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Massagistas cegos em Clermont Ferrand, fotografia
do início do séc. XX
Quem viajou pelo Oriente terá certamente notado a
facilidade com que pode receber uma massagem, o equivalente a encontrar em
Portugal um estabelecimento que
sirva um café espresso. Esquina sim, esquina não. A comparação amplia-se: tal
como em Portugal o café fica ao preço
da chuva, também na Ásia uma sessão de massagem de uma hora tem um custo
irrisório. Eu aproveito.
Seria interessante encontrar uma explicação cultural
para a implantação de máquinas de café espresso em Portugal, importadas desde
Itália a partir dos anos cinquenta
e com tanto sucesso de consumo que hoje os portugueses identificam um dos
símbolos da identidade nacional na
chávena de um espresso importado. Eu vou arriscar uma:
a razão da popularidade do espresso em Portugal tem que
ver com a principal característica dos portugueses, a inveja.
Cada português sabe que a sua situação pessoal ou profissional está em qualquer
momento a ser alvo da cobiça de
outro português que, se puder, diz mal e tenta apropriar-se dela. A
autodefesa do brio inato e das conquistas do mérito
próprio está-nos no sangue, marca-nos a existência. Uma
boa dose de cafeína torna a vigilância mais perspicaz.
Seria então interessante encontrar uma explicação
cultural para a profusão de massagens pelo Oriente fora.
Também aqui arrisco uma: porque se mantiveram vivas.
Todas as civilizações desenvolveram técnicas homeopáticas de aliviar os males do corpo, e a pressão bem doseada
de uma mão sobre um nervo ou um músculo é uma das
mais imediatas, mais eficazes. Desde a Suécia à Polinésia,
passando pelo antigo Egipto, pela América pré-colombiana
e por todos os hammams do Mediterrâneo, as massagens
acompanharam a evolução da Humanidade. Mas a fobia das
várias religiões dogmáticas e moralistas contra o corpo em
geral, e contra os contactos corporais entre os convertidos,
em particular, castrou esta técnica maravilhosa e tão humana em grande parte do globo. Salvou-se o Oriente, quer
das religiões dogmáticas e moralistas, quer da castração das
massagens.
Chovia torrencialmente quando entrei na cooperativa
de massagistas cegos, um estabelecimento em que tinha
reparado nessa manhã quando andava a fotografar o centro histórico. Estava
anunciado na cor das nuvens, no tipo de cinzento-azulado, que se iriam acumulando ao longo da
tarde e que com o arrefecimento nocturno soltariam uma
carga de água misturada com relâmpagos e trovões. O aguaceiro nada tinha que ver com a minha decisão de procurar
uma massagem na cooperativa. Entrei com um sentido de
missão. Talvez nem precisasse de uma massagem, mas precisava de ser ajudado a ajudar. Queria contribuir para a incipiente economia manual desta cooperativa, de certa forma
solidarizar-me com as vidas que ali se encerravam. Mas havia também um lado supersticioso que me empurrava para
a cooperativa como se me dirigisse a um compromisso há
muito assumido e regularmente reconfirmado: essa espécie
de presságio de boa sorte que é olhar de frente os nossos
temores mais obscuros e enraizados para que eles não se
concretizem. A cegueira é a minha obsessão. Toda a gente tem a sua, uma secreta angústia com a eventualidade
de uma tragédia pessoal que lhe esteja reservada pelo destino. Esclerose múltipla, um cancro fulminante ou umas
gotinhas de urina de rato na lata de cerveja emborcada no
quiosque da praia. Eu tenho pesadelos recorrentes em que
perco a vista completa.
Há uma boa razão para isso: já perdi metade dela. Foi
no mar, no meio das ondas, embrulhado com a prancha de
surf, lacerado pela quilha lateral. O globo ocular esquerdo
desviado da sua cavidade como um empecilho para que o
estilete de fibra de vidro e resina seccionasse certeiro o nervo óptico. Metade do que me estava reservado pelo destino
nos meus pesadelos aconteceu realmente. Eu tinha dezassete anos. É uma memória antiga que se renova todos
os
dias, uma ferida da juventude que se mantém em carne
viva.
Entrei na cooperativa tentando olhar de frente os olhos
cegos do primeiro massagista disponível que se levantasse
ao ouvir o rumor dos meus passos. Foi um velhote. Não
consegui. Desviei incomodado a direcção do meu olhar
enquanto um lento arrepio rastejou pela minha coluna vertebral acima. Fiquei a pensar se ele teria sabido isso, intuído isso. Havia um cheiro não agradável no ambiente, uma
espécie de bafio doce e acomodado nos anos, pensei que
talvez fosse pela deficiente limpeza e lavagem que os cegos tentariam executar, sem assistência de visuais, às toalhas,
aos lençóis, ao espaço da cooperativa e a eles próprios.
O silêncio era uma comunicação. Cada ruído tinha
um significado gritante para os que não viam. Estou convencido de que no momento em que entrei o velhote que
se levantou sem me ver soube mais de mim, pelo menos a
um nível somático, do que qualquer meu parente amado
ou amigo próximo jamais souberam. Deitei-me. Os massagistas trocavam entre eles
sons guturais leves e contidos
que substituíam qualquer consulta a uma enciclopédia quiroprática: o gemido do
cliente na cama três foi comentado por todos os massagistas com suspiros,
pigarros e risinhos que eram mais claros do que uma ficha médica de várias
páginas. E o estado lastimoso das minhas costas deve ter
permitido horas de conversa nos dias que se seguiram.
Não precisei de explicar o meu historial clínico - a
melhor parte da minha vida dedicada à pior actividade que
o ser humano pode oferecer à sua coluna vertebral: a viagem. Ele sabia. O cego chinês atacou com uma massagem
calosa e pragmática o corpo ocidental. Algumas vértebras
estalaram. Gemi de dor, baixinho. O volume de som do
meu gemido, no entanto, foi suficiente para que todos os
colegas do meu massagista ficassem a saber quem eu era.
Por segundos, pensei no tremendo Relatório sobre Cegos,
o pavoroso livro de Ernesto Sabato, tentei recuperá-lo da
memória: há quantos anos o tinha lido? Sobre o que é que
tratava? Uma conspiração de uma seita malévola e subterrânea de cegos contra a sociedade em geral e, no caso concreto da narrativa, a perseguição paranóica ao único cidadão que parece ter-se apercebido deste
complot, o narrador
Fernando Olmos. Um dos incipits mais eficazes da literatura: «Quando começou tudo isto que vai agora terminar com
o meu assassínio?» Eis o que recordava do livro. Alguém no
canto soltou um risinho, uma careta sonora. Do outro canto veio uma respiração tossida. Comunicavam entre eles.
Seria sobre mim? Um início de pânico atrasou o torpor em
que tentava mergulhar. Acalmei, relaxei.
Os meus pensamentos recuperaram o dia que estava
para trás, as fotografias que tinha conseguido, a formulação
que tinha alcançado sobre o que me interessava como viajante fotógrafo, um conceito simples que excluía muita indecisão, muitas tentativas frustradas nos anos. A conclusão
parecia-me liberatória no sentido de me libertar do peso
dessa indecisão. Poderia perseguir como objectivo, daqui
para a frente, como fotógrafo, apenas os dias solares, iluminados, de contornos nítidos e atmosfera limpa.
Foi então que reparei apavorado na absurda desarmonia entre os meus pensamentos e o lugar onde os estava a
ter. Tinha vindo ajudar uma cooperativa de cegos por superstição, pedir uma massagem como quem toca um amuleto, pagar um serviço
de que efectivamente não necessitava,
esperando apenas ganhar pontos no meu karma cósmico, e,
numa atitude de crueldade suprema, deliciava-me a pensar
no único bem que esta gente jamais poderia alcançar: a luz.
Que lugares guardariam dentro de si os cegos? Não me
perguntava que características guardariam dos lugares, os
cheiros ou as temperaturas do ar ou as diferenças na pressão
atmosférica - e será que teriam eles também essa capacidade de intuir variações na pressao
atmosférica? Saberiam
a altitude a que se encontravam pela forma como o sangue
lhes corria nas veias e o oxigénio diminuía na atmosfera, tal
como nós que vemos nos podemos aperceber dessas variações pelo tipo de luminosidade? O que eu perguntava era
se o cérebro de um cego poderia reconstituir e conservar
imagens sem luz.
Um relâmpago brutal caiu em cima de nós, não exactamente pela cooperativa adentro, mas perto, muito perto. A electricidade foi ao ar, acompanhada por um coro
de interjeições de várias pessoas. Na altura não pensei logo
nisso, mas era óbvio que nenhuma das interjeições saíra da
boca dos massagistas. Claro que não. Apenas os clientes
reagiram ao apagão. A cooperativa, a rua e todo o centro
histórico ficaram na mais absoluta escuridão, uma cortina
de silêncio e expectativa caiu sobre os dois mil metros de
Dali, as actividades económicas congelaram-se no escuro,
o vendedor ambulante de esparguete encostou a bicicleta,
o cozinheiro do restaurante da montra singela ficou com
a concha da sopa imóvel sobre a panela, os pescadores na
margem do lago pararam de remendar as redes, o cicerone
vestido de mandarim deixou cair lentamente o braço que
apontava a um grupo de turistas agora desorientados uma
muralha invisível na noite.
Apenas a cooperativa de massagens se manteve na
normalidade, soltou-se uma careta sonora pelo gemido de
um cliente que teve como resposta um suspiro no canto
oposto da sala, um molhe de toalhas sujas continuou a ser
lavado num alguidar, um frasco de óleo aromático guinchou
ao ser espremido, um par de mãos esfregou-se prestes a começar uma nova vértebra, as minhas costas estalavam à medida que iam sendo percorridas por uma massagem calosa
e pragmática enquanto mais um gemido meu confirmava a
todos os massagistas a actividade à qual eu tinha dedicado
a melhor parte da minha vida.
FIM
NOITE
Gonçalo Cadilhe,
2012
in Um Lugar Dentro de Nós
Edição Clube do Autor
6.Jun.2016
Publicado por
MJA
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