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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


Um Guia Cego em Pompeia

Robert Harris

Mendigo cego com cão-guia em Pompeia (fresco séc. I)
Mendigo cego com cão-guia em Pompeia - fresco séc. I


- Está alguém aí?

A voz assustou-o. Estava um jovem à porta.

- Claro que está alguém aqui, seu idiota. O que é que te parece?

- O que é que estás a fazer?

- És o escravo da água? Então estou a fazer o teu estúpido trabalho por ti, é isso que estou a fazer. Espera aí.

Attilius tornou a encaixar a grelha no seu lugar e voltou a apertar as porcas de fixação, arrastou-se de novo pela água até à borda do reservatório e içou-se para fora.

- Sou Marcus Attilius. O novo Aquarius do Augusta. E a ti o que te chamam, para além de idiota preguiçoso?

- Tiro, Aquarius. - Os olhos do rapaz estavam bem abertos com receio, as pupilas a correrem de um lado para o outro. - Perdão. - Deixou-se cair de joelhos. - O feriado, Aquarius... Deixei-me dormir... eu...

- Está bem. Deixa lá.

O rapaz só tinha cerca de dezasseis anos - um fragmento do género humano, tão magro como um cão vadio - e Attilius arrependeu-se da sua rudeza.

- Vamos. Levanta-te do chão. Preciso que me leves aos magistrados.

Estendeu a mão, mas o escravo ignorou-a, os olhos ainda a pestanejarem loucamente para a frente e para trás. Attilius abanou a palma da mão na frente do rosto de Tiro.

- És cego?

- Sim, Aquarius.

Um guia cego. Não admira que Corax tivesse sorrido quando Attilius lhe fizera perguntas sobre ele. Um guia cego numa cidade hostil!

- Mas como é que cumpres as tuas obrigações se não consegues ver?

- Ouço melhor do que qualquer homem. - Apesar do seu nervosismo, Tiro falou com um laivo de orgulho. - Consigo dizer pelo som da água se está a correr bem ou se está obstruída. Consigo cheirá-la. Consigo prová-la para ver se tem impurezas.

Levantou a cabeça, farejando o ar.

- Esta manhã, não é preciso ajustar as portas. Nunca ouvi o fluxo tão forte.

- É verdade. - O engenheiro assentiu: subestimara o rapaz. - O ramal principal está obstruído algures entre Pompeia e Nola. Foi por isso que vim, para arranjar ajuda para fazer as reparações. Pertences à cidade?

Tiro fez que sim com a cabeça.

- Quem são os magistrados?

- Marcus Holconius e Quintus Brittius - disse Tiro prontamente. - Os edis são Lucius Popidius e Gaius Cuspius.

- Quem é que está encarregue do abastecimento de água?

- Popidius.

- Onde é que posso encontrá-lo?

- É feriado...

- Onde é que é a casa dele então?

- Ao fundo da colina, Aquarius, na direcção da Porta Stabia. À esquerda. Mesmo depois da grande encruzilhada. - Tiro pôs-se de pé alvoroçadamente. - Posso mostrar-te onde é, se quiseres.

- Certamente que consigo lá chegar sozinho?

- Não, não. - Tiro já estava na ruela, ansioso por mostrar que era capaz. - Posso levar-te lá. Vais ver.

Desceram juntos para a cidade. Agitava-se por baixo deles, uma selva de telhados de terracota inclinados para um mar brilhante. Se emoldurássemos a vista para a esquerda tínhamos a crista azul da península de Surrentum; para a direita o flanco coberto de árvores do Vesúvio. Attilius achava difícil imaginar um local mais perfeito onde construir uma cidade, suficientemente alto para ser bafejado por uma brisa ocasional, suficientemente perto da costa para gozar dos benefícios do comércio no Mediterrâneo. Não admirava que se tivesse erguido de novo tão depressa depois do terramoto.

A rua estava ladeada de casas, não os invasores blocos de apartamentos de Roma, mas habitações com frentes estreitas sem janelas que pareciam ter virado costas ao tráfego movimentado e estarem viradas para dentro, sobre si mesmas. Algumas portas abertas revelavam ocasionalmente um pouco do que estava para lá delas - pátios de mosaico frescos, um jardim soalheiro, uma fonte - mas para além destes vislumbres, a única diversão a quebrar a monotonia das pesadas paredes eram slogans eleitorais toscamente pintados a tinta vermelha.

"A MAIORIA APROVOU A CANDIDATURA DE CUSPIUS PARA O CARGO DE EDIL." "OS COMERCIANTES DE FRUTA JUNTO COM HELVIUS VESTALIS UNANIMEMENTE EXORTAM À ELEIÇÃO DE MARCUS HOLCONIUS PRISCUS COMO MAGISTRADO COM PODER JUDICIAL." "OS ADORADORES DE ISIS UNANIMEMENTE EXORTAM À ELEIÇÃO DE LUCIUS POPIDIUS SECUNDUS PARA EDIL".

- Toda esta tua cidade parece estar obcecada com as eleições.

- Os homens livres votam para os novos magistrados todos os anos em Março, Aquarius.

Iam a andar muito depressa, Tiro um pouco à frente de Attilius, abrindo caminho pela calçada cheia de gente, pisando de vez em quando a sarjeta e chapinhando pela corrente de água que fluía. O engenheiro teve de lhe pedir para abrandar. Tiro pediu desculpa. Era cego desde a nascença, disse alegremente: fora abandonado no depósito de lixo fora das muralhas da cidade e aí deixado para morrer. Mas alguém o apanhara e vivia fazendo recados para a cidade desde os seis anos. Conhecia o caminho por instinto.

- Este edil, Popidius disse Attilius, quando passaram pelo nome pela terceira vez -, a família dele deve ser a que possuía antigamente Ampliatus como escravo.

Mas Tiro, apesar do seu bom ouvido, pareceu desta vez não ter entendido.

Chegaram a uma grande encruzilhada, dominada por um enorme arco triunfal, apoiado em quatro pilares de mármore. Um grupo de quatro cavalos, esculpido em pedra, empinava-se e erguia-se nas patas traseiras contra o céu azul-brilhante, puxando a figura da Vitória no seu carro dourado. O monumento era dedicado a ainda outro Holconius Marcus Holconius Rufus, morto há sessenta anos - e Attilius parou o tempo suficiente para ler a inscrição: tribuno militar, sacerdote de Augusto, cinco vezes magistrado, patrono da cidade.

Sempre os mesmos nomes, pensou. Holconius, Popidius, Cuspius... Os cidadãos normais poderiam vestir as suas togas todas as Primaveras, aparecer para ouvir os discursos, atirar as suas placas para as urnas e eleger um novo conjunto de magistrados. Mas os mesmos rostos familiares apareciam de novo uma e outra vez. O engenheiro tinha quase tão pouco tempo para políticos como para os deuses.

Estava prestes a pôr o pé para atravessar a rua quando de repente algo o fez recuar. Pareceu-lhe que as grandes pedras da calçada estavam a ondular ligeiramente. Uma grande onda seca estava a passar pela cidade. Um instante depois baloiçou, como lhe acontecera quando o Minerva ancorara e teve de se agarrar ao braço de Tiro para não cair Algumas pessoas gritaram; um cavalo assustou-se e empinou-se. Na esquina oposta ao cruzamento, uma telha escorregou por um telhado íngreme e esmigalhou-se na calçada. Por alguns momentos o centro de Pompeia esteve quase silencioso. E depois, gradualmente, a actividade recomeçou. As pessoas respiraram. As conversas continuaram. O condutor brandiu o chicote no costado do cavalo agitado e o carro saltou em frente.

Tiro aproveitou a pausa no tráfego para atravessar como uma seta para o lado oposto e, depois de uma breve hesitação, Attilius seguiu-o, meio esperando que as grandes pedras subidas dessem de novo de si por baixo das solas de couro. A sensação punha-o mais nervoso do que desejaria admitir. Se não se podia confiar no chão que trilhávamos, em que é que se podia confiar?

O escravo esperava por ele. Os olhos sem expressão, continuamente à procura do que não podiam ver, davam-lhe um ar de desassossego constante.

- Não te preocupes, Aquarius. Está sempre a acontecer este Verão. Cinco vezes, dez vezes mesmo, nos últimos dois dias. O chão queixa-se do calor!

Ofereceu-lhe a mão, mas Attilius ignorou-o - achava aviltante, o cego a tranquilizar o que vê - e subiu para a calçada alta sem ajuda. Perguntou irritado:

- Onde é que é essa maldita casa?

Tiro fez um gesto vago para uma entrada do outro lado da rua, um pouco mais abaixo.

Não tinha grande aspecto. As habituais paredes vazias. Uma padaria num dos lados, com uma fila de clientes à espera para entrar numa loja de doçaria. Um fedor de urina da lavandaria do lado oposto, com bacios deixados na calçada para os transeuntes urinarem (nada limpava tão bem a roupa como urina humana). Ao pé da lavandaria, um teatro. Por cima da grande porta da casa estava outro dos ubíquos slogans pintados a vermelho: "OS VIZINHOS EXORTAM À ELEIÇÃO DE LUCIUS POPIDIUS SECUNDUS PARA EDIL. ELE PROVARÁ SER DIGNO DO CARGO".

Attilius nunca encontraria o local sozinho.

- Aquarius, posso perguntar-te uma coisa?

- O quê?

- Onde é que está Exomnius?

- Ninguém sabe, Tiro. Desapareceu.

- Exomnius era como tu. Também não se conseguia habituar à vibração. Dizia que lhe fazia lembrar a altura antes do grande terramoto, há muitos anos. No ano em que nasci.

Parecia estar à beira das lágrimas. Attilius pôs-lhe uma mão no ombro e estudou-o atentamente. O rapaz sabia qualquer coisa. - Exomnius esteve em Pompeia recentemente?

- Claro. Ele vivia aqui.

Attilius aumentou a pressão da mão.

- Vivia aqui? Em Pompeia?

Sentiu-se desnorteado e contudo percebeu de imediato que devia ser verdade. Explicava o facto dos aposentos de Exomnius em Misenum estarem tão vazios de bens pessoais, porque Corax não quisera que ele viesse para aqui e por que o encarregado se comportara de forma tão estranha em Pompeia - todos aqueles olhares em volta, à procura de um rosto familiar na multidão.

- Tinha quarto no Africanus - disse Tiro. - Não estava aqui sempre. Mas muitas vezes.

- E há quanto tempo é que falaste com ele?

- Não me consigo lembrar.

O jovem estava realmente agora a começar a parecer assustado. Voltou a cabeça como se estivesse a tentar olhar para a mão de Attilius no ombro. O engenheiro libertou-o rapidamente e deu-lhe uma pancadinha no braço de forma tranquilizadora.

- Tenta recordar-te, Tiro. Pode ser importante.

- Não sei.

- Depois do Festival de Neptuno ou antes?

A Neptunalia era no vigésimo terceiro dia de Julho: a data mais sagrada no calendário para os homens dos aquedutos.

- Depois. De certeza. Talvez há duas semanas.

- Duas semanas? Então deves ter sido uma das últimas pessoas a falar com ele. E ele estava preocupado com os tremores?

Tiro assentiu com a cabeça outra vez.

- E Ampliatus? Ele era um grande amigo de Ampliatus, não era? Estavam muitas vezes juntos?

O escravo fez um gesto na direcção dos olhos...

Não, pensou Attilius, mas aposto que os ouviste: não há muito que escape a esses ouvidos. Lançou um olhar para o outro lado da rua para a casa de Popidius.

- Muito bem, Tiro. Podes voltar para o castellum. Faz o teu trabalho. Estou-te grato pela ajuda.

- Obrigado, Aquarius.

Tiro fez uma ligeira vénia, pegou na mão de Attilius e beijou-a. Depois virou-se e começou a subir a colina de volta, em direcção à Porta Vesúvio, dançando de um lado para o outro através  da multidão em festa.

FIM

 

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excerto de:
POMPEIA
Autor: Robert Harris
Título original: Pompeii
(c) 2003, Robert Harris
Bertrand Editora (2009)

 

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21.Out.2019
Maria José Alegre