|
O Homem Cego - Albert Bloch, 1942
A concepção de deficiência desenhada no século XVIII – que
nasceu e se consolidou alojada nas próprias estruturas culturais,
sociais e económicas em que assentam as sociedades modernas –
viria a subsistir incólume até ao final da década de 60 do século
XX, em que pela primeira vez foi seriamente denunciada a
cumplicidade entre a noção de deficiência hegemonicamente
estabelecida, as formas vigentes de organização social e as
experiências de profunda marginalização então vividas pelas
pessoas descritas pelo idioma da deficiência. A noção de
deficiência que se instalou nas entranhas do advento moderno
persiste vigorando nas sociedades ocidentais. No entanto, hoje é
possível distinguir uma concepção hegemónica de deficiência de uma
concepção contra-hegemónica, sendo ainda possível aquilatar os
aportes que cada uma delas tende a imputar na vida social de
significativas minorias populacionais.
Interessantemente, ao mesmo tempo em que é possível
consagrar a violência simbólica e vivencial que as representações
modernas infundiram na experiência da deficiência, remetendo-nos
para um longo tempo que assinala como as diferentes condições
físicas se nutriram da experiência, é possível aceder a um tempo
curto. Falo de uma temporalidade que nos reporta à década de 1970,
a partir da qual é possível ler em que medida, nas diferentes
sociedades, nas diferentes nações, os valores hegemónicos
constituídos sobre as pessoas com deficiência foram
desestabilizados como forma de negar o seu impacto excludente nas
vidas de quem, utilizando a linguagem hegemónica, chamamos pessoas
deficientes ou pessoas com deficiência. Na realidade, numa
perspectiva radicalmente instigante, mais do que um conjunto de
atributos objetivamente identificáveis ou definíveis, a opressão
social será, porventura, a única coisa que as pessoas deficientes
têm em comum (Wendel, 1997, p. 264). Portanto, ciente do perigo de
universalizar uma diferença que assenta numa demarcação
contingente, definida historicamente, ao referir-me às
deficiências (físicas) em termos mais generalistas, viso
contemplar elementos comuns da subalternização das pessoas
deficientes. Aquelas mesmas que foram e vêm sendo identificadas no
próprio processo histórico da emergência de movimentos políticos
em torno das deficiências.
O surgimento, nos finais da década de 1960, dos movimentos
estudantis e das lutas pelos direitos civis constituiu uma
profunda reestruturação das práticas e valores democráticos até
então vigentes. Por um lado, foi aí achada a falência das formas
tradicionais de participação política, assentes na
representatividade partidária e na equação minimalista do
exercício da cidadania ao voto. Isto num quadro em que as lutas de
classe sindicalmente organizadas se estabeleciam como uma poderosa
exterioridade à luta político-partidária. Por outro lado, o
surgimento de tais reivindicações veio tornar clara a tensão
oposicional entre a noção moderna liberal de cidadania e a
subjetividade individual (Santos, 1999, p. 204-208). Denuncia-se
aí como a universalização dos sujeitos operada pela noção
cidadania, sintetizada no princípio da igualdade de todos perante
a lei, esmaece a diferença que reside na subjetividade dos
indivíduos, nas suas narrativas pessoais, nas suas reflexividades,
nas suas orientações sexuais, na diferença sexual, nas identidades
adscritas à diferença dos seus corpos, etc.
Portanto, a génese de uma profusão de organizações
insurgentes e reivindicativas nas décadas de 1970 e 80,
sociologicamente definidas pela designação de “novos movimentos
sociais”, reporta-nos para a dissensão que as lutas dos anos 60
estabeleceram em relação aos poderes estabelecidos e em relação ao
modo como estes eram contrapostos no idioma dos direitos e da
cidadania. Os novos movimentos sociais surgem, então, como uma
pletora de coalescências políticas estabelecidas à margem dos
campos ortodoxos de luta, fundando-se numa afirmação solidária de
identidades em que o pessoal se torna político. Deste modo, surgiu
toda uma constelação de lutas sociais que se vêm dirigir às
diversas formas de opressão que marcam as vidas dos sujeitos,
colocando-se na arena política as relações de poder que estão
presentes na vida cotidiana, para além das fronteiras entre
público e o privado e nas representações culturais. Por esta via
deu-se um alargamento do panorama democrático e um aprofundamento
da própria ideia de democracia, cunhada pela articulação de formas
de contestação cujos propósitos indicam, não raras vezes, a
necessidade de uma radical reconfiguração das traves económicas e
sócio-culturais em que se fundou a vida moderna.
A aparição de toda uma miríade de organizações e movimentos
sociais, assentes em solidariedades políticas que visavam as
causas mais diversas, veio criar um inédito espaço de enunciação
para a reiterada experiência de exclusão e depauperação vivida
pelas pessoas com deficiência. Assim, nos anos 70, um pouco por
todo o mundo, viriam a criar-se e a reformular-se estruturas
organizativas que estabeleceram como propósito central, por vezes
único, a visibilização das múltiplas formas de opressão a que
estão sujeitas as pessoas com deficiência. Objetivo a que se
juntou a necessidade de uma transformação social passível de
reverter as lógicas propiciadoras dessa mesma opressão.
Identifica-se, pois, uma convergência entre os novos movimentos
sociais e políticos que se desenvolveram nas décadas de 60 e 70 e
a articulação de vozes de contestação pelas pessoas com
deficiência. Na minha leitura, a afinidade que ligou as pessoas
com deficiência a esse advento sócio-político reside
fundamentalmente no facto de se ter estabelecido uma leitura
crítica da sociedade vocacionada a desvelar as múltiplas faces da
opressão. Uma leitura que reconhece, ademais, em que medida o
exercício da opressão se dá muitas vezes de forma insidiosa,
inculcando-se de tal modo no corpo social que não é passível de
ser apreendido pela perspectiva da violência e da coerção.
Essa articulação dos percursos emancipatórios das pessoas
deficientes com outras propostas de transformação social viria
também a advir do facto de o corpo se ter tornado um locus
privilegiado das lutas pelo significado – tendo sido aí
amplamente denunciado o papel central que os valores embutidos nos
corpos ocupam na legitimação da desigualdade social e das relações
de dominação. Em particular, as pessoas com deficiência
encontraram nos discursos antirracistas e feministas uma assunção
fundamental do incontornável lugar ocupado pelos discursos
opressivos reificados nos corpos e nas suas diferenças, surgindo
como absolutamente central a possibilidade de as pessoas definidas
como deficientes debaterem as concepções essencialistas que
ancoram a deficiência na incapacidade. No entanto, e ainda que a
entrada em palco da insurgência ativa das pessoas com deficiência
nos envie para a senda dos novos movimentos sociais, creio ser
necessário que reconheçamos o caráter singular dos desafios que se
colocaram às pessoas com deficiência para a enunciação das
condições de opressão a que as sociedades modernas as votaram. Num
primeiro momento, emerge a custosa valorização da diferença que
consigna a identidade das pessoas com deficiência. A inculcação de
solidariedades identitárias entre grupos marginalizados que se
reconheceram alvo de formas similares de desqualificação e o
consequente engendrar de um percurso emancipatório, dependeram
fortemente da criação de novas plataformas de inteligibilidade.
Novas configurações culturais em que os atributos distintivos
catalisadores da lutas contra-hegemónicas e/ou minoritárias
pudessem ser requalificadas, libertando-se do ónus da
inferioridade. Honi Haber (1994, p. 125), num ensejo propositivo,
sintetiza bem este imperativo:
-
"…os grupos social e politicamente marginalizados precisam de
continuar a construir a sua voz e a lutar pelo poder. Mas para
fazer isso os indivíduos e os grupos têm que aprender primeiro a
valorizar as suas diferenças. Isto deve acontecer antes das
estratégias e demandas políticas poderem ser formuladas (ou talvez
ambos aconteçam simultaneamente). Para valorizar as diferenças nós
temos que aprender a reconhecer as diferentes identidades que
existem não apenas na sociedade amplamente considerada, mas também
em cada um de nós." (minha tradução)
Assim, a valorização de diferenças opera como um duplo
significante político: diretamente, pelo confronto que estabelece
com a desqualificação produzida e reiterada pelas concepções
dominantes e, indiretamente, pela capacitação dos sujeitos que
assim se tornam capazes de estabelecer lealdades em torno da
afirmação positiva de um atributo diferencial. Na verdade, é a
este segundo aspecto que bell hooks 1 (1995, p. 119) se dirige
quando afirma a “auto-estima como uma radical agenda política”. A
questão que se torna premente para uma avaliação dos desafios que
se colocam à articulação política a partir das deficiências e, em
contraponto com outras formas de assunção identitária, é o caráter
infinitamente mais problemático da valorização e celebração da
diferença que está na base dos esquemas classificatórios das
deficiências físicas.
As configurações materiais que identificamos como
deficiências pertencem ao mundo fenomenológico. O facto de alguém
não ver, não ter uma perna ou ter uma lesão na medula não é
completamente redutível ao caráter contingente das apreensões
culturais num dado contexto de crenças. Estamos, pois, perante a
tal relação quiasmática entre a linguagem e a materialidade de que
falava Judith Butler (1993, p. 69). Portanto, ao abordarmos as
configurações físicas que nos surgem sob o conceito de
deficiência, importa considerar que estamos perante condições que
muitas vezes implicam ou estão associadas a experiências de
privação e sofrimento físico que vão para além das formas de
opressão social. No caso da cegueira, aquele que conheço melhor,
poderei referir, a título ilustrativo, situações tais como a dor
física que muitas vezes acompanha a evolução de um glaucoma 2; a
frustração de uma mãe que não pode conhecer os olhos do filho, de
cuja beleza tanto ouve falar; a maior tendência para a ocorrência
de pequenos acidentes e quedas (embora este dado se associe muitas
vezes ao modo como o ambiente físico é elaborado); a profunda
experiência de privação sentida para quem perde a visão de
repente; a impossibilidade de desempenhar profissões que realmente
dependem da visão, ou de realizar atividades cotidianas, como
conduzir um carro.
Sendo possível e desejável uma valorização das pessoas com
deficiência, das suas capacidades, dos seus intentos vivenciais e
das suas propostas de transformação social, a pouco exequível
celebração da diferença implicada por uma deficiência constitui
uma especificidade político-identitária que importa relevar. O
cerne da questão é que afirmações contra-hegemónicas que procuram
valorizar a diferença, tais como Black is Beautiful ou Glad to be
Gay, denotam uma positividade que as aparta, de algum modo, das
pessoas com deficiência (neste particular, a definição da
comunidade surda como uma minoria linguística constitui uma
exceção). É exatamente pela presença fenomenológica deste “excesso
de real” reconhecido pelo conceito de deficiência que se torna
mais ardilosa uma desnaturalização ou dessomatização das
hierarquias sociais e económicas vigentes nas vidas das pessoas
com deficiência, constituindo, por consequência, um dos elementos
preponderantes que assiste à particular complexidade em se
visibilizarem as condições de opressão a que estão sujeitas as
pessoas com deficiência.
Um outro elemento que singulariza os desafios que se
estabeleceram, e estabelecem, nos movimentos políticos de pessoas
com deficiência é, sem dúvida, o modo como a opressão social das
pessoas com deficiência tende a ser escamoteada por uma atitude
condescendente e paternalista por parte dos poderes e da sociedade
num sentido mais amplo. Vindo ao encontro desta preocupação, bell
hooks produz uma reflexão que creio ser particularmente
estimulante para se pensarem as aporias políticas que residem no
nexo entre a invisibilização da opressão social e a perpetuação de
um status quo. Refletindo sobre a luta das mulheres e homens
negros nos Estados Unidos da América, bell hooks expressa aquilo
que parece assomar como uma paradoxal nostalgia em relação ao
período que antecedeu às lutas pelos direitos civis nos anos 60. A
assunção de uma tal quase-nostalgia por parte da autora deriva do
facto de, perante à continuada vigência da “supremacia branca” nas
vidas das pessoas afro-americanas, a sua capacidade resistente e
militante ter sido francamente elidida no período que se seguiu à
contestação pelos direitos civis. Embora reconheça as conquistas
que advieram desse período de efervescência social, bell hooks
atenta, sobretudo, para o modo como, a partir daí, se terá dado,
fundamentalmente, uma transformação na natureza da opressão
exercida sobre a população negra. A autora assinala em particular
o facto de o racismo ter continuado a operar nas relações de poder
a par da sua negação na arena social, tornando-se imperioso
contemplar em que medida a subalternização dos afro-americanos
pela “supremacia branca” surge esmaecida pelos discursos em que a
integração social dos negros é celebrada como uma inequívoca
conquista dos direitos civis.
O que esta leitura traz de instigante é o facto de assumir
que só se poderão articular resistências à opressão estrutural
quando, num dado contexto sócio-histórico, for possível dar
visibilidade a essas mesmas estruturas de opressão. Deste modo,
dirijo-me aos discursos e práticas congruentes com aquilo que
Martine Xiberras (1993, p. 16) identifica como sendo uma das mais
perniciosas formas de opressão: a compaixão. Ou seja, um conjunto
de valores e procedimentos que se dirigem paternalistamente às
pessoas com deficiência e que assumem o infortúnio e a
inferioridade como dados que devem ser minorados na medida do
possível.
Identificamos, assim, como entraves que demarcam a
articulação de um movimento social em torno da deficiência, a
ideia de que dificilmente existe uma diferença que possa ser
celebrada, e a constatação da prevalência de uma atitude social
que, longe de ser abertamente hostil e violenta para as pessoas
com deficiência, tende a ser compassiva, benevolente e provedora
de formas minimalistas de suporte. No fundo, a dificuldade de se
traduzir a vivência das pessoas com deficiência para uma linguagem
reivindicativa de direitos. Se por um lado importa reconhecer
estas aporias em relação aos restantes movimentos sociais
identitários que proliferaram na década de 1960, por outro, é a
tentativa da sua superação que permitiu que as pessoas com
deficiência assumissem um lugar na vaga a que costumeiramente se
chama de novos movimentos sociais. É aos discursos aí formulados
que procurarei dedicar alguma atenção.
Agendas emergentes
A primeira insurgência ativa das pessoas com deficiência com
um impacto assinalável deu-se nos Estados Unidos, na passagem da
década de 1960 para a de 1970. Um contexto que se encontrava,
então, profundamente marcado pelo impacto das pessoas que
adquiriram deficiências na Guerra do Vietnam, pela convulsão
social provocada, mormente, pela luta estudantil contra essa mesma
guerra e pela defesa dos direitos das pessoas negras. O surgimento
de um projeto de visibilização das condições das pessoas com
deficiência deu-se a partir da cultura universitária, com a
criação do primeiro “centro para a vida independente” (center for
independent living), a partir de uma residência destinada a
estudantes. A ideia do surgimento deste centro surgiu da
identificação da necessidade de um espaço de suporte, gerido pelas
próprias pessoas com deficiência, que lhes conferisse o necessário
apoio para sua integração na sociedade (mainstream society),
libertando as suas vidas do controle dos profissionais,
desmedicalizando-as. Estes centros viriam a disseminar-se por todo
o país, articulados com um amplo movimento social de pessoas com
deficiência – donde se destacou a American Coalition of Citizens
with Disabilities –, investido em pugnar pelo fim das relações de
dependência e pela visibilização dos obstáculos presentes no meio
envolvente (Barnes et al., 1999, p. 68; Barnes e Oliver, 1993, p.
10). Criou-se então aquilo que ficou designado como o Independent
Living Movement, um movimento que se centrou na defesa dos
direitos das pessoas com deficiência, e cuja emergência viria a
ter repercussões noutros contextos. Entre eles, o contexto
britânico, de onde emergem discursos que se mostram
particularmente interessantes para a nossa análise. Isto é assim
tanto porque eles se tornaram influentes nas organizações
internacionais de pessoas com deficiência e em outras sedes, como
a OMS (Organização Mundial da Saúde), quanto porque nos conferem a
mais interessante plataforma conceitual onde se vertem e subvertem
as implicações da noção dominante de deficiência que a modernidade
consolidou. Os discursos reivindicativos procedentes do contexto
britânico estão imbuídos de uma reflexividade e de uma visão
estrutural que se mostra preciosa para a apreensão e subversão dos
legados modernos.
O movimento das pessoas deficientes no contexto britânico
viria a assumir uma fulcral importância com a criação, em 1974, de
uma supraorganização onde se agregavam várias organizações de
pessoas com deficiência: a Union of the Physically Impaired
Against Segregation (UPIAS). A UPIAS surgiu por reconhecer o
limitado alcance das principais organizações de pessoas
deficientes que se haviam constituído antes dela: a Disablement
Income Group, uma organização cujo objetivo era a luta contra a
pobreza vivida pelas pessoas com deficiência; e a Disability
Alilance, uma organização que lutava por propósitos semelhantes e
que era constituída por algumas das mais importantes instituições
da “velha guarda”, as instituições de pessoas deficientes geridas
por profissionais (Oliver, 1996, p. 19-20). A UPIAS procurava
superar as concepções que vinham alimentando a ideia de que a
reivindicação central das pessoas deficientes deveria ser a de
melhores pensões sociais. Ao invés, essa organização colocou no
primeiro plano a necessidade de se transformarem, quer as
concepções dominantes detidas em torno das pessoas com
deficiência, quer a organização social que excluía as pessoas
deficientes, remetendo-as à experiência da segregação e pobreza.
Os influentes valores e discursos que presidiram a ação da
UPIAS, e que constituem a estrutura fundamental do que se tornaria
o “modelo social da deficiência”, visam, sobretudo,
reconceitualizar a deficiência enquanto uma forma particular de
opressão social. A matriz dessa insurgência destabilizadora
ficaria reificada na formulação dos “Princípios Fundamentais da
Deficiência” (“Fundamental Principles of Disability”), que foram
publicados pela UPIAS em 1976. Uma formulação em cuja autoria se
destaca o nome de Vic Finklestein, um importante ativista tanto em
nível nacional como em nível internacional. O corolário da nova
perspectiva aí contida ficaria significativamente sintetizado nas
definições oferecidas aos conceitos de impairment e disability 3:
Impairment 4: Ausência de parte ou da totalidade de um membro, ou
existência de um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso;
Disability: Desvantagem ou restrição de atividade causada por uma
organização social contemporânea que tome pouca ou nenhuma
consideração pelas pessoas com impairments físicos e que, assim,
as exclui da participação nas actividades sociais centrais. A
deficiência física é, portanto, uma forma particular de opressão
social. (apud Oliver, 1996, p. 22-23, minha tradução)
Estas definições fundam-se numa separação crucial entre
impairment, definida como uma condição biológica, e disability,
reconceitualizada como uma forma particular de opressão social. A
fronteira estabelecida entre estes dois conceitos, embora elabore
uma essencialização do elemento físico, define-o sem referir à
consagrada noção de normalidade. Esta cristalização do impairment
chama-nos a atenção para o facto de que estamos perante uma
desconstrução imanente à estrutura conceitual da discursividade de
partida. No entanto, isto não obsta à radical transgressão que
reside nestas definições. Sobretudo pelo facto de a noção de disability, aquela que é primordialmente usada para identificar um
dado grupo populacional (correspondendo, nesse sentido, à noção de
deficiência utilizada na língua portuguesa), ter sido desvinculada
da corporalidade para significar o conjunto de valores e
estruturas que excluem determinadas pessoas das “atividades
sociais centrais”. A reconfiguração do conceito de disability para
a afirmação de uma opressão vigente torna-se particularmente
eficaz na medida em que faz uso de uma subtileza linguística em que
a designação das pessoas com deficiência, disabled people, é
utilizada como a própria afirmação da situação de opressão social
vivida por uma ampla minoria populacional. Ou seja, as disabled
people são ali entendidas como as pessoas
deficientadas/incapacitadas pelos valores e formas de organização
presentes na sociedade:
-
"Na nossa perspectiva, é a sociedade que incapacita as pessoas com
impairments físicos. A deficiência é algo que é imposto sobre os
nossos impairments pela forma como somos desnecessariamente
isolados e excluídos de uma plena participação na sociedade. As
pessoas com deficiência são, portanto, um grupo oprimido na
sociedade." (UPIAS, 1976, apud Oliver, 1996, p. 33, minha
tradução)
Portanto, a partir das perspectivas desenvolvidas nos
Princípios Fundamentais da Deficiência da UPIAS, a noção
hegemónica de deficiência é disputada por uma outra, que retira as
suas implicações das configurações do corpo que foram modernamente
definidas, para trazê-las para a arena das relações sociais. É nos
anos 70 que a secular noção de deficiência deixa de vigorar em
termos monoculturais para passar a ser apreendida como uma leitura
dominante, em relação à qual se erigem perspectivas alternativas
oposicionais, que ficam formuladas de um modo particularmente
consistente nas definições que a UPIAS consagrou.
Significativamente, os valores daqui emanados viriam a constituir
um importante catalisador. Por um lado, no modo como propiciou uma
assunção identitária capacitante das pessoas com deficiência, que
assim encontraram um projeto de transformação social que lhes
permitiu libertarem-se dos fatalismos que vinham marcando as suas
vivências. Por outro lado, pelo facto de os discursos e práticas
das organizações de pessoas com deficiência terem encontrado ali
um eixo importante para a articulação das suas vozes e das suas
reivindicações em relação à exclusão social de um grupo
populacional que até ali havia estado largamente
silencioso/silenciado.
Esta conceitualização, com evidente vocação para a
transformação social e para a emancipação pessoal e política,
estabelece um gritante contraste com as visões hegemónicas acerca
da deficiência, tão bem epitomizadas nas definições propostas em
1980 pela OMS. De facto, as novas leituras, que os anos 70 nos
trouxeram, acerca da temática da deficiência nutrem-se de uma
visão dualista e oposicional que viria a ficar consolidada no
desenvolvimento do “modelo social da deficiência”. O conceito de
“modelo social da deficiência” foi cunhado pela primeira vez em
1983 por Michael Oliver, um sociólogo e ativista político que, a
partir dos empreendedores conceitos do UPIAS, procurou constituir
um corpo teórico capaz de conferir uma perspectiva holista dos
problemas enfrentados pelas pessoas com diversos tipos de
deficiência. Foi grande a importância das estruturas conceituais
que germinaram deste itinerário, não só para o contexto britânico,
mas para a luta das pessoas com deficiência no mundo. Prova disto
é o facto de as definições da UPIAS terem sido adotadas pela seção
europeia Disabled People International (DPI), a mais importante
estrutura internacional de pessoas com deficiência, fundada em
1981; tendo-se tornado igualmente as definições operativas da
BCODP, a organização que haveria de suceder à UPIAS enquanto
estrutura “guarda-chuva” das organizações de deficiência no Reino
Unido, ela própria membro fundadora da DPI (Oliver, 1996, p. 28;
Barnes et al., 1999, p. 6-7).
O modelo ou teoria social da deficiência que Michael Oliver
desenvolveu parte exatamente da identificação de um conceito de
deficiência entendido como profundamente incapacitante e contrário
tanto à transformação social conducente à integração das pessoas
com deficiência, quanto à visibilização da situação de opressão
que a reclama. Essas concepções são denunciadas com uma leitura em
que se assinala como dominante o “modelo individual/médico da
deficiência”; no fundo, a sedimentação histórica que se procura
superar – caracterizada por uma apreensão social das pessoas com
deficiência, que se centra na anormalidade dos seus corpos –, em
termos próximos daqueles cujos contornos exaurimos na leitura da
deficiência como uma artefatualidade discursiva eminentemente
moderna. Um modelo que se identifica enquanto inconciliável com a
assunção de controle das pessoas deficientes acerca dos seus
desígnios, e com a concomitante possibilidade de transformação dos
contextos sociais e culturais da sua existência.
O modelo individual/médico da deficiência, cuja vigência
hegemónica nas sociedades ocidentais Michael Oliver (1990; 1996)
denuncia, apresenta como correlato central a celebração de uma
abordagem que, apropriando os discursos correntes e hegemónicos em
torno da deficiência, poderá ser designado de “abordagem
reabilitacional” (Striker, 1999). Embora o conceito de
reabilitação se tenha inculcado após a primeira guerra mundial
para os soldados que ficaram com alguma deficiência, ele apreende
bem a lógica social que se dirigiu às pessoas tidas como
deficientes, desde a sua objetificação como tal; uma lógica que
tem sempre por referência uma normalidade que se considera prévia
a qualquer ação. Assim, seguindo a leitura de Michael Oliver – uma
leitura que, não tendo uma grande densidade histórica, identifica
os valores e estruturas que tornam óbvias a transformação e a
politização da deficiência –, deverá relevar-se, em primeiro
lugar, o modo como, no modelo individual/médico da deficiência, as
pessoas com deficiência são sujeitas a lógicas cuja autoria tende
a escapar-lhes. Emerge aqui, quer o legado das instituições para
pessoas deficientes de carácter privado e matriz filantrópica,
quer as políticas e estruturas organizativas desenvolvidas pelo
Estado. Sendo que, em ambas as situações, a capacidade de decisão
acerca das vidas das pessoas com deficiência é remetida a peritos,
profissionais e voluntários no seio de estruturas que tendem a
consagrá-las como objetos passivos de cuidado e de estratégias que
se desejam conducentes à superação das limitações de atividade
implicadas por uma deficiência. No fundo, esta leitura chama a
atenção para o modo como um modelo hegemónico de apreensão da
deficiência, que paulatinamente articulou a segregação
institucional em asilos com a promoção da educação e da integração
social, vigora numa lógica em que as pessoas deficientes não são
reconhecidas como agentes centrais. Aspecto que apresenta uma
evidente continuidade com as respostas caritárias que marcaram a
pré-modernidade.
O que Oliver desvela nesta passividade a que as pessoas
deficientes são remetidas é a vigência de uma lógica medicalizada,
por via da qual as pessoas deficientes se viam perante à
arbitrariedade de terem que assumir, nas diversas esferas da sua
vivência, o papel social do doente/paciente. Assim, Oliver atenta
para a “medicalização da reabilitação” (1990, p. 53) – na verdade,
a própria noção de reabilitação está já imbuída de valores médicos
– para denunciar o papel de médicos, assistentes sociais,
psicólogos, educadores e agentes de solidariedade na consagração
das pessoas com deficiência enquanto objetos de tratamento e
reabilitação. Daqui decorre a identificação de uma estrutura
panóptica erigida para dar resposta à diferença suscitada pela
deficiência e que vai operar uma completa “medicalização da vida”
(Illich apud Barnes et al., 1999, p. 59), ainda que não haja nela
médicos envolvidos. Portanto, a ênfase que os movimentos surgidos
nos anos 70 conferiram à autodeterminação das pessoas com
deficiência é, sem dúvida, produto da ideia de que a medicalização
dos problemas sociais tende a ser adversa à sua politização, uma
politização que se mostrava necessária para efetivar a
transformação de horizontes. Mas é também avatar da proposição
mais geral de que “ninguém pode libertar outrem, porque a
liberdade é o acto de a tomar.” (Cooper, 1978, p. 91).
Um outro aspecto que Michael Oliver faz constitutivo do
modelo médico da deficiência é o calvário pessoal que resulta do
facto de a lógica reabilitacional celebrar as possibilidades de
integração pessoal investindo no suporte aos sujeitos, mas
estabelecendo como postulados as enormes dificuldades a que as
pessoas com deficiência deverão ser capazes de fazer face. Estamos
perante a uma lógica que aceita aquilo a que alguém chamava, com
propriedade, “o calvário da integração”; uma lógica que, na maior
parte das vezes, tem como única ambição minimizar as consequências
da deficiência. Sendo verdade que a legitimação da abordagem
reabilitacional muito depende do papel simbólico desempenhado por
casos emblemáticos de integração de pessoas com deficiência, o
carácter excepcional destas situações é, por outro lado, bem
expressivo do quão ilusório é um horizonte em que a realização das
pessoas com deficiência seja feita dependente de um ciclópico
esforço individual de acomodação. Aliás, a ênfase nas excepcionais
narrativas das pessoas com deficiência que vingaram em superar
preconceitos e obstáculos de várias ordens é bem captada por Tom
Shakespeare. Este autor reflete interessantemente sobre as
representações das pessoas com deficiência na cultura mediática e
no cinema em particular. Nessas leituras, diz-nos Tom Shakespeare
(1999, p. 164-165), é possível desvelar três estereótipos
centrais: o inválido trágico; o amargurado, que procura se vingar
do mundo e alcançar a cura a qualquer custo; e o herói que triunfa
sobre a tragédia e as dificuldades que dela decorrem. É esta
última representação que se articula com o mito fundador das
possibilidades promovidas no seio de uma abordagem
reabilitacional.
No fundo, o que Oliver retoma ao denunciar o nexo entre o
modelo médico e a apreensão social das dificuldades impostas às
pessoas com deficiência enquanto um desafio individual é, uma vez
mais, o efeito da reificação de uma questão social no corpo
físico. O autor identifica ainda o modo como as práticas e os
discursos da reabilitação efetivam, na vida quotidiana das pessoas
com deficiência, uma reverência à normalidade física e funcional
dos demais sujeitos, uma perspectiva que Oliver informa com a sua
própria narrativa, assim como com outras que lhe são próximas:
-
"O objetivo de fazer regressar o indivíduo à normalidade é a pedra
de esquina sobre a qual assenta toda a estrutura da reabilitação.
Se, como aconteceu comigo após a minha lesão na medula, a
deficiência não pode ser curada, as assunções normativas não são
abandonadas. (…) A filosofia da reabilitação enfatiza a
normalidade física e o alcance das capacidades que permitem ao
indivíduo aproximar-se o mais possível de um comportamento de
normalidade corporal." (Finkelstein apud Oliver, 1990, p. 54,
minha tradução)
Ou seja, refletindo, por via de experiências pessoais, sobre
o modo como as pessoas com deficiência são “acolhidas” no
médico/individual da deficiência, Michael Oliver como que denuncia
o pernicioso lugar ocupado por uma normalização que impõe
necessidades em vez de as reconhecer (Cooper, 1978, p. 10).
Portanto, é fundado nas definições da UPIAS que Michael Oliver
constrói um corpo teórico onde se identifica e recusa o modelo
médico/individual e a abordagem que este promove, como uma
estrutura que só poderá ser superada pela assunção de um modelo
social por parte dos movimentos de pessoas com deficiência. Um
modelo onde a deficiência é entendida como uma incapacitação, uma
forma de opressão que se abate sobre as pessoas em cujo corpo
esteja ausente a totalidade ou parte de um membro, ou onde exista
um membro, órgão ou mecanismo corporal defeituoso.
Esta visão dualista que Oliver, melhor que ninguém,
consolidou como uma estrutura operativa na luta política apoia-se,
interessantemente, numa luta do significado acerca da deficiência.
Uma luta em que duas formas de entender a deficiência se debatem.
É nesta contraposição que o autor e ativista vê a possibilidade de
se negar a grande narrativa que marca a vida das pessoas com
deficiência, a “narrativa da tragédia pessoal”. Assim, negar o
modelo médico é negar a abordagem reabilitacional reconhecida como
base central para que a deficiência seja pensada como uma tragédia
pessoal e não como o produto de relações opressivas.
Pela ótica da teoria social da deficiência, a natureza da
experiência das mulheres e dos homens com deficiência emerge,
fundamentalmente, como um produto de circunstâncias sociais e de
imaginários culturais opressivos que importa recusar e
transformar. A ideia central que esta influente proposta apresenta
é a negação do infortúnio e incapacidade, afirmando-se, ao invés,
as virtualidades de uma minoria populacional cuja realização e
inclusão dependem do efetivo reconhecimento das diferenças que as
deficiências transportam e da consequente desestabilização do
status quo. No fundo, o modelo social da deficiência sugere que é
a sociedade que importa reabilitar.
Experiência incorporada e discurso político
Apesar do impacto do modelo social na capacitação das
pessoas deficientes, na criação de movimentos políticos, na
reconversão de instituições que, apesar de estarem registradas
como organizações de solidariedade, assumiram uma postura
reivindicativa, na articulação das diferentes deficiências, esta
formulação não deixou de estar sujeita a um importante criticismo.
Este tomou como mais importante argumento o facto de a
reconceitualização da deficiência como uma forma de opressão não
considerar as experiências de dor, sofrimento e privação que podem
estar associadas à condição física da pessoa com deficiência:
-
"…existe uma tendência no modelo social para negar a experiência
dos nossos próprios corpos, insistindo que as nossas diferenças
físicas e restrições são inteiramente criadas socialmente. Sendo
as barreiras ambientais e as atitudes sociais uma componente
crucial da nossa experiência de deficiência [disability] – e de
facto incapacitam-nos –, tende-se a sugerir que isso é tudo o que
existe, para negar a experiência pessoal de restrições físicas ou
intelectuais, de doença, do medo da morte." (Morris apud Barnes et
al., 1999, p. 91, minha tradução)
Estas leituras críticas dirigem-se, mormente, para o perigo
de que o reconhecimento da reflexividade social e das capacidades
das pessoas com deficiência deem lugar a outro silenciamento. O
silenciamento de experiências eminentemente físicas, passível de
ocorrer quando se substitui o modelo médico, erigido sobre um
centrismo somático, por um modelo social que reduza a experiência
da deficiência à experiência da opressão.
Este mesmo debate envia-nos para uma discursividade que
poderá ser considerada como a mais emblemática “versão” do modelo
social, a que a cegueira em particular diz respeito. Refiro-me às
influentes ideias que Kenneth Jernigan sustentou em prol de uma
afirmação positiva da cegueira e das pessoas cegas. Kenneth
Jernigan foi, de 1968 a 1986, o presidente da National Federation
of the Blind (NFB), a mais importante e mais representativa
associação de pessoas cegas nos Estados Unidos, que conta hoje com
mais de 50000 sócios. Kenneth Jernigan foi também uma figura
importante no plano internacional, ocupou cargos importantes na
União Mundial de Cegos, preservando-se como uma importante
referência mesmo após a sua morte, em 1998. Através dos seus
discursos e intervenções públicas, Kenneth Jernigan desenvolveu
aquilo que ficou designado como a “filosofia positiva da
cegueira”, uma construção que se tornou absolutamente constitutiva
dos intentos da NFB. A necessidade de se constituir uma filosofia
positiva decorreu da relação que Jernigan identificou entre os
limites vivenciais que se colocam às pessoas cegas e os mitos que
povoam os imaginários sociais em torno da cegueira:
"O que nós pedimos da sociedade não é uma mudança de coração (o
nosso caminho para o asilo tem sido sempre pavimentado por boas
intenções), mas uma mudança de imagem, uma troca de velhos mitos
por novas perspectivas." (Jernigan, 1970, minha tradução)
Kenneth Jernigan entendia, pois, que a persecução de
qualquer atividade em prol das pessoas cegas deveria tomar como
ponto de partida uma desmobilização das ideias de desastre
irremediável que sobre elas se abatiam. Esta foi uma plataforma
que se mostrou central na ação da NFB desde as lutas pelos
direitos civis. Assim, da filosofia positiva que Jernigan inculcou
releva uma afirmação que ficaria estabelecida até hoje como
emblemática da NFB:
-
"O verdadeiro problema da cegueira não é a perda de visão. O
verdadeiro problema da cegueira é falta de compreensão e a
ausência de informação que existe. Se uma pessoa cega tiver a
instrução adequada e se tiver oportunidades, a cegueira é só um
incómodo físico." 5 (1970, minha tradução)
Apesar do importante papel que estas formulações tiveram na
mobilização das pessoas cegas no contexto americano, também elas
foram alvo de contestação por menorizarem a relevância das
experiências de sofrimento que podem estar diretamente associadas
à condição física de uma pessoa cega. Aliás, esta filosofia
positiva foi alvo de um interessante debate entre a NFB e outras
associações de pessoas cegas, com particular destaque para o
American Council of the Blind. De facto, pode-se alegar que tais
elaborações – em que se acalenta a ideia da cegueira como um mero
incómodo físico – fracassam em apreender determinadas experiências
subjetivas vividas pelas pessoas cegas.
Quando nos confrontamos com as ideias que são expressas no
modelo social da deficiência ou na “filosofia positiva da
cegueira”, assim como com as críticas que essas elaborações
suscitam, somos levados a considerar em que medida as experiências
das pessoas com deficiência tendem a decorrer num espaço in
between. Isto é, em algum lugar entre as circunstâncias sociais e
a tangibilidade fenomenológica das suas experiências corpóreas. No
entanto, mesmo sendo possível afirmar que às formulações que
configuram o modelo social da deficiência escapará um espectro de
experiências pessoais, tal asserção não implica necessariamente
que essas formulações estejam eivadas de incompletude.
Creio que a emergência do modelo social da deficiência
deverá ser lida por referência às coordenadas sociopolíticas que o
reclamam e ao facto assinalado por Laclau (1996, p. 6), de todo o
projeto emancipatório necessariamente se constituir numa
historicidade em que a sua autoridade sobre o real não é senão a
contingência do que se procura superar: “Dicotomias parciais e
precárias têm que ser constitutivas do tecido social” (Ibidem, p.
17).
As coordenadas sociopolíticas do surgimento da
discursividade do modelo social da deficiência são bem
explicitadas por Michael Oliver quando afirma que a negação das
dores e privações associadas às condições físicas das pessoas
deficientes não resultam de uma omissão por negligência. Afirma o
autor que essa negação não é bem uma negação, mas sim uma
tentativa pragmática de identificar os aspectos que podem ser
transformados através da ação coletiva. Como reforça Mairian
Corker, esse novo discurso da deficiência obedece ao princípio da
“otimização da transformação social” (1999, p. 92). Ou seja, a
afirmação da deficiência enquanto uma questão social visa negar ao
mesmo tempo o fatalismo da marginalização de um significativo
grupo populacional e a naturalização dessa marginalização nos
corpos:
-
“Referir a biologia, reconhecer a dor, confrontar os
nossos impairments têm permitido que os opressores recolham a
prova de que, no fim de contas, a deficiência é “realmente” uma
questão de limitações físicas (Shakespeare apud Oliver, 1996, p.
39, minha tradução).
Portanto, a capacidade para fazer da deficiência uma questão
social, à luz de um discurso questionador das representações e das
formas de organização vigentes, deverá ser entendida como uma
polarização oposicional, por via da qual se visa confrontar a
sedimentação histórica por que se naturalizou/somatizou a
experiência de exclusão vivida pelas pessoas com deficiência. É o
desígnio de visibilização da opressão e de realidades sociais tão
longamente ignoradas que assiste à pertinência da afirmação da
deficiência como uma forma particular de opressão.
Democracia e participação
Quando analisamos as políticas estatais, não podemos
esquecer que a apreciação das dinâmicas específicas que definem as
medidas que se dirigem às pessoas com deficiência nos colocam,
inevitavelmente, perante um outro factor constitutivo da política
social: o facto de ela ser produto da luta política. Nesse sentido,
sendo verdade que o quadro no qual a deficiência foi modernamente
“inventada” apresenta uma poderosa vocação para a naturalização da
subalternidade, os diferentes contextos sociais não deixam de
apresentar matizes que muito se ligam ao papel a ser desempenhado
pela intervenção politica e pela participação democrática.
Na medida em que os que melhor conhecem as implicações dos
desenhos sociais na vida das pessoas com deficiência são elas
próprias, e na medida em que a sua agenda ocupa um lugar marginal
nas formas representativas de democracia, torna-se fácil perceber
a importância de uma ação sociopolítica a ser engendrada por via
da democracia participativa. Tal dinâmica deveria ser capaz de
articular a manifesta diferença implicada pela deficiência - o
mesmo é aludir aos estigmas que a apreendem socialmente - com uma
efetiva equalização de oportunidades. Isto mesmo é veiculado pelas
“Regras Gerais” da ONU: “Os Estados devem promover e apoiar
financeiramente e de outras formas a criação e consolidação de
organizações de pessoas com deficiência, de associações de
famílias e/ou de pessoas que defendam os seus direitos. Os Estados
devem reconhecer o papel daquelas organizações no desenvolvimento
das políticas em matéria de deficiência.”
Num quadro em que os valores culturais e as práticas sociais
ainda alimentam uma noção individual assistencialista, caritativa
e reabilitacional da deficiência, e onde a vitalidade da
democracia está fortemente coibida, como receber as propostas
legislativas que se dirigem à criação de igualdade de
oportunidades? Com inevitável prudência, evitando triunfalismos
sem sentido e com uma forte consciência de que muitas vezes as
leis, desarticuladas de outras dinâmicas, mudam para que tudo
fique na mesma. É em si positivo que as leis caminhem à frente dos
valores na medida em que, além do óbvio papel de punir e vigiar
incumprimentos, elas podem cumprir um papel de pedagogia social,
arrastar outras dinâmicas e novos discursos. A questão que convém
reter, cautelarmente, é que, conforme afirma Boaventura Sousa
Santos (1999, p. 155), “quanto mais caracterizadamente uma lei
defende os interesses populares e emergentes, maior é a
probabilidade de que ela não seja aplicada”.
A fragilidade da democracia participativa nas nossas
sociedades, associada a uma cultura dominante marcada pela
“narrativa da tragédia pessoal”, deve nos alertar para a compreensão
dos perigos que tantas vezes minam as transformações legislativas:
1- O perigo de, na prática quotidiana, os elementos da
administração pública, os empregadores privados, os engenheiros e
arquitetos, educadores e programadores culturais não estarem
enculturados nos direitos das pessoas com deficiência.
2- O perigo de nos próprios tribunais se refletirem preconceitos e
estereótipos. Os agentes judiciais não estão livres de
preconceitos, se não forem culturalmente imbuídos num modelo
social da deficiência; muitas vezes inscrevem nas suas decisões
valores que ainda não estão familiarizados com a magnitude do
desafio de uma sociedade inclusiva no que diz respeito às pessoas
com deficiência.
3- O perigo de surgirem leis sem um sério esforço de envolvimento
das organizações interessadas e da opinião pública.
4- O perigo de se confiar excessivamente na transformação
legislativa quando esta não é acompanhada por mudanças nas
representações culturais. Isto acontece porque muitas vezes se vê
uma lei como o fim do caminho. Importa é que a lei contribua para
uma pedagogia social e tenha efetividade nos tribunais, até porque
os casos exemplares têm frequentemente um valor pedagógico.
5- O perigo de as leis transformativas serem redigidas com
ambiguidades que fragilizam os seus propósitos transformativos,
facilitando que sejam capturadas pelos valores instalados.
Há, portanto, um caminho de transformação social mais
amplo, que tem que nutrir e ser nutrido por uma desestabilização
das representações dominantes da deficiência e por uma vitalidade
democrática, identitária e cidadã. O modelo social da deficiência
e as suas “versões” retiram a deficiência do corpo, conforme é
naturalizada a partir dos discursos hegemónicos, para a
relocalizar nas relações de opressão, aquelas que vêm forjando o
esmagamento das aspirações das pessoas com deficiência. A assunção
da deficiência como uma questão de cidadania e como uma questão de
direitos tem importantes implicações:
1- Na politização da relação entre os Estados e as organizações
das pessoas com deficiência, que assim passam a dialogar com os
poderes estabelecidos como agentes de reivindicação, de luta
contra a discriminação, de inclusão ativa e de transformação
sociopolítica.
2- Na lógica que preside aos serviços que são prestados às pessoas
com deficiência, não mais o assistencialismo reabilitacional, mas
sim a assunção de que o imperativo de igualdade de oportunidades
se cumpre pela capacitação dos sujeitos marginalizados e pelo
derrubar das múltiplas barreiras que desqualificam as suas
diferenças.
3- Na transformação cultural das concepções de deficiência, não
mais trágicas e fatalistas, mas positivas e militantes, apostadas
na afirmação dos múltiplos itinerários de realização a serem
vividos numa sociedade inclusiva.
4- Na transformação da subjectividade das pessoas com deficiência,
onde os valores hegemónicos promovem a interiorização de fatalismo
e incapacidade, o idioma dos direitos afirma, e continuará
afirmando, a insurgência das vidas subjugadas pelos edifícios da
nossa cultura 6.
FIM
Notas:
-
1. "bell hooks", grafado em minúsculas, é o pesudónimo
literário de Gloria Jean Watkins.
-
2. Glaucoma é uma doença que pode progredir lentamente ou de
um modo rápido, pode ser hereditária ou adquirida no período de
gestação, e que consiste numa ineficaz remoção do humor aquoso que
provoca uma maior pressão no globo ocular. À medida que aumenta a
tensão no globo ocular, a visão vai diminuindo progressivamente.
-
3. Conceitos a que, na língua portuguesa, só podemos aceder
através de uma tradução muito grosseira e demarcação que equacione
impairment a “deficiência” e disability a “incapacidade”.
-
4. No original: “Impairment: Lacking part of or all of a
limb, or having a defective limb, organ or mechanism of the body.
Disability: the disadvantage or restriction of activity caused by
a contemporary social organization which takes no or little
account of people who have a physical impairments and thus
excludes them from participation in the mainstream of social
activities. Physical disability is therefore a particular form of
social oppression.”
-
5. No original: “The real problem of blindness is not the
loss of eyesight. The real problem is the misunderstanding and
lack of information which exists. If a blind person has proper
training and if he has opportunity, blindness is only a physical
nuisance".
-
6. Relativamente à tensão que muitas vezes se coloca às
pessoas cegas no uso da bengala branca, uma assunção pública da
cegueira nem sempre destituída de valores contraditórios, analisei
noutro lugar (Martins, 2006) de que modo a hegemonia da “narrativa
da tragédia pessoal” pode colonizar a subjetividade das pessoas
com deficiência, repercutindo-se fortemente nos cotidianos, nos
mundos da vida. Nesse sentido, relevo a decisiva relação entre a
politização da deficiência e o forjar de uma subjetividade
combativa e capacitada.
Referências Bibliográficas:
-
BARNES, C. The social model of disability: a sociological
phenomenon ignored by sociologists? In: SHAKESPEARE, T. (org.).
The disability reader: social science perspectives. Londres, p.
65-78, 1998.
-
BARNES, C.; MERCER, G; SHAKESPEARE, T. Exploring Disability: a
Sociological Introduction. Cambridge: Polity Press, 1999.
-
BUTLER, J. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of Sex.
Nova Iorque: Routledge, 1993.
-
COOPER, D. A Linguagem da Loucura. Lisboa: Editorial Presença,
1978.
-
HABER, H. Beyond Postmodern Politics. Nova Iorque: Routledge,
1994.
-
HOOKS, B. Killing Rage: Ending Racism. Londres: Penguim Books, Página164
1995.
-
JERNIGAN, K. Blindness: the Myth and the Image. 1970, disponível
em <http://nfb.org/legacy/convent/banque70.htm>. Acesso em 24 de
Março de 2009.
-
LACLAU, E. Emancipations. Londres: Verso, 1996.
-
MARTINS, B. S. E se eu fosse cego: narrativas silenciadas da
deficiência. Porto: Afrontamento, 2006.
-
OLIVER, M. Understanding disability: from theory to practice. Nova
Iorque: St. Martin's Press, 1996.
-
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na
Pós-Modernidade. Porto: Afrontamento, 1999.
-
SHAKESPEARE, T. Joking a Part. Body & Society, v. 5, n. 4, p.
47-52, 1999.
-
STRIKER, H-J. A History of Disability. Ann Arbor: University of
Michigan Press, 1999.
-
WENDELL, S. Toward a Feminist Theory of Disability. In: DAVIS, L.
(org). The Disability Studies Reader. Londres: Routledge, p.
260-278, 1997.
-
XIBERRAS, M. Les théories de l´exclusion. Paris: Méridiens
Klimcksiek, 1993.
ϟ
Bruno Sena Martins
é licenciado em Antropologia pela Universidade de Coimbra e
Doutorado em Sociologia pela mesma instituição. Sempre enleado na questão das representações culturais, tem dedicado o seu trabalho de investigação aos temas do corpo,
deficiência e conflito social.
Em 2006, publicou o livro 'E se Eu Fosse Cego: narrativas silenciadas da deficiência', produto da sua dissertação de mestrado galardoada com Prémio do Centro de Estudos
Sociais para Jovens Cientistas Sociais de Língua Oficial Portuguesa. Foi Research Fellow no Centre for Disability for Disability Studies (CDS) na School of Sociology and
Social Policy da Universidade de Leeds, entre Abril e Junho de 2007.
Na sua tese de doutoramento - 'Lugares da Cegueira: Portugal e Moçambique no Trânsito de Sentidos' - explorou as relações entre as histórias de vida das pessoas cegas e
os valores culturais dominantes através dos quais a cegueira é pensada. Paralelamente, no contexto do CES tem integrado a equipa de vários projectos de investigação que
se dedicam a temas como Guerra Colonial portuguesa e a inclusão social das pessoas com deficiência.
ϟ
Martins, Bruno Sena (2010),
Deficiência e Política: vidas subjugadas, narrativas insurgentes,
in Marcia Moraes e Virgínia Kastrup (org.), Exercícios de ver e não ver. Rio de Janeiro: Nau, 240-263
22.Out.2012
Publicado por
MJA
|