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Clarice Lispector

Treading Blind - Cecil Collins, 1948
Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da instabilidade
dos outros. Às vezes o que ele dizia despertava de repente nos adultos um olhar
satisfeito e astuto. Satisfeito, por guardarem em segredo o fato de acharem-no
inteligente e não o mimarem; astuto, por participarem mais do que ele próprio
daquilo que ele dissera. Assim, pois, quando era considerado inteligente, tinha
ao mesmo tempo a inquieta sensação de inconsciência: alguma coisa lhe havia
escapado. A chave de sua inteligência também lhe escapava. Pois às vezes,
procurando imitar a si mesmo, dizia coisas que iriam certamente provocar de novo
o rápido movimento no tabuleiro de damas, pois era esta a impressão de mecanismo
automático que ele tinha dos membros de sua família: ao dizer alguma coisa
inteligente, cada adulto olharia rapidamente o outro, com um sorriso claramente
suprimido dos lábios, um sorriso apenas indicado com os olhos, "como nós
sorriríamos agora, se não fôssemos bons educadores" - e, como numa quadrilha de
dança de filme de faroeste, cada um teria de algum modo trocado de par e lugar.
Em suma, eles se entendiam, os membros de sua família; e entendiam-se à sua
custa. Fora de se entenderem à sua custa, desentendiam-se permanentemente, mas
como nova forma de dançar uma quadrilha: mesmo quando se desentendiam, sentia
que eles estavam submissos às regras de um jogo, como se tivessem concordado em
se desentenderem.
Às vezes, pois, ele tentava reproduzir suas próprias frases de sucesso, as que
haviam provocado movimento no tabuleiro de damas. Não era propriamente para
reproduzir o sucesso passado, nem propriamente para provocar o movimento mudo da
família. Mas para tentar apoderar-se da chave de sua "inteligência". Na
tentativa de descoberta de leis e causas, porém, falhava. E, ao repetir uma
frase de sucesso, dessa vez era recebido pela distração dos outros. Com os olhos
pestanejando de curiosidade, no começo de sua miopia, ele se indagava por que
uma vez conseguia mover a família, e outra vez não. Sua inteligência era julgada
pela falta de disciplina alheia? Mais tarde, quando substituiu a instabilidade dos outros pela própria, entrou
por um estado de instabilidade consciente. Quando homem, manteve o hábito de
pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo que franzia o nariz,
o que deslocava os óculos - exprimindo com esse cacoete uma tentativa de
substituir o julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a
própria perplexidade. Mas era um menino com capacidade de estática: sempre fora
capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se transformasse
em outro sentimento. Que a sua própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a
saber, e dava piscadelas que, ao franzirem o nariz, deslocavam os óculos. E que
a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos adivinhando sem nenhuma
desilusão, sua tranquila miopia exigindo lentes cada vez mais fortes. Por estranho que parecesse, foi exatamente por intermédio desse estado de
permanente incerteza e por intermédio da prematura aceitação de que a chave não
está com ninguém - foi através disso tudo que ele foi crescendo normalmente, e
vivendo em serena curiosidade. Paciente e curioso. Um pouco nervoso, diziam,
referindo-se ao tique dos óculos. Mas "nervoso" era o nome que a família estava
dando à instabilidade de julgamento da própria família. Outro nome que a
instabilidade dos adultos lhe dava era o de "bem comportado", de "dócil". Dando
assim um nome não ao que ele era, mas à necessidade variável dos momentos. Uma vez ou outra, na sua extraordinária calma de óculos, acontecia dentro dele
algo brilhante e um pouco convulsivo como uma inspiração. Foi, por exemplo, quando lhe disseram que daí a uma semana ele iria passar um
dia inteiro na casa de uma prima. Essa prima era casada, não tinha filhos e
adorava crianças. "Dia inteiro" incluía almoço, merenda, jantar, e voltar quase
adormecido para casa. E quanto à prima, a prima significava amor extra, com suas
inesperadas vantagens e uma incalculável pressurosidade - e tudo isso daria
margem a que pedidos extraordinários fossem atendidos. Na casa dela, tudo aquilo
que ele era teria por um dia inteiro um valor garantido. Ali o amor, mais
facilmente estável de apenas um dia, não daria oportunidade a instabilidades de
julgamento: durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino. Na semana que precedeu "o dia inteiro", começou por tentar decidir se seria ou
não natural com a prima. Procurava decidir se logo de entrada diria alguma coisa inteligente - o que
resultaria que durante o dia inteiro ele seria julgado como inteligente. Ou se
faria, logo de entrada, algo que ela julgasse "bem comportado", o que faria com
que durante o dia inteiro ele seria o bem comportado. Ter a possibilidade de
escolher o que seria, e pela primeira vez por um longo dia, fazia-o endireitar
os óculos a cada instante. Aos poucos, durante a semana precedente, o círculo de possibilidades foi se
alargando. E, com a capacidade que tinha de suportar a confusão - ele era
minucioso e calmo em relação à confusão - terminou descobrindo que até poderia
arbitrariamente decidir ser por um dia inteiro um palhaço, por exemplo. Ou que
poderia passar esse dia de um modo bem triste, se assim resolvesse. O que o
tranquilizava era saber que a prima, com seu amor sem filhos e sobretudo com a
falta de prática de lidar com crianças, aceitaria o modo que ele decidisse de
como ela o julgaria. Outra coisa que o ajudava era saber que nada do que ele
fosse durante aquele dia iria realmente alterá-lo. Pois prematuramente -
tratava-se de criança precoce - era superior à instabilidade alheia e à própria
instabilidade. De algum modo pairava acima da própria miopia e da dos outros. O
que lhe dava muita liberdade. Às vezes apenas a liberdade de uma incredulidade
tranquila. Mesmo quando se tornou homem, com lentes espessíssimas, nunca chegou
a tomar consciência dessa espécie de superioridade que tinha sobre si mesmo. A semana precedente à visita à prima foi de antecipação contínua. Às vezes seu
estômago se apertava apreensivo: é que naquela casa sem meninos ele estaria
totalmente à mercê do amor sem seleção de uma mulher. "Amor sem seleção"
representava uma estabilidade ameaçadora: seria permanente, e na certa
resultaria num único modo de julgar, e isso era a estabilidade. A estabilidade,
já então, significava para ele um perigo: se os outros errassem no primeiro
passo da estabilidade, o erro se tornaria permanente, sem a vantagem da
instabilidade, que é a de uma correção possível. Outra coisa que o preocupava de antemão era o que faria o dia inteiro na casa da
prima, além de comer e ser amado. Bem, sempre haveria a solução de poder de vez
em quando ir ao banheiro, o que faria o tempo passar mais depressa. Mas, com a
prática de ser amado, já de antemão o constrangia que a prima, uma estranha para
ele, encarasse com infinito carinho as suas idas ao banheiro. De um modo geral o
mecanismo de sua vida se tornara motivo de ternura. Bem, era também verdade que,
quanto a ir ao banheiro, a solução podia ser a de não ir nenhuma vez ao
banheiro. Mas não só seria, durante um dia inteiro, irrealizável como - como ele
não queria ser julgado "um menino que não vai ao banheiro" - isso também não
apresentava vantagem. Sua prima, estabilizada pela permanente vontade de ter
filhos, teria, na não ida ao banheiro, uma pista falsa de grande amor. Durante a semana que precedeu "o dia inteiro", não é que ele sofresse com as
próprias tergiversações. Pois o passo que muitos não chegam a dar ele já havia
dado: aceitara a incerteza, e lidava com os componentes da incerteza com uma
concentração de quem examina através das lentes de um microscópio. À medida que, durante a semana, as inspirações ligeiramente convulsivas se
sucediam, elas foram gradualmente mudando de nível. Abandonou o problema de
decidir que elementos daria à prima para que ela por sua vez lhe desse
temporariamente a certeza de "quem ele era". Abandonou essas cogitações e passou
a previamente querer decidir sobre o cheiro da casa da prima, sobre o tamanho do
pequeno quintal onde brincaria, sobre as gavetas que abriria enquanto ela não
visse. E finalmente entrou no campo da prima propriamente dita. De que modo
devia encarar o amor que a prima tinha por ele? No entanto, negligenciara um detalhe: a prima tinha um dente de ouro, do lado
esquerdo. E foi isso - ao finalmente entrar na casa da prima - foi isso que num só
instante desequilibrou toda a construção antecipada. O resto do dia poderia ter sido chamado de horrível, se o menino tivesse a
tendência de pôr as coisas em termos de horrível ou não horrível. Ou poderia se
chamar de "deslumbrante", se ele fosse daqueles que esperam que as coisas o
sejam ou não. Houve o dente de ouro, com o qual ele não havia contado. Mas, com a segurança
que ele encontrava na ideia de uma imprevisibilidade permanente, tanto que até
usava óculos, não se tornou inseguro pelo fato de encontrar logo de início algo
com que não contara. Em seguida a surpresa do amor da prima. É que o amor da prima não começou por
ser evidente, ao contrário do que ele imaginara. Ela o recebera com uma
naturalidade que inicialmente o insultara, mas logo depois não o insultara mais.
Ela foi logo dizendo que ia arrumar a casa que ele podia ir brincando. O que deu
ao menino, assim de chofre, um dia inteiro vazio e cheio de sol. Lá pelas tantas, limpando os óculos, tentou, embora com certa isenção, o golpe
da inteligência e fez uma observação sobre as plantas do quintal. Pois quando
ele dizia alto uma observação, ele era julgado muito observador. Mas sua fria
observação sobre as plantas recebeu em resposta um "pois é", entre vassouradas
no chão. Então foi ao banheiro onde resolveu que, já que tudo falhara, ele iria
brincar de "não ser julgado": por um dia inteiro ele não seria nada,
simplesmente não seria. E abriu a porta num safanão de liberdade. Mas à medida que o sol subia, a pressão delicada do amor da prima foi se fazendo
sentir. E quando ele se deu conta, era um amado. Na hora do almoço, a comida foi
puro amor errado e estável: sob os olhos ternos da prima, ele se adaptou com
curiosidade ao gosto estranho daquela comida, talvez marca de azeite diferente,
adaptou-se ao amor de uma mulher, amor novo que não parecia com o amor dos
outros adultos: era um amor pedindo realização, pois faltava à prima a gravidez,
que já é em si um amor materno realizado. Mas era um amor sem a prévia gravidez.
Era um amor pedindo, a posteriori, a concepção. Enfim, o amor impossível. O dia inteiro o amor exigindo um passado que redimisse o presente e o futuro. O
dia inteiro, sem uma palavra, ela exigindo dele que ele tivesse nascido no
ventre dela. A prima não queria nada dele, senão isso. Ela queria do menino de
óculos que ela não fosse uma mulher sem filhos. Nesse dia, pois, ele conheceu
uma das raras formas de estabilidade: a estabilidade do desejo irrealizável. A
estabilidade do ideal inatingível. Pela primeira vez, ele, que era um ser votado
à moderação, pela primeira vez sentiu-se atraído pelo imoderado: atração pelo
extremo impossível. Numa palavra, pelo impossível. E pela primeira vez teve
então amor pela paixão. E foi como se a miopia passasse e ele visse claramente o mundo. O relance mais
profundo e simples que teve da espécie de universo em que vivia e onde viveria.
Não um relance de pensamento. Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos, e
a miopia mesmo é que o fizesse enxergar. Talvez tenha sido a partir de então que
pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a confusão aumentava e ele
enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e, sem óculos,
fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.
FIM
Clarice Lispector
nasceu em Tchetchelnik, pequena cidade da Ucrânia, e chegou ao
Brasil aos dois meses de idade, naturalizando-se brasileira posteriormente.
Criou-se em Maceió e Recife, transferindo-se aos doze anos para o Rio de
Janeiro, onde se formou em Direito, trabalhou como jornalista e iniciou sua
carreira literária. Viveu muitos anos no exterior, em função do casamento com um
diplomata brasileiro, teve dois filhos e faleceu em dezembro de 1977, no Rio de
Janeiro.
Felicidade Clandestina teve duas edições em vida da autora, ambas publicadas
pela Editora Sabiá: 1971 e 1975.
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texto integral do conto
'Miopia Progressiva'
Clarice Lispector
in Felicidade Clandestina
contos (1971)
Editora Sabiá
[12.Jan.2016]
Publicado por
MJA
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