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 Sobre a Deficiência Visual


Meus Olhos

Ana Maria Gonçalves

Blind old woman - Sierra Leone, Kono
Blind old woman - Sierra Leone, Kono


Acho que agora devo continuar nossa história, e talvez só tenha contado sobre o Julião para adiar o acontecimento seguinte. Devo confessar que é algo que só tive coragem de considerar depois do casamento dos seus irmãos, como se não pensar afastasse a possibilidade de acontecer, pois eu estava ficando cega. Percebi isso logo depois da morte da sinhazinha, e primeiro atribuí a vista embaçada à falta de prática, a não mais me sentar e escrever todos os dias, como fazia desde a volta a África.
 

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Nos últimos dias antes da volta da Maria Clara, quando eu escrevia uma carta por semana para ela e outra carta a cada dois meses para a Carolina, o problema se agravou, e deixei definitivamente de escrever. Para a Maria Clara eu não precisava mais justificar, porque ela estava em casa, mas disse à Carolina que precisava parar de escrever para poupar os olhos que, de uma hora para outra, começaram a doer bastante.

Queimar é a palavra certa, como se uma brasa tivesse caído dentro deles. Minha sorte foi que acontecia em um olho de cada vez, que logo em seguida ficava muito vermelho, todo ele, para depois a vermelhidão ir se reduzindo ao que se parecia com vários riozinhos de sangue. Nesses dias eu evitava sair do quarto, que deixava sempre fechado para que o menor número de pessoas soubesse o que estava acontecendo. Quando tudo passava e a cor voltava ao normal, eu sentia que enxergava um pouco menos, como se aquela região onde tinham se formado os riozinhos tivesse morrido para sempre.


***

Eu tinha grande dificuldade de enxergar em lugares de muita claridade. A luz fazia com que as coisas perdessem o contorno, como se as cores estivessem gastas e desbotadas, e quase comecei a trocar o dia pela noite. Eu já tinha certeza de que em breve não enxergaria mais nada e me lembrava muito do alfarrabista Albino, de quem o senhor Mongie tinha me falado. Lembra-se dele? Aquele que, mesmo cego, ainda atendia os fregueses, sabendo de memória onde estavam todos os livros. Foi o que tentei fazer, andando pela casa e observando muito bem o lugar de cada coisa, os móveis, os objetos, os espaços e caminhos livres. Antes de ficar completamente cega, eu já conseguia fazer quase tudo de olhos fechados, para desespero da Jacinta, que não sabia direito o que estava acontecendo e me acreditava louca.

Certo dia, o João apareceu em casa com um médico, que tinha ido até lá especialmente para me atender. Um desperdício, pois ele disse exatamente o que eu já sabia, que não havia nada a fazer, receitando apenas um ungüento para aliviar a dor. Ele disse que eu teria outros problemas, nada que eu já não soubesse também, como a bexiga mais solta, a vontade de beber muita água, e que, se eu me machucasse, era possível que os ossos não mais colassem e que o sangue nunca mais parasse de correr. Mas o pior seriam as palpitações do coração e o cansaço, com os quais já estava acostumada. Eu achava que já era a minha hora, que seria tudo como o destino quisesse, e só tinha tristeza por realmente ter acabado a esperança de um dia te ver. Minha cegueira também me deu uma coisa boa, que foi a presença da Jacinta, que disse não ter coragem de me abandonar naquelas condições. Na época, a Geninha ainda estava na Missão, cada vez mais querida e respeitada pelos missionários e pelos moradores das aldeias que visitava, educando e convertendo selvagens.
 

Avó

Ainda pude ver mais ou menos o rosto da minha primeira neta, a quem deram o meu nome, Luísa, nascida menos de um ano após o casamento do João e da Isabel. Mas pouco tempo depois eu já não distinguia a forma de nada, nem feições, apenas borrões, parados ou em movimento, com cores cada vez mais suaves. Conheci a menina quando a levaram até Lagos, para que eu pudesse batizá-la na qualidade de avó e madrinha. Sabendo do problema, o padre Clement aceitou fazer o batizado na minha casa, onde os convidados me pareceram mais curiosos para me verem cega do que para serem apresentados à minha neta.

Devem ter ficado decepcionados, porque eu não tinha saído de perto da Jacinta enquanto ela fazia os preparativos, e no dia sabia exatamente onde estavam os talheres, os enfeites e onde se sentou cada pessoa à mesa. Acabada a festa, também fiz questão de levar cada convidado até a porta ou até o quarto onde dormiria, mostrando tudo de que precisaria. Foi desse jeito que surgiu a dúvida que perdura até hoje em África, se sou mesmo cega, pois quem não sabia, se não me olhasse bem nos olhos embaçados, nunca poderia dizer.

Eu apenas ando apoiada em uma bengala, o que nem significa nada, pois as bengalas são muito comuns em África; conferem nobreza e importância aos que estão autorizados a usá-las. Mas eu, como só ficava dentro de casa, não pedi autorização a ninguém, a rei nenhum, e nunca fui incomodada.

FIM

 

Fascinante história de uma africana idosa, cega e à beira da morte, que viaja da África para o Brasil em busca do filho perdido há décadas. Ao longo da travessia, ela vai contando sua vida, marcada por mortes, estupros, violência e escravidão. Inserido em um contexto histórico importante na formação do povo brasileiro e narrado de uma maneira original e pungente, na qual os fatos históricos estão imersos no cotidiano e na vida dos personagens. É um romance histórico, de leitura voraz, que prende a atenção do leitor da primeira à última página.
'Um Defeito de Cor' (2006), segundo livro da escritora brasileira Ana Maria Gonçalves, conquistou o Prémio 'Casa de las Américas' na categoria literatura brasileira. A obra, inspirada na vida de Luísa Mahin, conta a trajetória de uma menina nascida no Reino do Daomé e capturada como escrava aos 8 anos de idade, até a sua volta à terra natal como mulher livre.
 
Blog do Cleuber: Resenha nº 90 - Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves

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excerto de:
Um Defeito de Cor
Ana Maria Gonçalves
Editora Record
Rio de Janeiro, 2006.


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27.Fev.2017
Publicado por MJA