Steve, se voltar para casa.

Ouviu-se um carro no caminho. Mara abriu a porta e Lig correu para o portão e levantou-se, apoiando as patas no segundo varão, com o corpo tenso de excitação. Mas quando o pai de Mara, Tom Hastings, saiu do automóvel, o cão voltou para casa de orelha murcha e rabo caído, como se lhe tivessem batido.

- Uma carta da América para ti - disse Tom, beijando-a.

Mara leu a carta enquanto Andrew servia dois n?hiskies. Era do director da escola do Texas. Mara tinha-lhe escrito a participar que já não voltava. O director dizia:

As crianças estão a fazer um peditório para comprar um cão-guia para o seu noivo. Os criadores de cães-guias de Inglaterra disseram-nos que um cão custa setecentas e cinquenta libras. Perguntei se podíamos dar esse dinheiro e escolher um cão especialmente para Steve. As crianças estão a organizar um concerto para a semana que vem. Tiveram todas ideias para arranjar dinheiro e alguns pais ajudaram também. Temos todos muita pena. Steve parece ser um homem formidável.

Mara estendeu a carta ao pai, incapaz de falar. Pensou nas crianças nos serões passados com os outros professores, nas casas que

tinha visitado. Toda a gente ficava encantada com as histórias que ela contava do Convento, de Steve e de Lig e dos borregos nos montes.

Andrew leu também a carta.

- São formidáveis - disse.

Mara assentiu com um aceno de cabeça. Foi-se embora para cima, incapaz de encarar os dois homens, sem vontade de conversar, de reconhecer a sua derrota.

Deitada na cama com a luz acesa, Mara foi avassalada pela escuridão, pensando em Steve, imaginando a noite eterna. Ao fim de um tempo, ouviu arranhar na porta. Era Lig, que vinha em busca de consolo. Deixou-o entrar e o cão deitou-se ao lado da cama. Mara abriu as cortinas e olhou lá para fora, para o pátio iluminado pelo luar. A Lua afastou a escuridão.

Lig gemeu e Mara teve vontade de fazer o mesmo. Mas nunca fora mulher para lamentações.

Agora só havia um analgésico, que era o trabalho. Tinha de fazer planos para o futuro. Compraria um carneiro reprodutor ao pai para criar os melhores borregos e ganhar prémios. Ia lutar pelo seu próprio futuro, fazer pela vida, como Steve, e vencer. As ovelhas de Mara Hastings seriam as melhores do país. E um dia talvez Mara Drake continuasse esse trabalho; voltou-se para o outro lado, animada por essa esperança ténue, e adormeceu.


CAPÍTULO 5

OS ossos partidos de Steve curaram-se. O tratamento doloroso que tinha de fazer todos os dias aos olhos também acabou, se bem que fosse necessário continuar a ir uma vez por mês ao hospital durante muito tempo ainda. Todos os dias, quando lhe mudavam as ligaduras, tinha esperança que os médicos estivessem enganados. E sofria todos os dias uma amarga desilusão.

Sem sequer se dar conta, ia tomando consciência daquilo que o rodeava. Identificava os ruídos e relacionava-os com os acontecimentos quotidianos: o chá da manhã, o barulho das bacias e das arrastadeiras, as visitas matinais dos médicos, o carrinho dos livros a passar pela sua porta.

Andrew vinha vê-lo todos os dias, dando-lhe notícias da mãe, que já estava em casa, de High Hollows e do Convento, que fora arrendado. Steve ouvia tudo impassivelmente e não fazia comentários. Nunca perguntava por Mara nem por Lig. Não tinha coragem.

Era muito doloroso pensar neles. Precisava tanto de ambos. Sentia -se perdido na escuridão.

Mudaram-no para uma enfermaria onde havia barulho e agitação e o homem da cama do lado conversava com ele. Steve respondia-lhe desinteressadamente, pois não queria ser incomodado, preferia ficar sozinho com o seu sofrimento. Sentia-se atabafado com o calor da enfermaria, com a presença de tanta gente. O desejo de estar nas colinas com as suas ovelhas e com Lig sobrepunha-se a tudo o resto.

A noite sem dia fazia com que o tempo parecesse infinito. Raramente comia uma refeição decente. A enfermeira Hancock adoptou-o, pois era o doente que precisava de mais atenção. Também fora criada no campo e sabia que Steve nunca teria ficado em casa, nem sequer quando fazia mau tempo. A claustrofobia era agora para ele um pesadelo constante.

Steve estava a começar a andar sozinho, apoiado em duas bengalas quando puseram outro homem na cama ao lado da dele. Paul Duke estava a morrer e sabia-o. Tinha um certo sentido de humor negro e dizia piadas sobre a vida depois da morte que agradavam a Steve.

- Tenho lá uma cadeira reservada na plateia para poder ouvir o coro celestial - disse um dia o velho Paul, depois de ele e Steve terem estado a ouvir um concerto na rádio. - Espero que toquem música clássica. Acha que eles já se converteram ao rock ou ao jazz e a todas essas modernices?

Steve riu-se, imaginando um anjo a rufar freneticamente numa bateria.

Percebia que o velho muitas vezes tinha dores. Ouvia-o e começava a falar com ele, mesmo quando não lhe apetecia conversar. Depois, uma noite, ouviu Paul gemer. Steve tocou a campainha, mas a enfermeira de serviço tinha muito que fazer e não ouviu.

Steve saiu da cama e foi a tactear até à cadeira colocada ao lado da cama do velhote. Sentou-se junto dele, pegando-lhe na mão. Foi uma noite muito longa. Quando a enfermeira apareceu, trouxe remédios para Paul e ajudou Steve a meter-se outra vez na cama, mas ele não conseguiu adormecer. Ficou à escuta e tocou a campainha quando deixou de ouvir a respiração ao lado dele.

- Era um velho espantoso - disse no dia seguinte a enfermeira Hancock. - Fazia cem anos na semana que vem. Pensávamos que talvez se aguentasse até lá. Dizia-nos sempre uma graça quando íamos ao pé dele.

Steve não tinha percebido que Paul era assim tão idoso, que nascera há cem anos, num mundo tão diferente que lhe era impossível imaginá-lo. Por qualquer razão, esse facto deu outro sentido à sua vida; pela primeira vez, sentiu-se satisfeito por não ter morrido no desastre.

Nessa noite, perguntou a Andrew como é que iam as coisas no Convento; perguntou por Lig. Não falou em Mara - a recordação dela era muito dolorosa e não tencionava mudar de ideias. Agora, ela podia ficar sentida, mas havia de lhe agradecer mais tarde.

Tinha de descobrir uma nova maneira de viver. Idealizava vagamente uma vida dedicada à caridade. Os voluntários do hospital irritavam-no, nunca sabiam como é que haviam de falar com ele, usavam a palavra "ver" e depois calavam-se de repente. Ele não evitava a palavra. Quando Andrew se ia embora, Steve despedia-se dele todos os dias dizendo "Até à vista", como sempre fizera. Começou a empregar o termo com naturalidade.

A enfermeira Hancock passava grande parte do seu tempo livre ao pé dele. Sugeria-lhe maneiras de comer, de dobrar a roupa numa cadeira, ao pé da cama, de modo a ficar na ordem correcta. Ensinou-lhe também a contar os passos até ao fim da enfermaria, a decorar a maneira como as portas abriam e a tactear com a bengala, para ver se já estavam abertas. Já conseguia tomar duche e vestir-se sem ajuda.

Mas muitas vezes tinha azares. Uma vez, houve alguém que deixou uma cadeira de rodas à porta da enfermaria e ele chocou com ela e caiu. Magoou-se, mas sem gravidade. Ao fim de algum tempo, já era capaz de ir sozinho até à sala da fisioterapia, percorrendo um corredor e subindo um pequeno lanço de escadas.

Não podia parar-se a vida. Steve lutou para recuperar a saúde, fazendo ginástica, criando novos hábitos, acostumando-se a descobrir pelo tacto muitas coisas que precisava de saber.

Uma manhã, aventurou-se até lá fora, utilizando uma bengala para se orientar no caminho de cascalho e ir até ao relvado. Chegou junto de uma vedação com um portão.

Sentiu um bafo amigável junto da cara, soprou também e foi recompensado pela carícia do focinho de um cavalo encostado à sua cara. Estendeu a mão para afagar a crina do animal. O cavalo era muito manso, estava habituado aos afagos e aos carinhos das pessoas. Steve ficou ali muito tempo, com a mão apoiada na pele quente do animal, saboreando o cheiro do cavalo, ansiando por voltar para junto dos animais.

DEßAM-LHE alta para ir passar uns dias a High Hollows antes de seguir para o centro de reabilitação, onde lhe ensinariam a levar uma vida nova. Não queria uma vida nova, mas a vida com animais tornara-se impossível. Precisava de olhos para ver.

- Está cá o Lig? - perguntou, ao atravessar o pátio em direcção à casa, guiado por Andrew. Um cão cheirou-lhe as pernas, mas quando ele lhe tocou com a mão, percebeu que não era Lig.

- Não te disse nada, mas ele tem andado muito triste, filho. -- disse Andrew. - Agora está melhor e ficou no Convento, o Hennessey trabalha com ele. Posso ir buscá-lo, se tu quiseres, mas vais-te embora daqui a nada.

- Deixe-o lá ficar - respondeu Steve.

Era uma desilusão terrível, mas não aguentava pensar que se ia embora outra vez e que o cão recomeçaria a procurá-lo desesperadamente.

Estar em casa era difícil. Tropeçava nas coisas e batia com a cabeça em portas que antigamente se baixava para passar. Era como nascer outra vez num corpo diferente, pensava, andando pela casa aos tropeções e gritando com o pai, furioso, quando ele tentava ajudá-lo - e arrependendo-se imediatamente das suas fúrias. Detestava sentir-se tão desajeitado.

Adivinhava a preocupação na voz da mãe e tentou ser paciente com ela, mas Nettie irritava-o imenso, cortando-lhe a comida aos bocadinhos, correndo a abrir as portas quando devia estar a descansar e preparando-lhe pratos especiais, como se ele fosse uma criança.

Além disso, queria que ele casasse logo com Mara. Andrew tentara convencê-la a não falar no assunto, mas ela abordava-o indirectamente, falando de um novo sobrinho, das alegrias de ter um novo bebé, irritando tanto Steve que ele só tinha vontade de lhe dar um grito. Essas alegrias não eram para ele.

A casa era uma prisão, agravando o inferno da escuridão. Steve começou a sentir-se permanentemente irritado com os mais pequenos ruídos: o tiquetaque apressado, frenético, do relógio da mesinha-de-cabeceira, o assobio dos bicos do fogão de gás, o ronronar ritmado dos gatinhos no cesto colocado junto à janela. Dava sempre um pulo quando um deles lhe saltava para o colo.

Pelo menos, podia tratar dos cavalos e trabalhar na ordenha. Não precisava dos olhos para ordenhar manualmente as vacas, e era muito terapêutico estar encostado à pele quente da vaca, ouvindo o leite a esguichar ritmicamente no balde.

Sempre que podia, saía para o campo, tacteando o caminho com a bengala e metendo pela vereda que ia dar ao loch. Lá fora, ao vento, que por vezes soprava com força nos montes, podia imaginar os amontoados de nuvens no céu, que cornam tapando o Sol, pelo ritmo dos raios solares que lhe aqueciam intermitentemente a cara, sabendo que, por detrás dele, os altos picos se recortavam em espiral de encontro ao céu, com os flancos cobertos de ovelhas brancas e lanudas que se moviam lentamente sobre a verdura. E ouvia-se em toda a parte o barulho das aves.

Andrew começou a ir todas as tardes ao Convento, enquanto Nettie descansava e Steve ia passear até junto da água. Mara estava mais magra e parecia mais velha, mais segura de si, mas raramente se ria. Não queria pensar em Steve. O noivo tinha de aprender a aceitar o seu destino e até lá ninguém podia fazer nada.

O Convento nunca estivera mais bonito, as ovelhas mais bem tratadas. Ela estava decidida a fazer dinheiro com a quinta, a organizar a vida de ambos, para quando Steve ganhasse juízo. Recusava-se a crer que ele nunca mais a quisesse.

Hennessey estava a dar-lhe um curso intensivo de ovinicultura.

Não se podia dar um certo número de coisas às ovelhas: a ração tinha de ser feita com erva dos prados da montanha, pois aquelas ovelhas eram de uma raça de montanha. Os borregos tinham de ser castrados; era preciso contratar os tosquiadores; era preciso comprar o produto contra as carraças.

O melhor momento da semana era aquele em que recebia da América a carta do Pelotão Amotinado, que lhe contava como é que estava a correr o seu trabalho de angariação de fundos. Mara sabia que Steve talvez nunca quisesse um cão-guia. Não gostava de cães fáceis ou sensíveis. Lig era um cachorro terrível - teimoso, independente, dominador. Fora por isso mesmo que Steve o escolhera: quando se consegue dominar um cão difícil, o animal é fiel ao dono para sempre e melhor do que qualquer outro cão. Se todo aquele trabalho que as crianças estavam a ter fosse inútil, ia ser difícil dar-lhes a notícia.

DEPOIS, chegou uma carta para Steve. Andrew teve de lha ler e Steve ficou irritado. Nunca mais poderia ter privacidade.

- Querem que te apresentes no Centro na próxima segunda-feira - disse Andrew, esperando não denunciar na voz o alívio que sentia.

- Ainda não há lugar para ficares lá instalado. Vais ficar com uma tal Mrs. Anna Leigh, num lugar chamado Setter's Dene.

"Valha-me Deus", pensou Steve. Estava mesmo a ver como é que aquilo era. Uma vivenda nos arrabaldes e uma senhora exuberante tentando animá-lo. E iam ensiná-lo a fazer cestos de vime, ler braille e outros disparates do género.

Saiu para a rua sem a bengala. Andrew tinha deixado um balde com ração para as galinhas no meio do pátio. Steve esbarrou com o balde e deu-lhe um pontapé com toda a força, atirando-o para o meio do pátio e espalhando o milho todo.

Andrew estava a vê-lo da porta. Mas não podia fazer nada. Foi buscar uma pá e uma vassoura, varreu o milho e levou-o para o galinheiro. Quando atravessou o pátio, Steve tocou-lhe no braço.

- Desculpe - disse em voz áspera, e subiu para o quarto, sentando-se ao lado da janela, entregue aos seus tristes pensamentos.

A porta abriu-se.

- Trouxe-te uma bebida - disse o pai. - E umas sanduíches.

Como se lhe apetecesse alguma coisa ... Mas agradeceu. Andrew olhou para o filho, hesitou e depois saiu, fechando a porta com força atrás de si.

Steve ficou surpreendido quando deu com um copo em vez de uma chávena. Engasgou-se com o whiskey. Bebeu-o em pequenos goles, saboreando-o bem. Era o Glen iddich especial do pai, que só aparecia em raras ocasiões. E as sanduíches eram deliciosas.

Steve sentiu-se mal, arrependido da sua impaciência, mas ansioso por se ir embora, por aprender a ser outra vez um homem, em vez de uma criança que tinha de ser mimada e tratada com todos os cuidados. Setter's Dene não podia ser pior que isto.

Steve resolvera ir sozinho de comboio. Não queria que Andrew andasse de volta dele, e além disso Nettie não podia ficar sozinha. Se o pai fosse levá-lo, teria de passar uma noite fora de casa. Em breve, chegou o dia da sua partida, e o táxi já estava à espera à porta. Steve sentou-se lá dentro, tenso, a caminho da estação.

- Quer ajuda no cais, Mr. Drake? - perguntou o motorista quando chegaram.

A oferta, feita com naturalidade, ajudou Steve a aceitá-la com a mesma naturalidade dando o braço ao homem e entregando-lhe a mala.

- Venha atrás de mim - disse o motorista. - Há uns degraus.

Desceram os degraus e atravessaram o túnel. As vozes e os passos faziam eco e era difícil avaliar as distâncias. Havia muito barulho: um palavreado incompreensível anunciando as chegadas e as partidas, o barulho das rodas dos carrinhos da bagagem, o guincho de um carrinho eléctrico abrindo caminho por entre a multidão.

Havia pessoas de todos os lados chocando com ele. Algumas pediam-lhe desculpa, outras não. Ninguém percebia que ele era cego. Quase ficou contente por ser tratado com tanta brutalidade, o que significava que o seu defeito físico não era aparente.

- Mr. Drake?

A Companhia dos Caminhos de Ferro sabia que ele ia fazer a viagem e havia um carregador à sua espera. O homem pegou na mala e o motorista foi-se embora, sem dar tempo a Steve de lhe agradecer. Steve foi conduzido para um banco na ponta do cais.

- Aqui isto está mais calmo - disse o carregador. - Eu volto quando o comboio chegar. Vai ouvir quando for anunciado.

Steve ficou sentado, sem se dar conta dos olhares curiosos de duas raparigas que estavam de pé ali peno. Eram as duas muito bonitas e não estavam habituadas a que os homens as ignorassem. Steve era um belo homem. Não tinham percebido que era cego.

O carregador voltou.

- O comboio está a chegar.

Tinha uma voz alegre.

- Tenha cuidado ao entrar. O degrau é muito alto.

Steve não se lembrara de que a viagem ia ser muito aborrecida.Não tinha outra maneira de passar o tempo senão ouvir o barulho das rodas do comboio, sentindo a carruagem oscilar e desequilibrando-se com as sacudidelas. Na primeira estação, entrou um homem que se sentou ao pé dele.

Steve sentiu um cheiro fone a suor e tabaco. O homem bateu-lhe com o cotovelo quando se sentou.

- Desculpe - disse uma voz jovial. - Foi sem querer.

- Não tem importância - respondeu Steve em voz áspera.

Ouviu o barulho das páginas de um jornal, uma ruidosa respiração masculina e tentou imaginar o homem, adivinhar se era velho ou novo. Lá mais adiante, na carruagem, estava um bebé a chorar.

O revisor passou pelo corredor.

- Quer ir almoçar, Mr. Drake?

Os outros passageiros olharam para ele, espantados, perguntando a si mesmos porque é que Steve merecia um tratamento especial. Steve tentou levantar-se, mas desequilibrou-se e ia caindo.

- Cuidado, homem - disse jovialmente o indivíduo sentado a seu lado. - Bebeu uns copos a mais, não?

- Este senhor é cego - explicou o revisor. - Cuidado com os pés, meus senhores.

Steve foi tropeçando em pernas que pareciam incapazes de se desviarem do seu caminho, sentindo-se ridículo e impotente, pois tinha consciência de que, mesmo que estivessem a levá-lo na direcção de uma porta aberta, para o atirarem para a linha do comboio, não poderia fazer nada.

Ficou muito aliviado quando se sentou numa mesa.

- Acho que o mais simples era comer umas sanduíches - disse o revisor. - É difícil comer uma refeição sem ver num comboio em movimento. - A observação foi feita com tanta naturalidade que não o magoou.

- Sim, é mais simples comer umas sanduíches - respondeu Steve com gratidão.

- Como é que consegue? - perguntou uma voz feminina do outro lado da mesa.

Uma outra voz isenta de compaixão, manifestando apenas interesse. Uma mulher mais velha, pensou, talvez da idade da mãe dele.

- Estou a aprender - disse Steve.

- Foi um acidente?

- Um desastre de automóvel. Há seis meses. É a primeira vez que me deixam sair. - Sorriu, pensando porque seria tão fácil falar assim com uma estranha. - Isto é uma mesa de duas pessoas?

- É. Eu não os deixo encherem-lhe muito a chávena. Não é muito agradável apanhar um banho de café.

Steve riu-se.

- Obrigado - disse. - Onde é que estamos?

- No Lake District. As árvores no Outono são muito bonitas. Há grandes massas de folhagem vermelho-dourada e amarela em toda a parte. Está um lindo dia, um céu azul e nuvens pequeninas, o sol a brilhar na água. Não sei bem que lago é este.

- Quase que não me tinha apercebido de que estamos outra vez no Outono - disse Steve.

Parecia não ter havido Primavera.

- Já ouvi a sua voz e a sua cara não me é estranha. Donde será que o conheço?

A recordação foi dolorosa.

- Naturalmente, viu-me nalgum concurso de cães de pastor.

Costuma lá ir?

- Claro! Você é Steve Drake. E Lig. Já estou a lembrar-me. Os travões falharam numa descida, não foi? Vinha no jornal. As crianças fizeram-lhe muitos elogios quando foram entrevistadas.

Steve não se tinha dado conta de que era um herói.

- O orgulho precede a queda, como costumam dizer - observou. - Estava convencido de que ia ganhar o Troféu da Televisão.

- Ninguém merece uma queda como essa - respondeu a mulher em voz ríspida. - E Lig é fora de série. Também sou criadora de cães de pastor, por isso sei do que estou a falar. Lig continua a trabalhar?

- Continua - respondeu Steve. - Mas não o vejo desde que ...

- Calou-se uns instantes. - É difícil, mas tem de ser. É cruel ser apenas meio dono de um cão que era só nosso.

Chegaram as sanduíches, e a sua companheira mandou vir meia garrafa de vinho, convidando-o a bebê-la com ela.

- Nunca pensei vir a conhecer o dono de Lig - disse a mulher.

- É um acontecimento digno de ser comemorado. Não quer ficar aqui a conversar comigo? Não é todos os dias que tenho ocasião de falar com um adepto de collies.

O resto da viagem passou-se depressa. A sua companheira de mesa sabia os nomes e o pedigree de todos os grandes cães, e os cães dela eram muito procurados. Reconheceu o nome do canìl quando ela lho disse.

Quando ela saiu do comboio, Steve ficou sozinho com os seus pensamentos e o chocalhar das rodas. A escuridão voltou com a ausência dela. Ela tinha quebrado o seu isolamento, tinha-o feito rir e ele sentia a sua falta.

- Chegámos - disse o revisor, tocando no braço de Steve.

Já tinha ido buscar a mala dele. Steve levantou-se, saindo do seu lugar com dificuldade. Estavam no terminal de Manchester. O revisor conduziu Steve até ao cais, desceram uns degraus e saíram para a rua, para o sol.

- Mr. Drake? - perguntou uma voz a seu lado.

- Sim - respondeu Steve.

Era uma voz simpática, calorosa. Steve começara a estudar as vozes das pessoas. Eram muito reveladoras.

- Sou Anna Leigh. E esta é a Susan. Trabalha no Centro. Vai conduzi-lo até ao automóvel.

- A Anna já tem a sua mala. Dê-me o braço.

Era uma voz jovem e despreocupada, risonha. Steve sentiu uma inveja súbita e intensa quando pegou no braço da rapariga e ela começou a andar decididamente.

- Espere - disse ela. - A Zanta deu sinal para nós pararmos.

- A Zanta?

Steve não percebera que estavam ali outras pessoas.

- O meu cão-guia. Também sou cega.

Steve ficou ali parado ao lado dela, tão espantado que perdeu a fala.

- Pronto. O caminho está livre. Ouviu aquele carro que passou?

Tem de aprender a tirar o maior partido possível dos seus ouvidos.

Eu tenho muita prática, porque nunca tive vista. Deve ser terrível para si ter deixado de ver depois de tantos anos de visão normal.

Steve não foi capaz de responder. Baixou-se quando Susan lhe indicou que estavam junto do carro e entrou. Zanta sentou-se no chão ao pé dele encostando-se ao seu joelho. Sentiu a sua pelagem macia e as orelhas caídas. Pelagem lisa e cauda direita. Uma labrador. Pensou em Susan e na sua compaixão e teve vergonha.


CAPÍTULO 6

Quando o automóvel parou em Setter's Dene, Steve ficou à espera de ouvir o ruído do trânsito. Mas, em vez disso, só se ouvia um cão a ladrar freneticamente, um gato a miar e um borrego impaciente a balir.

- É o parvo do meu carneirinho! - disse Anna a rir, ao mesmo tempo que abria a porta para Steve entrar. - Já não tem idade para tomar biberão, mas não consigo desabituá-lo. Está quase na hora de lhe dar de comer.

- Mas isto é uma quinta? - perguntou Steve, intrigado. Não estava nada à espera de uma coisa daquelas.

- É uma pequena propriedade rural - disse Anna. - Tenho alguns animais bastante estranhos! Uma égua que gosta de gelados; um borrego que já devia ter sido desmamado e não foi; um pastor alemão que serve de mãe a uma ninhada de gatinhos. E há ainda mais quatro pastores alemães, um retriever, uma labrador e a cria dela, que se chama Gemma.

- Por aqui.

Sue pôs a mão no braço de Steve.

- Há um caminho e depois sobem-se quatro degraus. Baixe a cabeça para não bater na porta.

Steve ficou imóvel, aspirando o ar do campo.

- Também tem vacas?

- Estão do lado de lá - disse Sue. - Não são da Anna. Aqui ao lado há uma propriedade grande.

Anna fez chá. Tinha preparado pãezinhos para chá e um bolo recheado de natas e doce. A cadeira era cómoda, tinha uma almofada macia nas costas, e Steve, depois de ter acabado de tomar chá, foi vencido pelo sono. Sue foi para casa e Anna fez tudo o que tinha a fazer e depois sentou-se ao pé da lareira, pegando numa caixa que estava no chão, perto do lume. Lá dentro havia quatro gatinhos siameses. A mãe tinha morrido durante o parto, e como a dona dos gatos era muito idosa e não podia criar a ninhada, Scott Lewis recorrera aos serviços de Anna.

Sam, o golden retriever de Anna, contemplava muito interessado a operação da amamentação dos gatinhos. Começara por ladrar a Steve, mas depois aceitara-o quando se tornou evidente que ele ia ficar. Quando Steve acordou, o cão espreguiçou-se e depois foi procurar um presente para lhe oferecer. Não havia ali nada à mão a não ser a vassoura da lareira, que o cão depositou com firmeza no colo de Steve.

- Que é isto?

Steve começou a pensar se não estaria num manicómio e se algum maluco lhe tinha atirado com a vassoura para cima.

- Desculpe - disse Anna. - Sam é um cão de trazer à mão e portanto traz à mão, contra ventos e marés. Mas teve sorte. Podia ter sido uma coisa molhada ou enlameada. Ele é terrível.

Steve, aliviado, procurou com a mão as orelhas macias do cão. Sam levantou imediatamente a pata e pô-la na palma da mão de Steve, encostando-se a ele. Ouviu-se um miado ténue e suave do gatinho que Anna estava a alimentar.

- Que é isso? - perguntou Steve.

- E um gatinho com três dias. A mãe morreu e eu estou a alimentá-los a biberão aos quatro. Começo a ficar arrependida de me ter encarregado deles. Dar-lhes o biberão de duas em duas horas não é brincadeira.

- Não tem um biberão a mais? - perguntou Steve. - Eu podia ajudá-la.

Anna pegou num dos gatinhos e pô-lo na mão de Steve. Ele nunca tinha mexido num animal tão pequeno. As gatas da quinta pariam sempre no celeiro e traziam para casa gatinhos já crescidos.

Este gatinho mexia-se na palma da sua mão e Steve seguiu os contornos do animal com um dedo, apalpando as orelhas delicadas, a cabeça frágil, as patas. Anna deu-lhe o biberão e o animal abocanhou-o imediatamente, começando a sugá-lo. Steve concentrou-se no gatinho. Não era fácil saber se estava a segurá-lo bem. Quando ouviu o som característico do ar a ser sugado do biberão vazio, Anna tirou-lhe o animalzinho da mão.

- Gostei do bichano - disse Steve. - De que cor é?

- Ainda é todo branco - disse Anna. - É um siamês de raça pura. O pai e a mãe eram campeões.

A porta abriu-se, empurrada por Mellie. Steve ouviu um ruído rápido de passos e depois sentiu um corpo rijo a fazer força de encontro ao dele, cheirando interessadamente, para saber notícias dos cães do pai dele. Teve uma visão repentina de Lig, que o vinha também cheirar para descobrir onde é que ele tinha estado e em que cães tinha tocado.

Foi abalado pelas recordações.

Mellie, sempre sensível ao estado de espírito das pessoas, pôs as duas patas nos joelhos de Steve e tentou olhá-lo nos olhos. Como ele não mexesse a cabeça, deu-lhe uma marradinha com o focinho e encostou-se a ele, lambendo-lhe as mãos, sentindo que ele estava triste. Sam, também ansioso, arranhou-lhe o joelho com a pata.

Steve pensava que tinha vencido a amargura, mas a amargura regressou e os cães em volta dos seus joelhos recordavam-lhe dolorosamente tudo o que ele perdera.

Anna pôs os gatinhos no tapete, em frente da lareira. Mellie aproximou-se deles e inclinou a cabeça para os cheirar. Depois, deitou-se ao lado da ninhada e lambeu cuidadosamente os gatinhos, um por um. Os animaizinhos aninharam-se de encontro à sua pelagem.

Ouviu-se um balido furioso lá fora e o som de cascos a bater no chão.

- É o Barulhento - disse Anna. - O carneiro. Quer o biberão.

- Eu posso dar-lho - disse Steve.

Era bom arranjar coisas para fazer.

- Que idade é que ele tem?

- Cerca de seis meses. É um órfão e pertence ao lavrador daqui do lado. Dantes também tínhamos uma bela propriedade, mas quando construíram a ligação à auto-estrada, estávamos mesmo no meio do caminho. De princípio, detestei isto aqui. Tinha muitas saudades das montanhas.

- Nós também moramos nas colinas - disse Steve. - Adoro aquilo. Vê-se o mar, azul e verde e branco, e as montanhas, escondidas pela neblina.

Anna pegou-lhe no braço para o levar lá fora. No barracão, o Barulhento estava a martelar com os seus pequenos cascos rijos de encontro à madeira.

- Cá estamos - disse Anna. - Tem de baixar a cabeça. O barracão é muito baixo.

Steve baixou-se. Uma cabeça lanuda marrou contra as suas pernas e quase o atirou ao chão. Ajoelhou, agarrando com força no borrego, e Anna meteu-lhe o biberão na mão. A boca esfomeada pegou na tetina com tanta força que quase lhe arrancou o biberão das mãos.

Depois, o borrego começou a mamar e acalmou-se. Steve estendeu a mão e apalpou a cabeça do animal, as orelhas voltadas para a frente, avaliando as formas dos ossos. Era um animal bem conformado e pensou se não seria possível avaliar o gado bovino e as ovelhas sem ver os animais. Mas nunca poderia ver as imperfeições da cor e se o animal era vivo e se movimentava como deve ser. Suspirou, saboreando o cheiro das ovelhas, o cheiro a campo.

Quando o borrego ficou satisfeito, Anna empurrou-o outra vez para dentro do casebre e conduziu novamente Steve para fora do barracão. Trancou a porta e foi guardar a égua na cavalariça.

Steve, esperando por ela no jardim, percebeu que já era noite pela temperatura do ar e pelo silêncio reinante. Ouviam-se as vacas a respirar em uníssono no campo adjacente.

Sentiu um focinho a empurrar a sua perna. Steve estendeu a mão e apalpou Sam. Mas doíam-lhe os ossos e precisava de descansar.

Instintivamente, meteu a mão na coleira de Sam e ficou à espera. O cão, habituado a Susan, conduziu-o imediatamente para dentro de casa. Steve esqueceu-se de baixar a cabeça, bateu na porta e praguejou.

- Deixe lá - comentou Anna por detrás dele. - Dan, o meu marido, via bem e estava sempre a fazer o mesmo.

- Quando é que o seu marido morreu? - perguntou Steve.

- Há quase um ano. De repente. Foi um choque terrível. Nunca pensei que fosse capaz de continuar sem o Dan. Mas foi o que aconteceu; e tenho-me desembaraçado menos mal. Quando me sinto mais em baixo, penso na Susan, que é uma das pessoas mais felizes que eu conheço.

- Se calhar, as pessoas não sentem a falta de coisas que nunca tiveram - comentou Steve.

- Não sei. Será possível imaginar a visão quando nunca se soube o que isso era? Penso muitas vezes em como é que ela imaginará o mundo. Coisas como as árvores por cima da cabeça dela, a forma dos ramos, a textura das folhas. Deve ser inimaginável.

Era doloroso pensar nessas coisas, mas o sofrimento significava que Steve estava a voltar à vida. A pena que sentia de si mesmo mergulhara-o na apatia até àquela noite em que Paul morrera no hospital. Agora já era capaz de pensar nos outros. Nunca se tinha lembrado do sofrimento dos cegos de nascença.

Estava outra vez na altura de dar de comer aos gatinhos. Era só um princípio, aliviar um pouco o fardo de Anna, mas afinal podia fazer mais coisas do que aquilo que imaginara.

Steve estava sentado à janela da sala, sentindo o sol da manhã a bater-lhe na cara, ouvindo o ruído de fundo quase constante dos cães a ladrar no pátio. Já se tinham passado algumas semanas depois da sua chegada.

- Está alguém em casa? - perguntou Susan, entrando na sala.

- A Anna foi às compras - respondeu Steve.

- Hoje vamos dar a nossa primeira lição de braille - disse Sue.

- Vou passar a vir cá três vezes por semana. Tem de aprender o alfabeto e depois, quando souber ler, arranja uma espécie de agenda e toma notas e pode lê-las sozinho. E pode escrever à máquina pelo tacto. Quer que lhe leia um bocado antes de começarmos?

Era uma maneira de passar o tempo.

- Leia, se faz favor - disse ele, ficando sentado a ouvir a voz suave de Sue, que lia a história de um criador de ovelhas e do seu cão. Pensou que ela naturalmente queria dar-lhe prazer, mas era doloroso ouvir aquela história, pois lembrava-lhe Lig a correr nos montes e ele próprio a andar livre e descuidadamente por cima das pedras.

- Você não está a ouvir - disse Susan, sempre sensível ao estado de espírito das outras pessoas e percebendo que ele estava mergulhado nos seus pensamentos.

- Desculpe - disse Steve. - Como é que você aguenta? Estava a lembrar-me de uns versos que aprendi nos meus tempos de escola. Sinto-me como alguém que anda sozinho Numa sala de banquete deserta, As luzes apagaram-se As grinaldas murcharam E todos menos ele se foram embora.

- Não precisa de se sentir assim - disse Susan. - Está lá fora um mundo à sua espera. Basta estender a mão para lhe tocar.

Steve ouviu passos e o som das unhas de um cão a rasparem no oleado do chão da cozinha. A voz de Anna soou junto à porta.

- Apanhei umas rosas para a mãe de Sue. Estão aqui.

Dirigiu-se para eles.

- Não cheiram bem?

Rosas. Tinha plantado roseiras para Mara à volta da porta. O cheiro das flores provocou-lhe uma dor tão profunda como nunca sentira. Viu as roseiras cobertas de flores de cores vivas, o Convento e tudo o que perdera. E a cara de Mara. Saiu abruptamente para o pátio.

- Já fiz asneira - disse Anna tristemente. - Pensei que ele ia gostar de sentir o cheiro das rosas.

- Os cheiros evocam recordações - disse Susan. - E todos nós nos enganamos às vezes. Palavras, lugares, cheiros ... Eu também escolhi o livro errado hoje.

Pegou na mão de Anna.

- O braille fica para outro dia.

Sue saiu com Zanta, e Anna ficou a vê-la descer em passo rápido o caminho que ia dar à entrada. Tinha-se esquecido de lhe dar as rosas para a mãe. Anna levou as rosas até à ponta do campo e atirou-as para uma vala.

DAÍ A bocado, Steve voltou para casa para dar de comer aos gatinhos. Agora já o conheciam. E ele também conseguia detectar as mudanças sofridas pelos animaizinhos: os minúsculos bigodes hirtos, os dentinhos aguçados que já tinham rompido, enterrando-se ocasionalmente na sua mão, quando não se despachava com o biberão. As orelhas deles também estavam a crescer e fremiam quando lhes tocava.

Um dos gatinhos, uma fêmea chamada Sukie, exigia mais atenção do que os outros. Era a mais meiga, sempre a primeira a chegar ao pé dele, estava sempre agarrada a ele e não queria voltar para o caixote.

- Vamos ficar com essa para si - disse Anna a Steve certo dia.

- A Sukie adoptou-o completamente. O melhor é levá-la consigo para casa quando se for embora. Prometeram-me um dos gatinhos para me agradecerem.

Anna saía todos os dias com Gemma e muitas vezes ficava fora durante três ou quatro horas. Steve ainda estava demasiado absorto nos seus próprios problemas para perguntar onde é que ela ia. Só quando Sue comentou um dia, durante uma das lições de braille, que Anna andava a ensinar Gemma, é que ele perguntou: - Ensiná-la para quê?

- Vai ser um cão-guia. Anna agora está a criar cães-guias para o Centro. O resto da ninhada está a ser treinada por outras pessoas que ensinam os cães a sentar-se, a parar e a andar calmamente, sempre ligeiramente à frente do dono, e não ao lado dele. Levam-nos às lojas, andam com eles em ruas com muito movimento, habituam-nos aos animais do campo. Têm de aprender a usar o cérebro, pois os donos dependem deles.

- Não estou a ver como é que isso é possível - disse Steve. -- Os meus cães dependiam sempre de mim. Eu é que mandava.

- Eu também mando na Zanta - disse Sue. - Mas apesar disso confio nela para ver quando é que lá vem um automóvel ou se há um obstáculo no meu caminho. E mesmo assim ela obedece-me.

- Todos os cães são treinados para actuar num meio diferente? - perguntou Steve.

- Tem de ser. Alguns vão ser cães de campo e vão ter de andar por caminhos de terra; outros vão viver em lugares cheios de gente.

Como é que o Lig reagiria se você o levasse a Londres?

- Perdia a cabeça com o barulho, naturalmente - disse Steve.

- E a Gemma, está a ser treinada para viver no campo, não?

- Sim - disse Sue. - É um cão excepcional. É tão esperta que o Dave Masterson está ansioso por tê-la no Centro para a treinar.

Deve ir para lá esta semana. Dentro de uns quatro meses, está pronta para o seu novo dono, e depois o dono tem de ser ensinado com ela. É tudo muito demorado.

Era tudo muito demorado. Steve detestava as lições de braille que Sue lhe dava. Tinha uns dedos pouco sensíveis e estava sempre a enganar-se nos pontos. Mas fazia progressos e ao fim de algum tempo descobriu que já era novamente capaz de ler.

Steve já tinha mais facilidade em conversar com as pessoas que vinham visitar Anna, muitas das quais não percebiam que ele era cego. Também já era capaz de se orientar perfeitamente ali em volta. Dave Masterson, que visitava Anna com frequência, estava sempre a incitá-lo a fazer coisas novas sozinho, a trabalhar no campo, carregar fardos de feno para Anna ou sacos de comida para os cães.

Quando chegou do Centro uma nova ninhada de cachorros, Steve começou a ajudar Susan a brincar com eles e a habituá-los ao contacto humano. Anna e ele faziam barulho ao pé do canil da ninhada, tocavam despertadores, batiam com tachos e panelas, para que os cãezinhos que fossem morar em casas ruidosas não ficassem muito traumatizados com a mudança.

Sukie era agora o seu animal de estimação, dormia na cama dele, acordava-o de manhã, esfregando-se na cara dele, e aconchegava-se na cama a seu lado à noite. Era muito reconfortante quando Steve não conseguia dormir e era assaltado pelas recordações. Antigamente, nunca se interessara por gatos e não se tinha dado conta da personalidade forte que tinham - Sukie mais do que qualquer outro. Estava sempre a querer alguma coisa - queria atenção, miava a pedir comida e seguia-o para toda a parte como uma sombra.

- Está sempre mesmo atrás de si - disse Anna. - Nunca pode voltar-se para trás de repente, senão pisa-a.

Steve habituou-se a chamar Sukie antes de se voltar e nessa altura ela saltava-lhe sempre para o ombro. Encostava-se à cara dele, ronronando alto e olhando com desprezo para os cães, lá do alto, da sua posição de vantagem.

NA NOITE do aniversário de Anna, Steve ia jantar à estalagem da terra com o veterinário, Scott Lewis, a mulher dele, Roz, Sue, Dave Masterson e Anna. Estava a temer essa noite.

- É ali mesmo ao fundo da estrada - disse Anna. - Mellie e Sam ficam de guarda à casa. Mas o caminho é mau. O melhor é dar-me o braço.

Steve detestava andar de braço dado, mas não disse nada. Tinha pedido a Scott para lhe comprar flores para Anna. Scott escolhera um ramo de cravos e Anna ficara muito contente.

A estalagem, que se chamava Traveller's Rest, era muito antiga, com tectos baixos suportados por vigas de madeira escura. A sala do bar estava cheia de fumo de cachimbo e cheirava intensamente a cerveja, e a música era uma autêntica agressão aos ouvidos. Steve teve vontade de sair outra vez da sala, abrindo caminho aos encontrões, correr até Setter's Dene e ficar a ouvir a noite. Pensou de si para consigo que não percebia como é que dantes podia ter gostado daqueles lugares.

Steve estava ali sentado a beber uma cerveja, um ser à parte num mundo estranho, incapaz de visualizar o que o rodeava. Estava no meio de um vácuo informe, apinhado de gente. Um homem deu-lhe um encontrão num ombro; alguém entornou uns pingos de cerveja na manga do seu casaco; passou uma mulher ensopada em perfume.

Tinha a sensação de ser invisível, um fantasma ignorado por todos.

A escuridão era mais tangível do que nunca. O barulho, um terror insuportável. Cerrou os punhos em cima dos joelhos, e Dave, voltando a cabeça, viu os nós dos dedos brancos e amaldiçoou a sua estupidez.

- Está aqui um calor horrível - disse. - Preciso de apanhar um bocado de ar antes do jantar. Quer ir até lá fora comigo, Steve?

Lá fora era um refúgio. Estava tudo muito sossegado e Dave passeou com Steve pelo jardim, mergulhado na escuridão. A música da estalagem mal se ouvia e um mocho piou ao longe. Cheirava a flores. O pânico de Steve desapareceu a pouco e pouco. Dave ficou ali sentado, sem falar, olhando para a noite, compreendendo os sentimentos de Steve.

- São horas de ir jantar - disse Dave ao fim de uns minutos. -- A casa de jantar fica na outra ponta do edifício, longe do barulho. É uma sala bonita, com cortinas de veludo encarnado e cadeiras confortáveis. E há quadros nas paredes.

Entraram pelas portas de sacada que davam para o jardim, e Steve sentou-se ao lado de Sue.

- Os criados conhecem-nos, Steve - disse ela. - São muito simpáticos. Cuidado com as pernas. A Zanta está debaixo da mesa.

Steve já tinha dado por isso. Fora acolhido por um focinho frio, que mergulhara na sua mão. Zanta ficava ali quieta até precisarem dela. Se tivesse um cão, talvez pudesse ir dar os longos passeios por que tanto ansiava, subindo os montes. Mas um cão como Zanta não servia de nada; precisava de um collie. Desejou esquecer Lig. Não podia deixar de fazer comparações.

A refeição foi muito facilitada. Cortaram-lhe a comida em pedaços pequenos. Escolheu queijo e bolachas para a sobremesa, com medo de deixar cair da colher um doce peganhento. Ainda não era fácil comer sem ver o garfo e a faca ou a colher.

Falou muito pouco e ansiava pelo fim do jantar, mas fazia um esforço sempre que alguém falava com ele. Ficou muito aliviado

quando Anna disse que estava na altura de ir para casa e o levou de volta para Setter's Dene. Mellie e Sam ganiram de alegria quando os viram e Sam espalhou pelo chão as suas ofertas, uma das quais era a carteira de Steve, que ele tinha deixado em casa.

Já no quarto, Steve ouviu fechar a porta do quarto de Anna e depois fez-se finalmente silêncio. Sam e Mellie estavam no patamar. Sukie aconchegava-se de encontro ao seu ombro. Não tinha bebido cerveja em quantidade suficiente para ficar embriagado, mas mesmo assim bebera mais do que o costume e deu-lhe para ver coisas terríveis, como nunca tinha imaginado. Adormeceu e sonhou que estava na escuridão, procurando desesperadamente uma luz, e quando acordou para a realidade, sentiu-se encurralado entre as quatro paredes do seu quarto, como se estivesse numa prisão.


CAPÍTULO 7

Mara tinha muito que fazer no Convento, trabalhava mais do que nunca. O trabalho na quinta nunca acabava, por mais tempo que lhe dedicasse, e sentia-se satisfeita por isso.

Chegou o dia em que devia ter-se casado e pôs-se à janela, olhando para os montes, com um nó na garganta. O vestido de noiva por estrear, estava pendurado no armário. Tirou-o para fora e olhou para ele, para os pontos delicados, os bordados finos. Nettie tinha-o feito com todo o amor.

Nunca mais. As palavras ecoavam na cabeça de Mara. Ia ficar solteira, viver aqui o resto da vida, num lugar que se chamava apropriadamente o Convento!

Arrumou outra vez o vestido no armário.

Lá em baixo, Lig estava à espera. Steve nunca tivera o cão dentro de casa, mas Mara precisava de companhia. Pôs o casaco e assobiou chamando Lig. Não tinha vontade de comer, nem sequer uma torrada. Naquele dia, os sinos da aldeia deveriam estar a tocar e ela a pôr aquele vestido, sabendo que Steve estaria na igreja às 11 horas, à espera dela.

Lá fora as montanhas recortavam-se no céu, enormes, abruptas e esplêndidas. O pico mais alto estava orlado de neve. Correu para fora de casa, para esquecer as suas recordações, e foi até ao segundo campo para ver as ovelhas, uma por uma, sabendo que a vida dela agora era isso.

Tinha de telefonar aos tosquiadores. Precisava de mais ração para as galinhas. Tinha de dar de comer aos porcos. E tinha de fazer uma visita a High Hollows, pois Nettie ainda não havia recuperado completamente as forças. Ia lá quase todos os dias, para tratar das tarefas de que Nettie não podia dar conta, para tentar animar Andrew, ajudá-lo, fazer as vezes de Steve.

De volta a casa, encontrou uma carta do Pelotão Amotinado:

Agora já temos todo o dinheiro que é preciso para comprar um cão-guia para Steve. O Centro mandou-nos um retrato: chama-se Gemma e dizem que a escolheram de propósito para ele, mas que ele ainda não sabe. Pode ser que um dia lhe façamos uma visita e nessa altura vemos Gemma. Temos muitas saudades suas.

Mara teve uma visão repentina da aula e das caras das crianças.

Foi buscar o cavalo é deu um passeio pelos montes, com Lig a correr incansavelmente atrás dela, sem nunca a perder de vista.

Olhou para baixo.

O Convento parecia uma casa de bonecas, os canos nas estradas eram carrinhos de brinquedo e as pessoas assemelhavam-se a fantoches - pequenas criaturas com uma vida efémera, que passava depressa, deixando para trás todo o sofrimento. Os montes ainda lá haviam de estar quando ela não fosse mais do que umas palavras na pedra cinzenta de uma campa no cemitério.

O melhor era esquecer o dia do casamento que não se fizera.

Desceu novamente os montes e foi dar de comer ao cavalo e escová-lo. Depois, tirou o vestido de noiva do armário, dobrou-o cuidadosamente, embrulhando-o em papel de seda, e arrumou-o numa mala, que escondeu no fundo do sótão.

Tinha de recomeçar.

Telefonou aos tosquiadores, encomendou as rações e foi falar com Hennessey sobre as coisas que eram importantes: os tratamentos e as vacinas das ovelhas, a altura de juntar os carneiros reprodutores ao rebanho, o eterno problema dos cães vadios que perseguiam os animais.

Depois, telefonou a Andrew. Nettie encontrava-se ocupada e estava tudo bem.

Mara trabalhou até à meia-noite e depois foi para a cama e adormeceu profundamente - escolhera definitivamente o seu novo estilo de vida.

Steve nunca pensara que a vida fosse tão perigosa. Era a primeira vez que tentava passear sozinho no caminho, numa linda manhã de sol, depois de uma chuvada forte. Mas o seu cabelo ficara preso nos galhos das árvores e a água escorria-lhe pelo pescoço.

Descobriu que o caminho era uma sucessão de montes e vales cheios de água gelada. Andava à toa de um lado para o outro e acabou por prender a manga num caule grosso e cheio de espinhos, que lhe arranharam as mãos quando tentou libertar-se.

Scott Lewis, no seu automóvel, viu que Steve estava atrapalhado e veio salvá-lo.

- Foi apanhado nas silvas de estimação de Mrs. Halliwell. -- disse. - Rogo-lhe pragas sempre que venho aqui a pé à noite.

- Tenho os pés encharcados - disse Steve.

- Vinha à sua procura. Vamos até Setter's Dene, que eu trato esses arranhões.

Anna veio ter com eles ao caminho.

- Não quis desanimá-lo - observou, olhando para os pés encharcados de Steve e para os arranhões das mãos -, mas este caminho é perigoso, mesmo para as pessoas que vêem.

- Não percebo como é que a Sue se arranja - disse Steve.

- A Zanta é muito esperta - replicou Scott. - Gostava que a visse a olhar para o chão, as árvores, as silvas e a evitá-las. Um cão assim dava-lhe muito jeito, Steve.

Steve recusou-se a discutir o assunto. Sentou-se na cadeira, completamente denotado. Tinha esperanças de conseguir ir até à tabacaria comprar o jornal para Anna. Era uma coisa pequena, mas fazia-a perder tempo todos os dias, e às vezes ela esquecia-se. Não deu atenção à conversa entre Scott e Anna, que falavam da última ninhada. Anna que estava sempre à procura do cachorro perfeito, fazia muitos planos e Scott tentava trazê-la à realidade.

- Lembre-se do que Dan costumava dizer, nunca se sabe o que é o dia de amanhã.

Anna suspirou.

- Pois é, Scott, mas não há futuro sem esperança.

Essas palavras ficaram a ressoar na cabeça de Steve. Sem esperança. Agarrou na Sukie, mas a gatinha miou e fugiu do colo dele.

- Não posso agarrar-lhe com tanta força - disse, tentando dar um tom ligeiro à voz, mas Scott apercebeu-se da nota de desespero.

- Steve, vim cá porque precisava de si um dia ou dois. Tenho um doente, uma eguazinha assustadiça chamada Ginny. Foi um empresário daqui e a mulher que a compraram para a filha. Não percebem nada de cavalos; compraram-na num leilão, mas estava cheia. O poldro vai nascer um dia destes. O pai não percebe nada de animais. Sara, a miúda, só tem dez anos. E a mãe não é mulher para ajudar; chora quando o cão precisa de ser vacinado. Acha que era capaz de segurar na égua? O parto não vai ser fácil, porque estou desconfiado de que o poldro está em má posição. Posso ter de o voltar, e ela pode reagir mal. Mas você sabe o que deve fazer. Vou agora até lá para vê-la. Venha comigo para a conhecer.

Mais valia isso do que ficar ali sentado a olhar para ontem, à espera de que o tempo passasse, numa sequência interminável e monótona de dias sempre iguais, sem poder ir passear nos montes e olhar cá para baixo, para o mundo, sabendo que o homem é insignificante. Estava fechado dentro de si mesmo.

Scott adivinhou o tumulto que ia dentro da cabeça de Steve. No caminho, foi fazendo observações controversas sobre os métodos de criação de ovelhas, sabendo que Steve ia morder o isco. Ficou satisfeito quando a voz de Steve recuperou a vivacidade, mostrando que continuava a interessar-se por essas coisas da sua antiga vida, pronto para voltar para elas quando se resolvesse finalmente a dar-lhes uma oportunidade e a reconhecer que a vida não acabara.

Mas isso ia levar muito tempo.

A égua era delicada, de ossos pequenos, e era impossível saber

qual era o cavalo que a tinha coberto. Mudara várias vezes de dono a intervalos de poucos meses e não confiava em ninguém. Veio até ao portão e Steve pegou na cenoura que Scott lhe tinha dado e estendeu-a ao animal. Uns beiços macios roçaram pelos seus dedos.

Soprou devagarinho na direcção das narinas do animal e a égua voltou a cabeça e resfolegou também, percebendo que podia confiar naquele homem. A mão dele pousou suavemente no pescoço da égua e ele falou-lhe com voz calma e tranquilizante.

Uma voz de mulher, mesmo a seu lado, sobressaltou-o.

- Dr. Lewis, acha que o poldro vai nascer bem? E se a pobre Ginny morrer? Que é que eu vou dizer à Sara?

- Vai ter de lhe dizer a verdade - respondeu Scott, e Steve percebeu que a sua voz traía impaciência.

A mulher tinha uma voz aguda e irritante, petulante e parva, e Steve antipatizou com ela mesmo sem a ver.

- Não quer sair do meu caminho? - disse ela; Steve percebeu que a mulher estava a falar com ele.

- Desculpe - respondeu, mas desviou-se para o lado errado e sentiu que o seu sapato batia em qualquer coisa.

- Agora pisou-me. É cego ou quê?

As palavras dela foram como que uma bofetada na cara de Steve.

- Sou - disse ele, e a aspereza do seu tom de voz não passou despercebida a Scott. - Sou cego. Não sabia que estava tão perto.

- Coitado! Porque é que não me avisou, Dr. Lewis?

- Geralmente não é preciso - disse Steve. - A maior parte das pessoas são delicadas.

Fez-se um silêncio.

- Vai correr tudo bem com a Ginny? - perguntou depois a mulher.

- Vou fazer tudo o que puder - respondeu Scott. - O poldro vai ser enorme para ela. Venho cá vê-la todos os dias e Mr. Drake ajuda-me.

- Ajuda-o?

- Seguro-lhe na cabeça e acalmo-a - disse Steve. - Estou acostumado a tratar de cavalos. E ela vai precisar aqui de alguém que tenha calma.

Estava irritadíssimo com aquela mulher idiota, que não percebia nada do animal que tinha comprado. Mas dominou-se. Era uma cliente de Scott e não podia ser tão mal-educado como lhe apetecia.

Acariciou novamente a égua e depois deu meia volta e dirigiu-se para o automóvel, detestando a mulher e tudo o que ela simbolizava.

Teve saudades de Mara, da sua simplicidade e sensatez.

No dia seguinte, Steve estava sozinho em Setter's Dene quando ouviu um carro a entrar a toda a velocidade no pátio. Sentiu uns passos rápidos e depois soou a voz de Scott.

- Steve, a Ginny está atrapalhada. O poldro começou a nascer.

Pode vir já?

Steve estava pronto para partir. Scott pegou-lhe no braço sem cerimónia e arrastou-o para o carro. Dispararam a toda a velocidade pelo caminho, dirigindo-se para o local onde a égua estava em trabalho de parto só com a ajuda da mulher aterrada que era a sua dona.

Scott mandou a mulher para dentro de casa. Steve pegou no arreio da égua e começou a falar com ela, acalmando-a, cantarolando, passando-lhe a mão pelo pescoço, enquanto Scott tentava fugir aos coices do animal para o examinar.

- Precisa de ajuda?

Uma voz de velho, pensou Steve.

- Gunter! Graças a Deus! Preciso - disse Scott. - As notícias correm depressa, hã?

Gunter morava ali perto.

- Não foi nada disso. Tenho andado de olho na égua. É uma chatice quando uma pessoa vai viver com a filha depois de ter sido independente e de ter tido os cavalos que eu tive. Percebi logo que esta não estava em boas mãos.

Voltou-se para Steve.

- Você trate das coisas desse lado. Vá-a entretendo.

- Se conseguíssemos atar as patas da frente - disse Scott, que já sentia o poldro - e eu for capaz de puxar-lhe as patas de trás ...

Steve percebeu que estavam num barracão qualquer, mas havia muitas correntes de ar, e, agora que se aproximavam as noites frias, não era um lugar onde uma égua e um poldro pudessem ficar. A palha do chão estava suja e encharcada. As mãos dele no pescoço da égua pareciam reconfortar o animal. O processo do nascimento era-lhe tão familiar que nem precisava de perguntar o que estava a acontecer. Ouviu Scott resmungar quando as patas de trás foram ao lugar e depois ele e Gunter tiveram uma conversa lacónica - era quase sempre Gunter que falava - enquanto atavam as cordas.

Depois foi preciso puxar, ao mesmo tempo que a égua fazia força para ajudar o poldro a sair. Em seguida, o animal relaxou quando o poldro foi expulso para o exterior.

- Quem é que a cobriu, algum monstro? - perguntou Gunter. -- O poldro é quase tão grande como ela. Mr. Drake, chegue o poldro ao pé dela para mamar. Coitada. Isto mais parece um chiqueiro do que um estábulo.

- Não podíamos levá-los para casa de Anna? - perguntou Steve, empurrando a cabecinha do poldro de encontro à teta. A cabeça da égua estava junto dele, lambendo o poldro.

- Vou tentar - disse Scott. - E estou com vontade de cobrar a dobrar aos donos da égua. Felizmente que estava aqui você e Gunter para ajudarem, porque senão tínhamos sarilho. Isto aqui está um nojo. Não lhe deram uma ração de feno suplementar. E esta porcaria ... Cheire-me isto.

Steve cheirou.

- É isso que lhe dão para comer? - perguntou, repentinamente encolerizado. - Deviam ir presos por tratar assim do animal!

A voz que se ouviu à porta era inesperadamente mansa.

- A Ginny está bem?

- Não - respondeu Scott. - Precisa de muitos cuidados. Podia pedir a Mrs. Leigh para tratar dela, mas ela tem muito que fazer e tratar da égua e do poldro dá muito trabalho. Tinham de lhe pagar

bem.

- Eu pago tudo o que Mrs. Leigh quiser - disse a mulher. - Não posso de maneira nenhuma tratar deles.

Quando ela se foi embora, Scott disse: - Vou buscar o meu atrelado para levar a égua.

- Eu fico aqui com ela - disse Steve.

- Eu também a declarou Gunter. - A minha filha até fica satisfeita de se ver livre de mim.

Encostou um caixote à perna de Steve.

- Sente-se aí e vá entretendo a égua, enquanto eu limpo e dou uma arrumação a isto.

Gunter foi falando enquanto trabalhava, satisfeito por ter público. Ninguém o escutava desde que ele vivia em casa da filha, Mary. Os netos, não tinham paciência para ele; Mary tinha sempre muito que fazer, e o genro, Joe, escondia-se atrás do jornal quando voltava para casa e depois adormecia em frente da televisão até serem horas de ir para a cama.

- Tenho setenta e sete anos - disse Gunter -, mas ainda me sinto perfeitamente capaz de trabalhar com um forcado.

Estava muito atarefado a levantar com o forcado grandes montes de palha suja.

- O mal é parar. É da maneira que as pessoas ficam moles e morrem mais depressa.

Você também era lavrador. Vi-o apresentar o seu cão num concurso. É um animal absolutamente fora de série.

- Dava tudo para poder trabalhar com ele outra vez - disse Steve, exprimindo um pensamento de que não tinha ainda falado a ninguém.

Por qualquer razão, era fácil falar com Gunter.

- E porque não? Para isso não precisa de ver. Ele pode trazer -lhe as ovelhas. Você desembaraçava-se muito bem e se fosse preciso também tinha sido capaz de se desembaraçar sozinho com o poldro. Ajudei muitas vezes as vacas a parir numa noite escura como breu, só com uma lanterna fraca. Não é preciso ver para se ser lavrador.

- Tenho a certeza de que não era capaz - disse Steve.

- Se fosse a si, pensava nisso. Leva tempo a aprender, mas há muita gente tão cega como o senhor a dar muito boa conta de si.

Pode arranjar um cão-guia para o levar para a montanha. Tem nariz, ouvidos, braços e pernas e sabe muitas coisas que aprendeu à sua custa. Não leve a mal - acrescentou Gunter. - Não quero de modo nenhum ofendê-lo.

- Eu sei - respondeu Steve.

Gunter aceitava-o como ele era. Não se apiedava dele, mas tinha uma mensagem a transmitir-lhe: "Anda para a frente, rapaz, não percas tempo a queixar-te.

- Acho que o melhor é voltar para casa da minha filha - disse Gunter.

- Venha conversar comigo quando tiver tempo. Gosto de falar das coisas do campo e a Anna nunca tem tempo.

- Pois tempo é o que não me falta - declarou o velhote. De repente, pareceu ficar ansioso. - Quer mesmo que eu o vá visitar?

- Claro! É um favor que me faz.

- Até me parece mentira - comentou Gunter, sorrindo abertamente.

Steve ouviu o motor de um cano e saiu para a rua. Sentiu o calor do Sol na cara. Teve uma breve sensação de alegria, cheirou as flores e, pela primeira vez desde o desastre, sentiu-se relaxar.

- Lá vem o Dr. Lewis com o atrelado - disse Gunter a seu lado.

Steve ouviu o passo dançante da égua a subir a rampa. Voltou-se para procurar o poldro e levou-o até ao atrelado. Sentia-se satisfeito por ter conseguido ser útil e essa satisfação durou até à noite, à hora a que Gunter bateu timidamente à porta e entrou para conversar.

Anna tinha saído para ir ver a mãe de Susan, que estava doente com bronquite. Steve, tomando o café que Anna deixara para eles, entrou num mundo que lhe parecia agora muito remoto, falando das ovelhas e do preço da lã.

Nessa noite, dormiu profundamente e acordou pensando na próxima visita de Gunter. O velhote tinha prometido vir todos os dias.

Iam explorar juntos o mundo real que Steve deixara para trás, lá na montanha.

Steve tinha vontade de escrever a Mara e pedir-lhe para vir vê-lo e passar a vida consigo. Não podia viver sem ela, mas pensou que ela tinha de se habituar a viver sem ele, que havia de arranjar outro homem, um homem completo, um homem com vista, que lhe pudesse oferecer as coisas que ele sonhara antigamente dar-lhe. Enviava-lhe mensagens curtas, pois tinha a certeza de que Mara só lhe escrevia para o animar e não porque quisesse passar a vida ao lado de um homem cego e inútil.

Foi Anna quem escreveu a Mara, dizendo-lhe que Steve andava a aprender braille e que já a ajudava em casa. Steve só lhe ditava palavras destituídas de emoção, palavras sem esperança. "Passa bem." "Diverte-te." Palavras que magoavam Mara, pois parecia que ele tinha mudado, que já não precisava dela.

uma manhã, Sue veio ler para ele e escolheu o poema de John Keats La Belle Dame sans Merci. Era difícil arranjar livros para ler a Steve, e Sue tinha tendência para escolher as suas próprias leituras preferidas.

Steve ouvia-a distraidamente, até que a terceira estrofe lhe chamou a atenção:

Encontrei uma dama nos prados.

Tão formosa - filha de fada, Cabelo longo, pé ligeiro E olhos selvagens.

A memória, essa câmara implacável da mente, passou um filme diante dos seus olhos.

A voz era a de Mara. Sue tornou-se mal. O perfume que flutuava no ar também era o de Mara e ela estava ali a seu lado, lendo-lhe em voz alta. Mas afinal não era ela, não estava ali. Teve uma saudade intensa do passado, de Mara a seu lado, olhando para ele, rindo-se para ele. Costumavam rir tanto juntos.

Teve vontade de gritar a Sue que se calasse, mas a voz dela continuou a ler, sem dar pelo sofrimento que estava a causar:

E por isso aqui permaneço Só, lii?idamente vagueando, Embora no lago os juncos estejam murchos E as aves não cantem.

Estava perdido, perdido como o cavaleiro enfeitiçado pela fada.

Expulsara Mara da sua vida e tornara-se inimigo de si mesmo.

A sua determinação estava a vacilar. O telefone da entrada podia pô-lo em contacto com ela num ápice. Podia telefonar-lhe e dizer: "Vem, vem e ajuda-me." Mas prometera a si mesmo que a sua deficiência seria da sua responsabilidade exclusiva; não seria um fardo para ela; tinha de enfrentar a vida sozinho.

- Mas que maneira tão pouco indicada para animar uma pessoa - disse a voz de Gunter lá da porta. - Está um lindo dia de Primavera, um tempo maravilhoso, bom para um homem sair para a rua, e não para ficar sentado dentro de casa a sonhar com poesia. Desculpe, Sue. Sei que a sua intenção é boa.

- Está bem, Gunter. Então anime-nos o senhor - disse Sue. -- Este livro está cheio de poemas como este e a única coisa que eu queria era ler um ao Steve e depois dar-lhe o livro para a lição.

- Só pontos e traços, parece morse - observou Gunter, examinando o livro.

- São só pontos - declarou Sue.

- Mais valia arranjar um cão para guiá-lo e voltar para as suas ovelhas - disse Gunter.

- Quem é que disse que eu vou arranjar um cão e que vou voltar? - perguntou Steve, saindo bruscamente da sua apatia.

Gunter sentou-se.

- Sou eu que digo. Porque é que há-de desperdiçar tudo o que sabe? Lá na sua quinta pode ensinar um pastor ou uma dúzia de pastores. Pode levar para lá rapazes que andem a estudar para veterinários para o ajudar, e ia-os ensinando ao mesmo tempo. Nunca tive paciência para pessoas que não são capazes de reagir e é o que você está a fazer. Case com essa rapariga que lá deixou; a única coisa que lhe falta são os olhos.

- É muito fácil falar - disse Steve, ficando subitamente irritado, porque as outras pessoas estavam sempre a querer planear o futuro

dele.

- É fácil falar, pois - disse Gunter. - E ainda é mais fácil ficar aí sentado a pensar que é muito infeliz. Olhe, meu amigo, vou dizer-lhe uma coisa que nunca disse a ninguém. Aqui a Sue sabe calar a boca, nunca fala dos outros. Por isso, confio nela como confio em si.

O meu pai não prestava. Embebedava-se todas as noites, e quando estava sóbrio era mau como as cobras. Foi para a cadeia porque matou um homem quando eu tinha nove anos, e o meu tio levou-nos para casa dele, para os montes do Yorkshire.

Sue estava a fazer café para os três sem dizer nada. Gunter contemplava admirativamente os movimentos hábeis dela. Nem se percebia que era cega.

- O meu tio pôs-me a trabalhar como ajudante de pastor. Foi o velho Joe quem me ensinou tudo o que eu sei. Eu sonhava com ovelhas, só pensava em ovelhas e ensinei um cão. Casei-me e fui pastor numa grande herdade. Foram bons tempos. Tivemos dois filhos.

Depois nasceu outra, que não tinha o juízo todo. Viveu dezassete anos como se fosse um bebé, a nossa Stella. Era a rapariga mais bonita que eu já vi em toda a minha vida. Não andava nem falava. E quando morreu, a minha mulher foi-se abaixo. Apanhou uma gripe, depois teve uma pneumonia e pronto. A seguir veio a guerra e o nosso filho Jack foi combater e não voltou.

Começou a beber o café, entregue às suas recordações. Steve, ao ouvi-lo, começou a achar que os seus problemas afinal não eram tão importantes como isso.

- Poupei dinheiro durante todos esses anos, para ter a minha própria lavoura, e consegui arrendar uma propriedade. Comecei a criar ovelhas. E eram boas, ganharam muitos prémios. Mas um dia expropriaram a terra para construir um bairro camarário. Nunca construíram nada, mas puseram-me fora da minha terra. Passo todos os dias pela propriedade, a casa está a cair. É um mundo de loucos, mas temos de fazer tudo o que podemos e lutar até ao fim. Combater! Escrevo cartas à Câmara. Nunca me respondem, mas digo-lhes tudo o que penso. Você do que precisa é de uma mulher e de um cão-guia e das suas terras, Steve. Foi para isso que nasceu, amigo. O que eu não dava para me apanhar outra vez nas minhas terras! Mas é melhor não pensar nisso. Posso ir passear e olhar para as ovelhas.

Posso ir tomar uma cerveja ao serão. E ainda posso cantar e jogar aos dardos e olhar para umas pernas bonitas. Só olhar, claro.

Steve e Sue riram ambos e de repente Steve ficou mais bem-disposto. A história de Gunter tinha-o impressionado. A vida era uma anedota sem graça, mas o melhor ainda era rir.

Quando Anna voltou, encontrou Gunter e Sue a cantarem em coro velhas canções e juntou-se a eles. Steve, ouvindo-os na brincadeira, descontraiu-se, sorrindo de si para consigo. Tinha Sukie

empoleirada no ombro, encostada ao pescoço, amassando alegremente com as patinhas o casaco dele, toda contente com a música.

Juntou-se também ao coro.

Dave Masterson, que vinha a subir o caminho, ouviu-os cantar.

- Tem uma bela voz - disse a Steve quando entrou. - Temos um lugar para si. Vai haver um concerto no Centro e com essa voz a casa vem abaixo. Venho cá buscá-lo para os ensaios. Já cantou nalgum coro a sério?

- Nunca tive tempo - disse Steve. - Mas cantava no coro da minha escola. Depois disso, só cantei no banho ou nos montes. O Lig costumava ladrar ao eco.

Era a primeira vez que falava de Lig sem sofrimento.

Nessa noite, Steve pediu a Anna que escrevesse a Mara, pedindo-lhe para ir até ao Convento ver se o novo rendeiro estava a tratar bem da propriedade, e escreveu ao pai pedindo-lhe informações sobre o arrendamento, para o caso de ele querer voltar. Anna, escrevendo aquilo que ele ditava, estava encantada e pensou que a mudança talvez se devesse também em parte à influência dela, para além da de Gunter.

- Posso pedir-lhe para me ajudar a descarregar os fardos de feno da carrinha? - perguntou. - Basta levá-los até ao canto do celeiro do fundo. Gostava de poder semear o campo grande, mas sem o Dan é impossível.

Steve dedicou pela primeira vez a sua atenção aos problemas de Anna. Pensou na vida solitária que a esperava e na boa disposição constante com que ela o tratava. Depois pensou em Mara. Escrevia-lhe todos os dias, falando do Pelotão Amotinado, mas nunca da vida dela. Que vida seria a dela? Só agora, que estava a acordar para os outros, com a sensação de ter estado doente durante muito tempo e de ter entrado há pouco tempo em convalescença, é que percebia como tinha sido cruel para ela. As palavras de Gunter eram muito sensatas e perguntou a si mesmo se ela estaria à espera de que ele regressasse a uma vida o mais normal possível. Percebeu que ainda podia passear nos montes, talvez com Mara a seu lado, cheirar o ar salgado trazido pelo vento e ouvir as ondas e os maçaricos a piar.

Tinha-se condenado a si mesmo à morte em vida, mas ainda tinha futuro se estivesse disposto a lutar por ele.

- Gostava de arranjar um cão-guia - disse de repente a Anna.

- Acha que me arranjam um rapidamente?

Anna olhou para ele e respondeu numa voz muito alegre: - Estou tão contente, Steve! Estávamos só à espera de que você se resolvesse. Já tínhamos decidido há muito tempo que a Gemma era para si, assim que ouvimos falar de si no Centro e que soubemos que era lavrador. Os alunos de Mara, do Texas, juntaram o dinheiro

para o cão e Mara tem estado à espera da sua decisão para lhes escrever a dizer que você vai ficar com a Gemma. Já a adoptaram, a ela e a si.

Era uma sensação agradável: o Pelotão Amotinado, lá nos Estados Unidos, a juntar dinheiro para o ajudar.

- Tenho de lhes escrever - declarou Steve. - Vai ser já amanhã.

Estava outra vez a começar a fazer planos. Era o princípio da recuperação.


CAPÍTULO 8

MARA OLHAVA para Hennessey, que atravessava o pátio, dirigindo-se para ela, numa linda manhã de Primavera, com um borrego debaixo do braço e o cajado na mão esquerda. Os seus olhos azuis fitaram-na por debaixo do velho chapéu de feltro que nunca tirava, nem de Inverno nem de Verão, dentro ou fora de casa.

- Algum problema? - perguntou ela, pois conhecia bem aquela expressão.

- Os malditos cães mataram a ovelha. Se eu tivesse uma espingarda ..

- O melhor é pô-lo ao pé dos outros - disse Mara.

Já havia três borregos no celeiro, alimentados a biberão e mansos demais para o gosto dela.

- Está na altura de tirar um dia de descanso - disse Hennessey.

- Não vale a pena dar cabo de si, rapariga.

- Não tenho mais nada que fazer - respondeu Mara desanimadamente. - Ontem fui falar com o médico de Steve. Tinha esperanças de que eles o pudessem operar para lhe restituir a vista, mas ao fim de um ano ainda tem um olho inflamado, lá muito no fundo, e não se atrevem a mexer-lhe. É por isso que ele tem de continuar a fazer tratamentos. Se a inflamação passar, talvez possam fazer qualquer coisa. Mas o especialista receia que não passe e que vá de mal a pior. Nessa altura, nunca mais podem fazer nada. Steve ficou cego para o resto da vida e pronto.

- Não é o primeiro lavrador que é cego. A menina, Steve e eu formamos uma equipa. Ele devia saber que a menina nunca vai mudar de ideias.

- Não sei se ele me conhece assim tão bem - disse Mara.

Ficou a olhar para Hennessey, que foi pôr o borrego no celeiro.

O velho assobiou a Lig, que estava à espera das suas ordens, e saíram os dois do pátio. Mara voltou para casa.

- Uma carta para si - gritou o caneiro, espreitando por cima do muro. - Como é que está Steve? - perguntou depois.

- Está óptimo - disse Mara. - Daqui a pouco, volta para casa.

Fez figas. Não era mentira.

O caneiro acenou-lhe e montou-se na bicicleta, e Mara foi para a cozinha com a carta. Tinha sido enviada para sua casa primeiro e reexpedida depois para ali. Sentou-se e abriu-a relutantemente, sabendo que não traria novidades.

Era uma carta muito mais comprida do que de costume, ditada

pelo próprio Steve. Leu-a devagar. Depois releu-a e correu para a rua para dar a novidade a Hennessey, com um grande sorriso. Era a primeira vez que ele a via sorrir alegremente de há um ano para cá.

Ficou à espera, encantado, franzindo a cara toda num sorriso que lhe acentuava as rugas.

- Boas notícias, menina?

- Steve quer que eu lhe diga quem é que arrendou o Convento e em que condições, porque vai arranjar um cão-guia e acha que vai voltar e trabalhar aqui. Pode meter cá estagiários para lhes ensinar ovinicultura, tem estado a ajudar a Anna com os animais e conheceu um criador de ovelhas chamado Gunter ... Vamos comemorar isto, Hennessey. Vou tomar um xerez e você também!

De repente, mudara completamente, era um furacão, ria ao mesmo tempo que deitava o xerez nos copos, passeava pela cozinha para a examinar, estudando as coisas que Steve tinha começado a fazer e que ela podia acabar, espreitava Lig, pacientemente deitado lá fora, à espera de ser necessário.

Escreveu a Steve, respondendo à sua carta.

Querido Steve Não te disse nada, mas sou eu que estou a morar no Convento e a tomar conta de tudo até tu voltares para casa. O Hennessey veio ajudar-me e só queria que visses o rebanho. Acho que as coisas estão todas como tu as costumavas ter. O meu jardinzinho está lindo e plantei alfazema e alecrim.

Também estou a criar gatos. Tenho dois camelos. Agora vivem dentro de casa, mas podemos construir-lhes uma casota lá fora, mais tarde. Sei que não gostas de gatos dentro de casa.

Estou a dormir na tua cama. Era mais fácil do que comprar outra para o quarto de hóspedes e de qualquer maneira espero que vás casar comigo! O meu vestido de noiva está à espera.

O Lig está óptimo e eu também.

O Pelotão Amotinado já escolheu o teu cão há que tempos.

Mandaram-me um retrato da Gemma. É linda ...


STEVE ouvia Anna a ler-lhe a carta de Mara. Então era ela que estava a morar no Convento, a dirigir a exploração, à espera dele. E ele que pensava que Mara estava ocupada com outras coisas, que o esquecera, que lhe escrevia por obrigação. Pelo contrário, estava a continuar a obra dele.

Os pensamentos atropelavam-se na cabeça de Steve. Mara não queria o sacrifício dele; estava ela própria a sacrificar-se. Tinha obrigação de conhecê-la melhor! De repente, sentiu-se invadido por uma alegria esfuziante, achou que afinal a vida dele sempre tinha um futuro, começou outra vez a fazer projectos, visualizando o

Convento e o seu lugar aí, com Mara a seu lado, completando as suas capacidades. Porque ele ainda tinha capacidades. Tinha um cérebro e podia usá-lo, e não era aleijado nem viria a sê-lo.

- Pode fazer um telefonema para o Convento? - pediu a Anna.

Anna nem se atreveu a fazer comentários. Marcou o número e entregou o auscultador a Steve, que ficou ansiosamente à espera, quase sem se dar conta de que Anna saíra e fechara a porta.

- Mara?

Fez-se um silêncio. Depois ouviu um "Steve!" incrédulo.

- Dentro de seis meses vou para casa - disse Steve.

Não era capaz de dizer nem metade das coisas que queria, principalmente ao telefone. Nunca fora um homem de palavras doces e declarações de amor.

- Olha, cara linda, podes começar a tratar de tudo. Casamo-nos assim que eu voltar.

- Queres que eu vá aí ver-te? - perguntou Mara. Tinha muitíssimo que fazer, mas arranjava tempo. - Passar um fim-de-semana, por exemplo?

- Não. Prefiro que fiques aí. Mas estou pronto para o cão e quanto mais depressa mo derem, mais depressa vou para casa. Tenho de aprender n?uitas coisas. Mas vou aprender depressa. Mas telefona-me, Mara. Sempre que puderes.

A voz de Steve era jubilosa.

Anna, que estava lá fora a tratar dos cães, também ficou jubilosa. Steve estava finalmente a fazer progressos. Mas quando ele se mudasse para o Centro com Gemma, ia ficar outra vez sozinha. De repente, foi invadida pela tristeza. Não podia entrar em casa agora.

Steve tornara-se tão sensível ao estado de espírito das pessoas que percebia imediatamente como ela se sentia, mesmo sem lhe dizer nada, e o mesmo acontecia em relação a Sue. Graças a Steve, Anna percebera que Sue não estava sempre tão bem-disposta como aparentava. Nos dias em que os caprichos da mãe eram mais difíceis de aturar, vinha falar com Steve.

Já tinha pensado se Sue e Steve não estariam bem um para o outro, mas tinha uma impressão muito nítida de que Sue só estava interessada em Dave Masterson. E não pareciam ter futuro enquanto a mãe de Sue fosse viva. Sue não tinha tempo para mais ninguém e estava muito presa.

Nesse instante, Dave entrou pelo portão.

- Steve está outra vez noivo - disse Anna, e depois as lágrimas começaram a correr-lhe pelas faces.

Dave pôs-lhe o braço por cima dos ombros.

- Que foi, Anna?

- Nada. Steve vai-se embora e eu sinto-me inútil.

Estava furiosa consigo mesma por ter revelado os seus sentimentos a Dave, que já tinha problemas de sobra.

- Está a fazer um óptimo trabalho, Anna - disse Dave. - Mais ninguém o podia fazer. Precisamos da sua experiência. Ajudou muito mais Steve do que qualquer de nós. Não pode pensar isso de si. Vai haver outras pessoas para ajudar.

Anna sorriu-lhe e voltou para o seu trabalho, mais animada.

Dave entrou em casa.

- Então, já sei que finalmente ganhou juízo - disse a Steve. -- Gemma está à sua espera, já a conhece.

- Nem por isso - respondeu Steve.

Gemma fora-se embora para ser ensinada quando ele ainda mal tinha consciência do que se passava à sua volta. Mas, apesar disso, não ia ser difícil de trabalhar com ela - tinha a certeza. Não havia nenhum cão que pudesse levar a melhor a Steve.

Gemma era tão boa aluna como Dave esperava. Saía com ela todos os dias, passeando muitas vezes pelo meio das ovelhas e dos cavalos. Anna havia-a ensinado a atravessar a rua - ficar à espera até não vir nenhum carro -, mas agora tinha de aprender outras manobras mais complexas. Levaram-na para uma rua sossegada, onde puseram uma carnnha a andar para cima e para baixo, parando à frente de Gemma quando a cadela estava a preparar-se para atravessar a rua, entrando para um portão quando ela se dirigia para lá e fazendo inversão de marcha quando parecia que ia andar para a frente. A cadela aprendeu a dar atenção até às bicicletas mais silenciosas e a avaliar a velocidade dos veículos e a distância a que se encontravam.

Andou de autocarro e de comboio, levando Dave até à estação ou à paragem de autocarro. Levaram-na para a beira-mar e passeou num cais num dia de muito vento, com as ondas a rebentarem com força no paredão. Habituou-se a entrar sem receio em lojas grandes e pequenas. E, devido à profissão de Steve, levaram-na também a feiras de gado e ensinaram-na a andar pelo meio dos cercados e a ficar quieta enquanto os animais eram leiloados.

- É um animal fora de série - dissera Dave a Sue, que era quem costumava experimentar os cães-guias nos seus primeiros contactos com os invisuais. Gemma passou todos os exames com a nota máxima.

Estava na altura de Gemma conhecer Steve.


E TAMBÉM estava na altura de Steve se ir embora de casa de Anna. Tinha de tirar um curso a tempo inteiro, mais difícil do que ele pensava. Agora tinha de ir para um lugar estranho e coabitar com mais sete cegos, vivendo num contacto mais íntimo com eles do que o que tivera com qualquer outro grupo de pessoas desde que saíra da escola. E tinha de aprender a lidar com Gemma.

Anna foi levá-lo ao Centro.

- Vou ter saudades suas - disse. - Felicidades, Steve.

- Obrigado por me ter aturado - respondeu Steve, segurando-lhe na mão, desejando poder ver a cara dela. Tinha sido uma mãe para ele, sem andar muito em cima dele, aturando-lhe os humores e ajudando-o a reconquistar a sua independência. Sentiu-se muito sozinho quando ouviu o carro afastar-se.

Mas depois Dave veio recebê-lo, uma pessoa conhecida para o guiar até ao quarto. Havia mais dois homens e cinco mulheres a frequentarem o mesmo curso de Steve.

- Três são velhos e cegaram devido a doenças várias relacionadas com a idade - disse Dave. - Há um rapaz que é cego de nascença; só agora é que foi possível arranjar-lhe um cão. Há uma mulher que está à espera há dois anos. Tem um metro e meio de altura, por isso precisávamos de um cão pequeno, e só agora é que conseguimos ensinar um que prestasse. Depois, é você e um jovem corredor de automóveis que cegou num desastre. A última é a directora de uma escola. Acho que vai criar problemas. Parece-me que é uma daquelas pessoas que sabem sempre tudo melhor do que os outros.

Steve ficou admirado quando descobriu que, se Gemma fosse mais pequena, seria entregue a outra pessoa. Ele era alto e precisava de um cão grande. Mas Gemma tinha saído a Sam, e não a Mellie, sob esse ponto de vista.

- Como é que ela é? Parece-se mais com um labrador ou com um retriever? - perguntou Steve.

- Tem pêlo, cabeça e cauda de retriever. Aliás, acho que toda a gente, menos os especialistas, pensa que ela é um retriever puro. -- disse Dave. - É tão bonita que as pessoas param na rua para lhe fazerem festas. Mas isso não é permitido quando ela está a trabalhar.

A primeira refeição no Centro foi difícil. Steve sentia-se mal no meio dessas pessoas que não conhecia e que nunca poderia ver. A conversa foi dominada pela directora da escola, que falava muito alto, num tom de voz afectado que irritava extraordinariamente Steve.

- É claro que, quando tiver o meu cão, posso voltar para a escola e viver no meio das pequenas, sem qualquer problema - declarou a certa altura.

Uma voz doce disse baixinho ao ouvido de Steve: - Não vai ser óptimo?

Ele riu-se: - Chamo-me Steve Drake - disse. - Sou lavrador. Era, pelo menos - acrescentou num tom de voz mais grave.

- Eu chamo-me Lynn Ferguson. Era bailarina - disse a rapariga sentada ao lado dele. - Estava a ver uma exposição quando uns terroristas puseram uma bomba.

Falou com naturalidade. Vivia com a sua cegueira há dois longos anos, mas apesar disso tinha uma voz risonha. Rira da mulher que irritava Steve e agora estava outra vez a rir.

- Para que é que nos deram ervilhas? - perguntou. - Tenho o colo cheio de ervilhas. O melhor era darem-nos uns pratos de cão e nós púnhamo-nos de gatas e comíamos no chão. Cá por mim, desembaraçava-me muito melhor.

A gargalhada de Steve ecoou na sala, e Dave voltou a cabeça, surpreendido, para olhar para ele. Nunca tinha ouvido Steve rir tão gostosamente.

- Conte-nos lá qual é a graça - pediu.

- Lynn está a entornar ervilhas para todos os lados. Diz que o melhor era comermos no chão, como os cães.

Toda a gente se riu, menos a dona da voz forte.

- Que ideia nojenta - declarou ela.

Mas tinham quebrado o gelo e não lhe deram importância.

Mais tarde, ao serão, conversando com Lynn, Steve viu que ela estava sempre a brincar com a sua cegueira.

- A minha mãe ficou destroçada - disse Lynn. - Por isso, tive eu de ser corajosa. Ela tinha feito tantos projectos para a minha vida. Se tiver filhos, não faço projectos para a vida deles. É uma grande responsabilidade para eles.

- Vai casar? - perguntou Steve.

- Sim. Estou noiva. Larry estava comigo na exposição. Ficou sem uma perna. Mas agora tem uma perna artificial e está a aprender a andar. Não sabemos se é o coxo que vai guiar o cego ou vice-versa.

Nessa noite, deitado num quarto estranho, sentindo-se de repente como se tivesse sido apanhado numa armadilha, Steve esforçou-se por pensar em Lynn. Tinha vinte e dois anos e cegara de uma maneira ainda mais estúpida do que ele. Ao menos, ele ainda sabia que tinha salvo da morte cinco crianças e uma mulher.

- Tive sorte - ouvira-a Steve dizer a outra pessoa. - Algumas das vítimas da bomba morreram e outras ficaram muito pior do que eu. Posso ouvir música e passear ao sol; posso casar e ter filhos. E sempre quis ter um cão, mas dantes nunca estava em casa e não podia tomar conta dele.

As primeiras lições, no dia seguinte, não foram novidade para Steve: como tratar do cão e alimentá-lo, os cuidados a ter com o animal, o exercício, como falar com ele para o elogiar ou repreender.

- Nunca ralhem com um cão que volta para junto de vocês, mesmo que esteja todo coberto de lama - disse Dave. - O cão esqueceu-se de tudo o que fez. Só sabe que correu ao vosso encontro e que lhe ralharam por causa disso. E da próxima vez é possível que não venha.

No terceiro dia, mandaram toda a gente para os respectivos quartos à espera dos cães. Steve ficou sentado, sabendo que Gemma só ao fim de muito tempo seria realmente o seu cão. Anna fora o seu primeiro pormenor e Dave o seu treinador no Centro, que conquistara o seu respeito. Um cão que tinha um passado não entregava assim a sua confiança de um dia para o outro, e alguns nunca o faziam. Podia ser que isso acontecesse com Gemma e, nesse caso, Steve voltava à estaca zero. Pensou se Gemma se lembraria dele e sentiu-se tão excitado como um adolescente que sai pela primeira vez com uma rapariga.

Nessa altura, ouviu o ruído das patas do animal por detrás da porta. Esta abriu-se e Dave disse: - Aqui está ela. Faça-lhe uma recepção entusiástica, Steve.

A porta fechou-se novamente e Steve ficou sozinho com o seu novo cão.

- Gemma - chamou.

A cadela aproximou-se cautelosamente. Farejou com o seu focinho frio o fato de Steve e depois a sua mão. Era Anna quem tratava do fato dele; e Sam e Mellie costumavam encostar-se a Steve. Gemma reconheceu-o: abanou o rabo, correu para ele e pôs-lhe as patas nos ombros. Depois, encostou-se a Steve e deixou-se acariciar.

Steve recostou-se na cadeira, com o seu novo cão ao lado. Nesse momento, sentia-se livre, tranquilo e em paz. Pensou outra vez em Lynn, brincando com a sua cegueira, fazendo projectos para o futuro.

- Temos muito que aprender, pequena - disse, e Gemma bateu com o rabo no chão com força.


CAPÍTULO 9

ERA muito fácil entender-se com Gemma quando estavam a brincar. Mas no trabalho a coisa era muito diferente, como Steve teve ocasião de verificar. Gemma estava muito bem-disposta da primeira vez que ele a escovou, brincando com a escova e irritando-o de tal maneira que ele lhe falou em voz ríspida - a voz com que punha Lig na ordem.

A cadela fugiu-lhe imediatamente.

Começou a tactear no cubículo onde estava a escovar o cão, e Dave, ouvindo-o chamar "Aqui, Gemma, aqui", acorreu imediatamente.

- Ela está a fugir de si - disse. - Que é que lhe fez?

- Estava a fazer-se de parva e ralhei com ela - respondeu Steve.

- Fugiu.

- É uma cadela muito sensível - disse Dave. - Basta modificar ligeiramente o tom de voz quando quer ralhar com ela. Ouça.

Anda, Gemma. Minha linda, vem cá.

- Não estou habituado a cães sensíveis - disse Steve, irritado, prevendo dificuldades. - Sempre mandei nos meus cães.

- Não se esqueça de que a Gemma não é o Lig e de que não é um collie. Está ansiosa por lhe agradar, é muito submissa sob certos aspectos, mas também é capaz de tomar uma iniciativa quando surgir qualquer coisa que a obrigue a usar a cabeça. Vai ter de aprender tudo outra vez, Steve. Agora você não é o treinador. Ela é que o vai ensinar. Achei que não ia ter dificuldades com a sua prática. Mas, pensando bem no que me disse do Lig, se calhar a Gemma não é o cão que lhe convém; não pode ser tratada com dureza. Precisa de uma pessoa muito carinhosa.

- Surgem sempre estes problemas? - perguntou Steve, desanimado.

- Constantemente. É um desafio, para si e para mim. Tenho de lhe ensinar tudo de novo e você tem de aprender que as raças são diferentes. Ainda se vai orgulhar da Gemma, se a deixar fazer o que ela sabe. E agora tenha cuidado com o tom de voz e não seja ríspido com ela. Ela não suporta isso.

Ao fim do dia, Steve começou a pensar no que se tinha passado durante a manhã. As coisas não tinham corrido lá muito bem. Não estava habituado a que o cão andasse à frente dele; apetecia-lhe fazer estalar os dedos para obrigá-la a vir para trás dele, como Lig costumava andar. Além disso. não via Gemma e o arreio parecia afastá-la ainda mais dele. Estava agarrado ao arreio como uma criança ao de um cavalo de baloiço. Várias vezes, quando Gemma parou, falou-lhe numa voz mais ríspida do que tinha intenção de o fazer. Nunca se tinha dado conta de que precisara de usar uma voz muito severa para disciplinar Lig.

- Isso assim não pode ser - dissera Dave, desesperado, quando Steve se recusara a avançar na altura em que Gemma tentava andar para a frente. - O seu tom de voz é muito severo. E está a atrapalhá-la. Confie nela, por amor de Deus, ela sabe quando é que o caminho está desimpedido. Podia perfeitamente ter atravessado ali.

Estavam num dédalo de ruelas intrincadas, próximas do Centro, no meio de veículos de treino, que andavam lentamente para cá e para lá. Steve tinha a certeza de que vinha lá um carro, que afinal estava a passar na outra rua. Tinha parado de repente, dizendo "Não, Gemma!", certo de que a cadela o estava a conduzir para a morte.

Foi muito cansativo e, quando voltaram para o quarto, Gemma não foi para perto dele. Deitou-se encostada à parede, olhando-o ansiosamente, receosa de que ele a repreendesse novamente. Steve ficou sentado, sem saber o que fazer, não querendo chamá-la, pois tinha medo de a assustar ainda mais, e certo de que nunca seria capaz de se entender com a cadela. Iam ter de lhe arranjar outro animal, um cão menos susceptível, e teria de recomeçar tudo de novo.

Dave entrou no quarto e encontrou Steve recostado na cadeira com uma expressão sombria e de punhos cerrados, lutando contra a sensação de desespero total que o tinha invadido. Olhou para Gemma, que agitou a cauda, mas sem deixar de olhar ansiosamente para Steve. Tinha de arranjar maneira de conseguir que os dois se entendessem.


O JANTAR foi uma refeição triste. Toda a gente estava com dificuldades. Todos haviam tido pelo menos uma experiência decepcionante.

Dave, que já acolhera muitos grupos como aquele, sabia que as coisas se passavam sempre da mesma maneira. Mas andava preocupado com Lynn, que estava muito nervosa e cujo cão sentira isso mesmo. Também estava preocupado com Steve e não tinha paciência para a directora da escola, que fora desagradável para ele e para o cão; não tinha a certeza de lhe poder confiar um cão.

Até Lynn estava desanimada.

- Estava certa de ter razão - disse, contando a Steve que tinha caído por uns degraus. - A minha Meggie parou, mas eu não sentia

nada à minha frente. Sou sempre capaz de pressentir os obstáculos, e não havia ali nada. Por isso avancei e dei um trambolhão pelos degraus. Estou cheia de nódoas negras em sítios impossíveis!

- Teve sorte de não partir nada - disse Dave. - Tem de confiar na Meggie. Ela é muito bem capaz de tomar conta de si. E nenhum de vocês está a elogiar como deve ser os vossos cães. Não vale a pena trabalhar para uma pessoa que nunca nos diz que fizemos um bom trabalho, e os cães desistem se vocês não os elogiarem.

- Já somos suficientemente ridículos assim - disse a directora da escola - sem nos pormos a falar com os nossos cães ainda por cima.

- Eu gosto de falar com o meu cão - replicou Lynn. - Só que não sou capaz de lhe falar com a voz que deve ser. Precisava de ter a sua voz, Steve, e você se calhar precisava de ter a minha. Esta manhã ia a correr atrás da Meggie a noventa à hora e não era capaz de a fazer parar. Ela não me liga nenhuma. Fartei-me de lhe dizer "Não, Meggie. Devagar, Meggie. Por amor de Deus, Meggie". Mas esqueci-me de tudo o que Dave nos ensinou e tive de correr atrás daquele cão maluco, até ao rio, ou não sei onde. A Meggie deve ter visto um gato e esqueceu-se de tudo o que aprendeu.

- Não. Você é que se esqueceu de tudo - disse Dave. - Tenho aqui um gravador e vou gravar as vossas vozes a falarem com os cães. Depois, podem ouvir outra vez e esforçarem-se por fazer melhor.

Steve, ouvindo a sua gravação, à noite, percebeu de repente porque é que Gemma tinha medo dele. A sua voz não era só autoritária; tinha uma rispidez que nunca tivera a falar com Lig, exprimia a sua frustração consigo mesmo e o seu ressentimento perante a dependência em que estava em relação ao cão.

- Não me pode emprestar o gravador? - perguntou a Dave. -- Gostava de treinar.

- Pode ensinar Lynn e ela ensina-o a si - disse Dave. - Vai ter de trabalhar muito mais com a Gemma para ela recuperar a confiança em si. Entendia-se muito bem consigo antes de começarem a treinar.

Steve habituou-se a fazer equipa com Lynn todos os dias, ouvindo as ordens dela e ela as dele.

- Está a falar com ela como se estivesse zangado, Steve - dizia Lynn. - Tem de ser mais meigo.

- Não é assim - dizia-lhe Steve, por seu turno. - A Meggie tem de a guiar, mas também de lhe obedecer.

- Vocês não podem trocar de cão - dizia Dave -, por isso o melhor é habituarem-se aos vossos.

Gemma continuava hesitante. Dave veio ao quarto de Steve com uns bocadinhos de fígado bem cozido.

- Brinque com ela. Chame-a e dê-lhe de comer sempre que ela vier - disse. - E veja se se divertem os dois, não esteja sempre tão sério. Não leve tudo tanto a peito.

- Isso é fácil de dizer - retorquiu Steve, furioso.

- Isso é que não é, amigo - disse Dave, repentinamente irritado.

- Sofro imenso com cada novo grupo, e tenho muitos problemas com eles. Todos vocês estão fechados dentro de vocês mesmos; é claro que sofrem mais do que eu posso imaginar, mas isso às vezes vê-se, e custa-me muito. Lynn ri-se, mas você não vê que ela tem os olhos vermelhos todas as manhãs, porque passa metade da noite a chorar. E um homem que aqui esteve no ano passado bebia como uma esponja todas as noites. Não lhe pudemos dar o cão. E saltou do comboio quando foi para casa. Como é que acha que eu me sinto quando essas coisas acontecem? Às vezes, custa tanto que a minha vontade é desistir. Você tem mais sorte do que muitos dos outros; tem uma casa, um emprego, uma mulher à espera para casar consigo. Por isso, faça o possível por se entender com o cão!

Dave saiu, atirando com a porta. Steve ficou a pensar. Dave tinha razão - ele não estava a esforçar-se muito. Tinha de esquecer Lig. Estava convencido de que sabia tudo e agora via-se atrapalhado; aquele animal tão meigo confundia-o.

- Ora, Gemma - disse. - Que é que eu vou fazer contigo, rapariga?

A cadela levantou-se, abanando o rabo, e Steve baixou-se para a acariciar.

- Anda - disse, batendo na perna.

Gemma pôs as patas nas suas coxas e ele sentiu o corpo da cadela encostado às suas pernas. Pegou-lhe ao colo.

Quando Dave voltou, daí a bocado, para pedir desculpa pelo seu ataque de mau génio, não teve resposta quando bateu à porta. Abriu-a. Steve estava a dormir, recostado na poltrona, com Gemma deitada no seu colo, com a cabeça encostada ao ombro dele. A cadela olhou para Dave e abanou ligeiramente a cauda, mas Steve não acordou.


ESSA NOITE assinalou uma viragem.

Steve, concentrando-se nas sensações que lhe eram transmitidas através do contacto com a pega do arreio, tentava falar em voz mais suave, mais doce, sem se esquecer de elogiar constantemente a sua cadela. Gemma começou a reagir favoravelmente a esse tratamento, a trabalhar outra vez com prazer. Dave, que ia atrás deles, percebeu pelo modo como a cadela agitava alegre?riente a cauda que estava outra vez ansiosa por dar o seu melhor.

As sessões eram cada vez mais complicadas: atravessar as ruas nos locais onde o trânsito era mais intenso, tentar identificar os ruídos do trânsito, parar quando Gemma parava e perceber que o sinal muito ligeiro que ela dava era para recomeçar a andar. Habituar-se a confiar nela.

Steve nunca se tinha dado conta de todos os perigos que o espreitavam numa rua: os carrinhos de bebé, as cabinas telefónicas, as escadas, as crianças a andar de bicicleta nos passeios, os parquímetros, os candeeiros.

Havia passeios altos e passeios rentes à rua e algumas ruas tinham uma inclinação enervante que dava a Steve a sensação de que ia perder o equilíbrio. Havia degraus para descer ou subir para as lojas e nunca faltava o elemento da surpresa total, da descoberta, pelo que a vida se transformou numa exploração interminável.

Todos tinham progressos para anunciar ao serão, informações para trocar, comentários a fazer sobre os seus cães. Steve descobriu que Gemma gostava muito de se rebolar na lama; Meggie tinha tendência para correr atrás dos gatos. Havia uma cadela chamada Tara que não era capaz de resistir a um gelado e que ia sempre lamber os gelados das crianças. A directora da escola, para grande alívio de toda a gente, desistiu de ter um cão, e Dave ficou muito satisfeito por a decisão ter partido dela.

Agora estavam a ficar todos muito entusiasmados com os respectivos cães. Lynn tinha a certeza de que o seu cão era o melhor de todos, e Steve apercebia-se gradualmente de que Gemma tinha qualidades que Lig não possuía.

- Você recuperou o seu jeito com os cães - disse Dave certo dia, após uma das suas sessões de trabalho. Dave estava encantado com a mudança que via em Steve: andava com confiança, parava quando a cadela parava, elogiava o animal quando atravessavam num cruzamento difícil, levando-o a agitar a cauda de satisfação.

Iam ser bons parceiros. Ainda seria necessário algum tempo, mas tudo apontava nesse sentido e a vida de Dave era aquilo. Aquilo e Sue. Mas Sue era prisioneira da mãe.

Steve começou a gostar de se aventurar, de andar outra vez em passo rápido. Também era um alívio ter-se visto livre daquela dor constante nos olhos e da tirania das sessões de tratamento no hospital. A inflamação estava a desaparecer, mas o tecido ocular fora gravemente lesado.

Descobriu que, usando uma régua, era capaz de escrever cartas legíveis. As palavras ficavam distribuídas pela página um bocado ao acaso, mas podia escrever a Mara à contar os seus progressos, e sentia-se estimulado pelas cartas que ela lhe escrevia, falando dos problemas que tinha com as ovelhas, dos preços por que vendera os borregos nascidos na Primavera e das plantas que dispusera no jardim. Pensou como seria a reacção de Lig quando visse Gemma e se Sukie, que ele ia levar também para sua casa, se lembraria da cadela.

Anna veio visitá-lo. Tinha uma nova ninhada de cachorros e uma nova hóspede, uma rapariga cega. Anna também andava a fazer projectos.

- Tenho saudades suas - disse a Steve -, mas arranjei outro ajudante. O Gunter começou a aparecer lá em casa todos os dias.

Apesar de ser velho, é forte como um touro, conserta-me as coisas e carrega com pesos. Dou-lhe de comer, mas não quer que eu lhe pague. Diz que é uma alegria alguém precisar dele. E vou começar a criar ovelhas; fiquei com o Barulhento. Felizmente que já largou o biberão! Antes assim, porque para o ano que vem já vai ser pai.

- Como é que está a Sukie? - perguntou Steve.

- Tem saudades suas. Vai ficar contentíssima quando você a for buscar.

Todos os alunos do curso estavam também a fazer projectos. Só já faltavam dois dias para o concerto de encerramento. Andavam todos a ensaiar e Steve tinha prazer em cantar a plenos pulmões, tirando partido da sua voz. E depois do concerto ir-se-iam todos embora, para viverem a vida à sua maneira, com os seus cães.


CAPÍTULO 10

MARA queria fazer uma surpresa a Steve e ir buscá-lo ao Centro, por isso disseram que era Andrew que o iria buscar. Steve podia ter voltado para casa de comboio, mas Sukie ainda complicava mais as coisas, e por isso toda a gente achou que era mais simples regressar de automóvel.

Mara achara muita graça quando soubera que Sukie também vinha com Steve, que ela o tinha adoptado e havia desempenhado um papel na sua vida durante todo o tempo em que ele estivera em casa de Anna. Steve devia ter mudado muito.

Mara chegou na véspera do concerto. Ia ficar nessa noite em casa de Anna. Tinha a sensação de conhecer bem Anna, mas ao mesmo tempo não podia deixar de se sentir inquieta na viagem de automóvel para sul. Já lá ia muito tempo. E Steve tinha passado por experiências que ela não partilhara e que só podia imaginar.

Anna mandara as suas instruções, e quando Mara entrou no caminho que ia dar a casa dela, reconheceu Setter's Dene pela descrição. Ouviu cães a ladrar e viu um cavalo a espreitar por cima da sebe. Depois apareceu Anna, que era tal e qual como ela imaginara; deu-lhe um beijo e levou-a para dentro, apresentando-a à sua nova hóspede cega, Sadie.

Mara só queria que Steve soubesse que ela viera depois de o concerto ter terminado. Tinham dito a Steve que o pai ia chegar muito tarde. No dia seguinte, Mara sentou-se no meio do público, com as mãos a tremer. Assistiu a todos os números do espectáculo: um sketch representado por duas mulheres cegas, que se mexiam como se tivessem vista; as canções, com o público a entoar o refrão; e depois Steve, entrando em cena guiado por Gemma. Mara foi invadida por uma onda de júbilo quando viu como Steve se desembaraçava bem e como a cadela voltava a cabeça para olhar para ele quando se sentava.

Steve cantava bem. Não havia dúvida. Entoou em voz forte e afinada uma canção de taberna que Gunter lhe ensinara. Gunter, que estava sentado ao lado de Anna, batia o compasso com a mão.

Olhando para Steve, ouvindo-o cantar, Mara percebeu que nada tinha mudado. Steve era o seu homem, para toda a vida, e as lágrimas correram-lhe pela cara.

Toda a gente bateu palmas quando Steve acabou, e Gemma, assustada, pôs-se em pé de um pulo e ladrou. Steve riu-se e pôs-lhe a mão em cima da cabeça, e a cadela abanou a cauda, convencida de que os aplausos eram para ela.

Toda a gente começou a conversar e a rir, dando os parabéns aos artistas e fazendo as suas despedidas, e depois chegou a altura de subir para o quarto com os amigos e parentes para começar uma nova etapa da vida.

Mara ficou a olhar para Steve, que subiu as escadas a correr, com Gemma a seu lado. Foi atrás dele, deixando Anna cá em baixo. De repente, teve medo. Steve não sabia que ela tinha vindo. Talvez não devesse ter feito aquilo, mas queria ser a primeira pessoa de casa a dar-lhe os parabéns.

Bateu à porta.

- Pai?

Mara abriu a porta e Gemma ladrou.

- Sou eu - disse.

Fez-se um silêncio que pareceu eterno e de repente Steve estava ao pé dela, abraçando-a como se nunca mais a quisesse largar.

E Mara percebeu que tinha agido bem.

- Estás mais magra - disse finalmente Steve em tom de repreensão. - Pareces um gatinho, só ossos, sem carne nenhuma.

Que é que andaste a fazer?

- A trabalhar - respondeu Mara. - E o Convento está quase como nós tínhamos planeado. Mas preciso de ti. A mão-de-obra está muito cara!

- Isso quer dizer que vamos viver em pecado no Convento, não?' - disse Steve em voz de riso.

- Vou para casa e tu vais para casa dos teus pais até sábado. O Hennessey fica a tomar conta das ovelhas. A sala já está alugada, já fiz os convites, já recebemos os presentes e está tudo pronto para o casamento.

- Um casamento forçado - disse Steve, mas com uma voz divertida. - E se eu disser que não?

- Podes dizer que não - declarou Mara. - Tanto faz, porque a primeira coisa que eu vou fazer quando chegar é ensinar à Gemma o caminho para a igreja.

Tentou falar em voz calma, procurando detectar a rejeição na cara de Steve, mas só viu o sorriso divertido dele.

- Um cego? Já pensaste bem, Mara? - perguntou Steve ao fim de alguns minutos.

- Se o Larry pode casar com a Lynn, eu também posso casar contigo - disse ela.

- Porque é que dizes isso?

Steve nunca tinha pensado na aparência de Lynn.

- A bomba rebentou na cara dela, Steve. Fizeram tudo o que foi possível, mas tem cicatrizes terríveis. Felizmente que ela nunca as vai ver.

Steve pensou em Lynn, que os fazia rir a todos. Tinha conhecido Larry nessa noite e simpatizara muito com ele; percebia-se que se orgulhava muito da sua Lynn. Também iam casar nesse sábado.

Steve sentou-se na sua poltrona e puxou Mara para junto dele; Gemma deitou-se no chão a seu lado, vigilante.

- Fala-me do Convento - disse Steve, aspirando o perfume do cabelo dela enquanto a ouvia, e teve a certeza de que afinal havia no mundo lugar para ele.


A VIAGEM do dia seguinte pareceu-lhe muito diferente da outra que fizera sozinho, há tantos meses. Sukie, numa gaiola de arame, miava sempre que o carro dava uma curva. Gemma ia deitada aos pés de Steve, e Mara guiava habilmente o carro, levando-os para casa.

Para casa. Steve era capaz de ver perfeitamente a sua casa em pensamento.

Perguntou a si mesmo como é que Lig receberia Gemma. E se o cão se lembraria dele.

Chegaram a High Hollows. A mãe, completamente recuperada, recebeu-o a chorar e Andrew abraçou-o, acolhendo-o com voz calorosa; também lá estavam os trabalhadores da quinta, que vieram apertar-lhe a mão, para ele ter a certeza de que nada tinha mudado.

Mais tarde, Steve e Gemma saíram para o pátio e foram dar um passeio pelos montes; Steve descobriu que era capaz de andar tão depressa como sempre e que Gemma o levava para onde ele queria.

Voltou para casa muito satisfeito, sabendo que tinha reconquistado a sua liberdade, que era outra vez um homem independente.

Esse contentamento permaneceu com ele durante a noite e até ao dia seguinte, mantendo-se durante a cerimónia do casamento - Gemma subiu com ele ao altar - e o almoço; depois, foram ver a corheille, e Mara conduziu-o à volta das mesas, dizendo-lhe de quem eram os presentes, dando-lhe o seu ramo de noiva a cheirar. As rosas tinham vindo do Convento.

- Isto é o presente das crianças que iam no outro carro - disse Mara.

Era um cajado de pastor, com o punho entalhado em forma de cabeça de cão.

- É o Lig. Mandaram-no fazer de propósito.

Steve pegou no cajado, sem saber o que dizer. A madeira era muito lisa e agradável ao toque; o cajado era muito equilibrado.

Podia usá-lo como bengala, para tactear o caminho quando fosse passear para os montes.

Depois, Mara levou-o de automóvel até ao Convento. Quando chegaram, Steve ouviu os passos de Hennessey na cozinha e o ruído de patas. Gemma ficou a olhar para a porta. Lig entrou e levantou a cabeça, farejando Steve. Ficou parado uns instantes, incrédulo. Mas depois atravessou a sala numa corrida louca e atirou-se para os braços de Steve, agitando furiosamente a cauda, ganindo de excitação, lambendo a cara de Steve e aninhando-se de encontro ao dono, enquanto Gemma ficava a olhar.

Finalmente, o cão acalmou, sentando-se o mais perto possível de Steve.

- Gemma - disse Steve, sabendo que ela estava à espera, receando que tivesse ciúmes. A cadela aproximou-se. Lig levantou-se e farejou-a cautelosamente, de uma ponta à outra. Mas Steve tinha o cheiro da cadela e ?a cadela o de Steve. Além disso, era uma fêmea.

Um macho teria criado problemas, mas assim ia correr tudo bem.

Hennessey fez-lhes uma saúde e depois foi lá para fora acabar o seu trabalho. Steve, exausto com aquele dia tão movimentado, foi sentar-se à lareira. Mara sentou-se no chão, em cima do tapete, e encostou-se aos joelhos dele, com a cabeça de Lig no colo e o corpo firme de Gemma por trás das costas.

Era bom voltar a casa.


CAPÍTULO 11

VOLTAR a casa. Steve estava convencido de que conhecia de cor e salteado o interior da sua casa, mas constatava agora que não. Tinha-se esquecido dos dois degraus que desciam para a cozinha e dos quatro da porta da frente. E Mara modificara a disposição do jardim: abrira outro caminho para chegar mais facilmente à corda da roupa.

Gemma ensinava-lhe o caminho, mas Steve achava que ele é que sabia e tentou duas vezes dar a volta num canto bem conhecido; a cadela recusou-se a avançar. Da segunda vez obedeceu às suas ordens e continuou a andar, mas lentamente, dando-lhe tempo para estender a mão e descobrir que havia uma divisória de madeira em frente. Estivera tão certo de ter razão!

- Vamos entrar - disse Steve a Gemma. Lá dentro, pelo menos, não devia haver obstáculos; lembrou-se de que aquilo devia ser o novo estábulo de que Mara lhe tinha falado, construído para guardar os cavalos. Mas logo a seguir sentiu qualquer coisa a empurrá-lo. Apalpou uma cabeça maciça. Era uma vitela, que estava ali por qualquer razão que ele desconhecia. Soube depois que estava doente e em quarentena; os cavalos estavam lá fora a pastar.

Irritado, pensou irracionalmente que já não havia lugar para ele naquela casa. Mara tinha-o substituído e mudara as coisas sem o consultar. Era um inútil e os seus projectos estavam a desfazer-se.

Além disso, tinha de ter sempre muito cuidado com Gemma.

Nunca tivera um cão tão sensível. Reagia a todos os seus estados de espírito e não suportava que ele falasse com dureza, mesmo que não fosse com ela. Tinha de se habituar a dominar a sua irritação.

Em casa era pior do que no Centro. Lá, toda a gente estava habituada aos cegos; aqui, era um estranho num mundo com vista, dependendo dos outros para não lhe mudarem a cadeira do lugar, para o avisarem dos perigos. Sentia-se novamente encurralado dentro de si mesmo. Começou a desconfiar de que as pessoas lhe escondiam as coisas, e Mara precisava de toda a sua paciência para o convencer a ir com ela à aldeia ou ao bar.

A adaptação foi lenta, tão lenta que nem ele nem Mara se deram conta de que ele se estava a adaptar. Gemma agora era como se estivesse ligada fisicamente a Steve. Ele confiava totalmente na cadela e era infinitamente meigo com ela. No fim do ano, o animal já o levava sozinho à aldeia, sem a ajuda de Mara. Sabia o caminho para o bar, o ferreiro, a farmácia, o banco. Toda a gente os conhecia e os cumprimentava. Steve recomeçou a falar de ovelhas com autoridade. Lembrava-se dos pedigrees e discutia as diferentes raças e os seus preços, ouvia programas de agricultura na rádio e mantinha-se a par das novidades.

Na Primavera seguinte, Steve começou a ir para a montanha com as ovelhas, guiado por Gemma e com Lig a seu lado. Lig trazia-lhe as ovelhas e ladrava quando algum borrego estava em dificuldades.

Gemma guiava Steve, que não precisava de olhos para soltar um borrego de uma sebe espinhosa ou para perceber pelo tacto que um animal tinha magoado uma pata, mandando Lig chamar Hennessey.

Agora também já era capaz de apreciar as belezas do mundo de Sue. No Verão, o ar era mais leve, na Primavera sentia-se a vida a

irromper. E o Outono estava cheio de odores - das folhas que estalavam por debaixo dos pés, da vegetação em decomposição, das queimadas. Lá da praia vinha o cheiro do mar. Gostava muito de se sentar e de ficar a ouvir a rebentação num dia de tempestade, os pios de aves invisíveis e velozes, que descreviam círculos no ar e mergulhavam. E principalmente gostava dos dias de vento, quando tinha de abrir caminho contra essa força selvagem que abalava as árvores, quando a Natureza se tornava mais viva e ele tinha outra vez uma percepção mais intensa desse mundo perdido, quando os sons o envolviam por todos os lados. Tornava-se tudo mais real.

- Parece o Senhor do Vento - disse um dia Hennessey a Mara, que estava a olhar para Steve, subindo o monte com o cabelo a esvoaçar com a ventania, de cara voltada para o céu. Gemma detestava o vento, mas habituara-se a trabalhar nesses dias, e Lig, que os adorava, corria à frente deles, mas de vez em quando voltava atrás e enfiava o nariz na mão de Steve. Percebera que o seu dono deixara de ver. Os seus encontros eram sempre alegres.

- É duro - disse Hennessey.

Mais duro do que Mara imaginara. Tinha de ter sempre muito cuidado e agora vinha um bebé a caminho. Steve nunca soube ao certo o que é que Mara tinha de fazer por si própria ou aquilo que tinha de pedir que Andrew viesse fazer para a ajudar, e Nettie continuava a precisar de alguma ajuda. As duas quintas, o marido cego e a criança que estava para nascer complicavam a vida de Mara.

Mas a pouco e pouco começaram a organizar-se melhor. Steve podia ajudar no banho de desinfecção das ovelhas, ordenhar e tratar dos animais. Tinha de ir fazer os exames ao oftalmologista. Encarregava-se da contabilidade da exploração com uma máquina de escrever braille. A pouco e pouco, foi-se encarregando de uma parte do trabalho de Mara. O rebanho estava a aumentar e vieram estagiários para a quinta para aprender. Steve era um bom professor.

O tempo voava. Steve adquiria novas capacidades todos os meses. Já era capaz de arrancar as ervas daninhas do jardim; apanhava as peras e as maçãs, carregava com as coisas pesadas, orientava-se perfeitamente dentro de casa e no pátio sem Gemma, se bem que ela andasse sempre por perto. As pessoas que viviam com ele esqueciam-se muitas vezes de que era cego.

Passou o Natal e chegou a época da parição das ovelhas - e o filho de Mara nasceu no mesmo dia do primeiro borrego. O jovem David foi baptizado e Dave Masterson foi o padrinho; Sue foi madrinha por procuração, pois a sua mãe estava a morrer.

Quando o bebé começou a dar os primeiros passos, Steve foi fazer um exame ao hospital.

- Steve - disse o especialista -, os seus olhos estão bem e podíamos operá-lo. Pode ser que não resulte, mas quer experimentar?

Ver outra vez.

E se não resultasse? Seria capaz de encarar o futuro? Sabia que, se não recuperasse a visão, ficava tudo na mesma. Tinha uma boa vida e continuaria a tê-la. Mas tinha obrigação de tentar por Mara.


ERA UMA sensação estranha estar outra vez no hospital, cheio de dores, com os olhos tapados. Recordava-lhe coisas que teria preferido esquecer. Tinham operado só um olho. O outro ficava para depois, numa segunda operação.

Desta vez, estava tão longe que Mara não podia visitá-lo, mas ela telefonava-lhe todos os dias. Dave escreveu a anunciar que Lynn tinha tido um bebé, uma rapariga, e que ela, Meggie e Larry pareciam ser muito felizes.

Passaram-se os dias. Steve não tinha vontade que lhe tirassem as ligaduras. Mais valia ter esperança do que descobrir uma verdade triste.

Estava deitado num quarto às escuras, a tremer, quando lhe destaparam finalmente os olhos.

- Abra-os - disse o médico.

Não se atrevia.

Mas depois obrigou-se a encarar a verdade. Com o olho operado, distinguiu um raio de luz na janela, o reflexo da luz num copo que estava em cima da mesa-de-cabeceira, a forma de uma cara por cima dele.

- Consigo ver - murmurou.

Puseram-lhe outra vez as ligaduras. Steve ficou na cama, com o coração a bater com força. E se fosse só temporário? Se durasse só algumas horas?

Mas o destino sorriu-lhe, e todos os dias revelavam-se-lhe novas coisas do mundo que perdera. No entanto, tinha de ter cuidado. As luzes fortes faziam-lhe doer os olhos e usar a vista durante mais de dez minutos era um grande esforço. Porém, nesses poucos minutos, absorvia todas as impressões que lhe chegavam: as caras das pessoas que o rodeavam e as cores, tanta cor por todo o lado! As cortinas do quarto eram amarelas e azuis. E havia rosas numa jarra ao pé da cama.

Tiravam-lhe as ligaduras à noite, e Steve ficava deitado, como uma criança, olhando para a forma da sua mão, para o motivo do tecido do pijama.

Não podia dizer nada a Mara por enquanto, pois aquilo podia ser passageiro. Tinha-se tornado muito ansioso e supersticioso. Se não contasse o segredo a ninguém, tornava-se realidade. Percebia que estava a ser irracional, mas isso não o ajudava.

Finalmente, chegou o dia em que se levantou da cama e foi até junto da janela, com as cortinas abertas, olhando para o turbilhão de cores lá fora, que o atordoavam: as cores vivas das flores e das árvores, dos vestidos das mulheres, o amarelo contrastando com o verde e o azul. Não aguentou e teve de fechar as cortinas para atenuar a luz. Sentou-se numa cadeira, a tremer, fitando as cortinas corridas, incapaz de acreditar na sua sorte.

Trouxeram-lhe uns óculos escuros e com eles enfrentou o mundo. Constatou que tinha perdido o sentido das distâncias; estava tudo fora do seu lugar, as distâncias pregavam-lhe partidas. Os passos eram mais compridos ou mais curtos do que ele pensava, as mesas estavam mais longe. Perdera a noção da perspectiva. Sentia-se aterrado com a velocidade a que as pessoas se aproximavam, certo de que iam chocar com ele.

À noite, quando o quarto estava às escuras, punha-se à janela e olhava para as árvores dobradas pelo vento, para as nuvens orladas de luz. Luz. A luz das estrelas. Estava demasiado fascinado para ser capaz de dormir, contemplava esses pontos luminosos que eram sóis distantes, a Lua fina.

Os milagres continuaram. Começou a passear no jardim, contemplando os pássaros que saltitavam na relva, um gato que saía furtivamente dos arbustos, vendo-o como se fosse pela primeira vez, uma criatura espantosa. A luz do Sol dava um tom de bronze à sua pelagem amarelada. Apetecia-lhe ficar ali sentado o resto da vida, a olhar.

Descobriu novamente as sombras. Antigamente, estava tão habituado a elas que nem as notava, mas agora contemplava a sua própria sombra, que ora se alongava à sua frente, ora se encolhia de repente.

Como é que as pessoas podiam viver no meio de coisas tão espantosas e não dar por elas?

Dave escreveu-lhe. A mãe de Sue morrera, e Sue agora morava no Centro. Estavam noivos. Um final feliz - já não era sem tempo.

Steve e Mara podiam ir ao casamento. Veria Sue e Anna, aqueles lugares que conhecia tão bem, mas que agora lhe pareceriam estranhos, veria Scott Lewis e Gunter. Veria Sukie, veria o seu filho.

Veria Gemma e tornaria a ver Lig. Agora, Gemma tomara-se tão importante para ele como Lig. A ligação que tinha com a cadela era total.

Mas de repente lembrou-se de uma coisa. Já não precisava de Gemma. Era tão difícil treinar um cão de cego que certamente a cadela teria de ser entregue a um novo dono, teria de aprender a obedecer a um estranho. Era pior do que perder Lig - desta vez seria para sempre.

Mara também ia sentir a falta de Gemma; a cadela já fazia parte da família. E o bebé adorava-a. Lig não gostava de crianças e não ligava ao bebé, mas Gemma servia-lhe de almofada e deixava que a criança gatinhasse por cima dela, tratando-a com uma ternura maternal.

E desta vez Steve voltou para casa de comboio e sozinho, mas só os óculos escuros lhe escondiam a luz; veria o caminho para subir os degraus e entrar na carruagem.

E viu Mara no cais, à espera dele. Tinha deixado o bebé com Andrew e Nettie e viera sozinha. Procurava-o com um expressão ansiosa e ele estava ali paralisado, a olhar para ela, para as mudanças operadas por esses quatro anos. Estava menos magra e tinha alguns cabelos grisalhos, muito poucos, e um olhar cansado; mas sorria-lhe, incapaz de acreditar no que tinha acontecido.

Voltaram para casa de carro - vendo os lugares que ele conhecia, parando ao pé do lago para olhar para as montanhas, para as nuvens brancas, pairando lá muito alto - e ele deu-se conta de que se tinha esquecido de muitas coisas. E depois chegaram a High Hollows e viu o filho, que não percebia que o pai tinha mudado. O jovem David agarrou-se imediatamente à perna de Steve, pondo-se de pé abraçado ao seu joelho. Tinha cabelo escuro como o da mãe, os olhos muito azuis de Andrew e ria, debatendo-se no colo do pai, pois queria voltar para o chão, para junto dos gatos.

Steve não foi capaz de comer: todo o tempo era pouco para olhar.

Podia ser que aquilo só durasse alguns dias e não teria tempo para ver tudo o que esquecera. Fitava um pãozinho com manteiga, hipnotizado.

De regresso ao Convento, havia também muita coisa para ver: o jardim, o muro e as árvores de fruto, os montes elevando-se de encontro ao céu e as suas ovelhas, andando lá em cima.

Depois, Lig e Gemma atiraram-se para cima dele - Gemma, que tinha tornado suportável a sua vida e que ele nunca mais veria. A cadela abocanhou-lhe o punho e depois largou-o e foi-se embora a correr, voltando com o arreio.

Steve ajoelhou-se para vê-la melhor, para contemplar a pelagem dourada, que encaracolava ligeiramente nas espáduas do animal.

Tinha uma linda cabeça e uma expressão inteligente. Era muito mais bonita do que ele imaginara. Lig deu-lhe um encontrão, cheio de ciúmes, e Steve afagou-o.

- Já não precisamos disto - disse a Gemma, guardando o arreio e indo buscar uma trela. Assobiou a Lig e foram todos até ao loch. Libertou Gemma e ela e Lig jogaram um jogo solene na praia.

Lig também ia ter saudades dela, pensou Steve. Costumava ir cumprimentá-la logo de manhã, antes de ir ter com Steve. Andavam sempre juntos. Será que a deixariam ficar uns tempos em casa dele?

Dave sabia que Steve tinha recuperado a vista. Escrevera uma carta entusiástica, mas não falara de Gemma. Steve e Mara tinham

de escrever ao Pelotão Amotinado do Texas para dar a notícia, se bem que agora eles estivessem provavelmente em aulas diferentes.

Mara tinha mantido o contacto com alguns deles e queria escrever-lhes a convidá-los para os visitarem.

Depois, chegou a outra carta de Dave. Ele e Sue vinham ao Norte. Podiam ficar uns dias em casa deles? E tinha muita pena, mas ia levar Gemma. Tinha a certeza de que Steve já o calculava.

Steve olhava para a cadela, que se aproximava dele aos pulos, trazendo-lhe um presente, como Sam costumava fazer. Tinha um dos chinelos do bebé na boca. Steve tirou-lho e foi sentar-se à lareira, contemplando as chamas saltitantes.

- Em que é que estás a pensar? - perguntou Mara, olhando-o.

Ele entregou-lhe a carta de Dave.

- Que pena, Steve! Já sabias?

Steve acenou afirmativamente.

- Nunca me tinha lembrado disso. Têm mesmo de a levar?

- Tem de ser. Investiram muito dinheiro nela.

Dave e Sue chegaram e partiram, levando Gemma com eles, e Steve teve uma surpresa. Nunca se tinham lembrado de que o bebé iria sentir a falta da cadela. Brincava com ele e tomava conta dele há um ano; e a primeira palavra de David fora "Gemma". Chorou com saudades do animal. Lig também sentia a falta de Gemma, procurando-a pela casa e sentando-se depois ao lado de Steve, com a cabeça no seu joelho. Steve acariciou a cabeça de Lig, desejando que fosse possível explicar as coisas aos cães - mas o mundo de um cão era um mistério insondável.

- Também tenho saudades dela, rapaz - disse.


A SEGUNDA operação de Steve também foi bem-sucedida. Continuava a recear que a luz se extinguisse um dia, mas tinha-se modificado. Tornara-se paciente, aprendera a esperar e agora estava a aprender a ver.

Mara e Hennessey sabiam que ele nunca se apressava no trabalho. Estava sempre a distrair-se, parando para olhar para os malmequeres na erva ou para um borrego que pulava ao sol; ficava parado a olhar, esquecendo tudo o resto. Estranhamente, participavam nesse renascimento, vendo também o mundo com novos olhos.

Quando Dave e Sue se casaram, Steve e Mara foram ao casamento; David ficou com a mãe de Mara.

Anna foi esperá-los à estação. Era mais alta do que Steve pensara e o cabelo era mais grisalho. Mas os olhos eram tão bondosos como ele os imaginara. De vez em quando, punha-se a olhar para ele, abraçava-o e beijava-o, exclamando "Steve!" numa voz que dizia tudo.

Steve recordou a sua primeira viagem até Setter's Dene, quando o automóvel saíra de Manchester, atravessando os bairros cinzentos da periferia, e entrara no campo, descendo o caminho tortuoso até à casinha onde Anna morava.

Tinha ali vivido meio ano e sabia muito pouco sobre aquele lugar. pitou as paredes de tijolo vermelho da casa, achou que a sala de estar era mais pequena do que ele pensava. E lá estava a mesa com que ele tinha chocado tantas vezes e o lume na chaminé.

Foi até ao pátio ver os animais, e Mara e Anna ficaram a vê-lo nessas explorações, parando junto ao canil das ninhadas para olhar para os corpinhos pretos e dourados dos cachorros, que brincavam no chão.

- Deve ser como nascer de novo - disse Anna.

- Às vezes, acorda de noite aos gritos, a dizer que está escuro e que não vê nada. Agora, deixamos sempre uma luz acesa durante a noite - disse Mara.

- A vista para nós é um dado adquirido e nem sequer nos lembramos de olhar para as coisas. Steve e Sue ensinaram-me a olhar para as coisas. E agora sei que tenho muita sorte.

Steve explorou as vizinhanças durante a manhã toda, descobrindo coisas cuja existência não suspeitava. À hora do almoço, apareceu Gunter para comer. Steve ficou de boca aberta quando viu o velhote e depois riu-se.

- Qual é a graça? - perguntou Gunter.

- Pensei que tinha metro e meio de altura e que era magro!

- Era assim que me imaginava?

Gunter deu uma gargalhada, com o som sibilante que Steve inicialmente tivera dificuldade em identificar. Era alto, um metro e oitenta, e gordo é tinha uma cara muito encarnada, de olhos vivos.

Depois do almoço, Steve desceu o caminho até casa de Scott, chegando à hora a que a consulta estava a acabar. Scott era mais velho do que Steve imaginara: era alto, de cabelo grisalho e constituição robusta. Roz era baixinha e frágil, com movimentos muito rápidos.

Depois, foram com Sue e Dave até ao Centro, que estava agora vazio, à excepção dos cães nos seus canis - alguns estavam a ser treinados, outros à espera de irem para casa das pessoas que os iam ensinar. Steve olhou-os a custo, recordando Gemma. Já devia ter ido para casa do seu novo dono.

- Lembra-se do seu primeiro contacto com o seu cão-guia? - perguntou Dave.

Estava no canil um outro cão que lembrava muito Gemma - era mesmo muito parecido com ela. Ficou a olhar para o animal adormecido, que não os tinha ouvido aproximarem-se.

- Lembro - disse Steve, desejando esquecer.

De repente, o cão parecia eléctrico. Deu um pulo e correu para a porta. Dave abriu-a e o animal atirou-se para cima de Steve, gemendo e ganindo, lambendo-lhe a mão, tentando chegar-lhe à cara.

- É a Gemma! - exclamou Steve, ajoelhando-se para abraçar a cadela. - Não devia ter feito isto - disse pouco depois. - Custa-nos muito aos dois.

- Tenho um problema - disse Dave. - Não sei o que é que lhe fez, mas não nos serve de nada. Ninguém é capaz de lidar com ela.

Não se lhe podem dar ordens e tem medo dos automóveis. Como é que se entendia com ela? Mudou as ordens?

Steve olhou para Gemma e a cadela levantou os olhos para ele, aguardando as suas ordens. Mexeu um dedo e ela veio imediatamente até junto dele, sentando-se à espera do arreio, com uma expressão de expectativa. Mexeu a mão direita e ela deitou-se em cima do pé dele, para Steve perceber que lhe tinha obedecido. Mexeu a mão esquerda e a cadela sentou-se, encostada à perna dele, pronta para o que desse e viesse.

- Não conseguia falar-lhe no tom de voz apropriado - disse Steve -, por isso o Hennessey ajudou-me a ensinar-lhe estes sinais feitos com a mão.

- Aqui não tem futuro. Quer levá-la? - perguntou Dave.

Gemma fora o seu alter ego, os seus olhos, a sua saúde mental.

Nunca tinha tido uma relação tão íntima com outro cão, nem sequer com Lig. Lig continuava a ser o seu cão - mas de uma maneira totalmente diferente.

- Ou ainda é um á dos collies?

Steve pôs a mão na cabeça dourada da cadela, que o fitou com os seus olhos castanhos.

- Não - disse. - Aprendi muito. E continuo a aprender. Já não preciso de dominar um cão. Quatro anos na escuridão mudam muito um homem.

Foi até ao carro, onde Mara o esperava. Dave ficou a vê-lo afastar-se, com Gemma ao lado. Steve voltou-se para trás.

- Tenho uma dívida a pagar. Agora já sei cantar; vou cantar até ganhar dinheiro para comprar outro cão para substituir a Gemma.


ALGUMAS semanas depois, Steve, Lig e Gemma subiam a montanha. Devia chegar nesse dia um dos membros do Pelotão Amotinado e Mara fora buscá-lo ao aeroporto. Tinha-os convidado a todos para a virem visitar, um por um. A mãe de Steve viera tomar conta do bebé.

Soprava um vento ruidoso. Steve olhou lá para baixo, para o campo onde estavam os borregos recém-nascidos; depois, olhou para o céu, para as nuvens que corriam sobre os picos, e para Lig, de focinho já cinzento, que corria a seu lado, agitando alegremente a cauda. Mais além, com os olhos fitos em Lig, estava Gemma, abanando o penacho da cauda. Veio farejar Lig e os dois cães desceram a encosta aos pulos.

Steve sentou-se para almoçar. Sentia-se muito feliz e não trocaria o seu lugar com ninguém no Mundo.

Assobiou aos cães e os animais aproximaram-se, aguardando a seu lado que ele acabasse de olhar para tudo à sua vontade. Depois, desceu a encosta e entrou em casa, acolhido pelo filho, que correu ao seu encontro. Levantou David muito alto, com uma gargalhada, e baixou-se para dar um beijo a Nettie.

Parou para olhar para a mesa do chá, para a comida de festa, para o prato azul do bebé. Para ele, as coisas nunca mais seriam iguais.

Por instantes, mergulhou novamente na escuridão. Estendeu a mão e Gemma veio farejá-la, trazendo-o de volta para a realidade.

- Steve?

A voz da mãe era ansiosa.

- Estava a recordar - disse Steve.

Mas depois o sossego acabou, quando ouviram o carro de Mara a aproximar-se e o passo rápido e a voz excitada de Wistar, a primeira visitante do Pelotão Amotinado. Já não havia tempo para pensar. A sala encheu-se de barulho e de risadas e, como se isso ainda não bastasse, os cães começaram a ladrar, entrando a correr para ver a visitante.

- Esta é que é a Gemma? É muito bonita!

Mara olhou para a outra ponta da sala e retribuiu com os olhos o sorriso de Steve.

FIM

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ACERCA DA AUTORA
Joyce Stranger sempre se sentiu fascinada pelos animais, desde os animais de estimação da sua infância, passada no Sul de Inglaterra, até aos animais domésticos que abundam na região do País de Gales onde vive agora. O seu interesse pelo comportamento animal levou-a a tomar-se uma excelente treinadora de cães de guarda, cães-polícias e cães-guias. - As raças grandes, como os pastores-alemães e os doberman, têm de saber que quem manda somos nós. Mas às vezes - acrescenta com um humor tranquilo - é preciso ensinar também o dono".
Encarregou-se também da missão de levar cães aos hospitais e aos lares para a terceira idade. Os cães são uma companhia para as pessoas doentes ou solitárias. Às vezes, pessoas que tiveram tromboses falam pela primeira vez, ao fim de muitos anos, com um cão. Ficam ainda mais contentes quando lhes levamos cachorros.
A outra paixão de Joyce Stranger, a escrita, nasceu também na infância, quando o pai - que também era escritor - lhe deu papel e lápis para ela ficar sossegada. Actualmente, é autora de mais de cinquenta livros e numerosos artigos de jornal, entre eles uma secção em que responde a cartas de leitores pedindo conselhos sobre os problemas dos seus cães.
Tem três filhos - o mais velho chama-se Andrew, e os outros dois, Anne e Nicholas, são gémeos -, já todos casados, e ela e o marido partilham agora a sua casa, que tem trezentos anos, com uma população animal muito numerosa. Têm actualmente em casa uma gata siamesa chamada Chia e dois cães: Josse e Chita, um pastor-alemão muito sensível que serviu de modelo à Gemma.
- Quero mostrar nos meus livros que a relação entre um homem e um animal pode ser muito fecunda para os dois - diz Joyce Stranger.
À sua maneira discreta, esta avó de sete netos manifesta o seu respeito apaixonado por tudo o que é vivo criando um mundo rico e harmonioso, que nos ensina e diverte simultaneamente.
 

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Um Mergulho na Escuridão
Joyce Stranger
Lisboa: Selecções do Reader's Diges, 1990
-texto integral-



 

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12.Ago.2017
Publicado por MJA