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 Sobre a Deficiência Visual


Tragédia, Sofrimento e Liminaridades

Bruno Martins

Study of the Blind - Antoine Coypel
Study of the Blind - Antoine Coypel, séc. 18

 

[...] Embora os constrangimentos implicados pela cegueira aos seus portadores estejam profundamente intrincados nas concepções culturais dominantes e nas formas de organização vigentes, procurarei aceder neste capítulo a narrativas e experiências em que o impacto pessoal da cegueira se manifesta também para além dessas contingências sócio-históricas. Busco portanto confrontar-me com a efectividade de experiências em que a própria cegueira é subjectivamente vivenciada como uma privação sensorial, como uma limitação incapacitante, e como causa de um penoso sofrimento.

No entanto, ao analisar estes elementos mais imediatamente ligados às experiências corpóreas dos indivíduos cegos, não estou particularmente interessado em explorar os mundos fenomenológicos constituídos a partir da diferença sensorial aí desvelada. Aliás, são essas as questões que mais frequentemente surgem nos questionamentos que o senso comum dirige à cegueira: "como são os sonhos de quem nunca viu?", "como é que as outras pessoas são identificadas?", "como será o mundo apenas feito de sons, do toque, de odores e de paladares", "o que dizem as cores para quem nunca as viu?", etc. Na realidade, o propósito central que me guia nesta etapa é pois menos uma curiosidade em torno dos mundos fenomenologicamente constituídos na ausência da visão, do que um interesse no modo como emergem, nas narrativas e nos relatos autobiográficos dos sujeitos, situações de sofrimento directamente relacionadas com a experiência de privação que pode estar associada à cegueira.

O sofrimento é uma das bases incontornáveis da experiência humana (Kleinman e Kleinman, 1997: 1), estando associado a um enorme espectro de eventos que marcam a existência: a dor física, a experiência da humilhação, a fome, a morte de um ente próximo, a solidão, o vislumbre da própria morte, o fim de uma relação amorosa, a desqualificação social, o acometimento de uma depressão, a perda de uma capacidade funcional, o desfigurarnento físico, etc. Nas representações dominantes na nossa sociedade, a ideia da cegueira encontra-se firmemente vinculada ao tema do sofrimento e da tragédia, constituindo uma projecção que tende a pensar as vidas das pessoas cegas imputando-lhes as noções de infortúnio, incapacidade e tragédia, como marcas identitárias poderosamente incrustadas, estigmas que frequentemente conflituam com as concepções positivas e os desejos de realização de quem é cego. A isso mesmo foi dado ênfase quando, a partir dos usos da bengala branca, analisámos o lapso central nas construções do sentido da cegueira: aquele que se estabelece entre as leituras afirmativas e positivas da cegueira que encontrei nas narrativas e vivências dos sujeitos, assim como no discurso associativo, e as persuasões sedimentadas na sociedade mais ampla que descrevem a cegueira por apelo à "narrativa da tragédia pessoal" .

No entanto, e como então afirmei, a assunção deste lapso, que se tornou etnograficamente óbvio, não equivale a afirmar que o profundo sofrimento e as ideias de tragédia não surgissem na realidade específica que estudei: "depois de cegar só pensava que mais valia ter morrido a ficar assim". Surgem, e em termos que vão para além da evidência que todas as vivências são marcadas por eventos de sofrimento, e o seu lugar tão pouco se dilui completamente na asserção de que as pessoas cegas são alvo de uma poderosa depreciação e exclusão social. É exactamente a esse sofrimento e noção de privação que as concepções hegemónicas sobre a cegueira exacerbam, confluindo-o com essa condição de ponta a ponta, que pretendo atentar particularmente neste momento do trabalho. A essoutro sofrimento/privação que cobre as representações dominantes da cegueira, e não é completamente apreensível na relação com a experiência de exclusão a que as pessoas cegas estão sujeitas, chamo a angústia da transgressão corporal. É esta  angústia que procuro pulsar sobre duas modalidades que nos importam para aceder às representações da cegueira: em primeiro lugar, a vivência da angústia na transgressão do próprio corpo e, em segundo lugar, a projecção da transgressão vivencial e corporal implicada pela cegueira. Estas linhas de inquirição reflectem o carácter |duplo das preocupações desenvolvidas na fenomenologia de Merleau-Ponty, como bem sistematizam Francisco Varela et al. (1991: xvi). Por um lado, a questão da transgressão do próprio corpo inscreve-se no corpo vivido, a estrutura de ancoragem de toda a experiência; por outro, a questão da projecção da transgressão corpora1 envia-nos para o corpo como contexto ou meio dos mecanismos cognitivos.

Dirijo-me, portanto, para a primeira modalidade aventada, a que se refere à angústia suscitada pelo acolhimento da cegueira no próprio corpo, e para o modo como um tal advento pode actualizar a vulnerabilidade da existência, pela vivida transgressão daquelas , que eram referências corpóreas e existenciais dos sujeitos. No contacto etnográfico que estabeleci, foram vários os factores que se esboçaram para a asserção de algumas continuidades na relação das pessoas com a própria cegueira. Como atrás mostrámos, o ajustamento das pessoas à sua condição sensorial muito depende dos ensejos de realização pessoal, mais fundamentalmente ligados ao aspecto profissional, dependendo também do lugar que a cegueira possa ocupar como obstáculo a esses itinerários. Elementos que naturalmente não são dissociáveis dos aspectos sócio-culturais que vimos colocando no centro da análise. Mas, para além destas questões que se prendem com os projectos pessoais dos sujeitos, foi possível ler outros factores no modo como a cegueira e as dificuldades por ela implicada são acolhidas pelos seus portadores. Numa primeira instância poderia dizer que os elementos que se revelaram mais prementes nas convivências quotidianas, nas reflexões e nas histórias de vida foram: o facto da cegueira ser de nascença ou não, o tempo decorrido desde a perda da visão (no caso da cegueira ser adquirida), e as circunstâncias da perda, fundamentalmente o facto de esta se ter dado de um modo progressivo ou súbito.

Relativamente ao primeiro facto, verifiquei algo que também se encontra presente nas construções reflexivas de quem trabalha profissionalmente com pessoas cegas. Ou seja, o facto das pessoas cegas de nascença tenderem a mostrar uma maior adaptação à sua condição, e de nelas ser menos patente a existência de sentimentos de inconformismo ou "revolta" pelo facto de serem cegas. Isto acontece porque, em grande parte dos casos, houve uma aprendizagem desde a infância que lhes ensinou as competências e técnicas a serem empregues por quem não vê para a realização das mais diversas actividades. Mas também, e sobretudo, porque nesses casos não existe uma experiência de perda, não há um mundo empobrecido naquilo que nele se pode apreender, não há um constrangimento em relação aos modos de fazer, nem tão pouco um confronto com as coisas que se tornaram impossíveis de fazer. Não há, portanto, a experimentação de uma ruptura, nem a submissão a uma imperativa metamorfose no modus vivendi.  É óbvio que as pessoas que já nasceram cegas têm uma noção do lapso que as separa de quem vê, um lapso que é actualizado quotidianamente na comparação com os outros, e na realização das facilidades que a visão permite na apreensão de elementos da realidade e na execução de algumas tarefas. Isto mesmo me dizia Vítor quando eu indagava como é que o facto de nunca ter visto se concertava nele com a noção da privação implicada pela cegueira.

Sentes-te privado de alguma coisa por não veres? Claro que sinto, desde uma coisa tão simples como ir ver um filme ao cinema, olhar para uma fotografia, para uma pessoa, isso há muito coisa que estamos privados... Agora não significa que não se possa viver sem elas tão bem como se não as tivéssemos. De que aspecto é que sentes mais falta? Não posso dizer do que sinto mais falta porque nunca conheci outra coisa, sempre fui cego, nunca vi... de uma certa forma habituas-te a fazer as coisas...

Aliás, foram várias as pessoas que me referiram que não tiveram, até certa altura na sua infância, sequer a noção de que estarem privadas de algo. Assim foi o caso de Fernanda que, até à altura de ir para a escola, tinha por hábito brincar na rua com as restantes crianças: "só me apercebi que era diferente quando os meus amigos foram para escola e eu fui para o colégio de cegos". Para quem é cego de nascença, as privações implicadas pela cegueira são, portanto, conhecidas no correlato com as experiências de quem vê. Algo que faz com que a efectividade de um défice sensorial apenas se actualize nos sujeitos perante algumas realizações que lhes estão vedadas, algo que na maioria dos casos favorece a que a cegueira seja acolhida sem particular dramatismo, tendendo a verificar-se um maior ajustamento pessoal ao encontro do reconhecimento e afirmação vivencial das capacidades que residem na cegueira. É óbvio que as experiências a que acedi por via da ACAPO não deixam de operar uma triagem das narrativas, sendo plausível supor que entre aquelas e aqueles que nunca se subtraíram a formas de super-protecção das suas famílias vigorem perspectivas mais incapacitantes acerca da cegueira. No entanto, o que aqui importa registar é a relação entre a inexistência de uma situação de perda e uma, “incorporação” mais “natural” da cegueira enquanto incontornável marca da existência. Por esta razão, não é incomum ouvir nestas pessoas afirmações que representam uma desdramatização que, para quem vê ou já viu, soam a excessivas. Recordo uma, decorrida num ambiente de lazer com duas associadas cegas congénitas: "Olha, tenho mais desgosto em ser gorda do que ser cega, mas é óbvio que gostava de ver, gostava de poder ver os meus filhos...", "eu só queria ver para poder conduzir, porque ao fim de semana fico para lá sem transportes..."

Em todo o caso, a asserção que se sedimenta quando apreciamos as narrativas das pessoas que nasceram cegas, ou que cegaram muito cedo na infância, é a inexistência de uma qualquer ruptura vivencial provocada pela cegueira, a ausência de um qualquer itinerário que um dia se tenha prostrado à dissolução de referências. Assim, esse corpo que é sede de uma relação com o mundo que desconhece a visão, é um corpo em que não está implicada a experiência presente ou passada de uma transgressão, fosse ela a transgressão de um modo de vida e de uma concepção do mundo fundada na visão, fosse ela a transgressão do próprio sentido da vida.

Deste modo, a ilação fundamental que permanece é que, em muitas das narrativas pessoais da cegueira, as das pessoas cegas de nascença, está ausente a premência das ideias de perda, de tragédia e de infortúnio, enquanto produtos da própria cegueira. Percebemos, pois, que a evidência da cegueira não se liga necessariamente à angústia da transgressão corporal, que as narrativas de cegueira evocam nas representações dominantes dessa condição. Portanto, em última a instância, "a narrativa da tragédia pessoal" - a plataforma conceptual culturalmente privilegiada para a apreensão da existência das pessoas cegas - e aquilo que nela há de suposição de uma narrativa de trágica ruptura corporal e existencial, mostra ser profundamente desadequada para captar as experiências de quem nunca viu. Ou seja, a efectividade da ideia de tragédia e a perda que esta faz supor, não encontra qualquer correlato nas narrativas das pessoas para quem a cegueira - embora podendo estar associada a um sentimento de privação - nunca esteve implicada num desastre pessoal ou numa perda angustiante. Ademais, existem histórias de vida em que mesmo havendo uma perda e uma ruptura profunda, a cegueira pode emergir num contexto em que essa dissolução pode ser relativizada. É o caso de Carolina, que apesar de ter cegado abruptamente aos 14 anos, justifica o optimismo com que sempre encarou a sua cegueira (e que se tornava quotidianamente patente), pelas circunstâncias em que perdeu a visão: "fui operada em último grau, era operada ou morria, perdi a visão, do mal, o menos!". Leituras que estão inevitavelmente vinculadas a idiossincrasias pessoais, mas que esvaziam, nuns casos, ou oferecem complexidade, noutros, às hermenêuticas das pessoas cegas reiteradamente elaboradas pelo crivo de uma perda dilacerante.

É esse mesmo acréscimo de complexidade que se verifica quando acedemos às narrativas das pessoas que perderam a visão. Novamente a efectividade de um evento trágico que conduz à cegueira é negado, desta vez pelo modo como muitas formas de cegueira baixam sobre as pessoas num lento declive em que o ajustamento ao esmaecer da visão se faz de modo progressivo. Na verdade, há várias doenças de gradua1 degenerescência, muitas delas de carácter hereditário, que conduzem a urna lenta cegueira. Por isso, muitos dos casos de cegueira são o resultado de um processo lento e anunciado, que permite aos sujeitos anteciparem a eventualidade de uma perda que ocorre muitas vezes como um vagaroso anoitecer de muitos anos.

O escritor Jorge Luís Borges alude em vários momentos da sua obra, directa ou indirectamente, à cegueira que lhe sobreveio lentamente até lhe roubar a visão aos 55 anos. Uma inevitabilidade que soube aceitar e que já havia visitado o seu pai e a sua avó: "Pedir que não me anoiteçam os meus olhos seria uma loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias" (Borges, 1998d: 394). Numa curiosa fábula, Jorge Luís Borges evoca o encontro onírico de si consigo mesmo; aí se conta como no banco de um jardim junto ao rio tomou lugar o diálogo mágico de um Borges septuagenário com o seu jovem predecessor. Um encontro dos diferentes tempos de uma vida em que profecias e memórias se cruzam, e onde a cegueira é tranquilamente revelada pela voz do ancião:

"Quando atingires a minha idade terás perdido quase por completo a vista. Verás a cor amarela e sombra e luzes. Não te preocupes. A cegueira gradual não é coisa trágica. É como um lento entardecer de Verão." (Borges, 1998e: 14).

Apesar de Borges ter visto durante grande parte da sua vida, a possibilidade de antecipar a cegueira e a mansidão da sua chegada assomam nele como factores que fazem com que um tal evento não se assuma como algo de trágico, como o autor reitera noutro lugar:

O meu caso não é especialmente dramático. É dramático o caso dos que perdem bruscamente a vista: trata-se de uma fulminação, de um eclipse, mas no meu esse lento crepúsculo começou (essa lenta perda de vista) quando comecei a ver. Prolongou-se desde 1899 sem momentos dramáticos, um lento crepúsculo que durou mais de meio século (Borges, 1998a: 289).

A questão para que a experiência de Borges nos reporta prende-se com um factor que tende a mitigar em muito o dramatismo implicado pela perda de visão. Evoco a narrativa de Borges porque ela é congruente com as ilações que extraí, e com as histórias pessoais a que acedi durante o trabalho de campo. Ou seja, os casos de cegueira anunciadas e graduais, embora não deixem de ser fonte de grandes angústias, ansiedades e tensões, tendem a favorecer uma consciencialização da necessidade de se viver com a cegueira, conduzindo mesmo, nalguns casos, a uma aprendizapem antecipada das competências necessárias para uma vida sem visão. À possibilidade desta preparação antecipada, acresce o facto do caminhar vagaroso da cegueira não implicar um corte abrupto na relação com o mundo, eminentemente visual—o tal eclipse de que falava Borges—, levando a que a perda sensorial seja lentamente digerida.

No entanto, as doenças degenerativas da capacidade visual variam no modo da sua evolução, como variam os casos particulares. Recordo-me de contactar com pessoas cujos momentos de tristeza mais aguda resultavam da consulta médica periódica, por aí tomarem conhecimento do valor da diminuição da acuidade visual. Noutros casos, o processo não se dá por um declive mas antes por pequenas quedas que são claramente percebidas pelos sujeitos, levando a momentos de maior angústia. Eu próprio assisti ao evoluir de algumas situações, como por exemplo a de Ricardo, cuja visão foi piorando de modo notório ao longo da formação profissional que realizava na ACAPO:

Há três anos conseguia ver... mais ou menos bem, agora há três anos agravou por causa do descolamento da retina que tenho, e tem tendência a piorar, a tendência é mesmo cegar completamente, agora já só vejo vultos... às vezes consigo ver a pessoa mas é muito raro... lá há um dia ou outro em que consiga vislumbrar mais alguma coisa, mas normalmente só consigo  ver vultos.

Do mesmo modo pude dar conta da progressão de Rita que pouco tempo antes da entrevista que me deu havia tido uma perda de visão importante: "Piorei há 4/3 semanas, passei a só ver vultos e a ter percepção de luz". Mas, como referi, também há outros casos em que a cegueira chega pé ante pé, durando por vezes dezenas de anos a consumar-se. Alberto cegou ao longo da vida, já via mal na infância e, por via de um lento esmaecer, só haveria de ficar completamente cego por volta dos 35 anos:

Na primária via mal, mas pensava que toda a gente era assim, só depois comecei a ver a facilidade com que as pessoas se deslocavam, comecei a aperceber-me que via de um modo diferente lá para os 10 anos. (...) à medida que a visão ia diminuindo eu ia indo aos médicos, passei da mota para a bicicleta, a certa altura [1982] tive que abandonar tudo. (...) eu não sei se senti mesmo a fundo o facto de estar a cegar, se calhar nunca recebi esse choque, como uma pessoa que tem um acidente...

Alberto teve que abandonar o seu trabalho na construção civil, e, logo após ter cegado, foi fazer a reabilitação no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos. Nessa altura, o pesar de Alberto prendeu-se com facto de ter ficado incapacitado de trabalhar na suas antigas funções e de, mesmo após a reabilitação e a formação profissional, nunca ter conseguido arranjar emprego. Como o próprio refere nunca vivenciou propriamente um "choque" com a perda de visão, tal foi a suavidade do seu anoitecer. Embora não sejam elidíveis momentos de alguma dor—como quando se deixa de conseguir ler um jornal, andar autonomamente na rua sem bengala, de reconhecer as caras das pessoas ou de realizar as funções profissionais de então—estes processos tendem a conferir aos sujeitos uma mais fácil capacidade de ajustamento à própria cegueira. Portanto, não estando ausente o confronto com a vulnerabilidade do próprio corpo, e se por vezes é possível detectar um grande inconformismo ou a busca de um sentido, como quem pergunta "corpo, porque me transgrides?", a verdade é estamos perante cegueiras cuja evolução ocorre muitas vezes sem momentos críticos de ruptura existencial e de drásticas alterações do modus vivendi. Assim antecipava Lara a sua possível cegueira.

Observo as pessoas e vejo-as rirem-se e fazerem tudo, para mim esses modelos são uns heróis e penso que quando lá chegar e se cegar, quero rir-me das coisas e fazer e fazer as coisas como eles fazem.

É perante esta possibilidade de um "amanhecer sem espanto" (Borges, 1998d) que as narrativas de cegueiras progressivas e previsivelmente vindouras nos colocam. Uma possibilidade que sem ser obviamente necessária—quer pelo modo como as cegueiras se encostam no tempo, quer pelas particularidades que envolvem (e que são) os sujeitos— sustenta a certeza de que em muitos casos de perda de visão estão ausentes o drama e a tragédia que uma tal transição irremediavelmente parece fazer supor.

Os elementos até aqui evocados concorrem para a persuasão de que as vivências da cegueira e as suas narrativas pessoais desvelam muitas vezes—porque é de nascença ou porque é adquirida num processo gradual—a ausência de eventos de perda dilacerantes e de ruptura existencial. Este encontro com a pluralidade das narrativas de cegueira é relevante. sobretudo pelo facto de acentuar uma distância entre a espessura histórica dos eventos pessoais de cegueira, e o modo como a ideia de perda trágica participa na vigência hegemónica de uma meta-narrativa da tragédia pessoal, que é culturalmente interposta na vida das pessoas cegas. O mesmo não implica, de modo algum, a negação de experiências de profundo sofrimento associadas à privação sensorial ligada à própria cegueira, aspecto que eu aqui procuro pulsar. Um elemento cuja relevância se relaciona mais claramente com as experiências incorporadas e com lugar que nelas ocupa aquilo que designo por angústia da transgressão corporal. É a premência desta angústia que eu procuro resgatar também na persuasão de que há elementos na experiência da cegueira que não poderão ficar diluídos num exame dos valores e das estruturas sociais que envolvem a cegueira.

De facto, sendo constatável que o sofrimento implicado pela angústia da transgressão corporal está totalmente ausente de muitas das narrativas de cegueira, ele não deixa de comparecer pungentemente em muitas das histórias de perda de visão. Como verificámos, o impacto dessa perda pode ser bastante relativizado e atenuado nas muitas situações de cegueira gradual. No entanto, menos relativizável é certamente o sofrimento implicado nos casos em que a perda de visão acontece sem aviso, de modo abrupto. Nas muitas histórias de vida que recolhi, um substancial sofrimento mais directamente implicado pelas dimensões corpóreas da experiência, encontra-se mormente associado a essas experiências de profunda privação e ruptura vivencial, em que a perda de visão surge de facto como cataclismo:

Ainda me lembro, naquele dia era a final entre Porto e Setúbal, ia para casa comecei a ver formigueiro, comecei a olhar para o céu e não via nada, olhei para o chão e não via nada, fui chorar para casa com a minha mãe. Estava cego.

É nas narrativas marcadas por esse tipo de experiências que me procurarei deter. Nas histórias a que acedi de cegueiras inesperadamente infligidas de um modo súbito, somos colocados perante eventos a que os sujeitos se referem como profundamente traumáticos, rupturas que tendem a desencadear um confronto agonístico com a possibilidade de uma vida sem visão, em que ser ou não ser aparece, não raras vezes, como questão. Mas, se é verdade que as ideias de desastre e tragédia ganham, de facto, efectividade nessas experiências, também pude perceber como nas narrativas pessoais o reconhecimento do impacto de uma perda passada se articula com um distanciamento pessoal—que também é temporal—de sujeitos que aprenderam a começar de novo. Portanto, é de frisar que essas experiências de perda dilacerante chegam na esmagadora maioria dos casos por via de narrativas pessoais onde se expressa uma capacidade de acomodação que também importa considerar. Longe de pretender reescrever por esta via alguma forma de idealismo que elida as implicações pessoais de uma tão significativa transgressão das referências corporais e sensoriais, entendo que os mundos da experiência não podem ser lidos fora das narrativas dos seus protagonistas. Neste particular, torna-se importante que as experiências de sofrimento possam ser integradas nos percursos pessoais e nas suas construções reflexivas, elaborações que nos colocam amiúde perante histórias de resistência. Concordo, portanto, com o que diz Arthur Kleinman, quando este coloca ao centro da análise da dor e do sofrimento, a necessidade de se contemplarem as construções elaborados nos mundos locais da experiência dos sujeitos:

For an ethnography of experience the challenge is to describe the processual elaboration of the undergoing, the enduring, the bearing of pain (or loss or other tribulation) in the vital flow of intersubjective engagements in a particular local world (Kleinman, 1992: 191).

Jorge estava a estudar Português-Francês na universidade quando, aos 22 anos, viajando num autocarro, apanhou com uma cotovelada que levou a um descolamento da retina. Em consequência disso cegou do olho direito. Jorge conta que teve extrema dificuldade em conviver com esse momento doloroso, que também fez aumentar em muito uma certa desmotivação que já sentia em relação ao seu curso, contribuindo para que durante alguns anos se alheasse: "Andei assim um bocado perdido, não me adaptei bem à situação, faltava às aulas, houve anos que não frequentei". Só mais tarde, com 27 anos, voltaria a recuperar o alento para continuar a estudar, mas no ano em que pediu o reingresso e em que já se sentia preparado para recomeçar começou a ter alguns problemas no olho esquerdo. Foi ao oftalmologista e descobriu que tinha uma doença rara. Segundo me explicou, trata-se de uma patologia de origem genética que faz com que o corpo produza anti-corpos a mais, anti-corpos esses que vão impedir a circulação nos capilares da retina. Os problemas aí causados levaram a que viesse a cegar com cerca de 29 anos. Apesar de ser provável que a condição genética de Jorge tivesse conduzido per se à cegueira de ambos os olhos, o percurso da sua perda de visão acaba por ficar marcado por duas circunstâncias deveras insólitas, a cotovelada involuntária no autocarro e o acometimento de uma doença rara. Quando perguntei a Jorge qual havia sido o seu momento mais difícil, respondeu:

Acho que foi a partir dos 27 anos, mais ou menos, eu tinha... [suspiro] havia coisas que eu gostava imenso de fazer, que era... gostava de desenhar, pintar... depois também não conhecia a ACAPO, não sabia nada de Braille! Também se calhar na altura não estava interessado... estava tão completamente fora de mim e se calhar não estava interessado.

Jorge esteve um longo período sem que conseguisse reagir ao desastre que sobre ele se abateu. E se é verdade que então também pesava o desconhecimento acerca daquilo que as pessoas cegas podiam fazer e a agonística incorporação dos preconceitos detidos em relação à cegueira, o facto mais premente foi sem dúvida o impacto da perda de visão, decerto ampliado pelo gosto que tinha em relação às artes visuais. Como se poderá supor, esse impacto foi dolorosamente vivido, tendo levado a que Jorge se fechasse ao mundo por algum tempo:

Ao princípio foi bastante mal... mesmo! Bastante mesmo!... (...) Costumo dizer que estive pelo menos 3 anos a reciclar em casa, sem fazer nada. Depois em fins de 99 é que fui fazer reabilitação em Lisboa na Nossa Senhora dos Anjos, reabilitação, aprender as bases do Braille e outras coisas. Mobilidade também! E depois acho que re..., como um professor que lá estava costuma dizer é preciso renascer... acho que agora me estou a dar um bocado bem, estou mais animado,... É isso mesmo, uma pessoa quando fica cega tem mesmo que esquecer um bocado o que estava para trás e abrir outras perspectivas, outras portas e também não sentir como mártir, martirizada, coitadinho como se costuma dizer, acho que é preciso levar as coisas para a frente e saber que nós também temos capacidades.

Os três anos que Jorge esteve em casa correspondem a um período de moratória que as pessoas quase sempre apõem à inesperada chegada da cegueira. Também no caso de Jorge se torna notório o fulcral papel que o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos desempenhou em tantas histórias de vida de pessoas cegas a que acedi. Sendo de destacar os inúmeros conhecimentos que ao longo de uns meses ali se adquirem acerca das capacidades e alternativas das pessoas cegas, com aprendizagens que abrangem coisas tão amplas como o Braille, a mobilidade, a higiene pessoal, a cozinha, a limpeza da casa, a comunicação interpessoal, etc. Igualmente fulcral naquele contexto é o suporte mútuo que se cria entre pessoas, sobretudo para aquelas que vêm de rupturas dramáticas nas suas existências após cegarem, e que frequentemente ali conhecem pela primeira vez outras pessoas cegas. Este clima de partilha entre sujeitos que realizam a reabilitação inicial— tendo ou não atravessado por experiências de perda similares—é também a partilha de uma situação de marginalidade social. Em parte porque muitas pessoas cegas são relegadas para as franjas da sociedade, mas também porque o ingresso num tal centro de reabilitação faz supor a ausência de um património pessoal de competências passíveis de conferir aos sujeitos a capacidade para uma participação social mais activa. Por estas razões, nas muitas histórias de vida que recolhi, o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos emerge como um espaço onde singularmente se elabora a ideia de um espaço de solidariedade entre pessoas que se encontram na mesma passagem, em busca de aprendizagens e de uma conformação com a cegueira que as capacitem para a integração social. De um modo que se torna flagrante em muitas narrativas pessoais, o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos constitui-se como um espaço profundamente representativo daquilo que Victor Turner designa por "communitas" (1974), conceito autorado a partir da análise dos ritos de passagem, para com ele referir o ambiente de cumplicidade, partilha, comunidade, camaradagem e de horizontalidade, que se gera entre os indivíduos que estão colocados à margem da sociedade, sem um estatuto social definido, e que vivem em conjunto a ambiguidade algures entre o já-não e o ainda-não, a ambiguidade entre duas fases da vida pessoal e social. Numa palavra, a liminaridade.

Quando falei com Jorge (em 2002), haviam decorrido cerca de três anos desde a altura em que ficou cego total. Namorava então com uma rapariga cega que conheceu na ACAPO, mostrando todos os dias uma capacidade e vontade de superação que, como o próprio assume, e eu pude atestar, muito depende, no seu caso, do uso do humor para desdramatizar as dificuldades. Contou-me que o seu objectivo seria empregar-se como telefonista-recepcionista num hotel, tomando partido do francês fluente que adquiriu pelo facto de ter estado emigrado durante a adolescência, para então poder concluir a sua licenciatura, já apoiado no domínio do Braille. A pessoa com quem falei era certamente alguém que havia passado por experiências profundamente dolorosas, mas onde era também já patente uma reconfiguração do "mundo da vida", substanciada na sedimentação de luta por projectos em que a cegueira era já tida como um dado. Aliás, o sucesso da sua adaptação ao doloroso processo por que passou fica também patente no modo aproblemático com que se adaptou ao uso da bengala branca e na forma como diz enfrentar as expressões de preconceitos quotidianamente reiteradas em relação à cegueira:

Sempre aquela coisa do coitadinho, do ceguinho, por pena, se calhar... A mim não me afecta muito até percebo a opinião das pessoas, mas em colegas meus na ACAPO às vezes vejo que revoltam-se com a situação, não gostam de ser chamados assim, outros não gostam de ser ajudados a subir no autocarro ou a atravessar a rua... eu não tenho problema até agradeço, depois trocam-se opiniões, conversa-se um bocado, até é uma forma de sensibilização...

A narrativa de Rui expressa a vivência de uma liminaridade induzida pelo sofrimento implicado pela privação da visão, significativamente expressa na citação da ideia de renascimento. Igualmente elucidativa de uma liminaridade, de uma passagem transformadora mediada por um período em que o indivíduo se retira dos mundos da vida social, é a narrativa de Rui. Rui cegou subitamente, em 1982, em consequência de uma explosão. Na altura Rui já era casado e tinha uma filha, trabalhava como fornecedor de madeira, passando o grosso da sua actividade a conduzir veículos pesados. Ao fortíssimo choque que constituiu a sua cegueira, acresceu o facto de esta ter implicado um profundo corte com aquelas que até então eram as suas actividades profissionais: "Olhe, é muito difícil... só lhe digo isto...! Tinha uma vida muito activa, de um momento para o outro parei!" Após cegar esteve dois anos em que praticamente não saiu de casa. Durante esse período persistiu em busca de médicos, sempre alimentando uma esperança que parecia não ter correlato nos diversos diagnósticos. Chegou a ir a uma reputada clínica oftalmológica em Espanha e à medida que a impossibilidade de recuperar a visão se sedimentou, assume ter equacionado por várias vezes a hipótese de suicídio. Ademais, teve ainda a dificuldade de enfrentar o seu trauma acolhido naqueles que o conheciam:

Um dia cheguei junto de um senhor de quem era fornecedor pouco depois do acidente, não teve coragem de me encarar, fugiu a chorar para trás da pilha de madeira. Mas eu compreendo as pessoas que reagem como reagem em relação à pessoa cega, eu só tinha visto uma vez na vida uma pessoa cega e pensava como é que isto pode ser?

Só dois anos após o acidente que o vitimou. e muito por via do apoio e incentivo da família, é que Rui encontrou alento para realizar a reabilitação:

Só quando perdi a esperança é que fui ter com a Sain [Fundação Raquel e Martin Sain] e foi uma maravilha! Morri e voltei a nascer! Deixei de pensar no que não podia fazer, para me preocupar com o que podia fazer. Como me disse um senhor na casa do povo: "Isto a vida é assim, agora vais ter que te habituar a viver de outra maneira!"

Na altura que falei com Rui (2002) a sua vida estava já completamente reconstituída. Cumprindo o desígnio do seu amigo, habituou-se a viver de outra maneira. Após a reabilitação empregou-se como funcionário público, exercendo as funções de telefonista, havia tido outra filha e era, quando falámos, um activo dirigente regional da ACAPO. A narrativa de Rui representa poderosamente o quanto a vivência da cegueira pode conduzir a uma dissolução dos termos da existência, despoletando mesmo um questionamento passível de evocar a hipótese do suicídio. Neste sentido, podemos dizer que determinados casos de cegueira visitam as vizinhanças de uma morte metafórica, o fim do modo de vida que a visão permitia, por um lado, e, por outro, mais literalmente, o fim da vida como "saída" possível para o desastre acontecido. Se aqui evoco as narrativas em que a cegueira foi vivenciada de um modo mais dramático, pretendo certamente anuir ao impacto da desestruturação relacionada com a transgressão do próprio corpo. Mas viso também realçar o que há de profundamente instrutivo na assunção da capacidade dos sujeitos, mesmo nas situações mais extremas, para reconverterem o sentido das suas vidas, renovando expectativas, prioridades e ensejos de realização pessoal. E esta passagem liminar, fica mais uma vez sintetizada na ideia de um renascimento, que Rui tão proverbialmente narratizava: "Morri e voltei a nascer!".

Foi essa mesma metáfora de resignificação existencial, que significativamente atravessa as narrativas em que a cegueira é signo de uma verdadeira tragédia pessoal, que encontrei na história de vida de José Guerra (nome real). É dessa passagem que nos fala um belo texto seu que me foi confiado, instrutivamente intitulado "Renascer", onde o autor relata o dia da sua chegada ao centro de reabilitação, tempos depois de ter cegado pela explosão de uma granada. Transcrevo aqui um pequeno excerto desse texto:

Das zonas mais recônditas e obscuras da minha alma, emergiam todos os medos, todas as incertezas. Como seria a vida no futuro? Oh! A condição humana! Ontem intrépido, vigoroso, seguro. Hoje inválido, cego, dependente. Como justificar a teimosia de ainda estar vivo? Uma mão amiga pousou no meu ombro, e numa voz tranquila, o psicólogo Martinho do Rosário (Bernardo Santareno para a Literatura Portuguesa), disse-me: vem meu arnigo! Foram estas as primeiras palavras que ouvi do homem que, mais tarde, desceria ao fundo das minhas angústias e desesperos para me acompanhar no retorno à vida.

A história de vida de José Guerra dá conta de um momento simbólico para esse renascer, que a reabilitação permitiria consubstanciar, acontecido algum tempo após ter cegado por via de um acidente militar ocorrido numa situação de rotina:

Depois de cegar não queria usar a bengala, pus a bengala de lado, e andava sempre no hospital [militar], não queria usar a bengala! Sentia-me incomodado! Um dia o tenente-coronel que me apoiou muito naquela altura perguntou:—porque é que não vais...?—Estou à espera da enfermeira.—Pega na bengala e vai!

Nesta narrativa, a afirmação do tenente-coronel—onde encontramos interessantes ressonâncias bíblicas: "levanta-te e anda"—emerge como o momento simbólico a partir do qual José Guerra se iria mentalizar para a necessidade de assumir que é cego e de superar as dificuldades que essa nova situação acarretava. Como atrás apreciámos, é esse o duplo texto que é feito presente na invocação “pega na bengala e vai", em que o imperativo da assunção da cegueira se conflui com a ideia que a vida continua e que, portanto, haveria que seguir em frente, ainda que tacteando o caminho.

As narrativas que aqui apresento são representativas de uma capacidade de superação, perante a perda que a cegueira poderá constituir. E se é verdade que me pude confrontar com reflexões pessoais marcadas pela frustração, elas surgem quase invariavelmente relacionadas com a exclusão e os estigmas sociais a que as pessoas cegas estão sujeitas. Portanto, o que há de dramático na própria perda de visão, além de estar associado a um espectro particular de histórias de vida, também nos coloca perante o distanciamento narrativo que os sujeitos criam em relação às experiências de tragédia e desastre inapelável. Um distanciamento que é produto de um processo de reconstrução pessoal, em que, perante novas referências, as pessoas se capacitam para "nascer de novo". Entrevistei Arménio Sequeira, o director do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, instituição que é, em Portugal, o espaço privilegiado da reconstrução existencial das pessoas que cegaram recentemente. Arménio Sequeira trabalha há mais de duas décadas ligado a esta instituição, a única em Portugal onde se faz a dita reabilitação inicial das pessoas cegas. A sua reflexão, assumidamente dirigida para oferecer uma perspectiva positiva das deficiências, não deixa, no meu entender, de veicular algum idealismo pelo modo como prefere não contemplar—para não enfatizar, reiterando, as visões dominantes das deficiências—a densidade fenomenológica do sofrimento associado a uma privação física como a cegueira. No entanto, a reflexividade de Arménio Sequeira expressa, quer a capacidade dos sujeitos para reconfigurarem as suas vidas, quer o papel de viragem desempenhado por aquele centro de reabilitação, de um modo que é largamente congruente com as histórias de vida que pude conhecer junto da ACAPO, e cujo central óbice acabam por ser as oportunidades de inserção profissional que posteriormente se colocam:

Eu não tenho ideia nenhuma de um caso em que a pessoa não se tenha adaptado à vida com a cegueira, em 20 e muitos anos... Apesar de ser psicólogo não faço abordagens psicologizantes. E conseguem! Conseguem por elas próprias e aprendem muito com isso, aprendem a viver com facto que se cria, as pessoas resolvem, vencem, e vencem em conjunto com os outros em todo um quadro em todo um contexto.

Esta combatividade pessoal, capaz de fazer frente às experiências passadas de despossessão, foi sem dúvida o elemento mais saliente do itinerário narrativo dos sujeitos em relação ao impacto de uma não desprezível angústia da transgressão corporal trazida pela cegueira. Um elemento que, para mim, chegou não apenas pelas histórias de vida que recolhi, conversas e entrevistas que realizei, mas também por uma continuada vivência de proximidade no seio do trabalho etnográfico. Na verdade, embora todas as pessoas cegas possam passar por momentos de alguma "revolta" em relação às dificuldades implicadas pela sua condição—uma revolta em que se mistura a indignação social e o questionamento de alguma forma de justiça, o “porquê eu?”—apenas numa pessoa que conheci, a inconformidade em relação à cegueira acontecida, assumia ainda uma centralidade mais continuada e premente. Falo de Eduardo, que conheci no início de 2000 com 30 anos de idade, cerca de 3 anos depois de ter cegado de modo súbito.

Conforme eu disse noutro lugar (cf. Martins 2001: 107), Eduardo patenteava ainda o impacto do trauma que representou o facto de ter perdido a visão havia tão pouco tempo. Depois de cumprir o tempo obrigatório na tropa, Eduardo ficou vinculado por contrato. Foi após ter contraído sucessivas conjuntivites que se descobriu um vírus raro que, segundo o que lhe disseram os médicos, poderia levar à cegueira. À medida que a cegueira piorava foi internado no hospital militar, onde, devido à sua dificuldade em reagir à aventada eventualidade, também teve consultas de psicologia e psiquiatria. Foi um período muito difícil, em que a cegueira foi avançando, a sua depressão foi-se aprofundando, e na muita medicação que tomava incluíam-se momentos particularmente dolorosos como injecções nos olhos. Um ano após ter sido diagnosticado o vírus, Eduardo estava completamente cego. Disse-me que por várias vezes pensou em suicidar-se no período subsequente à descida última da noite nos seus olhos. Quando Eduardo me contou a sua história, em 2000, houve muitos aspectos a que não acedi pela dificuldade que o próprio ainda tinha em falar de um assunto que ainda lhe era tão doloroso. Fiquei a saber que, depois da tropa, passou pelo Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, e que pouco tempo depois foi encaminhado para a formação profissional na ACAPO, que então realizava em Coimbra. Se mais não soube nessa altura, fiquei no entanto com a certeza de que Eduardo estava longe de aceitar o desastre que a cegueira para ele representou:

Quando saí da tropa disseram-me logo que não tinha possibilidades de voltar a ver, mesmo assim já corri muitos médicos e todos me dizem que não posso voltar a ver, sei que nos E.U. inventaram uns biónicos que permitem a visão a preto e branco e por isso a esperança de voltar a ver persiste. (...) Não sei se algum dia aceitarei, ver é ver... Na ACAPO encontro os cegos divertidos, a dizer que são capazes de fazer tudo o que os outros fazem, o que eu não concordo, mas, de qualquer modo, comecei a ter uma ideia mais positiva acerca do que é ser cego. (...) Eu já vi, e para mim isso significa muito!

Na relação inicial que tive com as experiências da cegueira, Eduardo constituiu indubitavelmente, a mais forte e viva expressão do impacto potencialmente desestruturante de uma cegueira subitamente infligida. Eduardo denotava uma descrença nas possibilidades das pessoas cegas. Ademais, a sua reflexividade colocou-me fundamentalmente perante um sobrevivente, alguém que tinha recusado suicidar-se, mas que ainda não se sentia preparado para viver enquanto uma pessoa cega. Em Junho de 2003, procurei saber dele junto da ACAPO, interessava-me seguir a sua história, voltar a falar com ele três anos depois da primeira entrevista que me deu. Cederam-me o telefone da câmara em que ele trabalhava como telefonista. Liguei-lhe, lembrava-se de mim e de termos falado, disse-lhe que gostaria de falar com ele com alguma demora, acedeu simpaticamente. Combinámos um dia, fiquei de ir ter com ele à Câmara no fim do trabalho. Na minha 4L fomos até sua casa, feita de novo, situada num lugarejo a cerca de 10 quilómetros da cidade. No caminho contou-me do muito trabalho que tinha na Câmara, como era acarinhado pelos colegas. Disse-me que se havia casado, fazia então_cerca de um ano. A sua actual esposa, amblíope, conheceu-a enquanto fazia a formação profissional na ACAPO. Falou-me da sua frustração por ficar limitado em casa ao fim-de-semana, por não haver transporte, e por nem ele nem a sua mulher poderem conduzir. Estas e outras incidências da sua vida actual me foi contando enquanto me indicava o caminho que não via mas adivinhava: "agora quando vir aí à sua esquerda..." Convidou-me para a sua sala, estava calor, ofereceu-me uma cerveja, invejou-me, disse que ainda não podia beber porque ainda estava a tomar uns medicamentos para a "cabeça". Liguei o gravador, e pedi-lhe que me recapitulasse aquilo por que passou desde a sua cegueira até aquele dia. Era claramente um homem diferente que me falava, esmiuçando os pormenores do suplício que viveu, um espaço de enunciação que, nitidamente, só a distância temporal e emocional criada para com esses eventos permitia. Apesar de permanecer cego, o sofrimento e a agonia do período que o levou à cegueira emergiam então como evidentes asserções de que o pior já havia passado:

Foi uma fase muito complicada da minha vida, sinceramente. Deus queira que eu não passe por mais nada assim. (...) Aquilo que eu senti é que os médicos sabiam que eu ia cegar, mas eu não queria ver as coisas assim e acabava por sofrer muito mais. A certa altura disse: "estou cego, mas não estou bem psicologicamente, tenho que fazer alguma coisa pela minha vida ou então suicido-me!" E pensei: "bem, suicidar-me é a pior coisa que eu posso fazer. Vou tentar levantar a cabeça".

De particular interesse se reveste o relato da sua chegada ao Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, da sua incredulidade em relação à alegria de outras pessoas cegas, do primeiro diálogo que estabeleceu com alguém que também não via, e a história desse súbito conforto de saber que não estava só no mundo:

Depois a minha mãe levou-me até à porta cá em baixo do Centro de Reabilitação. Depois veio a funcionária pegou em mim e levou-me pelo braço, chego lá em cima ela diz-me assim: "agora sentas-te aqui e começas a falar com os teus colegas!" Eu pensei: poça, para onde eu vim!... Calha de ter ao meu lado uma mesa e estava um cinzeiro, puxo por um cigarro e começo a fumar, e eu a ouvir... uns tocavam e outros dançavam e outros riam-se, no primeiro andar, e eu assim "então mas o que é que é isto? Então eu pensei que vinha para uma casa de cegos e agora estou numa casa de pessoas que vêem?", pensei eu cá para mim. E eu com o meu cigarro, deixo-me estar, estive ali uns minutos a ouvir, entretanto chega-se lá uma pessoa e senta-se na mesa, e eu disse: "Olhe desculpe isto aqui é uma casa de cegos?" E ele disse: "É, é uma casa de cegos." E eu disse: " é que eu sou cego" e ele vira-se para mim e diz: "eu também." "Ah o senhor é cego?" Já fiquei mais contente. Foi a primeira pessoa cega com quem falou? Foi... foi sim... Eu perguntei-lhe se só nós os dois é que éramos cegos, e ele disse-me: "aqui todos são cegos!"

Contou-me que durante os 7 meses que esteve no Centro de Reabilitação partilhou a sua vida com cerca de 25 outras pessoas, a maioria das quais tinha acabado de cegar, num contexto de solidariedade que acabou por lhe dar alguma força. Falou-me dos tempos difíceis que passou ainda na ACAPO: do primeiro estágio profissional que fez sem ficar integrado, até que veio a conseguir um estágio na Câmara Municipal perto da sua terra de origem. Considera que teve sorte, e que conseguiu, juntamente com a sua esposa, alcançar uma boa vida: "Estamos a trabalhar os dois, tenho a minha casa, tenho a minha vida, tenho a certeza que há pessoas que vêem—era bom que não houvesse—mas que não têm a mesma qualidade de vida que eu". Apesar de ter conseguido encontrar ânimo para viver com a cegueira, confessou-me que ainda não desistiu de ver. Inclusive, telefonou em tempos para falar com o Dr. João Lobo Antunes, mas soube que teria de pagar por um sistema de óculos e câmara de vídeo ligada ao cérebro, que lhe poderia dar uma visão bastante grosseira, cerca de 18 mil contos. Acredita que um dia haverá solução, mas, apesar de ainda achar que é difícil uma pessoa conformar-se completamente a uma tal perda, afirma que se sente feliz por se sentir uma pessoa válida e apreciada pelos outros relevantes, de quem se afastou nos tempos de maior dor. Apesar de a usar, Eduardo reconhece que ainda sentia uma certa vergonha em segurar a bengala branca. Não obstante, considera que o seu exemplo, a sua vida activa, tem servido para que, num meio pequeno, muitas pessoas alterem a sua ideia da cegueira. A sua vida é, pois, no seu entender, a prova de que um cego não tem que ser um "ceguinho". Depois de insistir em me oferecer um licor dos Açores, que aceitei hesitante—pela viagem que se adivinhava—, e após me asseverar da serenidade com que encara a vida e a sua cegueira nela, perguntei-lhe que sentido lhe era possível fazer de tudo aquilo por que havia passado, a agonia da perda da visão, a desmobilização das referências num mundo visualmente construído, e, enfim, todo o sofrimento que o acompanhou ao ponto de o colocar perante a iminência de um suicídio:

Se calhar até foi um castigo de Deus... O sentido... o sentido... para mim fez sempre um grande sentido lutar, não me entregar e ter força interior para os momentos que tive, enfrentá-los, ir à luta. Quando penso no que passei e como estou, sinto-me muito orgulhoso.

A resposta de Eduardo mostra-se profundamente instrutiva. Por um lado vemos a centralidade da teodiceia, conceito que Max Weber colocou ao centro das hermenêuticas do sofrimento: "Se calhar até foi um castigo de Deus...." Ou seja, a teodiceia como sendo as elaborações religiosas através das quais a persuasão na omnipotência e na bondade de Deus se articula com a evidência do sofrimento que permeia a experiência humana. É exactamente esta necessidade de dar resposta às ambiguidades e paradoxos da existência, de que o sofrimento é uma expressão forte, que Clifford Geertz (1993) coloca ao centro do seu conceito de cultura, mormente investido em enfatizar como os seres humanos são primordialmente conduzidos pela necessidade de conferir sentido à sua vida e ao que os rodeia. Assim, no seu entender, do ponto de vista simbólico e religioso, "O esforço não é negar o inegável: que existem eventos inexplicados, que a vida dói, ou que a chuva cai sobre os justos—mas negar que haja eventos inexplicáveis, que a vida não é suportável, e que a justiça é uma miragem (Geertz: 1993: 108, minha tradução). Portanto, haveria como que uma necessidade epistemológica que participaria na criatividade cultural e religiosa como forma de responder ao imperativo ontológico de atribuir sentido às experiências do mundo, algo que a alusão de Paulo ao castigo de Deus claramente denota.

Temos pois esse instigante olhar para as construções culturais e religiosas através de uma necessidade de sentido perante experiências que trazem o espectro de uma dissolução ontológica das culturas e dos sujeitos. É nesse sentido que, recapitulando Max Weber, Clifford Geertz atenta para o imperativo criativo que advém do confronto com experiências como a dor física, a perda pessoal, a contemplação da agonia de outrem, em "criações" que poderão ser lidas como emanações de sentido que permitem que determinados eventos sejam suportados; "sofríveis" (sufferable), portanto (Geertz, 1993: 104). Importante como é a leitura do sofrimento pelas epistemologias que o tornam suportável—ancorando-o à possibilidade dos sujeitos e grupos para lhe atribuírem um sentido—, estamos, no entanto, perante uma perspectiva que não deixa de ser parcial pelo modo como a capacidade de tornar determinados eventos sofríveis se vincula ao sentido que deles é possível fazer. Daí a riqueza da persuasão última da resposta de Eduardo: "O sentido... o sentido... para mim fez sempre um grande sentido lutar, não me entregar e ter força interior para os momentos que tive enfrentá-los, ir à luta". Esta declaração abre a porta para que as experiências de sofrimento dos sujeitos possam também ser pensadas fora da disposição "intelectualista" das ciências sociais, para que, em última instância, possamos contemplar a capacidade dos sujeitos para resistirem a experiências e sofrimentos para os quais muitas vezes não encontram um sentido. Ou, como afirma, Eduardo, eventos em que o único sentido que se encontra é resistir.

Ao encontro desta ideia surge a interessante proposta de Arthur Kleinman (1992). Kleinman defende que, se por um lado as leituras biomédicas do sofrimento fracassam em aceder às questões teleológicas e existenciais que este coloca, as interpretações culturalistas também tenderam a tornar-se reféns de uma leitura estritamente epistémica do sofrimento. Isto, sobretudo pelo facto de, na esteira de Max Weber, se ter colocado no centro das abordagens do sofrimento a produção de discursos que contemplam o seu lutar no seio de narrativas coerentes da existência (Kleinman, 1992: 189, 190). Este autor sugere que as leituras das experiências de dor e de sofrimento. poderão ser profundamente enriquecidas se forem apreendidas enquanto formas de resistência ao fluxo da experiência no seio dos "mundos locais" dos sujeitos. Fundado na análise de sujeitos que padecem de dores crónicas, o autor sugere que uma tal abordagem permite aceder à tessitura das vivências em que os sujeitos se debatem que experiências geradoras de sofrimento. Uma formulação que me parece deveras valorosa para que se possa contemplar o carácter instável das continuadas construções e reconstruções com que os sujeitos apreendem determinados eventos a partir dos seus "mundos locais". Mas também porque muitas experiências são vivenciadas, não como teodiceias, mas como formas de alienação que convocam um mundo caótico, e são vividas como eventos desestruturantes que fracassam em encontrar lugar na linguagem.

Neste sentido, a resposta de Eduardo mostra-se instrutiva de uma asserção mais ampla que me ficou do confronto com experiências em que o acometimento da cegueira esteve associado a eventos de sofrimento. A ideia de que os sujeitos resistem a momentos de profunda privação, e que encontram formas de reconstruir as suas narrativas e existências caminhando para além do impacto de uma tal perda sensorial. Num processo em que, muito mais importante do que o sentido interpretativo que esses eventos adquirem é o reconhecimento de como a reconfiguração da existência se faz por apelo a uma capacidade de resistência ao sofrimento implicado na perda; " (...) não me entregar e ter força interior para os momentos que tive de enfrentá-los, ir à luta (...)". De tal modo que, na construções narrativas pessoais, esse sofrimento surge amiúde como algo datado no passado: " (...) Quando penso no que passei e como estou, sinto-me muito orgulhoso".

Adquire aqui particular vigor a assunção, claramente presente no percurso de Eduardo, de que a capacidade dos sujeitos para reconstruírem as suas vivências a partir dos seus "mundos locais", é menos a capacidade para aceitar o sentido do que aconteceu do que a capacidade para resistir à dissolução ontológica que a perda de visão pode evocar. Eduardo é a mais poderosa representação de algo com que me defrontei no trabalho de campo: a capacidade dos sujeitos de superarem experiências de perda e de reconstruírem o sentido das suas vidas mesmo quando fracassam em encontrar sentido para o sofrimento provocado por essa perda.

Nas histórias de vida em que o surgimento da cegueira invoca o lugar de um sofrimento que é possível associar à angústia da transgressão corporal, pude perceber, como elemento mais premente, o facto desse sofrimento surgir narrativamente como parte de um passado que se fez estranho. Este percurso através da diversidade das experiências da cegueira coloca-nos, numa primeira instância, perante a evidência da impossível generalização da relação entre a cegueira e a ideia de trágica privação. Seja porque muitas pessoas nascem cegas, seja pelos muitos casos em que a cegueira surge de um modo gradual. Denunciando-se desde logo a desadequação biográfica da "narrativa da tragédia pessoal"—e a falácia que constitui a sua projecção enquanto meta-narrativa—naquilo que nela há de projecção de uma insolúvel perda dramática. No entanto, alojados no propósito de reconhecer o eventual papel desestruturante da perda de visão nas experiências corpóreas da cegueira, contemplámos mais demoradamente algumas narrativas em que a cegueira surgiu num contexto de absoluta ruptura vivencial, tornando-se evidente como, em determinados sujeitos, a perda de visão constitui um verdadeiro cataclismo pessoal. Estabeleceu-se assim um enfoque que procurou pulsar aquele espectro de experiências em que a ideia da cegueira como uma perda questionadora do sentido da existência, e corno tragédia pessoal encontra correlato nas experiências dos sujeitos. Mas se é nesse enfoque depurador da diversidade de vivências da cegueira que é possível pulsar a acuidade de experiências em que a cegueira surge como negação da vida, e como uma magna privação, esta atenção, que também nos procurou subtrair a uma perspectiva idealista da cegueira, veio substanciar a vigência de leituras positivas e capacitantes da cegueira exactamente onde elas seriam mais improváveis: "Olhe, é muito difícil...só lhe digo isto...!  

Pude constatar que as ideias de perda, tragédia, incapacidade e privação, não sendo meras projecções destituídas de qualquer correlato nas experiências das pessoas cegas, além de surgirem num espectro particular de histórias de vida, aparecem nas narrativas que me foram veiculadas enquanto elementos de uma paisagem distante, ou melhor, de uma paisagem que se fez distante nas vidas reconfiguradas de que um dia viu. É o tal renascer de que se falava, a partir do qual os ensejos, expectativas e frustrações dos sujeitos se vão ligar, não com o ser ou não ser cego, mas, fundamentalmente, com os obstáculos e estigmas que marcam o horizonte de quem é cego. Poder-se-á alegar o facto da capacidade de "seguir em frente" ter surgido como o elemento mais expressivo nas narrativas de pessoas que cegaram enquanto consequência de eu ter tomado a ACAPO como ponto de partida. Mas, para além do amplo espectro de relacionamentos que as pessoas cegas estabelecem com esta instituição e com um discurso positivo da cegueira ali catalizado, o aspecto que parece mais instigante do pondo de vista analítico prende-se menos com uma ambição representativa da experiências da cegueira do que com a asserção que estas narrativas veiculam de um pernicioso jogo de liminaridades.

O confronto com as experiências em que a cegueira surge na vida dos sujeitos, associada a uma forte ruptura vivencial e a um forte sofrimento pessoal, foi também confronto com a capacidade de ajustamento dos sujeitos expressa nas construções pelas quais as suas existências foram resignificadas. Essas construções narrativas denotam em particular a passagem órfica, a descida ao inferno: "morri e voltei a nascer". Portanto, se é possível dar conta da acuidade que o tema do sofrimento ocupa nalgumas narrativas de cegueira, importa apreciar como as ideias de dor e perda, longe de serem referências diacronicamente pertinentes para pulsar as reflexões pessoais acerca de uma existência na cegueira, emergem vinculadas a um espaço-tempo particular que se fez passado. A experiência do impacto da perda como um cataclismo pessoal surge narrativamente contextualizado num tempo da existência, normalmente associado ao "luto perda". O sofrimento parece assim encontrar morada numa fase liminar, numa passagem em que "o modo de ser na vida" é transformado, assim como a identidade social do sujeito que cega. Temos, pois, que o sofrimento que pode estar associado à experiência da cegueira não poderá ser atribuído a um mero equívoco social em relação ao significado da cegueira. No entanto, a contextualização narrativa pelos sujeitos de experiências de perda e sofrimento, não deixa de tornar notória a disparidade imposta pelas representações culturais hegemónicas em torno da cegueira que adscrevem os sujeitos congelando-os numa posição de liminaridade social.

Bruno Martins
 

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excerto:
[Cap. 5.2 "Tragédia, Sofrimento e Liminaridades": págs. 273-294] 
in
A Cegueira e as Narrativas Silenciadas: Para além da Tragédia, para além do Infortúnio
Dissertação de Mestrado em Sociologia
Bruno Sena Martins
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Coimbra 2004


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6.Nov.07
Publicado por MJA