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 Sobre a Deficiência Visual


O Autor Cego

Denise Ventura Schittine

Jorge Luis Borges com María Kodama
Jorge Luis Borges com María Kodama


Já ajudou um cego a atravessar a rua? Existe uma sensação de extrema responsabilidade nisso. É um contrato de cumplicidade: o cego precisa confiar em nós, e nós, nele. No entanto, o guia é desconhecido. Como confiar nele? Ler para um cego é ser um guia nos caminhos textuais. No entanto, como na rua, é o cego que indica que direção tomar, ele conhece os lugares, as coisas, mas não enxerga e supõe que possamos ser, mesmo que por um momento, os olhos dele neste mundo. Imaginemos então que nos tornemos o guia dele por algumas semanas, até alguns meses. Se alguma vez que nos pedir para ir a um lugar e nós errarmos o seu caminho de costume, será que perderemos a confiança dele para sempre? O ledor é um guia, um guia que precisa ganhar a confiança do seu leitor.

A escolha desse guia sempre foi importante para o cego. Principalmente quando esse cego além de leitor é autor também. O processo de criação do autor toma as mais variadas formas. Há autores que só trabalham no silêncio absoluto, outros precisam de música, um terceiro grupo trabalha no isolamento, com a ajuda de belas paisagens ou em qualquer quarto de hotel contanto que tenha um cigarro aceso entre os dedos. Os lugares de invenção variam na mesma medida que os lugares de leitura. Mas uma coisa muda pouco: as pessoas com quem esses autores compartilham suas primeiras notas de criação. Essas são pessoas especiais, únicas, cuja opinião é muito cara e importante para o autor.

São os pares intelectuais. Pessoas que se unem através do texto, da escrita da troca de ideias. Truman Capote divida as suas angústias literárias com a grande amiga e escritora Harper Lee, Clarice Lispector escrevia cartas para Femando Sabino e Elizabeth Bishop gostava de contar com a companheira Lota Macedo Soares para ler os seus poemas. São muitas as relações que envolvem essa parceria: respeito pela opinião do outro, aproximação intelectual, interesse afetivo. Mas esse lugar de interlocutor, daquele que partilha o processo de criação do autor, está reservado a poucos. Cada texto escrito é um pouco daquele autor, é como se ele se desnudasse, e a primeira aparição do criador desnudo não pode ser para qualquer leitor, mas para um leitor especial.

Mostraremos nesta última parte do trabalho as relações de Jorge Luis Borges e João Cabral de MeIo Neto - dois escritores que ficaram cegos - com os seus guias. Guias de leitura, que no caso de Borges podiam ser seus alunos ou amigos, e "guias de criação": Borges nunca abriu mão da ajuda de sua mãe, Leonor Acevedo Borges. Quando ela faleceu sua esposa, Maria Kodama, assumiu o papel, e João Cabral jamais se separou das leituras feitas por sua esposa, a poetisa Mar1y de Oliveira. O primeiro, com uma produção poética intensa, não deixou de escrever mesmo na escuridão. João Cabral entregou-se ao dissabor da cegueira, principalmente porque a sua escrita era cunhada com as mãos, era trabalho de artesão, ele não usava a máquina, só para passar os textos a limpo.

Para quem produz textos na cegueira é necessária a presença de alguém que faça as tarefas de ledor e de escrevente. Precisa fazer o duplo trabalho de escrever o que o autor está ditando e depois ler para ele para que as correções sejam feitas. A maioria dos livros escritos durante a Idade Média ainda era feita com a ajuda de escribas e revisores, o trabalho do autor era praticamente proporcional ao desses outros elementos. O autor era apenas mais um dos participantes do livro, mesmo quando colocava nas lousas ou em pedaços de pergaminho o que gostaria de escrever, seus assistentes trabalhavam para finalizar o texto. Muitos autores não tinham facilidade com a scriptio continua e precisavam ditar suas criações aos secretários e amanuenses.

Mais ou menos no início do século XI a mesma privacidade que se insinuava através da leitura silenciosa era um desejo dos escritores, que viam na separação das palavras a chave para a composição manuscrita. Nos séculos XI e XII, os escritores começaram a querer ter o gosto redigir os seus textos do próprio punho. Alguns deles ficaram satisfeitos em tomar o ato da escrita privado: longe dos olhos e ouvidos do escrivão, poderiam agora expressar seus pensamentos mais íntimos.

"O verbo dictare no século XII havia perdido sua conotação obrigatoriamente oral e era utilizado para expressar composição por escrito e cópia visual." (SAENGER in "A leitura nos séculos finais da Idade Média", 1998, p.153).

Apesar de todas as mudanças que vinham sendo operadas para garantir a privacidade do escritor no ato de criação, muitos autores mantiveram o hábito de ditar o texto para os escribas. Mas a escrita solitária ainda tinha alguns impedimentos, e o maior deles era o complexo trabalho de escrita, ainda muito lento e dificil. Um outro grupo de autores não esmoreceu diante dos obstáculos e procurou passar por eles e tirar partido da intimidade que começava a se instaurar entre eles e o texto. O autor começa a se identificar mais com os seus próprios escritos e com o leitor, e essa nova relação de proximidade influencia a produção de textos eróticos.

Poder dar voz à "voz interior" sem intermediários proporcIOnou uma liberdade especial para esses autores. Uma liberdade que persiste até os tempos de hoje. No entanto, o autor cego precisa frequentemente voltar ao ditado e abrir mão da tão sonhada privacidade. Um exemplo histórico dessa experiência é o do escritor Guilbert de Nogent, que usufruiu da privacidade na escrita para começar a compor poemas eróticos e alguns ensaios contrariando a Igreja. Essas obras, ele conseguiu manter secretas, longe das pessoas que trabalhavam ou viviam com ele.

Ironicamente, Nogent acabou ficando cego no fim da vida e precisou voltar a ditar seus escritos a um secretário. O autor:

(...) amargamente lamentava a perda de visão que o obrigava a redigir 'somente com a memória e a voz, mas sem as mãos e sem os olhos'. Ele se ressentia da interferência causada pela presença do secretário e lamentava não poder olhar para o seu texto escrito para rever o estilo e aperfeiçoar a escolha das palavras. (SAENGER in "A leitura nos séculos fmais da Idade Média", 1998, p. 152).

As mesmas "queixas" que os autores cegos têm agora: depois de muitos anos para conquistar a privacidade do ato da escrita, precisam voltar às antigas formas de produção de texto e tomarem-se dependentes novamente de uma segunda pessoa que se interpõe entre eles e a página.

Na verdade, essa independência é fruto de um longo processo histórico. Nem sempre foi assim: leitores de um lado e autores de outro. Na época de Plínio, como já falamos, o leitor bom era aquele que ouvia o texto e expressava suas impressões. Uma série de autores reescreveu seus textos e discursos baseados em suas leituras públicas. O contato, então, era direto. Não bastava o autor escrever o texto, mas era necessário também que ele soubesse como fazer de sua escrita uma performance. As leituras eram enormes, duravam horas, às vezes alguns dias, era preciso uma atenção redobrada da plateia para não perder trechos. No entanto, como diria Horário, pouco a pouco o prazer do que era ouvido se transferia para as "delícias vazias fugazes" do que era visto. As leituras públicas passaram a ser um encontro social, um lugar para ver e ser visto. Essas leituras, que são feitas até os dias de hoje, nunca perderam o seu caráter de divulgação da obra dos autores.

A "morte" do autor fazia com que o leitor passasse a ter livre comércio sobre o texto. Entretanto, o autor continua a ser este criador mágico, este alquimista responsável pelo caráter encantatório do texto. Os leitores ainda hoje buscam leituras públicas porque querem escutar a voz do escritor, compará-la à que escutaram durante a leitura ou entender que vozes o autor tinha em mente quando criou determinados personagens. Querem ver o rosto deste alguém que foi responsável por criar um determinado conto ou romance, este criador de um universo particular, este pequeno deus. O corpo responsável por criar, o "fazedor" que teria sonhado e forjado o doutor Fausto, Raskólnikov, Emma Bovary e Cândido. Os leitores "são levados pela mesma curiosidade que faz as crianças olharem atrás de um teatro de fantoches ou desmontar um relógio.", observa Alberto MangueI.

Do outro lado está o autor. Cada vez mais solitário pela fama, a tentar encontrar os leitores que o acompanharão. Se ao menos alguma vez o autor soubesse quais os rostos ou interesses desses leitores, ele se preocuparia em escrever pensando unicamente nas necessidades deles? Como o personagem do livro A abadia do pesadelo, de Thomas Love Peacock, que, ao descobrir que sete exemplares de seu livro foram vendidos, adivinha um bom presságio e coloca esses sete leitores como os candelabros que iluminarão o seu caminho. Dickens era um grande leitor do próprio texto, bastante eloquente, fazia enormes turnês de leitura e se preparava pelo menos dois meses antes para treinar a forma de falar e os gestos, nunca deixou do anotar o comportamento do público. Gostava de arrancar reações extremas de choro e risada porque acreditava que sua voz e seu texto eram fonte de grande poder, um poder de mover e controlar o leitor.

Mesmo para Dickens, que fazia de cada leitura uma nova experiência, as leituras eram feitas para dois públicos: os amigos, que ajudavam a polir o texto antes da escrita final e a avaliar que efeito o livro podia causar no leitor; e o grande público, que tinha que ser arrabatado para divulgar a obra e tomar o autor conhecido. Uma primeira leitura é sempre presenteada às pessoas mais próximas do autor. Ariosto leu para Isabela Gonzaga seu Orlando Furioso, ainda inacabado, em dois dias, para distrair a moça que estava convalescente. Moliere não precisava de um ouvinte cuidadoso: lia suas peças para sua criada. Era a única maneira de escutar a própria voz e pôr o ato da leitura sob uma nova luz.

O fato é que esse primeiro ato, o da criação, dá-se no escuro e no isolamento. "É à luz que lemos as invenções alheias; sob a escuridão, inventamos nossas próprias histórias", diz Alberto MangueI. Quantas vezes esses autores, nos momentos de insônia antes de dormir, na escuridão de algum cômodo, olhando a noite estrelada não estrutram o princípio de um romance, um conto ou uma novela? Em conversas com amigos, na presença da pessoa amada, em cartas e discussões com seus pares intelectuais, escritores alentaram as primeiras ideias para suas histórias. Quantos prólogos, prefácios e resenhas Borges não fez de livros que nunca foram para o papel ou de livros inventados? O fato é que, para iniciar o processo produtivo, esses autores, videntes ou não, necessitam da mesma exigência dos leitores: silêncio, isolamento e retiro.

Nem sempre era possível aos autores, tanto por questões econômicas como pessoais, encontrar esses espaços de insularidade. O período do Renascimento não apenas foi de grande importância para destacar o olhar, como também foi o tempo do "despertar da individualidade". Na época, para quem aspirava ser um escritor, possuir um espaço privado para a criação era sinônimo de gosto e educação civilizada. Mas, antes disso, alguns homens e mulheres já começaram a criar estúdios como espaços em que se recolhiam do movimento mundano e da vida social. Lugares onde podiam aprender, crescer, ler, escrever e refletir. O par silêncio e penumbra sempre foi o ideal para criar. Maquiavel gostava de ler e escrever em seu estúdio à noite: era a hora que lhe parecia mais propícia para manter o pensamento livre e voltar à intimidade com o texto. Quando chegava a casa à noite, tirava as roupas, "enlameadas e suarentas", que havia usado durante o dia, e com trajes novos entrava no seu santuário.

"E por quatro horas esqueço este mundo, não me lembro dos aborrecimentos, não temo a pobreza, não tremo diante da morte: sou parte daquele mundo." (MACHIA VELLI, 1961, p.54).

Por "aquele mundo" entende-se o mundo dos livros, a bolha criada por seu estúdio.

Todo escritor precisa desse lugar. Como se fosse um velho barco em que, náufrago e sem bússola, ele recorre uma e outra vez para dar forma aos seus escritos. Cícero dizia que ler e escrever traziam para ele uma distração dos ruídos do mundo. Tinha um estúdio à beira-mar em Antium em que passava horas lendo e escrevendo e, quando precisava de um tempo para pensar, "contava as ondas".

Virgínia Woolf como autora e leitora considerava essencial um lugar privado para ler e escrever, em que a mente pudesse mergulhar por inteiro no texto. Liberdade e paz eram as necessidades da escritora aliadas a um recinto onde a noite já tivesse chegado, com as cortinas bem fechadas.

Os lugares em que os escritores produzem devem se assemelhar à toca dos animais: todo ambiente tem algo de familiar para receber o seu corpo e refletir seus pensamentos. É nesse lugar que ele vai se cercar de objetos pessoais, de talismãs que o "ajudam a pensar", e é também aí que vai reunir os livros, seus grandes companheiros, que vai folhear de tempos em tempos para poder escolher uma palavra, completar uma frase, estruturar um pensamento. Alberto MangueI se cercou de alguns objetos provenientes de lugares distintos que manuseia quando está em busca de uma nova palavra. Entre eles estão lembranças de viagens feitas, presentes de amigos, coisas recolhidas ao acaso. A lista inclui um osso esculpido em forma de crânio de Budapeste, um seixo da caverna de Sibila e até uma pedrasabão em forma de cavalo de Congonhas do Campo, além de, é claro, da pilha de livros que gosta de folhear:

Todos esses são como que extensões de mim mesmo, a postos e ao alcance da mão, sempre prestativos, conhecidos de muito tempo. Muitas vezes tive que trabalhar em aposentos sem estes volumes familiares, e senti sua ausência como uma espécie de cegueira ou falta de voz. (MANGUEL, 2006, p. 149)

Imaginemos Borges no "aconchego" de sua escuridão, no período final de sua vida em que fazia uma série de viagens com Maria Kodama. Ele também tinha o seu ambiente de trabalho, cercado de objetos como a escrivaninha que fora de sua mãe quando era criança, uma caneca de mate prata pertencente ao seu avô, uma pintura feita por sua irmã N orah Borges, que representava a Anunciação, e a sugestiva gravura de Piranese com as ruínas circulares. Borges saiu deste apartamento e percorreu uma série de regiões com Maria Kodama, seja como convidado em congressos, seja pelo simples prazer de viajar. Das fotografias e textos gerados nessas viagens, escreveu Atlas, um de seus últimos livros. Dizia no prefácio que o descobrimento do desconhecido não era privilégio apenas de Simbad ou de Copérnico. Todo homem começa descobrindo os sabores, texturas, cores do arco-íris, encontra rostos, mapas, animais e astros e continua entre a dúvida e a fé. Uma das características de Borges era redes cobrir coisas, nunca deixou de fazê-lo. Quando andava pela mesma e antiga biblioteca, não cessava de descobrir:

Me gusta hacer de cuenta que no soy ciego, que me acerco a los libros como un hombre que puede ver (...) Ando curioso de nuevas enciclopédias. Me imagino que puedo seguir en sus mapas el curso de los ríos y que descubro maravillas en las descripciones. (BORGES in MANGUEL, 2003, p. 31).


1. Criar no escuro

Como um autor, artista, desenhista ou escultor pode criar no escuro? Como nós leitores podemos saber que uma determinada obra foi escrita, feita, esculpida por um autor cego? São perguntas difíceis de responder. Em seu belo texto criado para a exposição Mémoires d'aveugle, Jacques Derrida aponta uma das saídas para se criar no escuro. Ele explica que tanto a origem do desenho como a da pintura está em representações em que a memória substitui a percepção. No grupo podemos colocar também a origem de uma criação literária. A origem do desenho parte de um relato exemplar: Dibutade, uma história que foi várias vezes representada em pinturas. Dibutade, a jovem corintiana, precisou se separar de seu amante por alguns dias. Para cristalizar a imagem do ser amado, ela decide, então, contornar a sombra desse homem numa parede, ajudada pela luz de uma lâmpada.
 

J. B. Suvée, Butades or the Origin of Drawing -  Bruges, Groeningemuseum
Butades ou a Origem do Desenho - J. B. Suvée

Além desse relato reforçar que a origem do desenho nos faz lembrar da espeleologia platoniana, ele também aponta para uma criação que tem seu cerne numa representação gráfica em que o modelo está ausente ou invisível. Enquanto Dibutade desenha, ela não pode ver o seu amante, precisa virar as costas para ele.

Como se fosse uma versão feminina de Orfeu, a moça precisa mostrar o seu amor ao amante sem olhá-lo.

(...) comme si voir était interdit pour dessiner, comme si on ne dessinait qu'à la condition de ne pas voir, comme si le dessin était une déclaration d' amour destinée ou ordonée à l'invisibilité de l'autre, à moins qu'elle ne naisse de voir l'autre soustrait au voir (DERRIDA, 1990, p. 54)

Em algumas pinturas sobre o tema, Dibutade ainda encontra um guia: um Cupido. Esse personagem a ajudará a seguir os traços da sombra do amante. Mas existe uma especificidade: o Cupido está com os olhos vendados. O que restaura o mito do amor cego, de gostar do amante independentemente de suas qualidades visuais.

Em todas as representações o importante é que a imagem do amante é construída na sombra, é uma sldagraphia, uma arte da cegueira. Tentando desligar-se do presente, embora o desenho esteja sendo feito naquele momento, Dibutade abre mão de seus sentidos e percepções e baseia-se na memória para esboçar seu amante. Seu lápis é como se fosse o bastão de um cego guiando-a através da sombra, os dois coincidem. O que a lenda de Dibutade mostra? Que embora o modelo esteja ali, presente, quando criamos algo, acionamos diretamente a memória e a imaginação; e que ambas são modificadas e filtradas pelo amor. Dibutade sabe que só se lembrará do amante por meio do afeto, a sombra, esta imagem "imperfeita" em que se baseia para fazer os seus contornos, será apenas o espelho que vai contemplar para lembra-se do amante.

Neste espaço em branco que é a folha, a tela ou a parede, o artista arrisca seus primeiros traços no escuro. Todo artista, de uma forma ou de outra, é cego. E, por ser cego, cria em função de sua memória afetiva. O escritor Roger de Piles conta em seu livro Sur la manière de faire les portraits a história da descoberta de um escultor cego que fazia esculturas em cera. Um dia, sem saber que o rapaz era cego, encontrou-o no palácio Justinien fazendo uma cópia da estátua de Minerva e se impressionou com o fato de o artista nunca olhar para o modelo para fazer a cópia. O rapaz respondeu que não enxergava, que seus olhos estavam na ponta de suas mãos. Pelo tato ele perscrutava as dimensões, as depressões, elevações e cavidades da peça, depois tentava reter na memória esses dados para fazer a sua escultura em cera. Ato de amor e de criação que nos faz lembrar que todo cego que gostaria de "ver" a pessoa amada toca sua fronte, num gesto que lembra a bendição, quase protetor. Gesto de amor.
 

Charles Baudelaire - Auto-retrato 
Charles Baudelaire - Auto-retrato 
Museu do Louvre, Colecção do Museu de Orsay


Baudelaire, que escreveu o poema Les aveugles, [Os Cegos de Baudelaire] tinha uma interpretação da memória como uma reserva natural, sem que ela tivesse necessariamente história, tragédia ou trauma de acontecimentos. Em seu ensaio L 'art mnémonique, explica como a criação parte da invisibilidade do modelo e se pauta sistematicamente na memória. Baudelaire explica que todos os verdadeiros e bons desenhistas trabalham a partir da imagem inscrita no cérebro e não a partir da natureza. Explica que os desenhos de Raphael e de Watteau contêm notas minuciosas, mas são apenas notas, para realizar um desenho definitivo, o modelo passa a ser mais um estorvo do que um elemento para dar segurança ao artista.

Il arrive même que des hommes tels que Daumier et M G., accoutomés des longtemps à exercer leur mémoire et à la remplir d 'images, trouvent devant le modele et la multiplicité de détai!s qu 'i! comporte leur faculté principale troublée et comme paralysée. (BAUDELAlRE, 1971, p. 896)

O escritor acreditava que o desenhista que não era capaz de suspender a percepção visual para entregar-se à cegueira momentânea e aos olhos da memória corria o risco de ficar cego pelo simples medo de perder a vista, ou seja, os modelos concretos.

Os artistas, para Baudelaire, em sua maiorIa estão presos neste "entrelugar". Um espaço onde sofrem pela necessidade de tudo ver e nada esquecer e precisam confiar na memória como capacidade de absorver vivamente a cor geral do que veem. O importante para o artista é ter o sentimento de que realizou a forma perfeita através principalmente das suas memória e imaginação, fruto da afetividade e do amor. E essa memória é aquela que vai englobar o momento presente com a rapidez absoluta de apenas um piscar de olhos, mas também uma memória que irá absorver a síntese, os fantasmas, os medos do artista (medo de ver e depois não poder ver mais). Então, existe a memória responsável pela evocação ou pela ressurreição das lembranças. É a que é capaz de investir no papel em branco, na parede, na tela, aquela que pode usar o lápis, os pincéis, as mãos para começar a criação. E há também o medo de qualquer artista de ao criar muito rápido deixar escapar o fantasma que acompanha toda criação. É comum, então, que ele queira se apropriar de vários meios de expressão para não deixar que "as ordens do espírito sejam alteradas pela hesitação das mãos".

Ou seja, o que Baudelaire defende é que a execução ideal viria também das ordens do inconsciente. Quando relaciona a origem do desenho à memória, o poeta faz também um ato de memória. Ato que podemos encontrar em sua obra quando escreveu o poema Les aveugles, integrado na segunda edição de Fleurs du mal. Muito pouco se descobriu sobre que fontes Baudelaire pesquisou para escrever este poema:
 

Contemple-Ies, mon âme; ils sont vraiment affreux!
Pareils aux manequins; vaguement ridicules;
Terribles, singuliers comme les somnambules;
Dardant on ne sait ou leurs globes ténébreux

Leurs yeux, d' ou la divine étincelle est partie,

 

Comme s 'ils regardaient au loin, restent levés
Au ciel; on ne les voit jamais vers les pavés
Pencher rêveusement leur tête appesantie.

IIs traversent ainsi le noir illimité


Ce frere du silence étemel. O cité,
Pendant qu 'autour de nous tu chantes, ris et bleugues,
Eprise du plaisir jusqu 'à I' atrocité, Vois!


Je me trafne aussi! mais, plus que'eux hébété
Je dis: que cherchent-ils au Ciel, tous ces aveugles?
                                     (BAUDELAlRE, 1975, p. 92)
 

Entretanto, uma parte da crítica acredita que a origem do poema está no quadro Parabole des aveugles, de Bruegel o Velho. Mas o poema apareceu pela primeira vez publicado numa revista, em 1860, e o original do quadro estava no Museu de Nápoles, uma cópia só seria adquirida pelo Louvre em 1893.
 

A Parábola dos Cegos - Pieter Bruegel, 1568 [Parábola de Cristo segundo São Mateus 15:14: “Se um cego conduzir a outro cego, ambos cairão no fosso.”]
A Parábola dos Cegos - Pieter Bruegel - o Velho, 1568
 

É possível que o quadro tenha sido uma das inspirações do poeta: o encontro pode ter acontecido numa viagem, por exemplo. Os seis cegos que compõem o quadro de Bruegel realmente andam como sonâmbulos: em fila indiana, usando seus bastões ou o ombro daquele que está adiante, guiam-se uns aos outros. O primeiro caiu em um barranco, o segundo já o acompanha, e essa queda antecipa o que acontecerá aos outros. Era normal que grupos de cegos maltrapilhos andassem pelas ruas mendigando dinheiro ou ajuda naquela época, o pintor os representou sem a menor compaixão. A mesma que encontramos no poema de Baudelaire quando usa de maneira surpreendente os adjetivos "assustadores", "ridículos", "terríveis" e "sonâmbulos" para designar os cegos.

Não estaria o poeta apontando para o medo que ele e que nós leitores temos dessas pessoas, que com os olhos vacilantes buscam alguma luz num ponto no céu?

A riqueza de detalhes com que Bruegel pintou este quadro tem a exatidão de um médico. É possível diagnosticar o tipo de cegueira que cada um desses homens sofre. O terceiro cego da esquerda para a direita padece de leucemia na cómea; o que está logo à frente dele, de catarata negra; o cego que está caindo não tem olhos, devem tê-los tirado para castigá-lo ou ele pode tê-los perdido em alguma briga. Sem dúvida, todos são assustadores, mas não necessariamente todos olham para o céu, principalmente no sentido que esse olhar aparece no poema. Uma outra parte da crítica literária francesa acredita que esse "olhar voltado para o céu" encontra sua origem pelo menos em ideia no conto La fenêtre du coin, que está nos Contes posthumes, do alemão Ernest Theodor Hoffmann, cuja tradução foi publicada no francês em 1856.
 

Blind - Rupert Lees
Blind - Rupert Lees

Hoffmann propõe uma interpretação da cegueira mais psicológica e filosófica: o olhar para cima denuncia no cego um olho interior que busca a luz eterna. O cerne dessa questão está num pequeno diálogo dentro do conto quando o personagem principal explica que uma das coisas mais marcantes que observa num cego quando não tem nada em seu rosto que denuncie que carrega a enfermidade é a maneira de "virar o rosto para o alto". Um gesto comum aos cegos que parece um esforço de encontrar alguma claridade dentro da "noite" que os envolve. O primo do personagem então responde:

Le cousin - Rien ne m ' émeut autant que voir ainsi un aveugle qui, la tête en I' air, paraft regarder dans le lointain. Le crépúscule de la vie a disparu pour le mallheureux; mais son oei! intérieur cherche à percevoir déjà I' étemelle lumiere qui luit dans l'autre monde, plein de consolations, d'espérances et de béatitudes. (HOFFMANN, 1856, p. 303)

Tanto Baudelaire como Hoffmann observam que os cegos olham em direção ao céu. E provavelmente pelos mesmos motivos: porque são capazes de encontrar nessa visão interior um outro mundo. Os cegos olham sempre para o céu (em minúscula) provavelmente porque creem no Céu (com maiúscula) esta distinção está lá no poema: na terceira estrofe do segundo verso e na última estrofe do poema, curiosamente a única que possui a palavra "cegos".

Mas o poema ainda esconde mais uma coisa: não é apenas um texto sobre cegos, mas um poema sobre o próprio Baudelaire. Os cegos que parecem ser o assunto do texto na verdade representam nele um papel de um dos termos de comparação. Do outro lado está o escritor. E dentro desse poema os primeiros são trabalhados mais longamente em detrimento do segundo: os dez primeiros versos são consagrados aos cegos. No entanto, tudo faz parte de um plano de Baudelaire de despertar a surpresa no leitor, de esconder dele que o poema fala de si mesmo. A interpretação filosófica da atitude física dos cegos, olhar para o céu porque acreditam na força que virá dele, permite a Baudelaire não só se reconhecer neles como se sentir mais desamparado, perdido e finalmente mais cego que seus personagens. Se o poeta pode ver fisicamente a luz do céu, não tem a mesma sorte de, como eles, acreditar no Céu.

O soneto fala, na verdade, da solidão, da confusão e da angústia de um escritor que gostaria, mas que não pode acreditar. Um pouco depois de escrever o poema, Baudelaire enviaria uma carta à sua mãe onde colocaria em melhores termos sua forma de pensar. Nela, ele dizia que tinha vontade de crer, embora não conseguisse, num ser superior e invisível que se interessasse por seu destino pessoal. Ele diria de uma maneira delicada, simples e direta para sua mãe o que falou de forma velada ao leitor nesse poema. É uma confissão. Uma confissão que concentra características paradoxais: ao mesmo tempo impudica e discreta, violenta e velada. Uma prova de confiança ao leitor.

Les aveugles é o poema de um autor que acreditava na memória. E onde Baudelaire foi encontrar os modelos de sua cegueira? Em quadros, gravuras, outros livros ou até nas ruas de Paris. A postura dos cegos, a sensação de que olham para o "nada" ou para o "céu" e principalmente o medo que nos causam por fazerem parte de algo desconhecido para nós estão neste poema. Baudelaire dizia que não era necessário que o modelo estivesse na frente do artista para que ele pudesse criar: o caráter imaginativo e mnemônico deveria estar presente entre uma piscada de olho e outra. O mais importante é que o artista nunca deixasse de criar pelo medo de ficar cego. Para enfrentar a tela em branco, o papel, os pincéis e o lápis, era necessário enfrentar essa cegueira inicial, esta escuridão disforme, sentir medo e trazer este fantasma, da cegueira e do esquecimento, para o plano da criação.


2. Escritores cegos

Na Grécia Antiga existiam apenas três personagens que eram capazes de professar a verdade pelo simples fato de ter qualidades que os distinguiam: o rei da justiça, o adivinho e o aedo (ou poeta). Graças ao poder da memória, o poeta era capaz de ter acesso ao invisível e enunciar "o que foi, o que é e o que será".

Não é apenas a Memória, deusa Mnemosune, esposa de Zeus, mas suas filhas as Musas que auxiliam o poeta. Há uma relação que se transforma e se enriquece entre o poeta e as musas: elas o inspiram a dizer a verdade, a contar os feitos heroicos dos homens, a trazer o passado para o presente através da palavra. Em llíada, por exemplo, as musas sabem de tudo e é graças a elas que Homero, mesmo cego, pode atuar completamente em um e outro campo:

"Instruit par les muses, il chante aujourd'hui pour Ulysse et demain pour un autre ce qui se déroule sous son regard aveugle comme s 'il était présent à ce temps de la guerre de Troie." (DETIENNE, 2006, p. 19).

Hesíodo, por exemplo, escrevia algumas vezes na primeira pessoa, outras, na terceira. Existe um autor do canto que é ao mesmo tempo profeta e poeta, muitas vezes são as musas que assumem algumas modalidades do discurso, por isso, as vozes e os narradores podem mudar. Evocada pelo poeta no princípio de cada canto, a musa deve ajudá-lo a se lembrar dos acontecimentos do passado. Homero começa sua Odisseia chamando-a:

"Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito/ peregrinou, dês que esfez as muralhas de Troia;/ muitas cidades dos homens viajou, conheceu seus costumes, (...) (HOMERO, 2000, p. 28).

A palavra do poeta é solidária com duas noções complementares: a de memória e a de musa. Mas o que significa musa? Mousa significa a palavra cantada e ritmada e também uma maneira de trazer de volta a memória, deusa maior e mãe das musas.

Dentro da teogonia existe uma série de explicações sobre a quantidade e o nascimento das musas. Quando elas estão ligadas à palavra cantada e, portanto, ao poeta, têm um significado dentro da teogonia. Clio é a que conota a glória (kleos) dos grandes feitos que o poeta será responsável por transmitir através da palavra às gerações futuras; Tália é responsável pela festa (thallein), condição social essencial para a criação do poeta; Melpomêne e Terpsícore trazem consigo todas as imagens da música e da dança, lembrando que em geral o poeta canta os acontecimentos acompanhado da lira. Outras, entre elas Calíope, da qual já falamos quando contamos a história de Orfeu, e Polímnia, são as responsáveis pela diversidade das palavras e pela voz potente que dá vida aos poemas. Marcel Detienne lembra que no antigo santuário elas são apenas três e se chamam Melete, Mneme e Aoide. Cada uma traz um aspecto essencial da função poética. Melete designa a disciplina fundamental para o aprendizado de um aedo: concentração, atenção e exercício mental. Mneme denomina a função psicológica que ajuda a recitar e improvisar. Aoide é o produto: o canto épico, o poema fruto da articulação entre Melete e Mneme.
 

Busto de Homero - II sec aC
Busto de Homero - II sec aC

Ora, sabemos que um dos principais poetas da Antiguidade foi Homero. No entanto, menos conhecido que ele talvez porque seus escritos não tenham chegado até nós foi Tamiris. Toda a obra de Tamiris se perdeu com o tempo e a mitologia conta que ele se vangloriou de ser o melhor poeta e cantor, e por isso as musas quebraram sua lira e tiraram sua visão. O próprio Homero conta a história do aedo Demódoco de quem as musas tiraram a "luz dos olhos" para dar em troca a arte do "doce cantar". Ainda hoje não se sabe ao certo se Homero realmente existiu, cerca de sete cidades disputam a sua nacionalidade. Muitos estudiosos acreditam que não houve apenas um poeta, mas vários que foram ajudando a criar os textos e histórias que hoje acreditamos pertencer a apenas um homem. A primeira suspeita de que o autor não seria único é a de que fala constantemente de seus sentimentos nos poemas, mas não coloca nenhuma referência sobre sua identidade nas obras. A única unanimidade na história de Homero é de que o poeta seria cego. Embora, segundo Oscar Wilde, sua poesia fosse extremamente visual.
 

Cerâmica ática: a cegueira de Thamyris - 430 aC [Thamyris gabara-se que era o maior música que alguma vez vivera, mesmo superior às Musas, pelo que elas o cegaram  e fizeram-no esquecer a sua arte.]
A cegueira de Thamyris - cerâmica ática, 430 aC


O facto de ser cego no período em que Homero cantou as epopeias não era um problema: através da sua memória o poeta podia evocar os acontecimentos a partir de uma visão inteiramente pessoal e entrar em contato com um outro mundo. Para isso podia abrir mão de seus olhos fisicos. Sua memória lhe permitia "decifrar o invisível", segundo Marcel Detienne. A memória era o suporte material da palavra cantada, mas também tinha a função psicológica de sustentar a técnica de fórmulas usada pelo poeta. Concretamente era isso, mas também tinha a potência que emprestava ao verbo poético o seu estatuto de palavra mágico religiosa. A verdade é que a palavra cantada uma vez pronunciada, com todo o suporte fantástico que tinha, dava ao poeta o dom da vidência.

É claro que existe o caráter mágico de um homem que é capaz de lembrase da história dos deuses e também dos homens e seus feitos notáveis. Mas existe também o lado prático de que toda a civilização grega do século XII a.C. ao IX a.C. foi fundada não sob a escrita, mas nas tradições orais. Então, fica explicado em grande parte o caráter religioso da memória e o culto que os poetas prestavam a ela. Uma civilização oral exige um desenvolvimento bastante preciso de técnicas de memorização, a poesia de Homero era cheia delas. Por trás da tão falada "inspiração poética" existia um pano de fundo da memória, e uma das técnicas mais usadas era a dos catálogos. Os catálogos eram um número de histórias referentes a algum acontecimento que permaneciam guardadas na cabeça do poeta e que ele consultava e usava quando necessitava de uma delas para sua narrativa.

Havia um catálogo dos melhores guerreiros, um de todos os cavalos conhecidos e um catálogo de armas gregas e troianas que Homero usou em grande parte de sua llíada.

Tradicionalmente, o poeta tem uma dupla função: deve celebrar os deuses e cantar os feitos humanos. Ele é imbuído das forças divinas, escolhido pelos deuses, acompanhado da inspiração das musas e do poder da memória ele é capaz de emprestar sua voz para lembrar a valentia dos homens. Tudo o que ele conta poderá, então, entrar para Verdade (Aletheia) e para a Memória coletiva. O poeta ganha principalmente através das musas um status de soberania: ele decide quase como um árbitro supremo pelo seu canto quanto tempo vai durar a lembrança de um feito e se aquele homem merece essa lembrança ou não. É o simples poder da voz que dá a ele o mérito de louvar uma realidade ou um ser, ele decide o valor de um guerreiro.

"Ce sont les maítres de la Louange, les servants des Muses qui décident e la valeur d' um guerrier; ce sont eux qui lui accordent ou lui refusent la Mémoire". (DETIENNE, 2006, pp. 74-75).

A partir daí a palavra poética está no centro de dois polos: a censura e o louvor. No meio está o poeta como árbitro supremo, decidindo quais os homens que serão glorificados, quais aqueles que cairão num esquecimento tenebroso. Em algumas culturas a censura pode ser uma crítica positiva, mas aqui particularmente ela funciona como uma ausência, o que não é louvor. Uma vez que um homem não é cantado em suas façanhas, perde-se na noite, irmã de Lethe, estará entregue ao silêncio e ao esquecimento. E, se a imortalidade das conquistas de um homem é dada pela permanência através dos tempos, o silêncio e o esquecimento são a potência da morte. Enquanto a memória e as palavras são sinônimo de vida. Toda a existência de um guerreiro se equilibra entre esses dois polos e é o mestre em louvor, o poeta, que decide se um homem ficará escondido sob o véu da obscuridade.

Se na Grécia Antiga os deuses subtraíam a visão do poeta e em troca lhe davam o dom da palavra e da memória, na civilização cristã e monoteísta a cegueira era um desígnio de Deus. O poeta poderia aceitá-la como um dom ou uma perda, mas em troca continuaria usando sua palavra para criar e, muitas vezes, para fazer eco da palavra divina. Já discutimos aqui que John Milton teve toda a sua obra fortemente marcada pelo caráter puritano. A primeira ideia de Milton sobre sua própria cegueira era a de que fora um castigo de Deus por ter cansado sua vista escrevendo folhetos em defesa do Parlamento a partir da execução do rei Carlos. Mesmo entendendo a deficiência como expiação, o poeta nunca se queixou da cegueira, encarou-a também como uma escolha voluntária pela defesa da própria liberdade.
 

Milton dita o poema Paradise Lost - Eugene Delacroix, 1826
Milton dita o "Paradise Lost" às filhas - Eugene Delacroix, 1826


Em seu poema On his blindness, de maneIra extremamente pessoal, descreve algumas ideias essenciais sobre os motivos de sua cegueira e outras que estarão presentes no resto de sua obra.

When I consider how my light is spent
Ere half my days in the dark world and wide, And that one talent which is death to hide
Lodged with me useless, though my soul more bent
To serve therewith my Maker, and presente My true account, lest He retuming chide, "Doth God exact day-labour, light denied? " I fondly ask.
But Patience to prevent
That murmur soon replies, "God doth not need
Either man 's work or his own gifis. Who best
Bear his mild yoke, they serve him best : his state
Is kingly: thousands at his bidding speed, And post o' er land and ocean without rest;
They also serve who only stand and wait"
(MILTON, 2004, p. 95)

o poema apresenta uma forma bipartida como se fosse um diálogo entre ele e Deus. Nos versos quatro, dez e onze, ele fala de sua fé e sua aceitação como forma de fazer um serviço passivo para Deus. A confiança na escolha de Deus para sua vida, de que Ele deu os verdadeiros dons e presentes que o poeta necessitava para criar está nos versos seis e sete. A ideia de realizar coisas e de trabalhar em função dessa nova realidade da cegueira está no verso cinco. A cegueira como um impedimento inicial à sua criação literária está nos versos três e quatro. E, finalmente, a cegueira como uma crise vital que leva a conceitualizações de caráter religioso notadamente aparecendo no verso sete.

A cegueira é encarada como mal referente a alguma falta cometida. O poema todo tem um tom de contida melancolia e aceitação intelectual, embora não exista aceitação emocional. Milton lamenta a impossibilidade de escrever, de materializar a sua criação literária e poder usar o seu talento único, que imagina que tenha morri do. Mas o poeta busca o consolo em Deus e com a segurança de que a sua perda de visão corresponde a razões divinas consegue suportá-la com uma resignação esperançosa. A atitude de Milton é de passividade: diante da dificuldade se detém, espera e não pede nada.

Em seu soneto To Mr Cyriack Skinner - Upon his blindness, Milton apresenta os efeitos da cegueira sobre o eu e a relação conflituosa deste com o mundo. Milton reconhece que sente falta do mundo que perdeu: das cidades, da lua, das estrelas.

"Bereft of light, their seeing have forgot;
Nor to their idle orbs doth sight appear
Of sun, or moon, or star, throughout the year,
Or man, or woman. Yet largue not"
     (MILTON, 2004, p. 100).

Mas nenhuma dessas privações o fizeram perder a fé em Deus e deixar de continuar sua nobre tarefa: a defesa da liberdade, palavra que aparece em maiúscula no texto: "In Liberty's defense, my noble task".

Milton aqui já está certo de que pode suportar as dificuldades de seu estado de cegueira e manifesta o desejo de continuar escrevendo, enfrentando a nova adversidade com fortaleza de espírito. Mesmo cego, o poeta acredita que o seu saber pode conduzi-lo como um guia pela máscara vã do mundo.

"This thought might lead me though the world's vain masque
Content through blind, had I no better guide."
(MILTON, 2004, p. 100).

Mesmo tendo como único guia sua cegueira, Milton está contente e confiante, o que muda um pouco o parâmetro em relação a On his blindness.

Aceitando sua nova "condição", John Milton vai utilizá-la para concretizar um sonho que permaneceu esquecido por conta de sua desgastante atividade política: o de seguir a sua carreira de poeta e escrever um poema épico. Milton retoma, então, àquela voz poderosa do aedo que conta uma história e determina a memória ou esquecimento dos homens. A princípio ele faria um poema baseado na valentia dos cavalheiros do rei Arthur, no entanto prefere realizar algo maior: uma mea culpa por seus pecados explicando em O paraíso perdido o maior pecado dos homens, o Pecado Original. Como o primeiro homem e a primeira mulher perdem o Paraíso por pura desobediência a Deus. Para criar, o poeta atuou à maneira dos antigos aedos. Passava a maior parte de seu tempo sozinho e compunha os versos de memória. Borges explica em sua conferência sobre La Ceguera [ver Jorge Luís Borges e a Cegueira] que Milton "podia tener cuarenta o cincuenta endecasílabos blancos en la memoria e luego los dictava a quienes venían a visitarlo." (BORGES in La ceguera,2001,155)

Em abundam as metáforas VIsuaIS costuradas a partir da ideia de "escuridão visível". Afinal esta é a função fundamental do poeta: decifrar o invisível, e isso pode ser feito apenas com a memória, sem que haja a ajuda dos olhos externos, na escuridão, na cegueira. Milton conta uma história de gênese da Bíblia, mas não se furta de colocar-se como voz narradora e essencial, assim como Homero em seus textos. A intervenção é clara. Como O Paraíso Perdido é também um pedido de desculpas por sua própria conduta, é justo que mescle comentários sobre a sua condição e de como se sente capaz da "vidência interior" apesar da cegueira. Se ele perdeu os olhos externos, é para que os internos possam despertar para uma outra visão, mais luminosa. Como os primeiros aedos, pede também ajuda das musas para começar o Canto lIl, em que terá que encarar a luz divina. É nesse canto que Cristo se oferece em sacrificio para salvar o homem, a visão do céu é negada ao poeta, mas ele por meio das musas pode supor o que é invisível para qualquer humano:

O tumulto do Caos, a noite eterna.
Aventurei-me a profundar nas sombras
Pela celeste Musa doutrinado:
Co'o mesmo auxílio subo aos campos do éter,
Custosa e rara empresa entre os humanos.

Já livro hoje a ti volvo, e já me anima
De sua essência o sacrossanto influxo;
Mas tu não entras mais nestes meus olhos:
Por invencível sufusão tapados
Rolam ansiosos com baldado anelo
Procurando teus raios penetrantes,
E nem sequer lhes acham vislumbre!
                   (MILTON, 1994, p. 101)


No entanto, mesmo depois de O paraíso perdido, Milton ainda encontra fôlego para escrever mais dois livros: Paraíso recuperado e Samson Agonistes [ver Jorge Luís Borges e a Cegueira] , ambos de 1671. Para Jorge Luis Borges, Samson Agonistes foi uma profecia do próprio Milton, que anotava de vez em quando quais os temas que gostaria de desenvolver na escrita, e entre eles havia o de Sansão. Milton via no destino de Sansão algo parecido com o dele. Sansão depois de empreender uma série de investidas individuais contra os filisteus foi traído por Dalila, teve os olhos arrancados e terminou condenado a mover o moinho da prisão, trabalho dado apenas aos escravos. Quando Cromwell morreu e foi chegado o momento da restauração, Milton foi preso e ditou grande parte de O paraíso perdido em uma cela. Finalmente, assim como Sansão, foi perseguido e quase condenado à morte, não precisaram arrancar-lhe os olhos, já tinha ficado cego na prisão. Entretanto, o rei Carlos II, filho do rei decapitado, teve piedade de Milton e muitos outros e não assinou as sentenças de morte.
 

.Samson at the Mill - Frederic Leighton, 1881
Samson at the Mill - Frederic Leighton, 1881


Quando Milton escreveu Samson Agonistes, queria que fosse uma tragédia grega em forma de verso. Toda a ação do texto ocorre no último dia de Sansão.

"The circumscription of time gherein the whole Drama begins and ends, is according to antient rule, and best example, within the space of 24 hours". (MILTON, 2006, p. IV).

Como se pareciam os dois: Sansão que havia sido um homem tão forte estava fmalmente vencido, estava cego. No entanto, mais à frente, já com os cabelos crescidos, Sansão é exposto em uma festa no templo de Dagon, derruba as colunas que sustentam a construção e termina morrendo junto com seus inimigos. No poema de Milton fica bem clara a soma de desgraças que vão se acumulando na vida de Sansão:

"Eyeless in Gaza at the Mill with slaves,
Himself in bonds under Philistian yoke"
(MILTON, 2006, p. 5).

Triste, perdido, Sansão se sente abandonado por Deus, ele era um dos juízes de Israel chamados para liderar os judeus em Canaã contra a invasão dos filisteus. Seria esse o destino que Deus reservara para ele?

'Or benefit revealed to Abraham 's race.
Why was my breeding ordered and prescribed
As of a person separate to God.
Designed for great exploits, If i must die
Betrayed, captived, and body my eyes put out
       (MILTON, 2006)


Será que Milton tinha a mesma sensação de abandono? Isso nunca saberemos. No entanto, é sintomático que esse seja seu último poema. Prova de que nunca deixou de pensar na sua condição de poeta e criador cego.

O poeta florentino Dante Alighieri sofrera graves problemas de visão e, por conta disso, se tomara devoto de Santa Luzia, que vai aparecer em A Divina Comédia como a metáfora máxima da iluminação: externa e interna. Ainda que o poeta não tenha ficado cego, depois desse período de aflição, o poema sobeja em metáforas visuais e é de uma precisão arquitetônica nas descrições de cada um dos ambientes. O que toma a estrutura de cada livro parte de um grande e fantasioso edificio. O Inferno é caracterizado por quatro círculos concêntricos, no meio está Lúcifer e a partir dele, ou se afastando dele, os pecadores divididos por suas transgressões baseadas na doutrina aristotélica: incontinência, violência, fraude e traição. No fim do qual estão as pessoas que esperam no vesnDulo ou no Limbo porque não foram batizadas. O Purgatório tem a forma de uma imensa montanha que surge no mar e que é dividida em terraços e vai se afinando até chegar ao plano do Paraíso Terrestre. A primeira parte dessa escalada é uma antessala reservada para as almas que se arrependeram tardiamente e estão esperando ser admitidas pela Porta de São Pedro. Depois, seguem-se sete círculos correspondentes aos pecados capitais em que as almas praticantes ficarão purgando até serem admitidas no Paraíso. São eles, por ordem de aproximação à graça celeste:

I- Orgulhosos, II- Invejosos, III - Iracundos, IV - Preguiçosos, V - Avaros e pródigos, VI - Gulosos e VII - Luxuriosos.

De acordo com a cosmologia herdada de Aristóteles e Ptolomeu, a Terra é considerada um globo fixo e imóvel em tomo do qual se organizam todos os outros corpos celestes. A arquitetura de Dante para o Paraíso obedece, a princípio, a mesma disposição: para além do céu de estrelas fixas há um (concêntrico a este) que é o mais veloz e que por isso não contém matéria alguma, chama-se o "Primum Mobile", ou céu cristalino. É ele que comanda os movimentos dos oito céus inferiores que, aos poucos, vão se aproximando da Terra, e são respectivamente os céus de estrelas fixas, de Saturno, de Júpiter, de Marte, do Sol, de Vênus, de Mercúrio e da Lua.

Acima dos céus está o Empíreo imóvel onde se localiza a Rosa Mística, glorificação dos beatos. No ponto mais alto do Empíreo, nove círculos angélicos, concêntricos, giram em tomo de Deus, neles não há qualquer humano, apenas anjos criados por Deus que correspondem à classificação de perfeição.

É impressionante as fortes imagens visuais que a descrição de Dante desperta no leitor. Vários desenhistas e pintores puderam representar esse esquema de camadas, montanhas e círculos concêntricos milimetricamente raciocinados com as formas de pecado, expiação, purgas e graças tão sistematicamente ordenadas. O fato é que a criação tão detalhadamente realizada pelo poeta dá a ele, voltando à audaciosa leitura agnóstica, o papel de um demiurgo: um criador particular de um ou mais mundos. Nessa criação, visionária e particular que ele alenta em plena Idade Média existem algumas especificidades.

Cabe a ele colocar no Limbo almas como Homero, Horácio, Ovídio, Lucano e o próprio amigo inseparável, Virgílio, por não terem sido batizados, embora sejam almas virtuosas que se distinguem da turba e vivam aí dentro de um nobre Castelo. Encerra no Inferno o casal de amantes Paolo e Francesca, contemporâneos dele, os cunhados adúlteros que foram surpreendidos e mortos pelo marido traído. O casal cometeu o pecado da luxúria. E, entre tantos outros infratores, Paolo e Francesca recebem uma visita especial do poeta, que pede para conversar com eles. O amor, veremos, é um dos principais guias de Dante na Comédia e interessa a ele saber os motivos pelos quais o casal está no Inferno.

"(...) Amor, que a amado algum amar perdoa,
tomou-me, pelo seu querer, tão forte,
que como vês ainda me agrilhoa.
 

Amor nos conduziu a uma só morte;
Caína terá quem deliu nosso alento".
Co' estas palavras resumiu sua sorte.
 (DANTE in Inferno, Canto V, 106 a 111, 2007,p.53)


O interesse do poeta é genuíno: vê naquele amor impossível a mesma intensidade do que sente pela sua Beatriz, a mulher pela qual atravessará esses mundos desconhecidos. De uma certa maneira Dante inveja o casal luxurioso, eles não se arrependem porque não querem se separar e, embora vivam no Inferno, estão juntos sob uma certa forma de eternidade.

Em seu próprio mundo, Dante divide as graças ou estabelece os castigos.

Há quem diga que o poeta escreveu A Divina Comédia para vingar-se dos inimigos e premiar os amigos. Nada mais falso já que o próprio Virgílio, seu maior interlocutor de sabedoria, não habita qualquer dos céus próximos ao Empíreo.

Mas vale dizer que essa foi a sua maneira de através de uma visão particular estruturar e compreender um pouco da inexplicável Justiça divina. Todo o poema é escrito em primeira pessoa. E aí reside a coragem do poeta: colocar-se na aventura e não apenas como mero espectador, porque escreve também sobre seus próprios sentimentos. Ou seja:

"El dictamen de Dios no siempre coincide con el sentimento de Dante" (BORGES in "La divina comedia" - Siete Noches, 2001, p. 25).

Ao ver o sofrimento dos dois - Francesca que conta a história, e Paolo, que chorava seu amargor -, Dante chega a desmaiar de pena e sofrimento e só desperta no terceiro círculo, relativo ao pecado da gula.

Colocando sobre penitência os outros personagens vivos ou mortos que existiram ou não, Dante coloca-se também sob avaliação. Como Milton, começa a sua epopeia colocando também o leitor, e ele junto, no meio do caminho e perdido em uma "selva escura". O poeta estava, então, com trinta e cinco anos e, portanto, no meio de sua vida, já que a Bíblia aconselhava a idade dos sessenta aos homens prudentes. Ao mesmo tempo considerava que a sociedade e ele próprio haviam chegado ao máximo de extravio de suas virtudes. Depois de uma noite de angústia, ele parece escapar desta selva, mas se depara com três feras: a onça, que representa a incontinência, o leão, que simboliza a violência, e a loba, que significa a fraude. Não poderia sair do jugo desses três poderes, três maiores pecados do homem, se não fosse Virgílio a convidá-lo para fazer uma de suas maiores aventuras: um passeio, ainda vivo, pelos mundos divinos.

Grande audácia a do poeta: imaginar que pode ver esses lugares que outros homens apenas adivinham. Como ele, um humano prosaico, aventurava-se ao trabalho de descrever o que se passava na esfera mística? Dante sabia que estava cruzando uma linha de proibição. E isso fica claro, segundo Borges, quando penaliza Ulisses aos duros limites do oitavo círculo do Inferno. O mais virtuoso dos heróis gregos ficou próximo do fogo eterno por ter cometido igualmente o pecado da audácia. Ulisses está nesse círculo que pertence aos "maus conselheiros" porque, já no final de sua vida, tentou convencer uns poucos companheiros a realizar uma nova viagem: que os levaria a conhecer o mundo.

Soberba esta de Ulisses, que não ficou satisfeito com a maior viagem de sua vida, aquela que empreendeu até Ítaca. Soberba maior esta de Dante: de em vida mortal ousar visitar o mundo divino. Como previsão contra a ira deste Deus um Deus incompreensível, filicida, o mesmo do Velho Testamento e do Livro de Jáh -, Dante já impõe a si o próprio castigo, pela pena que escolhe para o herói. Ulisses está aí como o espelho do poeta. Mas para mirá-lo de frente, para se dar conta do próprio destino, Dante precisa de um guia. Como homem comum, o autor precisa de alguém que afaste os medos, que seja corajoso para descer "ao cego mundo": tão escuro e nebuloso que, mesmo fixando o olhar, é impossível ver algo. Virgílio é poeta e mentor: foi o homem em quem Dante se inspirou para escrever e, ao mesmo tempo, o profeta do cristianismo.

Tu és meu mestre, tu és meu autor,
Foi só de ti que eu procurei colher
O belo estilo que me deu louvor
(DANTE, in Inferno, Canto I, 85 a 87, 2007, p. 28)

o interessante no texto é que o poeta se coloca no lugar de um cego. Não sabe que caminhos virão e, até que tenha certeza ou que tenha encontrado o que procura, pedirá a ajuda dos guias. Guias que não o levarão a abrir os olhos carnais, esses ele já os tem bem abertos, mas que serão responsáveis pela abertura do olho interior e espiritual. O interessante é que a abertura desse olho não depende apenas da fé, da crença e da obediência à vontade divina como acontece em Milton. Para enxergar a luz celestial, é preciso que ele tenha três iluminações: uma vinda da razão; outra, do amor; e uma terceira, do misticismo.

É Virgílio que irá conduzi-lo pelo Inferno e pelo Purgatório. Mas Virgílio não atravessa para o céu. A interdição é clara: ele não é batizado, não está dentro das leis divinas, e por isso lhe é negado o Paraíso. Mas a função do poeta latino na Comédia não é apenas essa: ele é a voz do conhecimento e da razão, duas inegáveis qualidades humanas que podem "endireitar" um caminho, mas nunca completá-lo. Nesse esquema dantesco a companhia de Virgílio garante as quatro virtudes cardeais: força, justiça, prudência e temperança. Virtudes que contribuem para formar um homem reto, mas não o livram do temido pecado original.

A chave para ascender ao céu está em outra ferramenta: o amor. Para dar o primeiro passo em direção à luz divina e para ter coragem de vê-la, é preciso entregar-se nas mãos de quem se ama. É singular como Dante, em meio a tantos santos, beatos, interdições e pecados, venha buscar justo no amor, um sentimento tão humano, o poder para encontrar com o divino. E não é um amor qualquer, mas um amor de toda uma vida - se pensarmos que o autor conheceu Beatriz com apenas nove anos de idade. É este sentimento de segurança, de "aninhamento", de tranquilidade de um primeiro amor. Então, sim, existem a vontade e o castigo de um Deus desconforme e poderoso de um lado. Mas por outro lado há o poder humano do amor. É só o sentimento que Dante nutre por Beatriz que o faz aceitar seguir em frente, atravessar o rio Letes, responsável pelo esquecimento, depois de ter visto tanto sofrimento. A Beatriz que aqui surge é beatificada, assexuada, endeusada, mas o que toca o pensamento do nosso viajante não é isso: é algum nervo no meio do cérebro que escapa à razão professada por Virgílio. A Beatriz que Dante vê na sua última passagem pelo Purgatório é aquela que ele perdeu lá na sua segunda infância, aos nove anos de idade. É uma personagem ligada à sua memória afetiva.

Sobre o véu níveo cingida de oliva, dama me apareceu num verde manto sobre as vestes da cor chama viva; e o espírito meu que, desde tanto tempo, não fora mais por sua presença arrebatado, já a tremer de espanto, sem ter pela visão sua conhecença mas, por efeito dela partiu, de antigo amor senti força imensa (DANTE in Purgatório, Canto XXX, 31 a 39, 2007, p. 196)

Era a hora de Dante abandonar a razão e se deixar levar pelo espírito. Por isso, simbolicamente, o amigo Virgílio fica para trás. Entra em cena Beatriz, para iniciar o trabalho de arrependimento e dar a Dante os meios de entrar em contato com as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Estranhamente, os espíritos bem-aventurados do Paraíso, o destino final da viagem, são aqueles que não têm na memória a recordação do pecado, por isso não sofrem. Estaria Dante novamente desafiando o poder de interpretação do leitor? Ou apenas dizendo que, para ser feliz ou estar próximo de Deus, o homem precisa renunciar às suas próprias lembranças? Independentemente do que queria o autor ao escrever essas palavras, uma coisa era certa: Dante estava lá, no corpo do texto. Era o homem que precisou renunciar ao amor terreno de Beatriz, porque cedo ela morre e, na narrativa, ascende até a Rosa dos Beatos. Uma vez lá, nossa heroína chega ao Olimpo e se despe do aspecto aparentemente humano que havia encontrado para conduzir Dante. Ele agora está de novo à deriva. E o medo do abandono poderia ser maior se Dante não tivesse a segurança de estar a meio caminho do Paraíso. O Paraíso, como já explicamos, funciona como um espelho invertido do Inferno e tem nove céus, concêntricos. Beatriz conduz o poeta até o último céu. Para passar ao Empíreo, onde Deus habita, Dante precisa agora da ajuda de mais um último guia: São Bernardo.

A escolha de São Bemardo é por ele ser um santo místico. O viajante precisa abandonar o amor terreno (de Beatriz) e escolher um outro: o amor a Deus. No meio, um mistério, incompreensível ao ser humano: a Santíssima Trindade. E Dante vai descrever ao leitor esse mistério usando a mudança de campo visual. É a visão, "o mais espiritual dos sentidos", que sofrerá uma adequação para enxergar o que não pode ser explicado, o que a um homem comum não é dado ver.

Qual súbito corisco que suplante o sentido da vista tão que priva de sua função o olho mais possante, assim me confundiu uma luz viva, que deixou-me cingido de tal véu que me vedou toda função visiva 

"Sempre, o Senhor que comanda este Céu
acolhe os novos com tal saudação,
pra adequar-lhes a vista ao lume seu."
(DANTE in Paraíso, Canto XXX, 46 a 54, 2007, pp. 210-211)

O que o poeta sugere? Que a luz viva, a luz divina é tão intensa e poderosa que é capaz de vedar os olhos carnais. É preciso ao leitor e ao poeta mudarem a concepção do que veem e como veem para "adequar" à visão o lume do Senhor. O poema inteiro é um caminho do pecado até a virtude, mas é também uma trajetória que sai das trevas e vai até a luz. Trevas representadas pelo pecado, pela distância de Deus, pelo excesso de razão, que vão, pouco a pouco, se desvelando, se abrindo até que o poeta possa abrir os olhos e se dar conta de que com estes ainda não pode ver a luz divina. Essa só será dada a ver aos iniciados, àqueles que pretendem mudar o seu ponto de vista, aos que querem aguçar um outro olho: o olho interior.


3. Os Tirésias: a relação entre cegueira e sabedoria

Estranhamente todos os poetas da Antiguidade terminavam cegos. Há historiadores que dizem que era uma maneira de fechar os olhos fisicos para voltá-los para o interior. Dar mais atenção à palavra, ao que era escutado, e não às delícias visuais do mundo, que causavam deslumbramento e desconcentravam. Eram homens que desenvolviam a mente, que necessitavam de música interior para poder criar as rimas, as cadências e inseri-las nas dificeis fórmulas mnemônicas que permitiriam que cada uma daquelas histórias fosse memorizada e contada uma e outra vez por outros poetas e bardos. Matar a própria visão para dar vida longa e eterna aos feitos dos heróis. Uma outra hipótese bem mais concreta era a de que os poetas eram cegos por puro ciúme dos reis: não queriam que esses homens se deslocassem para outros reinados e cantassem as glórias dos oponentes.

"Fonction qui sombre avec la souveraineté, fonction dont Hésiode a déjà perdu le souvenir. Quand Pindale écrit: 'Chaque souverain a son poete qui composse pour lui I 'hymme harmonieux, récompense de sa vertu '." (DETIENNE, 2006, p. 71).

Os poetas tinham o poder da voz, eram sinônimo de sorte, decidiam pelo destino de glória ou esquecimento dos homens.

Os grandes adivinhos também tinham, como o rei e o poeta, o mesmo poder da palavra mágico-religiosa, proveniente da verdade e da memória. Toda grande cidade possuía um oráculo que a protegia. Depois da queda do sistema palacial que acabou colocando em dúvida a soberania como função absoluta, alguns soberanos ainda guardavam o privilégio de ser mestres de justiça. O rei mestre de justiça é também um rei adivinho, e as afinidades do poder político com as formas divinas começam a se tomar mais frequentes. Em Atenas e em Tebas as casas reais guardam com muito cuidado seus oráculos, que passam a ter um papel importante na decisão dos negócios. Por exemplo, na Atenas do século VI acreditava-se que a deusa Atenas ainda vivia na capela dentro do palácio com a tarefa de aconselhar o rei e influenciar no destino da cidade. Mesmo quando o rei já teria transferido definitivamente o poder para funcionários oficiais, continuou forte a tradição de recorrer à consulta oracular como um privilégio herdado dos reis, então alguns magistrados faziam isso.

Segundo Marcel Detienne, um dos oráculos mais conhecidos era o do grande arquiteto Trofônio, que ficava na cidade de Lebadeia, na Beócia. O oráculo ficava numa tumba que pertencera a um rei da Beócia e era defendido por uma colmeia. A consulta ao oráculo era feita de maneira muito semelhante ao que imaginavam ser a descida para Hades. A pessoa que se aconselhava em geral voltava abatida e melancólica. A longa preparação consistia em uns dias de retiro com severas restrições alimentares. Era necessário oferecer uma ovelha em sacrificio, e as entranhas do animal é que diriam a Trofônio se deveria dispor dos serviços do oráculo para o visitante ou não. Uma vez passado o teste, o interessado era levado ao rio próximo, o Hecyna, e banhava-se com a ajuda de duas crianças de treze anos que depois o ungiam com óleo. Mais uma vez aparece aqui a água como elemento que purifica e que prepara o homem fisica e psicologicamente para o confronto com a palavra divina. Logo depois ele é conduzido ao oráculo, mas antes de entrar nele se defronta com duas fontes: uma do esquecimento (Lethe) e outra da memória (Mnemosune).

A partir daí, pelo equilíbrio das duas, é permitido ao visitante passar para o outro mundo. Bebendo da primeira fonte, ele vai esquecer de toda a sua vida humana e, provando da segunda, ele poderá se lembrar de tudo o que viu e aprendeu no outro mundo. É importante notar o papel metafórico da boca oracular: o "consultante" é colocado dentro dela começando pelos pés e joelhos e o resto do corpo, que é puxado com violência para o interior. É como se essa palavra, essa verdade doesse. Não havia uma pessoa que não saísse da experiência com um ar sonâmbulo e melancólico. Depois de um tempo de inconsciência após a consulta, o visitante era sentado no "trono da memória" e poderia aí contar aos sacerdotes tudo o que soube através do oráculo até sair do estado de coma. Interessante notar que a primeira reação de quem voltava da experiência é um estado de terror que só é atenuado quando recobra a consciência através da faculdade do riso: como se a parte mais inocente tivesse sido acessada com a primeira memória afetiva. Esse tipo de consulta oracular, segundo Detienne, tem muitos pontos em comum com os rituais de iniciação:

(...) les tabous alimentaires, la périodde de claustration préparent à pénétrer dans un monde étranger à celui des humains; l'éclat de rire terminal, au contraire, marque la rupture avec le périodede tension et le retour à la vie quotidienne apres le voyage. (DETIENNE, 2006, p. 107)

É uma viagem ao mundo sobrenatural e, de alguma forma invisível, que pede os mesmos princípios para visitar o outro lado: beber da água do esquecimento, que causa uma morte pelo menos transitória para o mundo humano para que se possa acessar um outro mundo. No entanto, em seguida é preciso tomar a água da fonte da memória para abrir os olhos interiores e absorver todo o conhecimento e a sabedoria adquiridos no mundo que o visitante esteve de passagem por alguns instantes.

Ao sair da experiência oracular o iniciado está dotado de uma memória especial e passa a ter o dom da vidência, ou seja, toma-se bastante próximo dos poetas e adivinhos. O processo de purificação associado ao despertar da vidência tem a sua origem na história do oráculo de Delfos. A grande aventura de ApoIo, não é à toa que ele é o deus do saber, da luz e da poesia, foi matar o dragão Píton para tomar-se o senhor do Oráculo de Delfos. Essa mudança de soberania é sintomática: o dragão representava as potências telúricas - a terra, a escuridão - e ApoIo, a luz, o conhecimento e a sabedoria. O elemento demoníaco, fantasmático que implicava o conhecimento do oculto é exorcizado por ApoIo e em lugar dele surge uma nova trilha em que é possível aos humanos ter acesso ao invisível.

Depois que o dragão é morto, suas cinzas são colocadas dentro de um sarcófago que será enterrado no centro de Delfos. A pele do dragão será usada então para forrar a trípode onde se sentará a sacerdotisa responsável por responder às consultas do oráculo, a Pitonisa. Guardar a pele do dragão e enterrá-lo no local indica que ApoIo nunca perdeu o respeito ou abandonou as práticas ctônicas. O deus, então, vai permanecer um ano depois dessa vitória no vale de Temple, ano em que vai purificar-se do crime, portanto não é raro que os rituais que precedessem a consulta de um oráculo exigissem a purificação. ApoIo é um deus purificador, que ajuda a retirar uma mancha (que macula o corpo e a alma) provocada por um algum crime grave. Depois dele, o tratamento dado aos homicidas se tomou mais humano: em vez da pena de morte, eles passaram a sofrer exílio, julgamento ou submeterem-se a grandes ritos catárticos.

Isso é apenas uma mostra simbólica das mudanças de hábitos na vida religiosa, política e social em Delfos e várias outras cidades. É deixar para trás a obscuridade e pensar na luz através do equilíbrio: o caráter pacificador de ApoIo traz uma nova maneira de conciliar as velhas tensões entre as cidades gregas. Aos poucos, ele vai mudando uma série de velhos hábitos, eliminando a barbárie. Uma das grandes conquistas do deus foi desaparecer com a antiga lei da vingança pessoal baseada nos critérios de laços de sangue e instaurar os termos da justiça através dos tribunais. Era substituir a autoctonia do antigo Oráculo de Geia, terra mãe e primordial, pelo Templo Délfico, que pregava a sabedoria, o meio-termo, a moderação e o equilíbrio.

Em síntese, temos de um lado Geia e o dragão Píton; de outro, o omphalós, ApoIo e sua Pitonisa. (...) ApoIo, como seu culto, implantou-se no monte Pamaso, porque substituiu a mântica ctônica, por incubação, pela mântica por inspiração, embora se deva observar que se trata tão-somente da substituição de um interior por outro interior: do interior da Terra pelo interior do homem (...) (BRANDÃO, 1987, pp. 96-97).

ApoIo propunha uma nova maneIra de adivinhação: a experiência de quem passava por um oráculo devia ser de inspiração. A mesma inspiração dada pelas musas ao poeta. A grande lição apolínea é a famosa fórmula do oráculo de Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". Antes a sabedoria, a ciência e a inteligência, o despertar do olhar interior, para depois ser capaz da vidência.

ApoIo era deus belíssimo e, entre suas aventuras amorosas, se apaixonou por Cassandra, uma linda jovem troiana. Pediu então que a filha de Príamo se entregasse a ele e em troca concedeu-lhe o dom da profecia, da manteia. Uma vez que recebeu o dom de profetizar, Cassandra se sentiu poderosa e decidiu não satisfazer os desejos do deus. Como ApoIo não podia voltar atrás e tirar-lhe o novo predicado, encarregou-se de tirar a credibilidade de Cassandra, que passou a prever os acontecimentos, mas sem ter a atenção de ninguém. ApoIo podia gerar adivinhos e também possuía uma atração especial por eles. Ele amou muito Manto, uma profetiza que lhe deu um filho também adivinho, Mapso, neto de Tirésias. É sobre este último que nos debruçaremos agora.
 

Manto and Tiresias - Henry Singleton, 1792
Manto and Tiresias - Henry Singleton, 1792
 

Já comentamos no início deste trabalho o papel dos demiurgos: deuses menores que com o esforço de uma visão deficiente lograram criar mundos. Todos esses escritores são demiurgos. São homens que com criatividade e imaginação construíram mundos de palavra apesar de suas cegueiras. Se para Samael a cegueira foi a imagem da ignorância e incapacidade que acabou gerando o sofrimento humano, estes escritores têm a sua cegueira relacionada à sapiência.

Homero, Milton, Dante e contemporaneamente Borges e João Cabral de MeIo Neto são Tirésias. Homens que precisaram abandonar o mundo das aparências para seguir enxergando através da visão interior. Uma visão alimentada pela sabedoria e pela leitura.

O dom da previsão e sapiência de presente, passado e futuro não era privilégio apenas de deuses, pitonisas ou oráculos, poucos homens possuíam essa característica que lhes fora dada evidentemente pela intervenção dos deuses.

Tirésias, filho do espartano Éveres com a ninfa Cariclo (filha de ApoIo), foi o adivinho de papel mais importante no ciclo tébano. Teve uma forte influência não só nos destinos pessoais - previu as desventuras e os crimes causados por Édipo como nos destinos coletivos - quando houve a expedição dos Epígonos, aconselhou os tebanos a negociar um armistício e a deixar secretamente a cidade durante a noite para evitar um massacre geral. O adivinho era muito respeitado pelo povo de Tebas, várias decisões importantes políticas eram tomadas com base nas suas previsões. Muitas de seus presságios eram fruto da interpretação que fazia do voo e do canto dos pássaros, e o resultado nem sempre era bem recebido.

Tirésias era um portador de Aletheia, mas a verdade, embora garantisse sua permanência no mundo, nem sempre era um bom presságio para quem recebia. O rei Édipo em sua angústia em procurar o assassino de Laio consulta o adivinho e mostra a ele a responsabilidade de sua tarefa: esclarecer e salvar a cidade.

Nesta emergência, então, Tirésias, não nos faltes, não nos recuses a revelação dos pássaros
nem os outros recursos de teus vaticínios; salva a cidade agora, salva-te a ti mesmo, salva-me a mim também, afasta de nós todos a maldição que ainda emana do rei morto! (SÓFOCLES, 2006, p. 32)

Uma vez sabendo o que irá acontecer, Tirésias teme a ira do rei e por isso se esquiva de dizer o que sabe: Édipo já matou o seu pai e dorme com sua mãe, ele é o assassino que a cidade de Tebas procura.

Em seu diálogo com Édipo, Tirésias coloca que é fonte de grande sapiência e que, no entanto, não pode aproveitá-la. O dom de conhecer passado e futuro dos homens não dá a ele a possibilidade de intervir em seus destinos. Por outro lado, o seu dom é acompanhado de uma deficiência: Tirésias é cego. A raiz de sua cegueira encontra-se em duas histórias. A primeira delas conta que Tirésias, ainda jovem, ao escalar o monte Citerón, viu duas serpentes copularem e, ao tentar separá-las, feriu a fêmea. Por conta de sua atitude o rapaz imediatamente se transformou em mulher. Sete anos depois, passou pelo mesmo local e viu novamente duas serpentes na mesma situação, entretanto, ao tentar apartá-las, desta vez eliminou o macho, fato que o fez recuperar o sexo masculino.

Por conta desse evento, Tirésias se tomou um conhecedor profundo dos dois sexos. O acontecimento tomou-o célebre e acabou sendo chamado a opinar numa acalorada discussão entre Zeus e Hera, que não chegavam a um termo sobre quem teria mais prazer, o homem ou a mulher. Tirésias sem hesitar respondeu que, se o gozo do amor pudesse ser dividido em dez partes, a mulher teria nove, enquanto ao homem restaria apenas uma. Imediatamente suscitou a ira de Hera. A deusa tomou o veredicto como uma aftrmação da superioridade masculina e cegou Tirésias. É sabido que algo que um deus deseja a um mortal - seja uma graça ou uma maldição - não pode ser retirado. Portanto, Zeus, compadecido da triste condição do convidado, decidiu compensá-lo com o dom da profecia e o privilégio de sobreviver a sete gerações humanas. Por isso, diante da fúria de Édipo, não se preocupa ou teme, sabe que irá viver muitos anos mais que ele e que não apenas verá, mas participará de tudo o que previu.

A segunda versão da história sobre a perda da visão de Tirésias conta que Cariclo, mãe do menino, era uma das companheiras preferidas de Atena, que a deixava sempre subir em seu carro. Um dia em que as duas divindades se banhavam na fonte de Hipocrene, no monte Hélicon, Tirésias, que andava pelas proximidades caçando, veio até a fonte e acabou vendo Atena nua. Imediatamente ele perde a visão porque viu o que não deveria ser visto. É o que Calímaco canta em seu Hino: não se pode contemplar os deuses sem que eles permitam. A imprudência de Tirésias está no fato de ver o corpo nu de uma deusa virgem que não se olhava sequer no espelho das águas.

Há também aí uma potência especial: a do olhar de Atenas. Um simples olhar faz com que ela tire a visão de Tirésias. Em vários escritos de Calímaco e também de Homero, a descrição do olhar de Atena é de um azul penetrante. No V Canto da llíada, ela dissipa a bruma dos olhos dos heróis para que, em tempo de batalha, possam discemir os deuses dos homens, o mesmo discemimento que Tirésias não teve e que o fez perder a visão. Mas esse olhar de Atena, compreensivo, próximo dos mortais, iluminador nas grandes batalhas, é também o olhar de luz negra e de poder paralisante de uma Górgona. A deusa paralisa a faculdade de ver do rapaz: num segundo a visão luminosa de um corpo nu, em seguida as trevas.

Mieux: les poetes la nomment volontiers Gorgopis eomme si, en son oei! pers, métonyme de la Gorgone, s 'était réfugiée tout la puissanee maléfique de la eréature ethonienne qu'elle a vouéejadis à la morto Perçant, l'oeil d'Athéna(...); mais perçant aussi est I' oei! de Pallas pour le mortel qui à I 'improviste I' aperçoit. Et pourtant que eraignait done Athéna du regard de Tirésias? Si, dénudant son corps, la déesse a renoncé à la protection de l'égide, la Gorgonne ne veille-t-elle pas dans l'oeil de Pallas? (LAROUX:, 1989, p. 263)

Como Cariclo censura a crueldade da arruga, principalmente porque Tirésias não cometera a imprudência propositalmente, Atena decide, para consolá-la dotar o rapaz de alguns dons. O castigo (de tomar-se cego) já é esperado como parte da violação de normas. Ao se dar conta de que Tirésias viu a deusa desnuda, Cariclo exclama: "Ai, meu menino infortunado! Tu viste o colo e os flancos de Atena; o que significa que não voltarás a rever o sol". Entre as compensações de Atena estão um bastão de cerejeira brava que dará a ele a possibilidade de orientar-se como se tivesse uma vista perfeita, uma total purificação dos ouvidos, a ponto de Tirésias poder compreender a linguagem das aves, e o dom da profecia.

Imaginemos a confusão desse homem, entregue ao capricho dos deuses, que, de uma hora para outra, perde seu mundo material e ganha um estranho presente: o dom da previsão e da quase eternidade. Junto com eles a palavra final e a verdade:

"Já vejo aproximar-se quem vai descobri-lo! Estão trazendo em nossa direção o vate/ guiado pelos deuses, único entre os homens/ que traz em sua mente a lúcida verdade", dizia Corifeu (SÓFOCLES, 2006, p. 31).

Era isso um dom ou um fardo? Sua clarividência lhe daria o peso de antecipar destinos, de impedir guerras, de arruinar vidas, de conhecer as catástrofes do mundo. Ao mesmo tempo, saberia que estaria vivo, por sete vidas, para assistir a todos os desastres e venturas que já tinha previsto. Levou esse peso para sua tumba: com a guerra de Tebas seu destino permaneceu um mistério. O que a tradição revela é que Atena deu a Tirésias mais um dom: depois de sua morte, ele manteve suas faculdades intelectuais e proféticas e seguiu fazendo prognósticos de dentro de Hades.

"Pour qu'i! ne songe plus à cette vue (à cette vision ?) qu'il a perdue, la déesse, en signe de compensation donna à Tirésias l'ouie suraigue du devin et, dans la nuit de l'Hades, la lucidité parmi les ombres." (LAROUX, 1989, p. 270)

De que adiantaria ao pobre homem tanta luz interior em pleno Inferno?

Terrível destino, o de Tirésias. Ser a memória dos outros. Nunca descansar dos problemas alheios. Ver tudo, saber tudo. Funcionar como oráculo e esperança dos tebanos. E, tudo isso, por ter ficado cego. "Sou livre; trago em mim a impávida verdade!", grita ele a Édipo. Ganhou o poder da verdade. Um poder tão insuportável que Édipo, num ato de desespero, sem querer enxergar a verdade de sua vida, arrancou os próprios olhos. Todos os escritores que aqui falamos, com o advento da cegueira, voltaram o olhar para dentro. Seguiram vasculhando seus livros na memória, consultando a biblioteca interior, buscando a verdade, colocando-a em palavras através do ditado.

Borges em seu poema The Unending Rose já adivinhava a sua própria função oracular:

Soy ciego y nada sé, pero preveo
que son más los caminhos.
Cada cosa es infinitas cosas.
Eres música, firmamentos, palácios, rios, ángeles rosa profunda, ilimitada, íntima,
que el Seiíor mostrará a mis ojos muertos
(BORGES, 2007, p. 141)

O que nos queria dizer o escritor? Uma das interpretações possíveis é: a cegueira é implacável, mas me deu em troca o dom da previsão. E "pré-ver" é: ver antes, ver além. Tirar sentido do que os "olhos mortos" não podem ver.

FIM

 

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excerto (cap. 7) de:

'Lendo e escrevendo no escuro: leitores e autores cegos e as suas estratégias para manter a relação com o texto'
Autora: Denise Ventura Schittine
Tese de Doutoramento - PUC Rio Janeiro, 2011
Fonte: www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/.../0710498_2011_cap_7.pdf

 


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24.Fev.2013
Publicado por MJA