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O Falso Espelho - René
Magritte, 1928
No início de Março de 1986, recebi a seguinte carta:
Sou um artista consideravelmente bem-sucedido que acaba
de passar dos 65 anos. No dia 2 de
Janeiro deste ano eu ia dirigindo meu carro quando levei uma trombada de um
pequeno caminhão, do lado do passageiro. Durante a consulta no ambulatório de um hospital local, me
disseram que eu tinha sofrido uma concussão. Durante o exame da vista, descobriram que eu não conseguia distinguir
letras ou cores. As letras pareciam caracteres
gregos. Minha visão era
tal que tudo me parecia
visto através da tela de
um televisor em
preto-e-branco. Depois
de alguns dias, passei a
distinguir as letras e fiquei com uma visão de águia
― consigo ver uma minhoca se contorcendo a uma quadra
de distância. A precisão
do foco é inacreditável. MAS ESTOU COMPLETAMENTE DALTÓNICO. Procurei oftalmologistas que nada
sabem sobre esse daltonismo. Procurei neurologistas
― inutilmente. Mesmo sob hipnose, continuo sem
conseguir distinguir as cores. Passei por todo tipo de exame. Todos os que você conseguir imaginar. Meu
cachorro castanho é cinza-escuro. Suco de tomate é
preto. TV a cores é uma
mixórdia...O pintor continuava,
perguntando se eu já
havia encontrado esse
problema antes, se
podia explicar o que
estava acontecendo com
ele ― e se teria como
ajudá-lo.
Aquela carta parecia
extraordinária.
Daltonismo, tal como se
costuma entendê-lo, é
algo
congénito ― uma
dificuldade para
distinguir vermelho e
verde, ou outras cores,
ou (o que é
extremamente raro)
incapacidade de enxergar
todas as cores,
decorrente de defeitos
nos
cones, as células
fotossensíveis da
retina. Mas certamente
não era este o caso do
meu missivista, Jonathan I.
Ele havia enxergado
normalmente a vida toda,
nascera com o
sistema completo de
cones em suas retinas.
Tornara-se daltónico
depois de ter vivido 65
anos enxergando as cores
normalmente ―
totalmente daltónico,
“como se estivesse
diante
da tela de um televisor
em preto-e-branco”. O
carácter repentino do
acontecimento era
incompatível com todas
as lentas deteriorações
que podem acometer as
células cónicas da
retina e sugeria, em vez
disso, um acidente de
ordem superior, em uma
das partes do
cérebro especializadas
na percepção da cor.
O daltonismo total
causado por lesão do
cérebro, a chamada
acromatopsia cerebral,
embora descrito há mais
de três séculos,
continua sendo uma
condição rara e
significativa.
Ela deixou os
neurologistas intrigados
porque, como todas as
degenerações e
destruições
de funções cerebrais,
pode revelar-nos os
mecanismos da construção
neuronal ― aqui,
especificamente, como o
cérebro “vê” (ou faz) a
cor. Duplamente
intrigante é sua
ocorrência
num artista, um pintor
para quem a cor tinha
uma importância
primordial, e que pode
tanto
descrever como pintar
directamente o que lhe
aconteceu e assim
transmitir a totalidade
da
estranheza, aflição e
realidade de sua
condição.
A cor não é um assunto
trivial; por centenas de
anos ela despertou uma
curiosidade
apaixonada nos maiores
artistas, filósofos e
cientistas naturalistas.
O jovem Spinoza
escreveu seu primeiro
tratado sobre o
arco-íris; a mais
jubilosa descoberta do
jovem
Newton foi a composição
da luz branca; o grande
trabalho de Goethe sobre
a cor, assim
como o de Newton, teve
início com um prisma;
Schopenhauer, Young,
Helmholtz e Maxwell,
no século passado, foram
todos atormentados pelo
problema da cor; e o
último trabalho de
Wittgenstein foi seu
Observações sobre a cor.
Ainda assim, a maioria
de nós, na maior
parte do tempo, despreza
o grande mistério da
cor. Por intermédio de
um caso como o do sr. I. podemos traçar
não apenas os mecanismos
cerebrais subjacentes ou
a fisiologia da
cor, mas sua
fenomenologia e a
profundidade de sua
repercussão e sentido
para o
indivíduo.
Ao receber a carta do sr.
I., entrei em contacto
com meu colega e grande
amigo Robert
Wasserman, um
oftalmologista, sentindo
que precisávamos
pesquisar juntos a
complexa
situação do paciente e,
se pudéssemos, ajudá-lo.
Sua primeira consulta
connosco foi em
Abril de 1986. Era um
homem alto, magro, com
um rosto esperto e
inteligente. Embora
obviamente deprimido por
seu estado, logo se
animou e começou a
falar-nos com
vivacidade e humor.
Enquanto falava, fumava
sem parar; seus dedos,
inquietos, estavam
manchados de nicotina.
Descreveu-nos uma vida
muito activa e produtiva
como artista,
desde sua juventude com
Georgia O’Keeffe no Novo
México, passando pela
pintura de
cenários em Hollywood
nos anos 40, até seu
trabalho como
expressionista abstracto
em
Nova York nos anos 50 e
como director de arte e
artista de publicidade.
Ficamos sabendo que seu
acidente fora
acompanhado de uma
amnésia passageira.
Evidentemente, fora
capaz de dar à polícia
uma clara descrição de
si mesmo e do acidente
no momento em que este
ocorreu, no final da
tarde de 2 de Janeiro,
mas depois decidiu ir
para casa, devido a uma
dor de cabeça insistente
e progressiva. Reclamou
com a mulher
da dor de cabeça e de
estar se sentindo
confuso, mas não
mencionou o acidente.
Caiu
então num longo sono,
quase letárgico. Só na
manhã seguinte, ao ver a
lateral amassada
do carro, a mulher lhe
perguntara o que havia
ocorrido. Ao não receber
uma resposta clara
(“Não sei. Talvez alguém
tenha entrado nele de
marcha a ré”), deu-se
conta de que algo
sério devia ter
acontecido.
O sr. I. pegou então o
carro e foi até seu
atelier, onde encontrou,
sobre a mesa, uma cópia
do boletim de ocorrência
do acidente. Sofrera um
acidente, mas, por
alguma estranha
razão, não se lembrava
de nada. Talvez o
boletim de ocorrência
despertasse sua memória.
Contudo, ao tomá-lo nas
mãos, ficou sem saber o
que fazer com ele. Via
caracteres de
diferentes tamanhos e
tipos, todos em foco,
mas que lhe pareciam
“grego” ou “hebraico”.
Uma lente de aumento não
foi de nenhum auxilio;
simplesmente ampliou o
“grego” e o
“hebraico”. (Essa alexia,
ou incapacidade de ler,
durou cinco dias, depois
desapareceu.)
-
(nota 1: Mais tarde,
perguntei ao sr. I. se
ele sabia grego ou
hebraico; ele disse que
não,
tinha apenas o
sentimento de uma língua
estrangeira
ininteligível; talvez,
ele acrescentou,
“cuneiforme” fosse mais
exacto. Via formas, sabia
que tinham que ter um
sentido, mas não
podia imaginar que
sentido seria esse.)
Convencido de que devia
ter tido um derrame ou
alguma espécie de lesão
cerebral em
decorrência do acidente,
Jonathan I. telefonou
para seu médico, que
tomou providências
para que ele fosse
testado num hospital
local. Nessa ocasião,
embora se detectassem
dificuldades na
distinção das cores, em
acréscimo a sua
impossibilidade de ler,
ele não teve
uma percepção subjectiva
de alteração das cores:
isso só ocorreria no dia
seguinte.
Nesse dia, ele decidira
voltar ao trabalho.
Parecia-lhe estar
dirigindo dentro de um
nevoeiro, embora
soubesse que a manhã
estava clara e
ensolarada. Tudo parecia
nebuloso, desbotado,
cinzento, indistinto.
Perto de seu atelier, foi
parado pela polícia:
avançara dois sinais
vermelhos. Tinha
percebido? Não, disse
ele, ignorava ter
avançado
todo e qualquer
semáforo. Pediram que
descesse do carro.
Constatando que estava
sóbrio,
mas aparentemente
confuso e indisposto,
deram-lhe uma multa e
aconselharam-no a
procurar um médico.
O sr. I. chegara a seu
atelier aliviado, achando
que o terrível nevoeiro
acabaria se
dissipando e tudo
voltaria a ficar nítido.
Porém, assim que entrou,
encontrou todo o atelier,
cujas paredes estavam
cobertas de pinturas
coloridas e luminosas,
totalmente cinza e
esvaziado de cor. Suas
telas, as pinturas
coloridas e abstractas
pelas quais era
conhecido,
agora eram cinza ou em
preto-e-branco. Suas
pinturas ― antes ricas
em associações,
sentimentos e
significados ― agora
lhe pareciam estranhas e
sem sentido. Nesse
instante,
esmagou-o a magnitude de
sua perda. Ele fora
pintor a vida inteira;
agora até mesmo sua
arte perdera o sentido e
ele já não sabia
imaginar como ir em
frente.
As semanas seguintes
foram muito difíceis.
“Você pode achar”, disse
o sr. I., “que perder
a visão das cores não é
nenhuma coisa do outro
mundo. Foi o que me
disseram alguns
amigos; às vezes minha
mulher também pensava
assim, mas para mim,
pelo menos, era
terrível, repugnante.”
Ele conhecia as cores de
tudo com uma exactidão
extraordinária (podia
dar não apenas os nomes,
mas os números das cores
listadas na paleta de
variações da
Pantone, que havia usado
durante anos). Podia
identificar incontinenti
o verde da mesa de
bilhar de Van Gogh.
Conhecia todas as cores
de seus quadros
predilectos, mas não
podia
mais vê-las, nem quando
olhava de facto, nem
através de seu “olho
mental”. Talvez as
conhecesse agora apenas
pela memória verbal.
Não apenas as cores
haviam desaparecido, mas
o que ele via tinha uma
aparência
desagradável, “suja”, os
brancos reluzindo,
embora descorados e
impuros, os pretos
cavernosos ― tudo
errado, desnaturado e
manchado.
-
(nota 2: Do mesmo modo,
um paciente do dr.
António Damásio, com
acromatopsia em
decorrência de um tumor,
considerava tudo e todos
“sujos”, chegando a
achar até a neve
recém-caída desagradável
e suja.)
O sr. I. mal podia
suportar a nova
aparência das pessoas
(“como estátuas
cinzentas
animadas”), tanto quanto
não suportava sua
própria aparência no
espelho: passou a evitar
encontros sociais e a
achar impossível uma
relação sexual. Via a
carne dos outros, de sua
mulher e a sua própria,
como se fosse de um
cinza repulsivo;
“cor-de-carne” passou a
ser
“cor-de-rato” para ele.
E isso continuava
ocorrendo mesmo quando
fechava os olhos, já que
sua nítida imaginação
visual tinha sido
preservada, só que agora
igualmente sem cores.
A “incorreção” de tudo
era perturbadora,
repugnante até, e se
aplicava a cada
circunstância do
dia-a-dia. Os alimentos
pareciam-lhe repulsivos
devido a seu aspecto
cinzento, morto, e ele
tinha que fechar os
olhos para comer. O que
não adiantava muito,
uma vez que a imagem
mental de um tomate
continuava sendo tão
negra quanto sua
aparência. Assim,
incapaz de rectificar até
mesmo a imagem interior,
a ideia, de vários
alimentos, ele foi se
voltando
progressivamente para
comidas pretas e brancas
― azeitonas
pretas e arroz branco,
café preto e iogurte,
que pelo menos pareciam
relativamente normais
ao lado da maioria dos
alimentos, em geral
coloridos, que agora
tinham um terrível
aspecto
anormal. Seu próprio
cachorro castanho lhe
parecia tão estranho que
chegou a considerar a
aquisição de um dálmata.
Esbarrou em dificuldades
e aflições de todo tipo,
da confusão entre o
vermelho e o verde
dos sinais de trânsito
(que agora só conseguia
distinguir pela posição
das luzes) à
incapacidade de escolher
suas roupas (sua mulher
tinha que separá-las
para ele, e essa
dependência foi-lhe
difícil de suportar ―
mais tarde, cada item
seria classificado em
suas
gavetas e armários:
meias cinza aqui,
amarelas ali, gravatas
com etiquetas, paletós e
ternos
separados por categoria,
para prevenir
incongruências gritantes
e confusões). Práticas e
posições fixas e
ritualísticas tiveram de
ser adoptadas à mesa;
caso contrário,
confundiria a
mostarda com a maionese
ou, se conseguisse
superar sua repulsa pela
matéria escura, o ketchup com a geleia.
-
(nota 3: Em 1688, em Some uncommon observations about vitiated sight, Robert
Boyle descreveu uma moça de vinte e poucos anos que tinha enxergado normalmente até completar dezoito anos,
quando desenvolveu uma febre, ficou “coberta de bolhas” e, com isso, foi “privada de sua visão”. Quando lhe
mostravam alguma coisa vermelha, “olhava para o objecto com atenção, mas dizia que, para ela, não parecia
vermelho, mas outra cor que, por sua descrição, diríamos ser uma cor escura ou suja”. Quando lhe entregavam
“tufos de seda subtilmente coloridos”, a única coisa que dizia era: “Parecem de uma cor clara, mas não saberia
dizer qual”. Quando questionada se os prados “não lhe pareciam cobertos de verde”, respondia que não, mais
pareciam ser de “uma curiosa cor escura” acrescentando que, quando desejava colher violetas, “não era capaz
de distingui-las, pela cor, da grama que as circundava, mas apenas pela forma, ou pelo tacto”. Boyle observou
ainda uma mudança em seus hábitos: que ela agora gostava de sair e caminhar á noite, o que “lhe aprazia sobremaneira”.)
Certo número de relatos
foram publicados no
século XIX ― muitos
reunidos em
Daltonismo, de Mary
Collins ― sendo um dos
mais marcantes (ao lado
do caso do pintor de
paredes acromatopso) o
do médico que, derrubado
de seu cavalo, sofreu
uma lesão
cerebral e uma
concussão. “Quando já se
havia recuperado o
suficiente para notar os
objectos ao seu redor”,
George Wilson deixou seu
testemunho, em 1853:
considerava que
sua percepção das cores,
que antes era normal e
exacta, tornara-se
enfraquecida e fora
pervertida. [...] Todos
os objectos coloridos
[...] agora lhe pareciam
estranhos. [...]
Enquanto
estudante em Edimburgo,
ficara conhecido como um
excelente anatomista;
agora não podia
mais distinguir uma
artéria de uma veia por
sua cor. [...] As flores
perderam grande parte de
sua beleza, e ele se
lembra do choque ao
entrar em seu jardim
pela primeira vez após a
recuperação, ao
descobrir que sua
rosa-de-damasco
predilecta tinha se
tornado por
completo, pétalas,
folhas e caule, de uma
cor uniforme e embotada;
e que flores sortidas
tinham perdido seus
matizes
característicos.)Com o passar dos meses,
sentiu falta sobretudo
das cores vivas da
primavera ― sempre
amara as flores e agora
só conseguia
reconhecê-las pela forma
ou pelo cheiro. As penas
dos gaios azuis já não
brilhavam; o azul,
curiosamente, tornara-se
cinza pálido. Quando
olhava para as nuvens no
céu, já não conseguia
ver sua brancura, ou sua
tonalidade gelo,
pois elas mal se
distinguiam do azul, que
percebia como desbotado,
cinza pálido. Também
era impossível separar
as pimentas vermelhas
das verdes, pois ambas
pareciam pretas.
Amarelos e azuis eram,
para ele, quase brancos.
-
(nota 4: Pode-se ver
interessantes
semelhanças, mas também
diferenças, em relação á
visão dos que sofrem de acromatopsia congénita.
Assim, Knut Nordby, um
pesquisador com
daltonismo congénito,
escreve:
-
Vejo o mundo
apenas em tons que os
que têm a visão
normal da cor descrevem
como preto, branco e
cinza. Minha
sensibilidade espectral
subjectiva não difere da
do filme em
preto-e-branco
ortocromático. Vejo a
cor chamada de
vermelho como um cinza
muito escuro, quase
preto, mesmo sob luz
forte. Numa escala de
cinza, vejo as cores
azul e verde como meio-cinza, um pouco
mais escuras se são
saturadas, um pouco mais
claras se insaturadas. O
amarelo me parece
normalmente um
cinza ainda mais claro,
mas não costuma
confundir-se com o
branco. O castanho é
geralmente um
cinza-escuro, assim como
o laranja saturado.)
Além disso, o sr. I.
parecia sofrer de um
excessivo contraste de
tonalidade, com a perda
das gradações subtis, especialmente sob a luz natural directa ou sob luz artificial; aqui, ele fez
uma comparação com os efeitos da iluminação de sódio, que elimina ao mesmo tempo as subtilezas de cor e de
tons, e com certos filmes em preto-e-branco ― “como o Tri-X puxado” ― que produzem um efeito
duro e contrastado. Por vezes, os objectos se destacavam com uma nitidez e um contraste desregrados,
como silhuetas. Mas se o contraste fosse normal, ou baixo, podiam sumir completamente da visão.
Assim, embora seu cachorro castanho pudesse ter a silhueta nitidamente destacada quando colocado contra o
fundo de uma estrada clara, desaparecia da visão ao passar por um mato manchado e cheio de tufos. A imagem das
pessoas podia ser visível e reconhecível a quase um quilómetro de distância (como havia dito na
carta e muitas vezes depois, sua visão tornara-se mais nítida, “como a de uma águia”), mas frequentemente os rostos permaneciam
inidentificáveis até chegarem bem perto. Parecia mais uma questão de perda do contraste de cor e tonalidade que de
deficiência de reconhecimento, de agnosia.
Um dos maiores problemas acontecia quando ele dirigia, já que tinha tendência a tomar sombras por fendas e
buracos na estrada, travando e desviando bruscamente para evitá-los.
Era-lhe particularmente difícil assistir à TV em cores: imagens sempre desagradáveis e, às vezes, ininteligíveis. Achava
mais fácil lidar com a TV em preto-e-branco; sentia que sua percepção das imagens em preto-e-branco era relativamente normal, ao
passo que algo estranho e intolerável ocorria sempre que se colocava diante de imagens coloridas (quando
lhe perguntamos por que simplesmente não tirava a cor, respondeu que achava que as gradações de tonalidade
da TV em cores “descolorida” pareciam diferentes, menos “normais” que as de um “puro” televisor em preto-e-branco). Mas,
como ele diz agora, em contraposição a sua primeira carta, seu mundo não era exactamente como um filme ou uma
televisão em preto-e-branco ― teria sido muito mais fácil viver se assim o fosse. (Às vezes, ele desejava poder usar
óculos que fossem televisores em miniatura.) Finalmente, desistindo de conseguir transmitir a aparência de seu mundo
e diante da inutilidade das analogias com as habituais imagens em preto-e-branco, semanas mais tarde ele criara uma sala
inteiramente cinza, um universo cinzento em seu atelier, onde mesas, cadeiras e um elaborado jantar pronto para ser
servido foram todos pintados em diversos tons de cinza. O efeito, em três dimensões e numa escala de tonalidades
diferentes do “preto-e-branco” ao qual estamos acostumados, era de
facto macabro e totalmente distinto do de uma fotografia em
preto-e-branco. Como notou o sr. I., aceitamos filmes e fotografias em preto-e-branco porque são representações do
mundo ― imagens que podemos olhar e deixar de olhar quando bem entendemos. Mas, para ele, o preto-e-branco era uma realidade sólida e
tridimensional, 360 graus a sua volta, 24 horas por dia. Ele achava que a única forma de expressá-la era criando uma sala completamente
cinza onde os outros pudessem ter a mesma experiência ― mas, é claro, ele assinalava, o próprio observador
teria que estar pintado de cinza para tornar-se parte desse mundo e não apenas observá-lo.
Mais que isso: o observador teria que perder, como ele, o conhecimento neuronal das
cores. Era, ele dizia, como viver num mundo “moldado em chumbo”.
Mais adiante ele passou a dizer que nem “cinza”, nem “chumbo” podiam transmitir
realmente o aspecto de seu mundo. Não era “cinza” o que enxergava, esclarecia, mas
qualidades perceptivas para as quais a experiência comum, a linguagem comum, não tinha equivalentes.
O sr. I. não suportava mais ir a museus e galerias ou ver reproduções coloridas de seus
quadros favoritos. Não apenas porque estavam privados de cor, mas por parecerem intoleravelmente
incorrectos, com tons de cinza desbotados ou “desnaturados” (fotografias em preto-e-branco, por
outro lado, eram bem mais toleráveis). Isso era especialmente aflitivo quando conhecia os artistas e a
adulteração perceptiva do trabalho interferia com o sentido de suas identidades ― o mesmo
que agora sentia estar acontecendo consigo mesmo.
Certa vez, ficou deprimido com um arco-íris, que viu apenas como um semicírculo sem
cor no céu. Chegou a considerar suas ocasionais enxaquecas “insípidas” ― anteriormente
elas provocavam alucinações geométricas de cores brilhantes; agora, porém, até elas estavam destituídas de
cor. Às vezes ele tentava evocar as cores pressionando os globos oculares, mas às faíscas
e formas resultantes faltava igualmente a cor. Antes, seus sonhos com frequência eram em
cores vivas, sobretudo quando sonhava com paisagens e pinturas; agora eram desbotados e
pálidos, ou violentos e contrastados, desprovidos tanto de cor como de gradações subtis
de tonalidade.
A música, curiosamente, também lhe parecia prejudicada, porque antes desfrutara de uma sinestesia
extremamente intensa, de forma que diferentes tons se traduziam de imediato em cores, fazendo com que
experimentasse toda música ao mesmo tempo como um rico tumulto de cores interiores. Com a perda
de sua capacidade de produzi-las, perdera também essa experiência ― seu “órgão-de-cor”
interno fora desactivado e agora ele ouvia música sem qualquer acompanhamento visual;
com a perda de sua contraparte cromática essencial, a música estava agora radicalmente empobrecida.
-
(nota 5: Apenas um sentido podia lhe dar um prazer real naquele tempo: o olfacto. O sr.
I. tinha um sentido olfactivo muito preciso, eroticamente carregado ― de
facto, mantinha
paralelamente um negócio de perfumes, compondo seus próprios aromas. Com a perda dos prazeres da visão, os do
olfacto foram intensificados (ou assim lhe parecia), nas primeiras semanas soturnas após o acidente.)
Ele tinha certo prazer em observar desenhos; em seus anos de juventude fora um exímio desenhista. Não poderia
voltar a desenhar? Demorou a ter essa ideia, o que só aconteceu depois de ela ser repetidamente sugerida
pelos outros. Seu primeiro impulso era pintar em cores. Insistia que ainda “sabia” que cores usar, embora não pudesse
mais vê-las. Decidiu, como um primeiro exercício, pintar flores, tirando da paleta os matizes que pareciam
“corretos em tonalidade”. Mas os quadros eram incompreensíveis, uma mistura confusa de cores para os olhos
normais. Somente quando um de seus amigos artistas fotografou as pinturas em preto-e-branco com uma
Polaroid é que elas passaram a fazer sentido. Os contornos eram exactos, mas as cores todas incorrectas. “Ninguém vai
comprar seus quadros”, disse-lhe um de seus amigos, “a não ser pessoas tão daltónicas quanto você.”
“Pare de insistir”, disse outro. “Você não pode mais usar cor.” Com
relutância, o sr. I.
permitiu que todas as
suas telas coloridas
fossem afastadas. É
apenas temporário, ele
pensava. Em breve, retomo a cor.
Essas primeiras semanas foram uma época de
agitação, até de desespero; ele
alimentava a esperança
constante de que uma
bela manhã ia acordar e
deparar com o mundo em cores milagrosamente
restaurado. Esse era um
tema constante em seus
sonhos
naquele tempo, mas o
desejo nunca se
realizava, nem nos
sonhos. Sonhava que
estava
prestes a ver em cores,
mas acordava e via que
nada tinha mudado. Temia
com frequência
que o que quer que lhe
tivesse acontecido
voltasse a ocorrer, só
que dessa vez
tirando-lhe
a totalidade da visão. Pensava que provavelmente sofrera um derrame, consequência (ou talvez causa) do acidente de carro, e temia que pudesse sofrer outro a qualquer
momento.
Para completar esse temor médico, havia uma confusão e um medo ainda mais profundos, algo que ele mal conseguia articular, e fora isso que atingira um ponto crítico no mês em que tentou pintar com
cores, o mês em que insistiu ainda “conhecer” as cores. Deu-se conta gradualmente, nesse período, de que não era apenas a imaginação e a
percepção da cor que tinham se perdido, mas algo mais profundo e mais difícil de definir. Sabia tudo sobre a cor, exterior e intelectualmente, mas
havia perdido sua lembrança, o conhecimento interior, que havia sido parte do
seu próprio ser. Passara a vida trabalhando com as cores, mas agora isso era apenas um
facto histórico e não algo a que tivesse acesso ou que pudesse sentir directamente. Era
como se seu passado, seu passado cromático, tivesse sido roubado, como se o conhecimento
que seu cérebro tinha das cores tivesse sido totalmente extirpado sem deixar nenhum traço,
nenhum vestígio interno de sua existência.
-
(nota 6: A questão do
“conhecimento” da cor é bastante complexa e tem aspectos
paradoxais que são difíceis de dissecar. É
certo que o sr. I.
estava intensamente
consciente
de uma perda profunda
com a mudança em sua
visão, de uma forma tão
clara que uma
espécie de comparação
com sua experiência
passada lhe era
possível. Essa
comparação
não é possível se houver
uma destruição completa
do córtex visual
primário dos dois lados,
no caso de um derrame,
por exemplo, como na
síndrome de Anton.
Pacientes com essa
síndrome tornam-se
totalmente cegos, mas
não se queixam ou fazem
relatos de suas
cegueiras. Não sabem que
estão cegos; toda a
estrutura da consciência
é reorganizada por
completo ―
instantaneamente ― no
momento em que é
atingida.
De maneira semelhante,
pacientes com derrames
extensos no córtex
direito parietal
podem perder não apenas
a sensação e o uso, mas
o próprio conhecimento
de seus lados
esquerdos, de tudo o que
estiver à esquerda, e na
realidade do próprio
conceito de
esquerda. Mas são
“anosognósicos” ―
desconhecem suas perdas;
podemos dizer que o
mundo deles está
bissectado, mas para
eles é um todo
completo.)
No início de
Fevereiro,
parte de sua agitação
foi passando; começara a
aceitar, não
apenas intelectualmente,
mas também num nível
mais profundo, que de
facto tinha ficado
completamente daltónico
e que talvez o
permanecesse. Seu
desamparo inicial passou
a dar
lugar a um sentimento de
determinação ― pintaria
em preto-e-branco, se
não pudesse fazê-lo em cores; tentaria
viver num mundo em
preto-e-branco da melhor
maneira possível. Essa
resolução foi reforçada
por uma experiência
singular, vivida cerca
de cinco semanas após o
acidente, certa manhã,
quando ia em seu carro
para o atelier. Viu o
nascer do sol sobre a
estrada, os raios
vermelhos todos
transformados em preto:
“O sol nasceu como uma
bomba, como uma enorme
explosão nuclear”, diria
mais tarde. “Alguém já
viu um
amanhecer como este
antes?”
Inspirado pelo nascer do
sol, voltou a pintar ―
na verdade uma tela em
preto-e-branco que
chamou Aurora nuclear,
passando em seguida ao
abstraccionismo, que
preferia, só que
agora unicamente em
preto-e-branco. O temor
da cegueira continuava a
atormentá-lo,
porém, criativamente
transmutado, deu forma
às primeiras pinturas
“de verdade” que
realizou após suas
experiências com cor.
Agora sentia que podia
pintar em preto-e-branco
e muito bem. Seu único
consolo era trabalhar no
atelier, e trabalhava
quinze, até dezoito
horas por dia. Isso
significava para ele uma
espécie de sobrevivência
artística: “Senti que,
se não pudesse continuar
pintando”, diria ele
mais tarde, “também não
ia querer continuar
vivendo”.
Suas primeiras pinturas
em preto-e-branco,
realizadas em Fevereiro
e Março, produziam
uma sensação de forças
violentas ― raiva,
medo, desespero,
excitação ―, só que
mantidas
sob controle, atestando
os poderes do talento
artístico que podia
revelar, e ainda assim
conter, tal intensidade
de sentimento. Nesses
dois meses, produzira
dúzias de quadros,
marcados por um estilo
singular, uma
característica que nunca
mostrara antes. Em
muitas
dessas pinturas havia
uma superfície
caleidoscópica,
extraordinariamente
fragmentada,
com formas abstractas que
sugeriam rostos ―
torcidos, encobertos,
entristecidos,
encolerizados ― e
partes desmembradas de
corpos, facetadas,
emolduradas e
encaixotadas. Comparados
com o trabalho anterior,
esses quadros tinham uma
complexidade labiríntica
e uma qualidade
obsessiva e assombrada
― pareciam exibir, numa
forma simbólica, o
estado em que ele se
encontrava.
A partir de Maio ― era
fascinante observá-lo
―, ele passou dessas
pinturas poderosas,
porém aterrorizantes e
estranhas, para temas,
temas vivos, que não
tinha abordado nos
últimos trinta anos,
retomando pinturas
figurativas de
bailarinas e cavalos de
corrida. Essas
pinturas, embora ainda
em preto-e-branco,
estavam repletas de
movimento, vitalidade e
sensualidade, e
acompanhavam uma mudança
em sua vida pessoal ―
uma diminuição de
sua retracção e o início
de uma renovada
actividade social e
sexual, uma redução de
seus
medos e depressão e um
retorno à vida.
Também nessa época ele
se voltou para a
escultura, o que jamais
fizera antes. Parecia
estar examinando todas
as modalidades visuais
que ainda lhe restavam ― forma, contorno,
movimento, profundidade
―, explorando-as com
intensidade reforçada.
Também começou a
pintar retratos, embora
achasse que não podia
trabalhar com modelo
vivo, mas somente a
partir de fotografias em
preto-e-branco,
encorajado por seu
conhecimento e percepção
de
cada tema. A vida só era
tolerável no atelier, já
que ali podia reconceber
o mundo com
formas cheias de força e
rigor. Mas do lado de
fora, na vida real,
achava-o estranho,
vazio,
morto e cinzento.
Essa foi a história que
Bob Wasserman e eu
ouvimos do sr. I. ― a
história de um colapso
abrupto e completo da
visão das cores e de
seus esforços para viver
num mundo em preto-e-branco. Nunca antes eu
ouvira uma história como
esta, ou encontrara
alguém com
daltonismo total, e não
fazia a menor ideia do
que acontecera com ele ― nem se sua
condição podia ser
revertida ou remediada.
O primeiro passo era
definir suas
deficiências por
intermédio de vários
exames, alguns
informais, usando
objectos ou imagens do
dia-a-dia, o que
estivesse disponível.
Por
exemplo, primeiro
perguntamos ao sr. I.
sobre uma prateleira de
cadernos ― azuis,
vermelhos e pretos ―
próxima à minha mesa.
Ele falou imediatamente
dos azuis (um azul
médio e vivo aos olhos
normais): “São
azuis-claros”. Os
vermelhos e pretos eram
indistinguíveis ―
ambos, para ele, eram de
um “preto mortiço”.
Quando lhe demos um
grande emaranhado de
fios contendo 33 cores e
pedimos que os
separasse, respondeu que
não podia separá-los por
cor, mas somente por uma
escala de
gradações de tons de
cinza. Separou os fios,
rapidamente e com
facilidade, em quatro
estranhas pilhas,
cromaticamente
misturadas, que
classificou como de 0% a
25%, de 25% a
50%, de 50% a 75% e de
75% a 100% numa escala
de tons de cinza (visto
que nada lhe
parecia puramente
branco, e mesmo o fio
branco lhe parecia
ligeiramente “encardido”
ou
“sujo”).
Não tínhamos como
confirmar a exactidão
dessa classificação,
porque nossa visão das
cores interferia na
capacidade de
visualizarmos uma escala
de cinza, assim como
espectadores com visão
normal foram incapazes
de perceber o sentido de
tons de suas
pinturas de flores
confusamente
policromáticas. Mas uma
fotografia e uma câmara
de
vídeo, ambas em
preto-e-branco,
confirmaram que o sr. I.
de facto tinha separado
com
exactidão os fios
coloridos numa escala de
cinza que basicamente
coincidia com a leitura
mecânica. Havia, talvez,
um carácter um tanto
tosco em suas
categorias, mas que
coincidia
com o sentido de
contraste agudo, da
falta de gradações de
tonalidade, de que ele
havia
reclamado. De facto,
quando colocado diante
da escala de tons de
cinza de um artista com
talvez uma dúzia de
gradações entre o preto
e o branco, o sr. I.
conseguia distinguir
somente três ou quatro
categorias de
tonalidade.
-
(nota 7: Uma das
anomalias ficou clara no
exame da separação dos
fios; ele separou os
azuis-claros saturados
como “pálidos” (assim
como havia se queixado
de que o céu azul
parecia quase branco).
Mas seria essa uma
anomalia? Podíamos ter
certeza de que a lã
azul não era, sob seu tingimento, mais
propriamente desbotada
ou pálida? Tínhamos que
ter colorações que
fossem por outro lado
idênticas ― idênticas
em brilho, saturação,
reflexibilidade ―, logo
obtivemos um conjunto de
botões coloridos
cuidadosamente
fabricados, conhecidos
como teste de Farnsworth-Munsell, a
que submetemos o sr. I.
Ele
era incapaz de agrupar
os botões em alguma
ordem, mas separou os
azuis como mais
pálidos” que o resto.)
Também lhe mostramos as
clássicas pranchas com
pontos coloridos de
Ishihara, nas
quais configurações de
numerais em cores
subtilmente diferenciadas
podem aparecer
claramente para os que
têm a visão normal, mas
não para aqueles com
vários tipos de
daltonismo. O sr. I. era
incapaz de enxergar
qualquer uma dessas
figuras (embora fosse
capaz de ver certas
pranchas visíveis para
os daltónicos, mas não
para quem tem visão
normal, e que foram
assim concebidas para
detectar casos de falso
daltonismo ou
daltonismo histérico).
-
(nota 8: Novos testes
com o anomaloscópio de
Nagel e as cartas de
acromatopsia de Sloan
confirmaram o daltonismo
total do sr. I. Com o
dr. Ralph Siegel,
fizemos testes de
percepção de
profundidade e movimento
(utilizando os
estereogramas e campos
de pontos
casuais de Julesz) ―
que estavam normais,
assim como os testes
para verificar a
capacidade de
desenvolver estrutura e
profundidade a partir do
movimento. Havia, porém,
uma interessante
anomalia: o sr. I. era
incapaz de “captar” os
estereogramas vermelho e
verde (anáglifos
bicolores),
provavelmente porque é
preciso a visão da cor
para segregar as
duas imagens. Também
obtivemos
eletrorretinogramas, e
estes estavam
perfeitamente
normais, indicando que
todos os três mecanismos
cónicos na retina
estavam intactos, e que
o daltonismo era de
facto
de origem cerebral.)
Tínhamos por acaso um
cartão-postal que
poderia ter sido
concebido para exames de
acromatopsia ― o cartão
mostrava uma cena de
litoral com pescadores
num quebra-mar,
silhuetados contra o céu
vermelho-escuro do
pôr-do-sol. O sr. I. não
conseguia enxergar os
pescadores e o
quebra-mar, vendo apenas
a esfera semi-submersa
do poente.
Embora esses problemas
tivessem surgido quando
lhe foram mostradas
imagens
coloridas, o sr. I. não
tinha dificuldade para
descrever com exactidão
fotografias ou
reproduções em
preto-e-branco; não
tinha dificuldade para
reconhecer formas. Seu
repertório de imagens e a
memória de objectos e
fotos que lhe haviam
sido mostrados eram de
facto excepcionalmente
nítidos e exactos, ainda
que sempre desprovidos
de cor. Assim, após
receber uma clássica
imagem utilizada em
exames onde se via um
barco colorido, ele
olhou
para ela fixamente,
desviou o olhar e a
reproduziu rapidamente
em preto-e-branco.
Quando
questionado sobre as
cores de objectos
familiares, não mostrava
dificuldade em
associá-las
ou nomeá-las. (Pacientes
com anomia de cor, por
exemplo, podem agrupar
cores sem
problemas, mas perderam
os nomes delas e podem
afirmar, vacilantes, que
uma banana é
“azul”. Um paciente com agnosia de cor, em
compensação, também pode
agrupar as
cores, mas não revelará
surpresa se receber uma
banana azul. O sr. I.,
no entanto, não
tinha nenhum desses
problemas.) Também não
tinha (agora)
dificuldade para ler. Os
testes
já realizados, e um
exame neurológico
completo, confirmaram
assim a sua total acromatopsia.
-
(nota 9: Em 1877, Gladstone, num artigo
intitulado On the color
sense of Homer,
discorreu
sobre o uso que Homero
fazia de frases do tipo
“o mar tinto como o
vinho”. Tratava-se
apenas de uma convenção
poética, ou Homero e os
gregos na realidade viam
o mar de
uma maneira diferente?
Existe de facto uma
considerável variação
entre diferentes
culturas
na maneira como vão
categorizar e nomear as
cores ― os indivíduos
só podem “ver” a cor
(ou fazer uma
categorização
perceptiva) se houver
uma categoria cultural
ou um nome para
ela. Mas não é claro se
tal categorização pode
realmente alterar a
percepção elementar da
cor.)
Podíamos dizer-lhe
àquela altura que seu
problema era real ― que
sofria de uma
acromatopsia de verdade,
e não de histeria.
Achamos que ele recebeu
o resultado com
sentimentos
contraditórios: tinha
esperado, em parte, que
fosse simplesmente
histeria e,
portanto, potencialmente
reversível. Mas a noção
de algo psicológico
também o angustiava
e fazia com que sentisse
que seu problema era
“irreal” (é verdade que
vários médicos
deram a entender isso).
Nossos exames, em certo
sentido, legitimaram sua
condição, mas
aprofundaram seu temor
de uma lesão cerebral e
quanto ao prognóstico de
recuperação.
Visto que ele parecia
ter uma acromatopsia de
origem cerebral, não
podíamos ajudá-lo
cogitando até que ponto
isso se devia à sua vida
de fumador inveterado; a
nicotina pode
causar um obscurecimento
da visão (uma ambliopia)
e por vezes uma
acromatopsia ― mas
isso é devido sobretudo
a seus efeitos nas
células da retina. Aqui
o problema principal era
claramente cerebral: o
sr. I. podia ter ficado
com pequenas áreas
cerebrais lesadas em
consequência do choque;
podia ter sofrido um
pequeno derrame após o
acidente ou mesmo
provocando-o.
A história de nosso
conhecimento sobre a
capacidade do cérebro de
representar as cores
seguiu um caminho
complexo e tortuoso.
Newton, na sua famosa
experiência com o
prisma,
em 1666, mostrou que a
luz branca era um
compósito ― podia ser
decomposta em todas as
cores do espectro e
recomposta com elas. Os
raios mais inclinados
(“os mais refractários”)
eram vistos como violeta
e os menos refractários
como vermelhos, com o
resto do espectro
entre eles. As cores dos
objectos, concluiu
Newton, eram
determinadas pela
“abundância”
com que reflectiam certos
raios aos olhos. Em
1802, sentindo não haver
a necessidade de
uma infinidade de
diferentes receptores no
olho, cada um
sintonizado num
diferente
comprimento de onda (os
artistas, a despeito de
tudo, podiam criar
praticamente qualquer
cor que desejassem
usando uma paleta
bastante limitada),
Thomas Young postulou
que
três tipos de receptores
seriam suficientes. A
brilhante ideia de
Young, lançada
despretensiosamente
durante uma palestra,
foi esquecida, ou
deixada de lado, por
cinquenta anos, até
Hermann von Helmholtz,
durante sua própria
investigação sobre a
visão, ressuscitá-la,
dando-lhe nova precisão,
tanto que hoje falamos
da hipótese de
Young-Helmholtz. Para
Helmholtz, assim como
para Young, a cor era
uma expressão directa
de comprimentos das
ondas de luz absorvidas
por cada receptor,
restando ao sistema
nervoso apenas traduzir
um para o outro: “A luz
vermelha estimula
fortemente as fibras
sensíveis ao vermelho e
fracamente as outras
duas, dando a sensação
de vermelho.
-
(nota 10: “Sendo quase
impossível conceber cada
ponto sensível da retina
como contendo
um número infinito de
partículas, cada uma
capaz de vibrar em
perfeito uníssono com
cada
ondulação possível”,
escreveu Young,
“torna-se necessário
supor um número
limitado, por
exemplo, para as três
cores principais,
vermelho, amarelo e
azul.”
O grande químico John
Dalton, apenas cinco
anos antes, forneceu a
descrição clássica
do daltonismo
vermelho-verde em si
mesmo. Pensava que ele
se devesse a uma
descoloração nos meios
transparentes do olho ―
e, de facto, doou um dos
olhos para que
fosse examinado na
posteridade. Young,
entretanto, fez a
interpretação correcta ―
que
faltava um dos três
tipos de receptor das
cores (o olho de Dalton
permanece, em formol,
sobre uma prateleira em
Cambridge).
Lindsay T. Sharpe e Knut
Nordby discorrem sobre
este e outros aspectos
da história da
pesquisa do daltonismo
em Total colorblindness:
an introduction.
-
(nota 11: “Em 1816, o
jovem Schopenhauer
propôs uma teoria
diferente da visão da
cor,
que considerava não uma
ressonância passiva e
mecânica das partículas
sintonizadas ou
receptores, como Young
havia postulado, mas seu
estímulo, competição e
inibição activos ―
uma teoria oposta,
explícita como a que
seria criada por Ewald
Hering setenta anos mais
tarde, em aparente
contradição com a de
Young-Helmholtz. Essas
teorias em contraposição
foram ignoradas na
época, e continuaram a
ser até os anos 50 deste
século. Hoje,
consideramos uma
combinação da teoria de
Young-Helmholtz e
mecanismos opostos:
receptores sintonizados,
que dialogam entre si,
estão continuamente
ligados a uma balança
interactiva. Assim,
integração e selecção,
como pressentiu
Schopenhauer, têm inicio
na
retina.)
Em 1884, Hermann
Wilbrand, examinando
seus pacientes na
clínica neurológica
atingidos
por diversos tipos de
lesões visuais ― em
alguns predominava a
perda do campo visual,
em
outros a perda da
percepção da cor e em
outros ainda a perda da
percepção da forma ―,
sugeriu que devia haver
centros visuais
distintos no córtex
visual primário para
“impressões
de luz”, impressões de
cor” e “impressões de
forma”, embora não
pudesse apresentar
provas anatómicas disso.
O facto de que a acromatopsia (e mesmo a
hemiacromatopsia)
pudesse realmente surgir
da lesão de partes
específicas do cérebro
foi confirmado pela
primeira vez, quatro
anos mais tarde, por um
oftalmologista suíço, Louis Verrey. Ele
descreveu o caso de uma
mulher de sessenta anos
que, em consequência de
um derrame
que atingiu o lobo
occipital de seu
hemisfério esquerdo,
passou a ver tudo na
metade direita
do seu campo visual em
tons de cinza (a metade
esquerda permaneceu
normalmente
colorida). A
oportunidade de examinar
o cérebro da paciente
após sua morte mostrou
que
havia lesões limitadas a
uma pequena porção (a
circunvolução fusiforme
e lingual) do córtex
visual ― era ali,
concluiu Verrey, que “o
centro para o sentido
cromático seria
encontrado”.
Que tal centro pudesse
existir, que uma parte
do córtex pudesse ser
especializada na
percepção ou
representação da cor,
foi imediatamente
contestado e continuou
sendo por
quase um século. As
bases dessa disputa são
bastante profundas,
tanto quanto a própria
filosofia da neurologia.
Locke, no século XVII, defendeu uma
filosofia
“sensacionista”
(paralela ao fisicalismo
de Newton): nossos
sentidos são
instrumentos de medição,
registando para nós o
mundo
externo em termos de
sensação. Ouvir, ver,
qualquer sensação era
para ele totalmente
passiva e receptiva. Os
neurologistas do final
do século XIX
adoptaram prontamente
essa filosofia e
adaptaram-na a uma
anatomia especulativa do
cérebro. A percepção
visual
era equiparada a “dados
sensoriais” ou
“impressões”
transmitidos da retina à
área visual
primária do cérebro numa
correspondência exacta,
ponto a ponto ― e ali
experimentados,
subjectivamente, como uma
imagem do mundo visual.
Presumiam que a cor
fosse uma parte
integral dessa imagem.
Pensavam que não
houvesse lugar,
anatomicamente, para um
centro distinto de cor ― nem, decerto,
conceptualmente, para a
própria ideia de que
houvesse um. Assim, quando Verrey publicou suas
descobertas, em 1888,
eles brandiram a
doutrina consagrada. As
observações de Verrey
foram questionadas, seus
testes criticados,
seus exames vistos como
falhos ― mas a
verdadeira objecção por
trás de todas essas era
de carácter doutrinário.
Se não havia um centro
distinto de cor,
concluíam eles, também
não podia haver
acromatopsia isolada;
assim, o caso de Verrey
e dois outros
semelhantes na década de
1890 foram repudiados
pela consciência
neurológica ― e a
acromatopsia cerebral,
como
assunto, praticamente
desapareceu durante os
75 anos seguintes. Não
houve outro caso
de estudo até 1974.
-
(nota 12: Não é
mencionada na grande
edição de 1911 da Physiological optics, de
Helmholtz, embora haja
uma extensa secção sobre
acromatopsia retiniana.)
-
-
(nota 13: Houve,
entretanto, breves
menções à acromatopsia
nesse ínterim, que, em
sua
maioria, foram ignoradas
ou rapidamente
esquecidas. Mesmo Kurt
Goldstem, embora
filosoficamente
contrário a noções de
déficits neurológicos
isolados, notou que
houvera
vários casos de
acromatopsia cerebral
pura sem perdas do campo
visual ou outras
deteriorações ― uma
observação lançada
casualmente ao longo de
seu livro de 1948, Language and language
disturbances.)
O próprio sr. I. tinha
uma curiosidade intensa
sobre o que se passava
com seu cérebro.
Embora vivesse agora
integralmente num mundo
de luzes e sombras,
ficava muito
impressionado com o modo
como elas se alteravam
sob diferentes
iluminações; objectos
vermelhos, por exemplo,
que normalmente lhe
pareciam pretos,
tornavam-se mais claros
sob os raios longos do
sol no fim da tarde, o
que lhe permitia deduzir
o vermelho. Esse
fenómeno ficava muito
evidente quando a
qualidade da iluminação
mudava de chofre,
como, por exemplo,
quando acendiam uma luz
fluorescente, o que
podia causar uma
imediata mudança na
luminosidade dos
objectos
da sala. O sr. I.
comentou que se sentia
num mundo inconstante,
um mundo onde luzes e
sombras flutuavam
conforme o
comprimento de ondas da
iluminação, em drástico
contraste com a relativa
estabilidade e
constância do mundo em
cores que conhecera
antes.
-
(nota 14: Um fenómeno
talvez parecido é
descrito por Knut
Nordby. Durante seu
primeiro
ano escolar, seu
professor apresentou um
alfabeto impresso, onde
as vogais eram
vermelhas e as
consoantes, pretas.
Eu não podia ver nenhuma
diferença entre elas e
não podia entender o que
o professor
queria dizer, até que
cedo numa manhã de fim
de Outono, quando as
luzes tinham sido
acesas, vi
inesperadamente que
algumas das letras, o
AEIOUYÃÄÖ, tinham ficado
subitamente de um
cinza-escuro, enquanto
as outras continuavam de
um preto denso. Essa
experiência ensinou-me
que as cores podem
parecer diferentes sob
diferentes fontes de
luz, e que a mesma cor
pode ser comparada a
diferentes tons de cinza
em diferentes tipos
de iluminação.)
É claro que tudo isso é
muito difícil de ser
explicado em termos da
teoria clássica da cor
―
a noção de Newton de que
há uma relação
invariante entre
comprimento de onda e
cor,
uma transmissão célula a
célula da informação do
comprimento de onda da
retina do
cérebro e uma conversão
directa dessa informação
em cor. Um processo tão
simples — uma
analogia neurológica da
decomposição e
recomposição da luz pelo
prisma ― dificilmente
poderia dar conta da
complexidade da
percepção da cor na vida
real.
Essa incompatibilidade
entre teoria clássica da
cor e realidade
impressionou Goethe no
final do século XVIII. Com uma forte
consciência da realidade
do fenómeno das
sombras coloridas e da
persistência retiniana
das cores, dos efeitos
de contiguidade e
iluminação na aparência
das cores, das ilusões
com cores e outras
ilusões visuais, ele
sentiu que estas
deveriam ser a base para
uma teoria da cor e
declarou seu credo: “A
ilusão de óptica é a
verdade óptica!”. Goethe
estava preocupado
sobretudo com a maneira
como na realidade vemos
as cores e a luz, as
formas como criamos
mundos, e as ilusões,
em cores. Sentia que
isso não era explicável
pela física de Newton,
mas somente por
regras ainda
desconhecidas do
cérebro. O que estava
dizendo na realidade
era: “A ilusão
visual é uma verdade
neurológica”.
A teoria da cor de
Goethe, sua Farbenlehre
(que ele igualava à
totalidade de sua obra
poética), era, no geral,
refutada por todos os
seus contemporâneos e
permaneceu numa
espécie de limbo desde
então, vista como o
capricho, a
pseudo-ciência de um
grande poeta.
Mas a própria ciência
não estava cega para as
“anomalias” que Goethe
considerou centrais
e é facto que Helmholtz
deu admiráveis palestras
sobre Goethe e sua
ciência em várias ocasiões, a última delas em
1892. Helmholtz tinha
plena consciência da
“constância da cor” ― a
maneira como as cores
dos objectos são
preservadas, de forma
que possamos categorizá-los e sempre saber para
o que estamos olhando, a
despeito de grandes
flutuações no
comprimento de onda da
luz que os ilumina. Os
comprimentos de onda
reais reflectidos por
uma maçã, por exemplo,
variam consideravelmente
conforme a iluminação, e
nós a vemos,
todavia, invariavelmente
vermelha. Isso não podia
ser, é claro, uma mera
tradução do
comprimento de onda em
cor. Devia haver uma
maneira, segundo
Helmholtz, de “descontar
a fonte de luz” ― “uma
inferência inconsciente”
ou “um acto de
discernimento” (embora
ele
não tivesse se
aventurado a sugerir
onde tal discernimento
podia ocorrer). Para
ele, a
constância da cor era um
exemplo especial da
maneira como alcançamos
a constância da
percepção em geral, como
criamos um mundo
perceptivelmente estável
a partir de um fluxo sensorial caótico ― um
mundo que não seria
possível se nossas
percepções fossem meros
reflexos passivos dos
dados imprevisíveis e
inconstantes que atingem
nossos receptores.
O grande contemporâneo
de Helmholtz, Clerk
Maxwell, também se
sentiu fascinado pelo
mistério da visão da cor
desde seus dias de
estudante. Formalizou as
noções de cores
primárias e de mistura
de cores com a invenção
de um pião (cujas cores
se fundiam quando
era girado, produzindo
uma sensação de cinza) e
de uma representação
gráfica de três
eixos, um triângulo de
cores, que mostrava como
qualquer cor pode ser
criada por diferentes misturas das três
cores primárias. Essas
demonstrações apenas
preparavam o
caminho para a mais espectacular delas, em
1861: de que a
fotografia em cores era
possível, a despeito do
facto de as emulsões
fotográficas serem em
preto-e-branco. Chegou
a isso fotografando três
vezes um aro colorido,
com filtros vermelhos,
verde e violeta. Tendo
obtido três imagens de
“cores separadas”, como
as chamava, juntou-as em
seguida,
sobrepondo uma sobre a
outra numa tela e
projectando cada imagem
com o filtro
correspondente (a imagem
tirada com filtro
vermelho era projectada
com luz vermelha e
assim por diante). De
repente, o aro eclodiu
em todas as suas cores. Maxwell se perguntou
se era assim que as
cores eram percebidas
pelo cérebro, pela
adição de imagens de cor
separada ou seus
correlatos neuroniais,
como nas demonstrações
de sua lanterna mágica.
-
(nota 15: A demonstração
de Maxwell da
“decomposição” e
“reconstituição” da cor
dessa
forma tornou possível a
fotografia em cores.
“Câmaras coloridas”
enormes foram usadas de
início, separando a luz
incidente em três fachos
para passá-los por
filtros das três cores
primárias (essa câmara,
invertida, serviu como
um cromoscópio, ou
projector maxwelliano).
Apesar de um processo
integral de cor ter sido
imaginado por Ducos du
Hauron na década
de 1860, foi apenas em
1907 que esse processo
(Autocromo) chegou a ser
realmente
desenvolvido, pelos
irmãos Lumière. Usaram
pequeninos grãos de
amido tingidos de
vermelho, verde e
violeta, em contacto com
a emulsão fotográfica ―
estes agiam como uma
espécie de grade
maxwelliana, através da
qual as três imagens de
cores separadas
entravam em mosaico,
podendo tanto ser
tiradas quanto vistas
(câmaras coloridas,
Lumièrecolor,
Dufaycolor, Finlaycolor
e muitos outros
processos de cor
aditivos
continuavam a ser usados
nos anos 40, quando eu
era criança, e
estimularam o meu
próprio interesse
inicial pela natureza
das cores).
O próprio Maxwell estava
argutamente ciente dos
reveses desse processo
aditivo: a
fotografia em cores não
tinha como “descontar a
fonte de luz” e suas
cores se modificavam
desamparadamente com os
comprimentos cambiantes
de ondas de luz.
Em 1957, mais de noventa
anos depois da célebre
demonstração de Maxwell,
Edwin
Land ― não apenas o
inventor da câmara
instantânea Land e da
Polaroid, mas um
brilhante
experimentador e teórico
― forneceu uma
demonstração fotográfica
ainda mais
surpreendente da
percepção da cor. Ao
contrário de Maxwell,
fez apenas duas imagens
em
preto-e-branco (usando
uma câmara de foco
dividido, de forma que
pudessem ser tiradas
ao mesmo tempo, do mesmo
ponto de vista, pela
mesma lente) e as
sobrepôs numa tela
com um projector de lente
dupla. Usou dois filtros
para fazer as imagens:
um deixando
passar comprimentos de
onda mais longos (um
filtro vermelho), outro
deixando passar
comprimentos mais curtos
(um filtro verde). A
primeira imagem foi
então projectada com
filtro
vermelho e a segunda com
luz branca comum, sem
filtros. Esperava-se que
isso produzisse
uma imagem num tom geral
rosa desbotado, mas em
vez disso algo
“impossível”
aconteceu. A fotografia
de uma moça surgiu
instantaneamente em
todas as sua cores ―
“cabelos louros, olhos
azul-claros, casaco
vermelho, gola azul
esverdeado e
impressionantes tons
naturais de pele”, como
Land descreveria mais
tarde. De onde vinham
essas cores, como foram
obtidas? Elas não
pareciam estar “nas”
fotografias ou nas
fontes
de luz. Essas
experiências,
avassaladoras em sua
simplicidade e impacto,
eram “ilusões”
de cor no sentido de
Goethe, mas ilusões que
demonstravam uma verdade
neurológica ―
que as cores não estão
“lá” no mundo, nem são
(como sustentava a
teoria clássica) um
correlato automático do
comprimento de onda, mas
são construídas pelo
cérebro.
Essas experiências
permaneceram, de inicio,
como anomalias, sem
conceitos, em
suspenso; eram
inexplicáveis pelas
teorias existentes, mas
não chegavam a apontar
claramente uma nova
teoria. Parecia
possível, além disso,
que o conhecimento que o
espectador tinha das
cores apropriadas
influenciasse sua
percepção de tal cena.
Land
decidiu, portanto,
substituir imagens
familiares do mundo
natural por cartazes
inteiramente abstractos e
multicoloridos, formados
por sinais geométricos
de papel colorido, de
maneira
que a expectativa não
pudesse fornecer nenhuma
pista sobre as cores que
deviam ser
vistas. Esses
dispositivos abstractos
lembravam vagamente
algumas das pinturas de
Piet
Mondrian e por isso Land
os nomeou “Mondrians de
cor”. Usando os
Mondrians, iluminados
por três projectores, com
filtros de ondas longas
(vermelho), médias
(verde) e curtas (azul),
Land foi capaz de provar
que, se uma superfície
fazia parte de uma cena
complexa e
multicolorida, não havia
relação simples entre o
comprimento de onda de
luz reflectida a
partir da superfície e a
cor percebida.
Se, além disso, um único
sinal de cor (por
exemplo, um normalmente
visto como verde)
fosse isolado das cores
circundantes, apareceria
apenas como branco ou
cinza pálido,
independentemente do
raio de luz utilizado.
Assim, Land mostrou que
o sinal verde não
podia ser visto como
inerentemente verde, mas
recebia, em parte, seu
verde da relação
com as áreas
circundantes do
Mondrian.
Enquanto para Newton,
para a teoria clássica,
a cor era algo local e
absoluto, dado pelo
comprimento de onda
reflectido a partir de
cada ponto, Land
mostrava que a
determinação
da cor não era local nem
absoluta, mas dependia
do exame de toda uma
cena e da
comparação entre a
composição do
comprimento de onda da
luz reflectida a partir
de cada
ponto e da luz reflectida
do entorno. Tinha que
haver uma relação
contínua, uma
comparação de cada parte
do campo visual com sua
própria
circunvizinhança, para
se
chegar à síntese global
― o “acto de
discernimento” de Helmholtz. Land achava
que essa
computação ou correlação
seguia regras fixas e
formais; e era capaz de
prognosticar quais
cores seriam percebidas
por um observador sob
diferentes condições.
Inventou um “cubo
de cor” para isso, um
algoritmo, na verdade um
modelo da comparação
feita pelo cérebro
entre as luminosidades,
em diferentes
comprimentos de onda, de
todas as partes de uma
superfície complexa e
multicolorida. Enquanto
a teoria da cor de
Maxwell e seu triângulo
de
cor estavam baseados no
conceito de adição, o
modelo de Land era agora
comparativo. Ele
sugeria que havia, na
realidade, duas
comparações: primeiro, a
da refletância de todas
as
superfícies em uma cena
dentro de certo grupo de
comprimentos de onda, ou
uma faixa de
ondas (nas palavras de
Land, um “registo de
luminosidade” daquela
faixa de ondas); e,
segundo, a comparação
dos três registros de
luminosidade das três
faixas de onda
(correspondendo, grosso
modo, aos comprimentos
de onda vermelho, verde
e azul). Esta
segunda comparação
produziria a cor. O
próprio Land se esforçou
em evitar a
especificação
de locais precisos do
cérebro para essas
operações e tomou o
cuidado de chamar sua
teoria da visão da cor
de teoria Retinex, dando
a entender que podia
haver uma
multiplicidade de locais
de interacção entre a
retina e o córtex.
Se Land abordava o
problema de como vemos
as cores num nível
psicológico, pedindo a
indivíduos que
relatassem suas
percepções de mosaicos
complexos e
multicoloridos em
iluminações cambiantes,
Semir Zeki, trabalhando
em Londres, abordava o
problema num
nível fisiológico,
inserindo micro-eléctrodos
no córtex visual de
macacos anestesiados
para
medir os potenciais
neuroniais produzidos
por estímulos coloridos.
No início dos anos 70,
ele pode fazer uma
descoberta crucial:
delinear uma pequena
área de células de cada
lado
do cérebro, no córtex pré-estriado dos macacos
(áreas a que se referia
como V quatro), que
parecia especializada em
responder à cor (Zeki as
chamou de “células
codificadoras de
cor”.’ Assim, noventa
anos após Wilbrand e
Verrey terem postulado
um centro específico
para a cor no cérebro,
Zeki era finalmente
capaz de provar que tal
centro existia.
-
(nota 16: Ele também era
capaz de encontrar
células, numa área
adjacente, que pareciam
responder unicamente ao
movimento. Um relato e
análise notáveis de uma
paciente com
pura “cegueira do
movimento” foram feitos
por Zihl, Von Cramon e
Mal, em 1983. Os
problemas da paciente
são descritos da
seguinte forma:
O distúrbio visual de
que se queixava a
paciente consistia na
perda da visão do
movimento em todas as
três dimensões. Tinha
dificuldade, por
exemplo, em verter chá
ou
café numa xícara, pois o
líquido parecia-lhe
congelado, como uma
geleira. Além disso, não
conseguia parar no
momento certo, já que
era incapaz de perceber
o movimento do líquido
subindo dentro da xícara
(ou de uma panela)).
Ademais, a paciente se
queixava de dificuldades de acompanhar um
diálogo, pois não podia
ver o movimento do rosto
e, em especial,
dos lábios do
interlocutor. Num quarto
onde mais de uma pessoa
estivesse andando, ela
sentia-se muito insegura
e indisposta, e com
frequência saía
imediatamente, porque
“as
pessoas estavam uma hora
aqui, outra lá, mas eu
não as vira movendo-se”.
A paciente
passava pelo mesmo
problema, mas num grau
ainda mais agudo, em
ruas ou lugares com
multidões, que ela
tentava portanto evitar
ao máximo. Não podia
atravessar a rua por
causa
de sua incapacidade de
avaliar a velocidade dos
carros, mas podia
identificá-los sem
dificuldade. “Quando
primeiro olho para um
carro, ele parece
distante. Mas então,
quando
quero atravessar a rua,
de repente ele está
muito perto.” Aos
poucos, aprendeu a
“estimar”
a distância de veículos
em movimento pelo som
que ia se tornando mais
forte.Cinquenta anos antes, o
eminente neurologista
Gordon Holmes,
analisando duzentos
casos de problemas
visuais causados por
ferimentos no córtex
visual em consequência
de
tiros, não encontrara um
único caso de
acromatopsia. Isso o
levara a refutar que uma
acromatopsia cerebral
isolada pudesse ocorrer.
A veemência dessa
negação, vinda de tão
grande autoridade, teve
um papel importante no
solapamento de todo
interesse clínico
sobre o assunto.
-
(nota
17: Um relato preciso da
influência negativa de Holmes foi feito por
Damato, ressaltando
também que todos os seus
casos envolviam lesões
no aspecto dorsal
do lobo occipital, ao
passo que o centro para
a acromatopsia reside no
aspecto ventral.)
A
brilhante e irrefutável
demonstração de Zeki
surpreendeu o mundo
neurológico,
despertando de novo a
atenção para um assunto
que havia sido rejeitado
por muitos anos.
Na esteira de seu artigo
de 1973, novos casos de
acromatopsia humana
voltaram a
aparecer na literatura
médica, já então podendo
ser examinados com novas
técnicas de
visualização do cérebro
(tomografia, ressonância
magnética, tomografia de
emissão de
pósitrons, SQUID etc.)
não disponíveis para
neurologistas do
passado. Agora, pela
primeira
vez, era possível
visualizar, na vida,
quais áreas do cérebro
podiam ser necessárias
para a
percepção humana da cor.
Embora muitos dos casos
descritos também
apresentassem
outros problemas (cortes
no campo visual, agnosia
visual, alexia etc.), as
lesões cruciais pareciam
estar no córtex
associativo medial, em
áreas homólogas às V
quatro no macaco.
-
(nota 18: O trabalho de António e Hanna Damasio
e seus colegas da
Universidade de Iowa
foi particularmente
importante aqui, tanto
em virtude da exactidão
do teste de percepção
como pelo refinamento da
imagem neuronial que
usavam.)
Foi demonstrado
nos anos 60
que havia células no
córtex visual primário
dos macacos (na área
denominada V um) que
respondiam
especificamente ao
comprimento de onda, mas
não à cor; no início dos
anos
70, Zeki vinha
demonstrar que havia
outras células nas áreas
V quatro que respondiam
à
cor, mas não ao
comprimento de onda
(essas células V quatro,
entretanto, recebiam
impulsos das células V
um, convergindo por meio
de uma estrutura
intermediária, V dois).
Assim, cada célula V
quatro recebia
informação sobre uma
vasta porção do campo
visual.
Tudo indicava que os
dois estágios postulados
por Land em sua teoria
podiam ter agora
uma base anatómica e
fisiológica: registos
de luminosidade para
cada comprimento de
onda podiam ser
extraídos pelas células
sensíveis ao comprimento
de onda V um, mas
somente nas células
codificadoras de cor V
quatro eram comparados
ou correlatados para
produzir a cor. Cada uma
delas, na verdade,
parecia agir como um
correlator landiano, ou
um “juiz” helmholtziano.
A visão das cores, ao
que tudo indicava ―
como os outros processos
da visão primitiva:
movimento, profundidade
e percepção da forma ―,
não exigia um
conhecimento prévio, não
era determinada por
aprendizado ou
experiência, mas era,
como dizem os
neurologistas,
um processo de “baixo
para cima” (bottom-up”).
A cor podia de facto ser
produzida,
experimentalmente, por
estímulo magnético da V
quatro, causando a
“visao” de anéis e
halos coloridos ― os
chamados cromatofenos.
-
(nota 19: Esses cromatofenos podem
ocorrer espontaneamente
em enxaquecas visuais, e
o próprio sr. I. chegou
a experimentá-los, ocasionalmente, em
enxaquecas anteriores ao
acidente. Seria
interessante saber o que
teria sido experimentado
se as áreas V quatro do
sr. I. tivessem sido
estimuladas ― mas o
estímulo magnético de
uma área circunscrita do
cérebro não era
tecnicamente possível na
época. Resta saber,
agora que esse estímulo
é possível, se ele
deveria ser tentado em
indivíduos com
acromatopsia congénita,
retiniana ― muitas
dessas pessoas
expressaram
sua curiosidade sobre
tal experimento. É
possível ― não tenho
conhecimento de nenhum
estudo sobre isso ― que
a V quatro deixe de
funcionar em tais
pessoas, com a ausência
de
qualquer informação
fornecida pelos cones.
Mas se a V quatro
estiver presente como
uma
unidade de funcionamento
(embora nunca
funcionando) a despeito
da ausência de cones,
seu estímulo pode
produzir um espantoso
fenómeno ― uma eclosão
sem precedentes, uma
sensação totalmente
nova, em um
cérebro/mente que nunca
tivera a chance de
experimentá-lo ou
categorizá-la. Hume se
pergunta se um homem
poderia imaginar, ou
mesmo perceber, uma cor
que nunca tivesse visto
antes ― talvez essa
questão humiana
(proposta em 1738)
pudesse ter uma resposta
hoje.)
Mas a visão
colorida, na vida real,
é
parte integrante de
nossa experiência total,
está ligada a nossas
categorizações e
valores,
torna-se para cada um de
nós uma parte de nossa
vida e nosso mundo, uma
parte de nós.
A V quatro pode ser um
gerador definitivo de
cor, mas que envia
sinais e se comunica com
uma centena de outros
sistemas da
mente/cérebro; e talvez
também possa ser
regulado por
eles. É em níveis mais
elevados que a
integração acontece, que
a cor se funde com a
memória, com
expectativas,
associações e desejos de
criar um mundo com
repercussão e
sentido para cada um de
nós.
-
(nota 20: O poder da
expectativa e da
configuração mental na
percepção da cor é
claramente demonstrado
em indivíduos com
daltonismo parcial vermelho-verde. Tais
pessoas podem não ser
capazes, por exemplo, de
detectar os frutos
vermelhos do azevinho
contra uma folhagem
verde-escura, ou o
subtil
rosa-salmão do amanhecer
― até alguém
apontá-los para elas.
“Nossas pobres células
cónicas desfalcadas”,
diz um discromatopso
que conheço, “precisam
da amplificação do
intelecto, do
conhecimento, da
expectativa e da
atenção para “ver” as
cores para as quais
estamos normalmente
“cegos”.”)
O sr. I. não apenas
apresentava um caso mais
propriamente “puro” de
acromatopsia
cerebral (praticamente
não contaminada por
deficiências adicionais
na percepção da forma,
movimento ou
profundidade), mas era
também uma testemunha
especializada e muito
inteligente, com a
habilidade de desenhar e
relatar o que via. De
facto, quando o
encontramos pela
primeira vez e ele
descreveu como objectos e
superfícies “flutuavam”
em
diversas iluminações,
estava, por assim dizer,
descrevendo o mundo em
comprimentos de
onda, não em cores. A
experiência era tão
diferente de tudo o que
tinha experimentado, tão
estranha, tão anómala,
que ele não podia traçar
paralelos, metáforas,
retratos ou palavras
para representá-la.
Quando telefonei para o
professor Zeki para
contar-lhe deste
paciente excepcional,
ele
ficou muito intrigado e
curioso, particularmente
em como o sr. I. se
sairia no teste de
Mondrian, o mesmo que
ele e Land haviam usado
com pessoas de visão
normal e animais.
Decidiu vir de imediato
a Nova York e juntar-se
a nós ― Bob Wasserman,
meu colega
oftalmologista, Ralph
Siegel, um
neurofisiologista, e eu
― num amplo exame de Jonathan I.
Nenhum paciente com
acromatopsia foi jamais
examinado dessa maneira
antes.
Usamos um Mondrian de
grande complexidade e
luminosidade, iluminado
seja por uma
luz branca, seja
utilizando filtros de
espectro estreito, de
forma a só permitir a
passagem de
comprimentos de onda
longos (vermelho),
intermediários (verde)
ou curto (azul). A
intensidade do facho de
luz era a mesma em todos
os casos.
O sr. I. podia
distinguir a maior parte
das formas geométricas,
embora apenas como
diferentes tons de
cinza, colocando-as
imediatamente numa
escala de cinza que ia
de 1 a
4, já que não conseguia
distinguir alguns
limites entre as cores
(por exemplo, entre o
vermelho e o verde, que
apareciam para ele, sob
a luz branca, ambos como
preto). Com
uma rápida mudança de
filtros, feita ao acaso,
a avaliação de todas as
formas pela escala
de tons de cinza mudava
dramaticamente ― certos
matizes antes
indistinguíveis agora se
tornavam muito
diferentes ― e todos os
tons (à excepção do
verdadeiro preto)
mudavam,
seja de uma forma
flagrante ou subtil, com
o comprimento da fonte
de luz (assim, uma área
verde seria vista por
ele como branca num meio
onde o comprimento de
onda fosse
intermediário, mas como
preta sob a luz branca
ou de comprimento de
onda longo).
Todas as respostas do
sr. I. eram consistentes
e imediatas (teria sido
muito difícil, se não
impossível, para uma
pessoa com visão normal
fazer essas estimativas
imediatas e
invariavelmente
“correctas”, mesmo com
uma perfeita memória e
um profundo conhecimento
da mais recente teoria
da cor). Estava claro
que o sr. I. podia
discriminar comprimentos
de
onda, mas não passar daí
a traduzi-los em cor;
não podia produzir a
construção cerebral ou
mental da cor.
Essa descoberta não
apenas esclareceu a
natureza do problema,
mas também serviu
para localizá-lo com
precisão. O córtex
visual primário do sr.
I. estava essencialmente
intacto
e era o córtex
secundário
(especificamente as
áreas V quatro, ou suas
conexões) que
arcava virtualmente com
o impacto da lesão.
Essas áreas são muito
pequenas, mesmo no
homem; não obstante,
toda a nossa percepção
da cor, nossa capacidade
de imaginá-la ou
relembrá-la, todo o
nosso sentido de viver
num mundo em cores
dependem crucialmente de
sua integridade. Um azar
tinha devastado no
cérebro do sr. I. essas
áreas do tamanho de
um grão de feijão ― e,
com isso, toda a sua
vida e seu mundo
mudaram.
O exame de Mondrian
mostrou que essas áreas
haviam sido afectadas;
queríamos saber
agora se podíamos
vê-las, com o
escaneamento do cérebro.
Mas sua tomografia e a
ressonância magnética
estavam completamente
normais. Talvez porque
as técnicas de
esquadrinhamento à época
tivessem uma resolução
inadequada para
visualizar o que podia
ser apenas uma lesão
oculta na V quatro
talvez o dano fosse
apenas metabólico, não
estrutural; ou a lesão
principal não se
encontrasse na V quatro,
mas em estruturas (as
chamadas “manchas” na V
um ou “listas” na V
dois) conduzindo a ela.
-
(nota 21: O mau
funcionamento na V
quatro pode ser
detectado com uma nova
técnica, a
tomografia de emissão de pósitrons (que mostra a
actividade metabólica de
diferentes áreas
cerebrais), mesmo se não
há lesão visível na
tomografia ou
ressonância magnética.
Infelizmente, essa
técnica não existia na
época.)
Foi ressaltado
― tanto
por Zeki como por
Francis Crick ― que
essas pequenas
estruturas,
as manchas e listas, são
de uma intensa
actividade
metabólica e podem ser,
com rara
frequência, vulneráveis
até mesmo a reduções
temporárias de oxigénio.
Crick, em particular
(com quem discuti o caso
nos mínimos detalhes),
se perguntava se o sr.
I. não teria sofrido
um envenenamento por
monóxido de carbono,
conhecido por causar
mudanças na visão
das cores devido a seus
efeitos na oxigenação do
sangue para as áreas de
cor. O sr. I.
podia ter sido exposto
ao monóxido de carbono
através de um
escapamento dentro do
carro, Crick especulava
― talvez devido ao
acidente, possivelmente
até causando-o.
-
(nota
22: o próprio sr. I.,
que gostava de passar
seu tempo em clubes
desportivos e bares,
pesquisou sobre o
assunto e nos contou que
havia conversado com
alguns boxeadores que
sofreram perdas
temporárias, e por vezes
duradouras, da visão da
cor após serem
golpeados na cabeça.)
A acromatopsia parcial ou
total
(“acinzentamento”),
também
temporária, é
característica do
desmaio ou choque onde
há uma redução do
suprimento de
sangue nas partes
posteriores,
especialmente as
visuais, do cérebro. O
acinzentamento
também ocorre em ataques
temporários de isquémia,
devido a insuficiência
arterial ― Zeki
especula que isso afeta
as células selectivas de
comprimento de onda nas
manchas da V um
e as listas finas da V
dois. Alterações
temporárias da visão da
cor ― incluindo
estranhas
instabilidades ou
transformações da cor
(discromatopsia) ―
podem ocorrer também em
enxaquecas visuais e
epilepsias e são
conhecidas dos
consumidores de
mescalina e outras
drogas. Podem ser um
inquietante efeito
colateral do
ibuprofeno.) Mas tudo
isso era, em
certo sentido,
académico. Três meses
depois, a acromatopsia
do sr. I. continuava
absoluta
e ele sofria também de
constantes diminuições
da visão de
contraste.
-
(nota 23:
Nunca ficou
completamente claro, a
partir das descrições
que o sr. I. fazia do
dia-a-dia, se ele teve
ou
não alguma pequena
diminuição da visão da
forma. Mas,
curiosamente, durante o
teste dos
Mondrians, limites entre
rectângulos tinham a
tendência a desaparecer
quando ele os fitava
prolongadamente, embora
fossem rapidamente
restaurados uma vez que
o estímulo era
deslocado. Existem dois
outros sistemas além do
sistema de manchas no
processo visual
primário: o sistema M,
que trata
particularmente da
percepção do movimento e
da profundidade, mas não da cor;
e um sistema P-intermanchas, que
provavelmente diz
respeito à
percepção em alta
definição das formas.
Zeki pensava que a
dissolução dos limites
com a
fixação prolongada
sugeria um defeito no
sistema P, e sua rápida
restauração com o
deslocamento, “um
sistema M saudável e
activo”.)
Não podíamos
dizer se esses problemas
acabariam desaparecendo
― certos casos de
acromatopsia cerebral
adquirida melhoram
com o tempo, mas outros
não. Ainda não sabíamos
o que havia causado a
lesão no cérebro
do sr. I., se era uma
toxina como o monóxido
de carbono, ou o impacto
do acidente de
carro, ou a consequência
de uma diminuição do
fluxo de sangue para as
áreas visuais do
cérebro. Era possível
que, se tivesse sido
causada por um derrame,
outros viessem a
ocorrer. O prognóstico
tinha que permanecer
incerto, embora a
situação do paciente
parecesse estável.
Podíamos, porém, dar uma
pequena ajuda prática. O
sr. I. enxergou com
coerência os
contornos dos sinais do
Mondrian, tanto mais
claramente quando eram
iluminados por uma
luz com comprimento de
onda intermediário e o
dr. Zeki aconselhou, por
conseguinte, que
lhe déssemos óculos de
sol verdes, que
transmitissem apenas
esse feixe de ondas no
qual
ele enxergava melhor. Os
óculos foram feitos
especialmente e o sr. I.
passou a usá-los,
sobretudo sob o sol
forte. Ficou encantado
com os novos óculos,
porque, embora não
contribuíssem em nada
para restaurar sua visão
das cores, pareciam
acentuar
sensivelmente sua visão
de contraste e sua
percepção de forma e
contornos. Podia até
mesmo voltar a ver
televisão em cores com a
mulher (os óculos
verde-escuros, de facto,
tornavam monocromático o
televisor colorido),
embora continuasse
preferindo seu velho
televisor em
preto-e-branco quando
estava sozinho.
A sensação de perda que
se sucedeu a seu
acidente era esmagadora
para Jonathan I.,
como deve ser para
qualquer um que perde a
cor, um sentido que se
entrelaça em nossa
experiência visual e é
tão importante para a
imaginação e a memória,
nosso conhecimento
do mundo, nossa cultura
e arte. Essa sensação de
perda, em relação ao
mundo natural, foi
notada em todos os
casos. Para o médico do
século XIX que caiu
do cavalo, as flores
“perderam a maior parte
de sua beleza”, e ao
entrar em seu jardim,
abruptamente privado
de cor, o que sentiu foi
um grande choque. Essa
sensação de perda e
choque foi redobrada
para o sr. I., já que
sentia ter perdido não
apenas a beleza do mundo
natural e do mundo
das pessoas e dos
inumeráveis objectos
cujas cores fazem parte
do dia-a-dia, mas também
o mundo da arte ― o
mundo que, por cinquenta
anos ou mais, absorvera
seus talentos e
sensibilidades
profundamente visuais e
cromáticos. As primeiras
semanas de sua
acromatopsia foram,
assim, semanas de uma
depressão quase suicida.
-
(nota 24: Essa sensação
de perda não é, é claro,
experimentada pelos que
nasceram
completamente daltónicos. A questão é
abordada em outra carta
que recebi recentemente
de uma mulher
interessante e
inteligente, Frances
Futterman, que nasceu
totalmente
daltónica. Ela compara
sua própria situação com
a de Jonathan I.:
Fiquei impressionada com
o quanto esse tipo de
experiência deve ser
diferente da minha
própria, de nunca ter
visto as cores antes, e
por conseguinte nunca
tê-las perdido —
também nunca ter ficado
deprimida por causa de
meu mundo sem cor. [...]
A maneira como
vejo não é em si e por
si só deprimente. Na
realidade, fico
frequentemente
deslumbrada
com a beleza do mundo
natural. [...] Dizem que
devo ver em tons de
cinza ou em preto-e-branco, mas não acho que
seja assim. A palavra
cinza, para mim,
significa tanto quanto a
palavra rosa ou azul ―
na verdade, ela tem
menos sentido ainda,
porque desenvolvi
conceitos internos para
nomes como rosa ou azul;
mas, por mais que tente,
não consigo
conceber o cinza.)
Embora a experiência da
sra. Futterman seja
certamente diferente da
do sr. I., ambos
falam da falta de
sentido do termo
“cinza”, uma palavra que
pode ser tão expressiva
para o acromatopso quanto
“escuridão” para o cego,
ou “silêncio” para o
surdo. A sra. Futterman
menciona, assim como o
sr. I. passou a fazer, a
beleza do mundo.
“Poderia apostar
também”, ela diz, “que,
se fôssemos testados ao
lado de pessoas normais
em níveis baixos
de luminosidade, seríamos
capazes de detectar
muito mais tons de
cinza. Fotografias em
preto-e-branco
parecem-me demasiado duras.
O mundo que vejo tem
muito mais variedade
e riqueza que fotos em
preto-e-branco ou
programas de TV. [...]
Minha visão é muito mais
rica do que podem
imaginar os normais.”)Além dessa sensação de
perda, no começo
Jonathan I. achava
abominável e anormal o
seu mundo visual
modificado. É essa
também a experiência da
maioria das pessoas em
sua
posição: o médico
contundido após ser
jogado do cavalo julgou
sua visão “pervertida”,
uma
das pacientes de Damásio
achava seu mundo cinza
“sujo”. Por que, nós nos
perguntávamos, todos os
pacientes com
acromatopsia cerebral se
exprimem nesses termos ― por que a experiência
deles deve parecer tão
anormal? O sr. I. estava
vendo com seus
cones, com as células da
V um sensíveis ao
comprimento de onda, mas
era incapaz de
utilizar uma ordem
superior, o mecanismo de
produção de cor da V
quatro. Para nós, o
produto da V um é
inimaginável, por nunca
ser experimentado como
tal e ser imediatamente
desviado para um nível
superior, onde passa por
um processo adicional
para permitir a
percepção da cor. Assim,
o produto bruto da V um
nunca aparece de forma
consciente para
nós. Mas aparecia para o
sr. I.: sua lesão
cerebral o colocou a par
― na verdade o prendeu
no interior ― de um
estranho estado
intermediário, o mundo
sinistro da V um, um
mundo de
sensações anómalas e,
por assim dizer,
pré-cromáticas, que não
podia ser categorizado
nem como colorido, nem
como sem cor.
-
(nota 25: Podemos
experimentar algo
semelhante, Zeki mostrou
recentemente, usando um
estímulo magnético
inibidor na V quatro, o
que produz uma
acromatopsia
temporária.)
O sr. I., com sua
apurada sensibilidade
visual e estética,
achava essas mudanças
particularmente
intoleráveis. Conhecemos
muito pouco sobre o que
determina a emoção e
o encanto estético em
relação à cor, na
verdade em relação à
visão geral ― este é um
assunto de gosto e
experiência individuais.
-
(nota 26: Também
conhecemos muito pouco
sobre as interacções dos
três principais
sistemas na visão
primária ― os sistemas
M, intermanchas e o de
manchas. Mas Crick se
pergunta se alguns dos
desprazeres e a
anormalidade, pelo menos
― a visão “plúmbea” de
que se queixava o sr.
I. ―, não viriam em
parte da acção
descomedida do sistema M
preservado, que, ele
enfatiza, “vê poucos
tons de cinza, [de forma
que] seu branco
corresponderia ao que
(em pessoas normais) é
um branco sujo”. Essa
noção é corroborada
pelo facto de pessoas com acromatopsia congénita,
que não sofreram
qualquer lesão em
seus sistemas visuais
superiores, não
apresentarem tais
anormalidades
perceptivas. Assim,
Knut Nordby escreve:
“Nunca experimentei
cores sujas, impuras,
manchadas ou desbotadas, como relata o
artista Jonathan I.”.)
A percepção da cor havia
sido uma parte essencial
não só do sentido visual
do sr. I., mas
de seu sentido estético,
sua sensibilidade, sua
identidade criativa, uma
parte essencial de
como construía seu mundo
― e agora a cor havia
desaparecido, não apenas
da percepção,
mas também da imaginação
e da memória. Os ecos
dessa condição foram
muito profundos.
De início, ficou intensa
e furiosamente
consciente do que perdem
(ainda que “consciente”,
por assim dizer, à
maneira de um amnésico).
Podia olhar fixamente
para uma laranja,
enfurecido, tentando
forçá-la a recobrar sua
cor verdadeira. Passaria
horas diante de seu
gramado (para ele)
cinza-escuro, tentando
vê-lo, imaginá-lo,
lembrar-se dele como
verde.
Viu-se num mundo não
apenas empobrecido, mas
alienado e incoerente,
quase um mundo
de pesadelo. Foi o que
expressou logo após a
lesão, melhor do que
podia fazer em
palavras, em algumas de
suas primeiras e
desesperadas pinturas.
Mas aí, com a aurora
“apocalíptica”, e a
pintura que fez dela,
surgiu o primeiro sinal
de
mudança, um impulso de
reconstruir o mundo, de
reconstruir sua
sensibilidade e
identidade.
Parte disso era
consciente e deliberado:
reeducar seus olhos (e
mãos) para funcionar,
como
fizera em seus primeiros
tempos de artista. Mas
boa parte se passou
abaixo desse nível,
num nível de
processamento neuronial
não directamente
acessível à consciência
ou ao
controle. Nesse sentido,
começou a ser redefinido
pelo que lhe acontecera
― redefinido
fisiológica, psicológica
e esteticamente ―, e
com isso veio uma
transformação dos
valores,
de forma que a completa
estranheza e alienação
do mundo de sua V um,
que de início tinha
uma qualidade de horror
e pesadelo, adquiriu,
para ele, um estranho
fascínio e beleza.
Imediatamente após seu
acidente e por um ano ou
mais a partir daí,
Jonathan I. insistia
que continuava
“conhecendo” as cores,
sabia o que era certo, o
que era apropriado, o
que
era belo, mesmo se não
mais as pudesse
visualizar em sua mente.
Mas, em seguida,
tornou-se de certa forma
menos seguro, como se
agora, sem o apoio da
experiência ou da
imagem real, suas
associações de cor
tivessem começado a
sumir. Talvez esse
esquecimento ― ao mesmo tempo
fisiológico e
psicológico, estratégico
e estrutural ― tenha
que
ocorrer, até certo
ponto, mais cedo ou mais
tarde, com qualquer um
que não seja mais
capaz de experimentar ou
imaginar, ou produzir de
alguma maneira, um modo
particular de
percepção. (Também não é
necessário que a lesão
principal seja cortical;
o mesmo pode
ocorrer, depois de meses
ou anos, até com aqueles
cuja cegueira é
periférica ou da
retina.)
-
(nota 27: J. D. Mollon
et al. descrevem o caso
de um jovem cadete da
polícia que, em
consequência de uma
grave doença febril
(provavelmente herpes
cerebral), ficou com
acromatopsia,
hemianopsia e um pouco
de agnosia e amnésia.
Examinando-o cinco anos
após a doença, Mollon
relata que “ele era
capaz de nomear
(presumivelmente por
meio da
memória verbal) as cores
de, por exemplo, grama,
semáforos, a bandeira
nacional, mas
cometia erros com outros
objectos comuns (por
exemplo, banana, caixa
de correio”. Assim,
aqui, depois de cinco
anos de total
daltonismo, as cores
mesmas dos objectos mais
familiares eram
frequentemente
esquecidas. Tais efeitos
também foram registrados
na
cegueira retiniana
comum, em que após
alguns anos pode haver
uma perda generalizada
das memórias visuais,
incluindo a das cores.)
Houve uma redução da
preocupação com o que
ele havia perdido, na
verdade com toda a
história da cor, que de
início tanto o havia
obcecado. De facto,
falava em ter se
“divorciado”
da cor. Continuava
podendo falar
fluentemente sobre ela,
mas parecia haver certo
vazio em
suas palavras, como se a
estivesse tirando de um
conhecimento passado e
não mais a
compreendesse.
Nordby escreve: “Embora
eu tenha adquirido um
completo conhecimento
teórico da física
das cores e da
fisiologia dos
mecanismos receptores da
cor, nada disso pode me
ajudar a
compreender a verdadeira
natureza das cores”.
-
(nota 28: “Uma pessoa
cega muito inteligente”,
escreve Schopenhauer,
“quase poderia
[construir] uma teoria
das cores a partir de
declarações exactas que
ouvisse sobre elas.”
Diderot, de maneira
parecida, em
Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem, falando de Nicolas Saunderson, um
célebre cego que dava
conferências sobre
óptica em Oxford no
começo do século XVIII, acha que ele tinha
um
profundo conhecimento
teórico e um conceito do
espaço, embora nunca
tivesse tido
qualquer percepção
visual directa dele (ver
nota 13).)
O que era verdadeiro
para Nordby agora também
o era para Jonathan I.
De certa forma,
começou a se parecer com
uma pessoa com
daltonismo congénito,
apesar de ter vivido
num mundo colorido
durante os primeiros 65
anos de sua existência.
Assim que esqueceu e deu
as costas para a cor e
para a orientação,
hábitos e estratégias
cromáticos de sua vida
prévia, o sr. I., no
segundo ano após a
lesão, percebeu que via
melhor sob luz baixa ou
no crepúsculo e não no
fulgor total do dia. A
luz muito forte
costumava ofuscá-lo,
cegando-o
temporariamente ― outro
sinal da avaria de seu
sistema
visual ―, mas achava a
noite e a vida nocturna
peculiarmente adequadas,
pois pareciam ter
sido “desenhadas”, como
disse certa vez, “em
termos de
preto-e-branco”.
Foi tornando-se um
“noctívago”, em suas
próprias palavras, e
passou a explorar outras
cidades, outros lugares,
mas somente à noite.
Podia dirigir, ao acaso,
para Boston ou
Baltimore, ou para
pequenas cidades e
vilarejos, chegando com
o anoitecer e vagando
pelas ruas por metade da
noite, eventualmente se
dirigindo a um
transeunte, ou entrando
em pequenos
restaurantes: “Tudo nos
restaurantes é diferente
à noite, pelo menos se
ele tiver janelas. A escuridão
entra no lugar e nenhuma
iluminação pode
modificá-la. São
transformados em lugares
nocturnos. Adoro a
noite”, dizia o sr. I.
“Vou me tornando aos
poucos um noctívago. É
um mundo diferente: há
muito espaço ― você não
fica encurralado
nas ruas, pelas
pessoas... É um mundo
completamente novo.’’
Quando não estava
viajando, o sr. I. se
levantava cada vez mais
cedo, para trabalhar à
noite, saborear a noite.
Sentia que no mundo
nocturno (como o chamava)
era igual, ou
superior, às pessoas
“normais”: ‘‘Sinto ―me
melhor porque sei então
que não sou uma
aberração... e
desenvolvi uma aguda
visão nocturna, é
assombroso o que vejo ―
posso ler
placas de carro, à
noite, a uma distância
de quatro quadras. Você
não poderia vê-las a uma
quadra de distância”
-
(nota 29: Com sua
repulsa à cor e à
claridade, o seu gosto
pelo lusco-fusco e pela
noite, a sua
visão aparentemente
acentuada no crepúsculo
e á noite, o sr. I.
lembra Kaspar Hauser, o
garoto confinado num
celeiro parcamente
iluminado por quinze
anos, como o descreveu
Anselm von Feuerbach em
1832: Quanto à sua
vista, aqui não existia,
no que lhe diz
respeito, nem noite nem
escuridão. [...] À noite
ele caminhava por toda
parte com a maior
segurança; e em lugares
escuros sempre recusava
a luz quando lhe era
oferecida.
Frequentemente, olhava
com espanto ou ria das
pessoas que, em cantos
sombrios, á
entrada de uma casa ou
descendo uma escada á
noite, por exemplo,
buscavam segurança
tacteando seu caminho ou
se agarrando a objectos
adjacentes. Assim, certa
vez, após o pór-do-sol, ele leu o número
de uma casa a uma
distância de 140 metros,
que, à luz do dia, não
poderia ter distinguido
de tão longe. Certa vez,
ao final do crepúsculo,
ele chamou a
atenção de seu instrutor
para um mosquito
pendurado numa teia de
aranha muito distante.)
A dúvida era se sua
visão nocturna podia ter,
com o tempo,
intensificado sua função
para
compensar a lesão em seu
sistema de cor ― podia
ter havido, nesse
estágio, também uma
intensificação da
sensibilidade para o
movimento, talvez para a
profundidade também, em
possível correlação com
uma maior dependência e
uso do intacto sistema M.
-
(nota 30: É possível que
indivíduos com acromatopsia congénita
desenvolvam uma função
intensificada do sistema
M, podendo tornar-se
extraordinariamente
aptos a detectar
movimento. Isso está
sendo pesquisado
actualmente por Ralph
Siegel e Martin Gizzi.)
O mais interessante de
tudo é que o sentimento
de uma perda profunda e
de desprazer e
anormalidade, tão severo
nos primeiros meses
subsequentes à lesão em
sua cabeça,
parecia desaparecer, ou
mesmo retroceder. Embora
o sr. I. não negasse sua
perda e
continuasse a lamentá-la
em certo nível, passou a
sentir que sua visão se
tornara
"altamente refinada”,
“privilegiada”, que via
um mundo de formas
puras, desatravancado
das cores. Texturas e
padrões subtis,
normalmente encobertos
para o resto de nós por
estarem embutidos nas
cores, se destacavam
para ele.
-
(nota 31:
Recentemente, ouvi falar
de um botânico acromatopso na
Inglaterra, considerado
melhor que pessoas com a
visão
normal para as cores na
tarefa de identificar
rapidamente samambaias e
outras plantas em
florestas, cercas-vivas
e outros meio ambientes
quase monocromáticos. Da
mesma forma,
na Segunda Guerra
Mundial, pessoas com
grave daltonismo
vermelho-verde eram
recrutadas como
bombardeadores, por sua
capacidade de “ver
através” da camuflagem
colorida e não se distrair
pelo que seria, para
pessoas com a visão
normal, uma configuração
confusa e enganosa de
cores. Um veterano do
“teatro do Pacifico”
relata que soldados
daltónicos eram
indispensáveis para
detectar o movimento de
tropas camufladas na
selva
(todas essas coisas
também podem tornar-se
mais claras para as
pessoas com a visão
normal da cor durante o
crepúsculo).)
Sentia ter
recebido “um mundo
completamente
novo”, ao qual nós,
distraídos pela cor,
éramos insensíveis. Não
pensava mais em cor,
suspirava por ela ou se
afligia com sua perda.
Quase passou a ver sua acromatopsia como
um estranho presente,
que lhe introduziu num
novo estado de ser e de
sensibilidade. Nisso
sua transformação foi
extremamente semelhante
à de
John Hull, que,
após dois ou três
anos vivendo a cegueira
como uma aflição e uma
maldição, passou a vê-la
como uma
“dádiva obscura e
paradoxal”, “uma
condição humana
concentrada... uma das
ordens do ser
humano”.
Certa vez, cerca de três
anos após o acidente,
uma intrigante sugestão
foi feita (por Israel
Rosenfield): que o sr.
I. tentasse reaver sua
visão da cor. Uma vez
que o mecanismo para
comparar comprimentos de
onda estava intacto e
apenas a V quatro (ou
seu equivalente)
tinha sido lesada,
Rosenfield acreditava
ser possível, pelo menos
em teoria, “reeducar”
outra parte do cérebro
para executar os
requisitos das
correlações landianas e
assim
alcançar alguma
restauração da visão da
cor. O impressionante
foi a reacção do sr. I. a
essa
ideia. Nos primeiros
meses após a lesão, ele
disse, teria aceitado
tal sugestão, feito
qualquer coisa para se
“curar”. Mas agora que
concebia o mundo em
outros termos e
novamente o julgava
coerente e completo,
achou a ideia
ininteligível e
repulsiva. Agora que
a cor tinha perdido suas
associações anteriores,
seu sentido, não podia
mais imaginar com
que pareceria sua
restauração. Sua
reintrodução seria
brutalmente confusa, ele
pensava, e
podia lhe impingir um
tumulto de sensações
irrelevantes,
perturbando a agora
restabelecida
ordem visual do seu
mundo. Estivera por
certo tempo numa espécie
de limbo; agora tinha
se acomodado ―
neurológica e
psicologicamente ― ao
mundo da acromatopsia.
Quanto à sua pintura,
após um ano ou mais de
experimentação e
incerteza, o sr. I.
entrou
numa fase mais enérgica
e produtiva, tão
enérgica e produtiva
quanto qualquer outra em
sua longa carreira
artística. Suas pinturas
em preto-e-branco são
altamente bem-sucedidas
e as pessoas comentam
sua renovação criativa,
a notável “fase”
preto-e-branco em que
entrou. Poucos sabem que
sua última fase é tudo
menos uma expressão de
seu
desenvolvimento
artístico; que é
resultado de uma perda
calamitosa.
Embora tenha sido
possível definir a
principal lesão no
cérebro do sr. I. ― a
eliminação de
uma parte essencial do
seu sistema de
construção da cor ―,
continuamos em completa
ignorância quanto às
mudanças “superiores” do
funcionamento cerebral
que devem ter
ocorrido no seu curso.
Jonathan I. não perdeu
apenas sua percepção da
cor, mas sua
imagem e mesmo seus
sonhos em cores. Por
fim, parecia estar
perdendo também sua
memória da cor, de forma
que ela deixou de ser
parte de seu
conhecimento mental, de
sua
mente.
Assim, conforme passava
o tempo sem a visão da
cor, ele passou a
assemelhar-se a uma
pessoa com amnésia da
cor — ou, na realidade,
alguém que nunca a
tivesse conhecido.
Mas, ao mesmo tempo,
ocorria uma revisão, de
maneira que, enquanto
seu mundo colorido
anterior e mesmo sua
memória desse mundo
desfaleciam e morriam
dentro dele, nascia
outro completamente novo
em visão, imaginação e
sensibilidade.
-
(nota 32: Um
aparecimento análogo de
novas sensibilidades e
imaginação é descrito no
formidável conto de H.
G. Wells
A Terra dos Cegos: “Por
catorze gerações essas
pessoas estiveram cegas
e separadas de todo o
mundo visível; os nomes
de todas as
coisas da visão caíram
em desuso e mudaram.
[...] Muito da
imaginação deles secou
com
seus olhos, eles criaram
novas imaginações com
seus ouvidos e dedos
cada vez mais
sensíveis”.)
Não há dúvida sobre a
realidade dessas
mudanças ― embora
talvez ela tenha exigido
um
paciente talentoso e
articulado como Jonathan
I. para revelá-las com
tal clareza. A
neurociência, a esta
altura, nada pode dizer
sobre a base cerebral
para essas mudanças
“superiores”. A
investigação fisiológica
da cor, até agora,
chegou aos sistemas de
cor da
visão primitiva, as
correlações landianas
que ocorrem na V um e V
quatro. Mas a V quatro
não é um ponto terminal,
apenas uma estação
intermediária,
projectando a seu tempo
para
níveis cada vez mais
elevados ― atingindo
finalmente o hipocampo,
tão essencial para o
armazenamento das
memórias, os centros
emocionais da amígdala e
do sistema límbicos e
muitas outras partes do
córtex. O término do
fluxo de informação
entre a V quatro e os
sistemas de memória do
hipocampo e do córtex
pré-frontal, por
exemplo, pode explicar
em
parte o “esquecimento”
que o sr. I. teve das
cores. Não dispomos no
momento dos
instrumentos necessários
para mapear as
consequências neuroniais
mais subtis e superiores
dessa perda sensorial,
mas uma história como a
de Jonathan I. mostra
que é crucial fazê-lo.
Os trabalhos da última
década mostraram a
maleabilidade do córtex
cerebral e a que
ponto a maneira como o
cérebro “mapeia” a
imagem corporal, por
exemplo, pode ser
drasticamente
reorganizada e revisada,
não apenas em
consequência de lesões e
imobilizações, mas do
uso especial ou desuso
de partes individuais.
Sabemos, por
exemplo, que o uso
constante de um dedo ao
se ler em braille leva a
uma enorme hipertrofia
da representação desse
dedo no córtex. E que,
com a surdez precoce e o
uso da
linguagem dos signos,
podem ocorrer drásticos
remapeamentos do
cérebro, com grandes
áreas do córtex auditivo
sendo realocadas para o
processamento visual.
Algo semelhante,
ao que parece, se dava
com o sr. I.: se
sistemas inteiros de
representação, de
sentido,
foram extintos em seu
interior, também foram
criados novos sistemas
inteiros.
Em relação à questão
definitiva ― a questão
de qualia: por que uma
sensação particular
pode ser percebida como
vermelha ―, o caso de
Jonathan I. talvez não
possa nos ajudar
em nada. Após descrever
“o celebrado fenómeno
das cores”, Newton
evitou qualquer
especulação sobre a
sensação, não se
arriscando a nenhuma
hipótese sobre os “modos
ou
acção pelos quais a luz
produz em nossa mente os
fantasmas das cores”.
Três séculos
depois, continuamos sem
hipóteses e talvez tais
questões não possam
nunca ser
respondidas.
ϟ
in
UM ANTROPÓLOGO EM MARTE
- Sete histórias
paradoxais
[O caso do pintor
daltónico |
O último hippie |
Uma vida de cirurgião
|
Ver e não ver
| A paisagem dos seus
sonhos
| Prodígios
| Um antropólogo em Marte]
Autor:
OLIVER SACKS
Título original:
An Anthropologist on Mars -
Seven paradoxical tales
by Oliver Sacks, 1995
Tradução: BERNARDO
CARVALHO
Edição: COMPANHIA DAS LETRAS
20.Fev.2012
Publicado por
MJA
|