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 Sobre a Deficiência Visual


António Feliciano de Castilho

- Vida e Obra: 1800 - 1875 -

António Feliciano de Castilho aos 36 anos (1836) e a sua assinatura
assinatura de António Feliciano de Castilho

 


Itinerário Biográfico de um Escritor Cego

[Grandes períodos de uma cronologia castiliana]


1800
Nasce a 26 de Janeiro, em Lisboa, numa casa da velha rua da Torre de S. Roque, segundo filho e primeiro varão do médico José Feliciano de Castilho, ao serviço da Corte como inspector de hospitais, e de Domitília Máxima da Silva - matriz familiar de feição tradicionalista, devota e monárquica.


Quinta dos Azulejos, 1862


«ameno passeio na alva da vida»
1801 - 1809
Infância repartida por Lisboa e seus arredores, nomeadamente na casa dos Azulejos ao paço do Lumiar, ou no bucólico lugar de A-da-Beja para onde a família se afasta por altura da entrada na capital dos primeiros invasores franceses comandados por Junot.

Com 6 anos, inicia a instrução primária na «escola de meninos» de mestre Eusébio; no imediato inverno de 1806-1807, vítima de violento contágio de sarampo, fica irreparavelmente cego.


«minha débil Musa»
1810 - 1816
Entre 1810 e 1815 frequenta, com os irmãos Adriano e Augusto, a Real Escola Literária do Bairro Alto, onde aprofunda os estudos de latim e retórica; e, a partir de 1816, o Mosteiro de Jesus, onde frequenta aulas de filosofia racional e moral.

Desta adolescência, sob a admiração arcádica de António Ribeiro dos Santos e de Agostinho de Macedo, datam os primeiros assomos poéticos em que, para além do muito que permaneceu inédito ou foi destruído, glosa a sentida morte da senhora D. Maria I ou a faustíssima exaltação de D. João VI.



Lapa dos Esteios em Coimbra, 1872


«terra dos nossos anos mais floridos»
1817 - 1826
Período universitário passado na região de Coimbra, onde usufrui de benesses régias, conquanto estudante cego. Com ávida participação em récitas públicas (nas quais distribui folhetos) e outeiros estudantis (em particular os da «sociedade dos amigos da primavera» na Lapa dos Esteios à beira do Mondego), não deixa de polemizar em famosas disputas arcádicas entre «bocagianos» (no seio dos quais se incluía) e «filintistas». Entre a abundante produção poética, ditada ao irmão Augusto - com quem estreita, doravante, forte ligação e alguma dependência -, ora canta as auras da liberdade, ora o regresso do rei absoluto, a intimidade solitária ou o amor distante, um receituário primaveril de grupo ou convictos prazeres bucólicos.


«neste ermo ignaro, frio, mudo...»
1827 - 1834
Semelhante a uma ascética reclusão, a estadia em Castanheira do Vouga, em plena serra do Caramulo e perto do Buçaco, durante a residência paroquial do irmão Augusto, decorreu longe e desfasada do mais crítico período liberal, que compreendeu o reinado miguelista e a guerra civil. O jovem poeta aprofunda o bucolismo poético e o platonismo amoroso no interior patético de uma choupana que baptiza «templo das musas», a par de estudos iniciáticos de registo romântico que irão colocá-lo numa charneira entre o neo-classicismo e o ultra-romantismo.



Bussaco, 1879


«o mundo tal qual é»
1835 - 1846
Pronto a substituir os outeiros pelos salões, a reactivar a uma imagem pública de notoriedade, a actualizar a participação política de cuja realidade estivera afastado, o convívio mundano torna-o representante activo e consagrado de uma mentalidade e de uma cultura que procuram predomínio, a que não faltou a adesão à maçonaria. Publica tudo o que tinha preparado antes, reúne e actualiza colectâneas, acede à influência das revistas e jornais sobre um novo público, sem esquecer a sua veia ininterrupta de tradutor. Daí a adesão ou nomeação para inúmeras academias, arcádias, conservatórios e gabinetes; mas, também, as primeiras polémicas e dissensões.


«para as sementeiras ulteriores»
1847 - 1855
No prolongamento da fase anterior, a partida para Ponta Delgada, iniciou uma cruzada que só terminará, contudo sem sucesso, no Rio de Janeiro: o famoso método Castilho encontra ambiente na população rural da ilha de S. Miguel, completando a actividade de pedagogo com propostas de associação mutualista e de educação sócio-profissional. Regressado o poeta ao continente, entre polémicas e aguerridas batalhas - por vezes verbalmente violentas -, a sua obra pedagógica procura projectar a sua influência



Rio de Janeiro, meados do séc. XIX


«diante das apaixonadas e bulhentas harmonias»
1856 - 1875
Após a morte de Garrett e o exílio de Herculano para Vale de Lobos, chama a si um magistério intelectual sobre a jovem geração que, partindo da revista de poesia O Trovador, julga radicar o seu ultra-romantismo no autor de Os ciúmes do Bardo e de A Noite do Castelo, e encontra na casa deste, a «sua Tíbur», o centro difusor. Transforma este convívio em uma «sociedade do elogio mútuo» e leva aos limites a promoção de um nacionalismo poético - a que não escapa a própria obra, então ampliada e diversificada, de tradutor. O auge da sua influência é-o também da própria decadência: contestado, envolve-se em duras e sucessivas polémicas com uma outra e novíssima geração, de que a célebre «questão coimbra» representa o princípio do fim, não sem a sagração oficial com título de visconde.

 

POESIA E PROSA

António Feliciano de Castilho aos 74 anos
António Feliciano de Castilho aos 74 anos


OS TREZE ANOS
(Cantilena)

 

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro:
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já bailo ao domingo
com as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro;
sou a Senhora Ana,
que mora no outeiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda,
de cima do outeiro.

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co'as patas
Ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas,
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibão largo,
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

dizendo-lhe: «Toma
gibão, domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas co'as outras
e eu danço em terreiro».

Já sou mulherzinha,
já trago sombreiro,
já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do outeiro;
Madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho,
não quero o mineiro:
Mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
co'o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro.

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se ainda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
Ai, céu verdadeiro!
Ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
Casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.


in Escavações Poéticas, 1844

 

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A TOMADA DE COIMBRA

 

[...]

Cristãos, ganhastes Coimbra,
mais que jóia oriental;
mais tu, Coimbra, ganhaste,
que tens fonte baptismal,
e a tua mesquita grande
verás logo em catedral.

Dar meia cidade aos monges
queria o Rei liberal,
mas os monges só quiseram
uma casa monacal,
contentes com Lorvão santo,
seu paraíso terreal.

Foi-se el-Rei a Compostela
com sua gente leal.
De atabales e trombetas
soa estrondo festival;
abrem-se as portas do templo
bem armado e triunfal.

Todos co'o joelho em terra
como cumpre em caso tal,
diziam de agradecidos
ao valedor imortal:
– «Santiago, Santiago,
salvaste o nosso arraial;
salva sempre os Leoneses,
e a gente de Portugal.»

 

in Escavações Poéticas; 1844


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FESTA DO DEUS TÉRMINO

Finda a noite, alvoreça a costumada
festa do deus que nos comparte os campos.

Quer tosca pedra, ó Término, te embleme,
quer tronco informe pela mão de antigos
enterrado no chão, sempre és deidade.

Para ti donos dois, de opostas partes,
coroa e coroa te cingem; bolo e bolo
te vem de cá, de lá; como à porfia,
aí se te engenhou ara campestre.

Lá nos traz a açodada fazendeira
no seu testo quebrado as áscuas vivas
que apurou do borralho. O bom do velho
racha a lenha miúda, ergue-a em pirâmide;
sua a cravar no chão ramos festivos.
Agora em cascas secas ceva o fogo,
tendo em pé ao seu lado, em quanto assopra,
o filhinho abraçado a largo cesto.
Três vezes dali tira a lança ao fogo
punhados de áurea Ceres. Toma os favos,
que a filha pequenina lhe apresenta
pelo meio cortados. Trazem outros
o vinho; tudo aqui se liba às chamas.
[...]

in A Felicidade pela Agricultura, 1849

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A SOLIDÃO

Tem a solidão isto de comum com o silêncio e a escuridade: espanta; e aturde quem nela cai; mas, logo que o ouvido, desadormentado dos sons fortes, aprende a conversar com a mudez; tanto que os olhos, desofuscados dos luzeiros intensos, se exercitam em caçar espectros de raios. fosforescências indecisas, que são como que os infusórios das trevas, descerrou-se o negrume em brilhantismo, a calada aviventou-se de diálogos, a solidão, que parecia o nada, é o teatro com o seu drama, é um mundo novo com um sistema completo de existências imprevistas e apropriadas. [...]

in A Chave do Enigma, 1861

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O Método Repentino de Leitura de Castilho (1848)

imagem de livro: Método Castilho


Inspirado no método de leitura francês de Lemare, foi adaptado pelo poeta António Feliciano de Castilho e designado por Método Repentino, ou Método Português, ou, ainda, por Método de Castilho. Estruturado em 20 lições, iniciava-se com o conhecimento das letras do alfabeto, em quadros, ministradas uma a uma, na forma impressa, maiúscula e minúscula. As letras eram, então, expostas em quadros próprios e associadas a imagens sugestivas que lhes eram adequadas. Assim, a cada letra poderiam corresponder imagens figurativas, humanas, vegetais, animais, objectos vários correntes, etc.

imagem de O Método Castilho - letra B
in  "Castilho, Leitura Repentina" - José Maria Teixeira Dias

 

«Cada desenho não representava apenas determinada letra; havia também certa história graciosa que lhe estava ligada, destinada a fazer lembrar, à criança, a leitura da respectiva letra. No caso do G, para servir de exemplo, a lembrança era a de que a água, ao sair muito suavemente do repuxo, emitia o som ge. Quando o mestre apresentava o quadro com a letra, o aluno dizia ge, e também dizia ge se o mestre, em vez do quadro, pronunciava a palavra repuxo. Assim (e o exemplo é tirado do próprio Método Castilho) se o professor dizia, de enfiada, Medida, Árvore, Pandeiro, Pateta, Árvore, os meninos respondiam em coro Maria, pois cada uma das daquelas palavras correspondia, segundo o código convencionado, a cada uma das cinco letras da palavra Maria.» (Carvalho, 1996: 583-585).

in MCG dos Reis, 2003

 

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LISTA DE OBRAS de António Feliciano de Castilho

Cartas de Eco a Narciso (1821)
A Primavera (1822)
Amor e Melancolia (1828)
A Noite do Castelo (1836)
Os Ciúmes do Bardo (1836)
Quadros da História de Portugal (1838)
Escavações Poéticas, 1844
O Presbitério da Montanha (1844)
Crónica Certa e Muito Verdadeira de Maria da Fonte, 1846
Eco da Voz Portugueza por Terras de Santa Cruz, 1847
A Felicidade pela Agricultura (1849)
Tratado de Versificação Portuguesa, 1851
Felicidade pela Instrução, 1854
A Chave do Enigma, 1861
O Outono (1863)
Mil e Um Mistérios (1845, 1907)

Obras Completas, org. por Júlio de Castilho, 1903-1910


Traduções:
A Lírica de Anacreonte; Metamorfoses e Amores, de Ovídio; Geórgicas, de Virgílio; Médico à Força, Tartufo, O Avarento, Doente de Cisma, Sabichonas e Misantropo, de Molière; O Sonho de uma Noite de S. João, de Shakespeare; Fausto, de Goethe (1872); D. Quixote de La Mancha, de Cervantes.


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Fontes: Biblioteca Nacional, Projecto Vercial e MCG dos Reis

 


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29.Nov.2013
Publicado por MJA