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Aquilino Ribeiro

Cego Tocador de Viela de Roda - Francisco Herrero o Velho, 1640
Dos nove aos onze anos, o José Pais foi moço de cego. Sua mãe, que
estava carregada de filhos e não tinha um palmo de terra onde cair
morta, dera-o por uma malga de feijões para os dois manos da Aldeia
de Nacomba, que andavam no peditório. Aprendeu a moina... e disse. Eram uma gente cainha de todo, dobrados sobre a própria miséria,
tão futres que, tantos dias que passou com eles, nem uma carapuça
lhe compraram. Gémeos e feridos desde nascença de gota serena, iam de povo em povo
cantando e tocando, ele rabeca, ela violão. Armavam nos largos e à
boqueira dos pátios a zanguizarra, e recolhendo o cinco reizinhos
aqui, o coirato acolá, uma côdea nesta porta, duas cebolas naquela,
lá iam acalentando os dias. O José Pais carregava com o bornal e
guiava-os pelos tortuosos caminhos de Cristo, tendo cuidado que não
tropeçassem nas pedras ou metessem os pés nos charcos. Marchavam em
bicha como se fossem engatados: o moço na dianteira, descalço e
roto; o cego, de tabardo de burel, a mão no ombro do moço; a cega,
de vasquinha escarlata, a mão no ombro do irmão e instrumento para
as costas, tal o escudo dum peltasta. No estio esta vida airada não era a pior de todas. Sempre havia que
imolar, pomos e cachos em suspensão dos taludes, o fundo das
caçoilas a varrer pelas malhadas e os restos dos farnéis pelas
romarias. O José Pais, sacudido para fora do regaço materno
superpovoado, como sucede nos ninhos de certas aves quando os filhos
são muitos, tirava o ventre de misérias. A melhor bocada, de resto,
ia ao direito para o fole do gato, que ali era ele, o lazarilho, tão
ágil de garra como ladino de olho. — Que deram em casa da senhora Micas brasileira? — perguntava o
cego. — Duas dentadas de broa tão rijas que só o Diabo as pode tragar. — Deixa ver, menino... O José Pais afundia a mão no taleigo e, como lá houvesse de tudo,
apartando o pão fresco e folhado, arrancava o pedaço mais
bolorento e empedernido. — Já não há caridade! — gemia o velho. Rodando para outra porta, não cessava de rosnar:
— Quanto mais santanários, mais fonas. Se Cristo tornasse a este mundo, morria de larica! Pernoitavam a talhe de mão, umas vezes nos cabanais quentes dos
poviléus, outras vezes, surpreendidos pelo temporal, nas cortes da
serra de mistura com o gado. Altas horas, o José Pais erguia-se do
grabato, muito sorrateiro, e a rastos como a giboia chegava-se às
cabras. Assim que palpava um úbero bem repleto, punha-lhe os beiços
e sugava, sugava até à última gota. Depois desse, outro. Voltava à
cama refarto, a cheirar-se ele próprio a menino de mama, pesadão,
para mergulhar numa soneira de que só acordava aos safanões. Os cegos sabiam trovas de todo o género, umas que faziam rir, outras
chorar. Cantavam o rimance do sapateiro que fora entregar a obra
aos fregueses e à volta apanhara a mulher a cear com um frade, e as
bocas escancaravam-se até às orelhas e as risadas caíam das
queixadas, estrepitosas como espadanas em cima do linho. Mas lá
vinha a história do filho a quem a amiga pediu o coração da mãe, se
queria dormir com ela, e os olhos vidravam-se de lágrimas. O José Pais gostava pouco daquelas cantorias. A voz dos dois cegos,
como se fizesse coro com as órbitas revolcando-se brancas, vazias e
absurdas nas capelas ramelosas, soava a outro mundo. Parecia-lhe
ouvir o acompanhamento dos defuntos no traço da porta dos
cemitérios. Tinha também a plangência dos ralos que cantam de
noite debaixo da terra. Estava morto por despegar. Um dia, o cego apanhou-o enliçado no sono e passou-lhe revista aos
bolsos. No fundo da algibeira das calças, dentro dum trapo,
encontrou-lhe o tesoiro, dinheiro escamoteado moeda a moeda, desde
o primeiro dia. Enquanto o sujeitava contra o solo com a mão
esquerda, com a direita zurziu, zurziu sem dó nem piedade. A cega,
em vez de lhe valer, açulava o algoz: — Mata, mata-me esse ladrão! No mesmo dia abalou. Estava farto da bordoada, daquela macarena
azarenta, dos padre-nossos dos cegos entremeados de pragas: oxalá
que vos caia a casa em cima e vos esborrache a todos! Que ainda hoje
comam lume no inferno! da vida de cão, umas vezes molhado até o
umbigo, outras a estorricar com a soalheira. Pois que a mãe o não
queria em casa — todas as tetas duma porca não chegavam para os
irmãos, cada um de seu pai — foi procurar amo. Ajustou-se na azenha
dum moleiro que tinha fama de mau e ladrão.
FIM
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excerto de
»Salamaleque« (1947)
in Caminhos Errados
Novelas
Aquilino Ribeiro
Obras Completas de Aquilino Ribeiro
Livraria Bertrand,
1970
12.Jun.2014
Publicado por
MJA
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