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Rubem Braga
Os Cegos de Praga - Pedro Cabrita Reis,
1998
Domingo, manhã de sol, na beira do Sena. Faço um passeio vagabundo e olho com
preguiça as gravuras de um bouquiniste. Há um homem pescando, um casal a remar
em uma canoa, o menino sentado no do barco. Há muita luz no céu, nas grandes
árvores de pequenas folhas trêmulas, na água do rio. Junto de mim passa um casal
de mãos dadas. O rapaz e a moça se parecem, ambos têm os olhos claros, o jeito
simples a cara mansa. Vão calados, distraídos, devem ter vindo de alguma
província; dão uma idéia de sossego e felicidade tão grande. Parece que a vida
será sempre essa manhã de domingo; eles terão sempre essas roupas humildes e
limpas, essas mãos dadas sem desejo nem fastio, doçura vaga. Ficarão sempre
assim, tranqüilos e sem história, bem-comportados; a calçada em que andam parece
estimá-los e eles estimam as árvores, a ponte, a água. São tão singelos como
dizer 'bon jour'.
À sombra de uma árvore, junto ao Pont Royal, vejo um velho gordo, em mangas de
camisa; pôs uma cadeira na calçada e olha o rio, o palácio do outro lado, a
mancha branca do Sacré-Coeur lá no fundo. Deve ser um burguês, um comerciante,
que se dispõe a gozar da maneira simples o seu domingo. Passo perto dele e tenho
uma surpresa: sob os cabelos despenteados a cara gorda é revolta e amarga, como a
de um general mexicano que perdeu a revolução e o cavalo, ficou a pé e
desacreditado. Reparo melhor: ele é cego. Está com uma camisa limpa, goza o
vento leve na sombra e não vê nada dessa festa de luz que vibra em tudo. Imagino
que essa luz é tanta que ele deve sentir sua vibração de algum modo, e não
apenas pelo calor, alguma vaga sensação na pele, na ouvidos, nas mãos. Talvez
seja isso que ele exprima, mexendo vagamente os lábios.
Como tive vontade de dizer 'bon jour' ao casal, tenho vontade de me sentar ao lado
do cego, fazer com ele uma longa conversa preguiçosa. Falar de quê? Talvez de
cavalos; cavalos de general, cavalos de carroça, cavalos de meu tio; casos
simples de cavalos.
Ou quem sabe ele prefira conversar sobre frutas; provavelmente diria como eram
grandes os morangos antigamente, numa chácara da infância. Também sei algumas
histórias de baleias; mesmo já vi uma baleia. Todo mundo gosta de conversar
sobre baleias. Hesito um segundo, e subitamente penso que se parar ou diminuir o
passo, agora que estou a um metro de distância, ele voltará para mim os olhos cegos
e inquietos.
— Um cego tem bem direito ao seu sossego no domingo.
Formulo esse pensamento, e
uma vez que ele está mentalmente arrumado em palavras, eu o acho sólido, simples
e gratuito como um pedaço de pau. Sim, há um pedaço de pau sobre o muro. Jogo-o
lá embaixo, na água quase parada. Parece que joguei dentro d'água meu
pensamento; fico vagamente vendo os círculos de água, com a alma tão simples e
tão feliz como... como, não sei. Como um pedaço de pau. Um pedaço de pau
repousando na manhã de domingo.
Paris, Junho de 1950
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in Crónicas Escolhidas
de
RUBEM BRAGA
19.Dez.2015
Publicado por
MJA
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