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Clara Ferreira Alves

Fiquei sem ver durante uns dias, os olhos adoeceram.
O mundo que eu conhecia desapareceu. Repara-se que tudo na nossa vida depende
de um ecrã: o computador, a televisão, o telemóvel. O ecrã, a imagem no ecrã,
substituiu o mundo tátil, o cheiro da vida, o paladar da saliva, a música dos
sons. Ouvimos e cheiramos e saboreamos e palpamos mas, mais do que tudo isso,
vemos. Pouco resta quando deixamos de ver, é como ficar perdido num túnel, sem
saber se é noite ou dia, sem tempo e sem espaço. Na semana passada, despedi-me
do meu amigo Mike Biberstein na Igreja de Santa Isabel, a igreja com um teto de
céu aberto que ele nunca chegou a pintar mas que sabemos como seria, basta
olhar as telas com desenhos de nuvens e de céus sombreados por presságios de
tempestades, rasgões de claridade. Acho que nunca disse ao Mike, devidamente, apaixonadamente, como gostava da pintura
dele, daquela arte que, como disse o Delfim Sardo em Santa Isabel, nos fazia
subir ao céu. Nunca dizemos a uma pessoa quanto gostamos dela. Nunca sabemos
quando a vemos pela última vez. O Mike era um homem tranquilo. Um
homem inteligente. Acho que isso se nota no filme que o Fernando Lopes fez com
ele "O Meu Amigo Mike ao Trabalho" (2008). Notava-se no modo como
falava pouco dizendo o muito que pensava sem pressa sem atropelar. Espécie de
paz que está reservada como diz a Bíblia, aos limpos de coração. Um grande
artista. Um grande artista é uma coisa muito óbvia, parece-me, exceto para quem
não tem olhos de ver. Os olhos. Estando eu sem olhos sentada naquela igreja a
ouvir as vozes e os murmúrios, com o Coltrane à solta na nave, lembrei-me dos
olhos do Mike. Uma vez, numa conversa entre amigos, um de nós perguntou-lhe: o
que esperas tu ver nesta exposição do Ticiano? Era uma grande exposição à qual
todos peregrinámos. Uma daquelas exposições em que entramos pelas telas dentro
e ficamos lá, perdidos na cor e no veludo do traço, tropeçando no corpo branco
das Vénus e das Madonnas, no sofrimento dos Cristos escurecidos, na tristeza
dos homens severos, no paganismo libertino dos Bacos e Dianas, e na grandeza
dos Papas e santos. E o Mike respondeu: espero sair de lá com os meus olhos
lavados. Nunca mais esqueci a frase porque me parecia, parece, um verso, um versículo poético, um princípio de um ensaio
ou um romance. Na igreja, o Delfim falou nos olhos a arder com pintura, os
olhos do Mike. O Mike foi aluno de David Sylvester, o homem que perguntou a
Bacon se acreditava numa arte trágica. Não há melhor definição da emoção das
pinturas dos Grandes Mestres. Os olhos a arder. Os olhos lavados. Há neste amor
à arte uma ferocidade que contrastava com a serenidade do Mike, embora os céus
noturnos, gelados como cinzas, ou iluminados por espíritos de luz, com
manchas de sol e perfis de montanhas, com a pálida face das nuvens cheias de
água, com tempestades e arco-íris, anunciassem um silêncio. O que se passava,
passava-se dentro dos olhos e dentro da cabeça e depois escorria para a mão. Os
meus olhos fechados recordavam-me que viver sem a luz lavada sem o ardor
provocado pelos seres e coisas que gostamos, é uma tragédia. Não sei, não
sabemos, viver sem os olhos. Precisamos deles para escrever e descrever o
mundo, para nos inscrevermos nele. E nunca vemos, com os olhos de ver, os cegos
que passam por nós. Os cegos das esmolas e dos acordeões, numa esquina da
cidade. Os cegos de bengala e cabeça rolada a escutar os carros no semáforo ou
na berma da estrada. Os cegos a que chamamos ceguinhos, a mania portuguesa do
diminutivo. Os cegos da antiguidade eram profetas, como Tirésias, o profeta de
Tebas, que no Édipo-Rei diz como é terrível saber quando o saber de nada serve
a quem o tem. Édipo, que mata o pai e casa com a mãe, acaba por furar os
próprios olhos, único ato à altura da sua abominação. Aristóteles chamou ao
Édipo de Sófocles a mais perfeita da tragédias. Ficar sem olhos é a punição
definitiva. O fim de todo o esplendor e de todo o tumulto. É como entrar num
sono sem nexo, numa dança cerrada da qual desconhecemos os passos. É uma
morte. Não resgatada pelo odor, o toque, o bafo. O único que vem em socorro é o
ouvido. Podemos ouvir um livro. Não é a mesma coisa. Lembro uma tarde no Louvre em que encontrei o Mike por acaso, uma figura na paisagem das salas desertas na hora
de fechar. Os turistas distraídos tinham abalado para os hotéis. Ele olhava
para a pintura com a atenção de uma primeira vez. Tinha inaugurado nesse dia em
Paris e tinha abandonado a própria exposição para ir ao museu lavar os olhos. O
Discípulo com os Mestres. O artista a sós com os seus pares. É assim que o vejo
com os olhos fechados. See you later, Mike.
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Os Olhos do Mike Biberstein
crónica de Clara Ferreira Alves
in Pluma caprichosa
Revista | Expresso
18.Maio.2013
19.Mai.2013
Publicado por
MJA
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