El mundo del ciego no es la noche que la gente supone.
En todo caso estoy hablando en mi nombre y en nombre de
mi padre y de mi abuela, que murieron ciegos; ciegos, sonrientes y valerosos, como yo también espero morir.
Se heredan muchas cosas (la ceguera, por
ejemplo), pero no se hereda el valor. Sé que fueron valientes.
A velhice (tal é o nome que os
outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa
felicidade. O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma. Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão. Buenos Aires, que antes se espalhava em subúrbios em direção à planície incessante, voltou a ser La Recoleta, o Retiro, as imprecisas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul. Sempre em minha vida foram
demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou os
próprios olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito. Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade. Meus amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há
tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos
livros. Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno. Das gerações dos textos que há na
terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando. Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte convergem os caminhos que me
trouxeram a meu secreto centro. Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias,
ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada ínfimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a
lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas. Agora posso esquecê-las. Chego a meu
centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho. Breve saberei quem sou.
Jorge Luis Borges, Elogio da
sombra
tradução: Carlos Nejar e
Alfredo Jacques;
revisão da tradução: Maria
Carolina de Araújo e Jorge Schwartz).
Fonte:
Projeto Releituras
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UM CEGO
Jorge Luis Borges
1975
Não sei qual é a face que me fita
Quando observo a face de algum espelho;
No seu reflexo espreita-me esse velho
Com ira muda, fatigada, aflita.
Lento na sombra, com as mãos exploro
Meus invisíveis traços. O mais belo
Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo
Que é já de cinza ou é ainda de ouro.
Repito que perdi unicamente
A superfície sempre vã das coisas.
O consolo é de Milton e é valente,
Mas eu penso nas letras e nas rosas,
Penso que se pudesse ver a cara
Saberia quem sou na tarde rara.
tradução de Fernando Pinto do Amaral
in Obras Completas III, 1975-1985, Editorial Teorema, 1998
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O Fazedor
Jorge Luis Borges
1960
Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam
sobre ele, momentâneas e vívidas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada
de estrelas que também eram deuses, a lua, de onde tinha caído um leão, a lisura
do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que
gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra
negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das
mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava podiam abarcar por inteiro
o âmbito da sua alma. Conhecia o terror, mas também a cólera e a coragem, tendo
sido uma vez o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem
outra lei que a do gozo e da indiferença imediata, andou pela terra vária e
olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios.
Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, onde bem
podia haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias que recebeu como
recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa neblina
confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra era
insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava
a ficar cego, gritou; o pudor estóico ainda não fora inventado e Heitor podia
fugir sem deslustre. «Já não verei — percebeu — nem o céu cheio de pavor
mitológico, nem esta cara que os anos transformarão.» Dias e noites passaram
sobre esse desespero na sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem espanto)
as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem
reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o
encarara com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu
à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem
a recordação perdida que reluziu como uma moeda sob a chuva, talvez porque
nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho.
A recordação era assim. Outra criança havia-o insultado e ele fora ter com o
seu pai e tinha-lhe contado a história. Este deixou-o falar como se o não
ouvisse ou compreendesse e despendurou da parede um punhal de bronze, belo e
carregado de poder, que a criança tinha furtivamente cobiçado. Agora segurava-o
nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai
dizia: «Que alguém saiba que és um homem», e havia uma ordem na voz. A noite
cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica,
desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, julgando-se Ájax ou Perseu e povoando de feridas e batalhas a obscuridade salobra. O que
procurava era o preciso sabor daquele momento; não lhe importava o resto: as
afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina ensanguentada.
Outra recordação, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura,
brotou daquela. Uma mulher, a primeira que lhe enviaram os deuses, tinha-o
esperado na sombra de um hipogeu, e ele procurou-a por galerias que eram como
redes de pedra e por declives que se afundavam na sombra. Porque lhe chegavam
essas memórias e porque lhe chegariam elas sem amargura, como uma mera
prefiguração do presente?
Com grave assombro compreendeu. Nessa noite dos seus olhos mortais, onde
agora descia, aguardavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já
adivinhava (já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens
que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que
procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era seu
destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas
coisas, mas não as que sentiu ao descer à última sombra.
Jorge Luis Borges, O Fazedor
Obras Completas Vol.II, Lisboa, Teorema.
Despojaram-no do diverso mundo,
Dos rostos, que são sempre o que eram antes,
Das ruas próximas, hoje distantes,
E do côncavo azul, ontem profundo.
Dos livros guarda apenas
quanto colhe
A memória, essa forma de um olvido
Que formato retém – não o sentido,
E que apenas uns títulos recolhe.
Os desníveis espreitam. Cada passo
Pode bem ser a queda. Sou
eu lento
Prisioneiro de um tempo sonolento
Sem
aurora ou ocaso em seu compasso.
É noite. Ninguém mais. Devo, no verso,
Lavrar o meu insípido universo.
II
Desde noventa e nove, ano
do meu nascimento,
Desde a parreira côncava e do poço profundo,
O tempo minucioso (e que parece um momento)
Me foi tirando as formas visíveis deste mundo.
Os dias e as noites foram limando a figura
Das letras
humanas e dos rostos muito amados;
Em vão interrogaram, meus olhos esgotados,
A estante vã, a biblioteca sem aventura.
O azul e o vermelho
são agora como a névoa
E dua s vozes inúteis. O espelho que miro
É uma coisa cinzenta. No jardim eu aspiro,
Amigos, a obscuridade rosada da treva.
Agora só perduram as formas amarelas
E os pesadelos são tudo
o que a visão revela.
De: El Oro de los Tigres (1972)
in Borges Poeta -
Editora Leviatã, 1992
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A CEGUEIRA
Jorge Luis Borges
1977
[Entre Junho e
Agosto de 1977 Borges
proferiu uma série de sete conferências no
Teatro Coliseo de Buenos Aires, e dedicou a
sétima delas à cegueira). As conferências
foram editadas no livro Siete
Noches.]
“Poetas, como os cegos,
podem ver no escuro”
Jorge Luis Borges
Em 1955, tive a honra de ser nomeado director da Biblioteca Nacional
Argentina. Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca. (Outros pensam nele
como um jardim ou, talvez, um palácio.) Lá estava eu, no meio de 900.000 livros
em vários idiomas. No entanto, quase não conseguia ler-lhes os títulos, as
lombadas. Poder-se-ia dizer que, praticamente, para meus olhos cegos, aqueles
livros estavam em branco, vazios.
Continuo cego de um olho, mas tenho visão parcial no outro, e consigo
distinguir algumas cores. As pessoas pensam que os cegos vivem em total
escuridão, mas o seu mundo não é a noite que as pessoas imaginam. Vivemos num
ambiente impreciso, no qual poucas cores aparecem. O branco desapareceu ou se
transformou em cinzento. No meu caso, ainda existem o amarelo, o azul e o verde.
Eu, que tinha o hábito de dormir em completa escuridão, fiquei durante longo
tempo perturbado por ter de fazê-lo neste mundo tenebroso, esverdeado ou
azulado, o vagamente luminoso nevoeiro no qual os cegos vivem mergulhados.
Assim, uma das cores que os cegos lamentam já não poderem ver é o negro; o
mesmo acontece com o vermelho. Tenho a esperança de que um dia, com os
tratamentos, eu possa enxergá-lo. Essa magnífica cor brilha na poesia e tem
nomes lindos em tantos idiomas: SCHARLACH em alemão, SCARLET em inglês,
ESCARLATA em espanhol, ÉCARLATE em francês.
Como havia perdido o amado mundo das aparências, resolvi inventar outra
coisa; eu criaria o futuro, aquele que vem depois do mundo visível que
desaparecera para mim. Era professor de literatura inglesa na Universidade
Argentina. Que poderia fazer para ensinar essa disciplina, que ultrapassa os
limites da vida do homem e das gerações?
"Tive uma ideia", disse então a uns alunos que haviam acabado de se
bacharelar. "Agora que vocês estão formados, não seria interessante estudar a
língua e a literatura inglesas livres da frivolidade dos exames? Vamos começar
pelo princípio."
Numa manhã de sábado, reunimo-nos no meu escritório e começámos a ler THE
ANGLO-SAXON READER e THE ANGLO-SAXON CHRONICLE. Cada palavra se destacava como
se estivesse gravada, como se fosse um talismã. É devido a isso que os versos em
língua estrangeira nos parecem em relevo, de um modo que não acontece na própria
língua, pois ouvimos e vemos cada palavra, pensamos na sua beleza, força
ou simplesmente estranheza.
Quase nos embriagamos com o som de duas palavras: o nome de Londres,
LUNDENBURH, LONDRESBURGO, e o de Roma, ROMEBURH, ROMABURGO. Essa sensação ainda
se tornou mais intensa quando nos demos conta de que a luz de Roma havia
atingido aquelas ilhas boreais perdidas. Penso que fomos para a rua gritando
LUNDENBURH, ROMEBURH.
Eu havia substituído o mundo visível pelo audível da linguagem
anglo-saxónica. Daí passei para outro ainda, mais rico e mais antigo, o da
literatura escandinava; passei para as EDDAS e as sagas. Mais tarde escrevi um
ENSAIO SOBRE A ANTIGA LITERATURA GERMÂNICA. Criei muitos poemas baseados nos
temas dessa literatura, mas sobretudo o que me encantava era ela própria.
Não permiti que a cegueira me derrotasse. Além disso, meu editor me trouxe
excelentes notícias: se eu lhe entregasse 30 poemas por ano, ele os publicaria
em forma de livro. Trinta poemas. Para isso era preciso disciplina,
especialmente quando é necessário ditar cada linha. Ao mesmo tempo, porém, eu
tinha suficiente liberdade, porque num ano surgem 30 oportunidades para escrever
um poema. A cegueira não foi para mim uma desgraça total. Deveria ser
considerada como um modo de viver, nem por isso completamente infeliz; um estilo
de vida como qualquer outro.
Ser cego tem as suas vantagens. Pessoalmente, devo certas dádivas às
sombras: o anglo-saxão e os rudimentos do islandês. Existe também a alegria de
muitos poemas, além de ter escrito livros, inclusive um chamado, não sem alguma
duplicidade, como se de um desafio se tratasse, O ELOGIO DA SOMBRA. Os cegos
também se sentem cercados de carinho. Todo o mundo tem afecto pelos cegos.
O poeta espanhol frei Luis de León escreveu:
Quero viver comigo,
Gozar o bem que devo aos céus,
Sozinho, sem testemunhas,
Livre do amor, do ciúme,
Do ódio, da esperança, dos cuidados.
Se concordarmos que entre as benesses que nos são enviadas pelos céus
está a escuridão, quem poderá viver melhor consigo próprio, quem será capaz de
se conhecer melhor, como disse Sócrates, do que um cego?
Gostaria de evocar aqui outros casos ilustres. Não sabemos se Homero existiu
mesmo; talvez não houvesse um só Homero mas muitos gregos escondidos sob esse
nome. Eles, porém, gostavam de imaginar que o poeta era cego, para realçar o
facto de que a poesia é antes de tudo música, e a faculdade visual poder ou não
estar presente num poeta.
A cegueira de John Milton foi propositada. Ele estragou sua visão escrevendo
panfletos em defesa da execução do rei pelo parlamento. Costumava dizer que
havia perdido a vista em defesa da liberdade. Ele falava dessa nobre tarefa e
não se queixava por ser cego. Compunha versos e a sua memória melhorou. Após
cegar, Milton passava muito tempo sozinho. Escreveu um longo poema, PARAÍSO
PERDIDO, sobre o tema de Adão, pai de todos nós. Embora cego, Milton conseguia
manter na cabeça 40 ou 50 hendecassílabos, que depois ditava às pessoas que
vinham visitá-lo. Foi assim que escreveu PARAÍSO PERDIDO.
Vamos lembrar outro exemplo, o de James Joyce. A quase infinita língua
inglesa, que tantas possibilidades oferece ao escritor, não lhe era suficiente.
O irlandês Joyce lembrou-se de que Dublin havia sido fundada por vikings
dinamarqueses. Assimilou o norueguês, depois estudou grego e latim. Aprendeu
muitos idiomas, e acabou escrevendo num idioma que ele próprio inventou, difícil
de entender, mas que possui uma estranha musicalidade. E declarou corajosamente:
"De todas as coisas que me aconteceram, a menos importante foi a cegueira."
Parte da vasta obra que deixou foi escrita na escuridão, trabalhando as frases
de memória, às vezes passando um dia inteiro preocupado com uma única frase.
Um escritor, um artista ou qualquer pessoa deveria ver nas coisas que lhe
sucedem uma como ferramenta, deveria pensar que tudo lhe é dado com alguma
finalidade. O que lhe acontece, inclusive as humilhações, fracassos, desgraças,
é-lhe dado como uma argila, como matéria para sua arte. É preciso tentar
beneficiar-se disso. Tais coisas nos foram destinadas para as transformarmos, a
fim de que, a partir das circunstâncias dolorosas de nossas vidas, possamos
fazer algo de eterno ou que aspire a sê-lo. Se um cego pensar dessa maneira,
estará salvo. A cegueira é uma dádiva.
Pense no crepúsculo. Ao cair da noite, as coisas mais próximas desaparecem,
exactamente como o mundo visível se afastou de mim, talvez para sempre. A
cegueira não é uma desgraça total. É mais um instrumento que o destino ou a
sorte colocou em nosso caminho.
Indigno dos astros e da ave
Que sulca o azul profundo, ora secreto,
Dessas linhas que são o alfabeto
Que outros ordenam e do mármore grave
Cujo lintel meus fatigados olhos
Perdem em sua penumbra, dessas rosas
Invisíveis e das silenciosas
Profusões de ouros e de vermelhos
Sou, mas não das Mil Noites e Uma
Que abrem em minha sombra o mar e o alvor
Nem de Walt Whitman, esse Adão nomeador
Das crianças que existem sob a lua,
Nem desses brancos dons do esquecimento
Nem do amor que espero sem um lamento.
O OURO DOS TIGRES – 1972 (El Oro de los Tigres)
Tradução de Josely Vianna Baptista
Este primeiro “On His Blindness” de Borges está no livro El Oro de
Los Tigres (1972). É um fluxo contínuo, um desabafo. O poeta se
considera indigno de aproveitar as belezas do universo, pois foi privado
de vê-las, retomando, portanto, a ideia bíblica da cegueira como
punição. Usa inclusive uma expressão semelhante à de Milton, quando diz
que seus já “gastos olhos” perdem algo na penumbra — lembremos, Milton
falava da sua “luz gasta”. in'A Noite Escura da Alma:
Misticismo eCegueira em John Milton e Jorge Luis Borges' de
Isabella Lígia Moraes
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ON HIS BLINDNESS (II)
Jorge Luis Borges
1985
Com o passar dos anos me rodeia
uma constante névoa refulgente
que aos poucos reduz todo o existente
a algo informe e sem cor. Quase a uma idéia.
A vasta noite elementar e o dia
cheio de gente são essa neblina
de luz incerta e fiel que não declina
e que espreita na aurora. Gostaria
de ver um rosto algum dia. Ignoro
a inexplorada enciclopédia, o prazer
de livros que minha mão sabe ler,
as altas aves e as luas de ouro.
Aos outros todos resta o universo;
à minha penumbra, o hábito do verso.
De: Los conjurados (1985)
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. Tomo III.
San Pablo, Emecé, 1994. p. 480
Neste "On His Blindness” (II), que está na obra Los Conjurados (1985)
JL Borges expõe que, enquanto os anos se passam, é rodeado por uma
neblina que reduz todas as coisas a uma coisa sem forma ou cor. Segundo
o poeta, “esse lento crepúsculo (lenta perda da visão) teve início
quando comecei a ver. Na verdade, ele foi se ampliando desde 1899, sem
momentos dramáticos. Um lento crepúsculo que durou mais de meio século”.
Ele cita a vasta noite elemental, noite vivida na escuridão do poeta e
que nos remete ao caos primitivo. E realmente, no fim do poema, o poeta
diz que aos outros lhes fica o universo, e a ele, o hábito do verso,
pois é a escuridão do caos que possibilitaria a criação. Tanto a noite
como o dia são essa neblina, indiferenciáveis. Ao contrário do primeiro
“On His Blindness”, que trata daquilo de que o poeta é privado para,
depois, ressaltar aquilo que ele possui, este poema possui um tom mais
melancólico.
Estes dois poemas com o mesmo título, “On his Blindness”, remetem-nos ao
poema de mesmo nome do mestre John Milton. O poema do inglês associa a
cegueira à Parábola dos Talentos, como se a cegueira fosse uma punição
para o servo que não fez render o talento da visão. Na mesma ideia da
cegueira como punição por não ter sido bem aproveitada, Borges escreve
seus poemas, dialogando com os de Milton. Em Borges, entretanto, a
cegueira é mais considerada como um dom, do qual também deve se
aproveitar e transformar em criação.
Em sua obra, Borges considera a linguagem como insuficiente para
expressar as ideias, e questiona a possibilidade de captação do real
pelos sentidos. Assim, a cegueira foi uma experiência prática dessa
crença de Borges. Talvez isso justifique a recorrência da metalinguagem
nesses poemas que falam da cegueira, em que, segundo Eneida Maria de
Souza, os temas da noite, da biblioteca, do livro e do ofício de
escrever se reduplicam na figura do escritor cego, aguçados por uma
prática autobiográfica. in 'A Noite Escura da Alma:
Misticismo e Cegueira em John Milton e Jorge Luis Borges' de
Isabella Lígia Moraes
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Conferência sobre a cegueira
Jorge Luis Borges
1977
Vídeo da leitura do texto 'A cegueira',
proferida pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, em 3 de agosto de
1977, no Teatro Coliseo de Buenos Aires. Trata-se de um belo relato
sobre o convívio do próprio Borges com a sua cegueira pessoal, que
marcou profundamente a sua obra e sua relação com a literatura. Este
texto pode ser lido in "O outro, o mesmo" de Jorge
Luis Borges - Editora Globo. [
Fonte: BlooksLivraria on
VIMEO]
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Jorge Luís Borges
[1899-1986]
Nascido em Buenos Aires, Jorge Luís Borges vem a
falecer em Genebra em 1986. Após viver em Espanha, regressa
a Buenos Aires no período entre as duas grandes guerras e funda as revistas
Prisma e Proa, onde publica a maior parte da sua obra poética. Cego desde 1955,
nunca deixará de escrever. Destacam-se publicações como O Fazedor
(1960), El Otro, el Mismo (1964), Elogio da Sombra (1969), O Ouro dos Tigres
(1972) e Os Conjurados (1985). Publicou, ainda na área do ensaio, Inquisiciones
(1925), Nuevas Inquisiciones (1952) e Nueve Ensayos Dantescos (1982). No que
toca à narrativa, publica a História Universal da Infâmia (1935), O Aleph
(1949), O Relatório Brodi (1970), O livro da Alma (1975) e Rosa Y Azul (1977).