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Louis Braille |
4 Jan.1809—6 Jan.1852
Há cem anos falecia Louis Braille em Coupvray, um pequeno
povoado francês
distante cerca de 40 Km. de Paris. Um ser humano completo,
embora cego, e grande porque havia utilizado ao máximo sua perda de visão
para liberar
seus companheiros de aflição.
Viveu e morreu na luz gloriosa de um espírito vitorioso e de
um talento
brilhante e criador. A finalidade deste artigo é a de
depositar meu tributo no Santuário que ele ocupa para sempre nos corações dos
cativos da escuridão para os quais manteve acesas "lâmpadas alimentadas
pela chama jovem da esperança".
Braille, acredito, foi um dos precursores de mudanças
inimagináveis na sociedade e nos princípios que a consolidam, pois forjou sua
vontade através
de uma invenção para moldar o mundo dos cegos a fim de que
hoje seu espírito e sua mente sejam diferentes. Seu panorama de vida é
diferente porque
um homem cego ousou afirmar sua humanidade e estabelecer para
eles um sistema prático de escrita e leitura que podia ser utilizado para
fins educativos.
Louis nasceu em 1809 enquanto os ventos revolucionários
sopravam em França.
Foi testemunha das taxações impostas por Napoleão aos
camponeses em forma
de pão, vacas, éguas, e forragens para o grande exército,
depois de sua derrota na Rússia. As pessoas tinham ainda que pagar tributos em
dinheiro. Seu pai, Simon René, pagou uma taxa de 340 francos. Mais tarde, os
granadeiros
russos passaram por Coupvray e Simon René foi obrigado a
entregar sua vaca.
Posteriormente, houve uma invasão de soldados prussianos e ele
foi forçado
a alojá-los durante 74 dias.
Louis não podia deixar de notar as atribulações das pessoas à
sua volta ou
ouvir suas discussões políticas, muitas vezes exaltadas.
Aos três anos de idade, Louis furou o olho acidentalmente
com um instrumento pontudo na oficina de seu pai, um seleiro, e como
resultado nunca
mais viu a luz do dia. Pouco se conhece sobre os efeitos da
cegueira em Louis
como criança. Porém, a julgar pelo brilho de sua mente mais
tarde na escola,
eu o imagino como um menino excepcionalmente inteligente,
cheio de curiosidade por tudo que pudesse tocar. Ainda mais, ele teve a
felicidade de contar com pais muito afetuosos e tenho a certeza de que ele
respondeu a seu amor, como uma planta ao calor do sol.
Sabe-se que cursou a Escola da Aldeia com crianças videntes,
onde foi reconhecido como um aluno muito promissor e é fácil imaginar como
sentiu a atmosfera carregada de ebulição, e acontecimentos imprevisíveis.
Sem dúvida
captou parte da candente energia que estava em efervecência
nas almas e nas
mentes do povo francês. Possivelmente, foi devido a esta
circunstância que
medidas foram tomadas para sua matrícula como aluno na "Institution des
Jeunes Aveugles" de Paris.
Institution Nationale des Jeunes Aveugles -
installée 56, boulevard des Invalides à Paris, en 1844
- Musée Valentin Haüy -
Certamente, a força impulsora de uma nova França e, conforme
se provou, de
mudanças mundiais desenvolveu-se também em Louis antes de
seus treze anos,
quando seu pai o levou para a institutição, e nunca foi
extinta através de
toda sua vida.
A despeito de seu horror à violência, acreditou na república e
suas novas implicações. Quando foi nomeado professor da Instituição, aplicou
ativamente a liberdade proclamada pelos direitos do homem, a seus
companheiros cegos que
não tinham conhecimento anterior de como utilizar a iniciativa
e auto determinação essenciais ao desenvolvimento individual. Sua invenção
de um sistema
de pontos em relevo como instrumento para sua educação, foi o
meio pelo qual
atingiu sua libertação intelectual.
Tenho lido todos os fatos que consegui sobre sua apreciação do
mundo e não
encontrei nenhuma declaração sobre sua "filosofia de vida".
Entretanto, quando era professor na institutição, ensinou o Sistema
Braille a seus alunos
como meio para alcançar o próprio desenvolvimento intelectual;
alimentou seu
amor e busca de conhecimentos e treinou-os para serem
habilidosos e eficientes, como trabalhadores ou como músicos. Foi um educador
moderno no melhor
sentido, reconheceu o direito e a necessidade dos cegos de
desenvolverem personalidades tão naturais e independentes como a dos videntes.
Parece que nunca se julgou como uma criatura afastada da humanidade vidente.
Os cegos estavam somente começando a emergir da degradação que
os perseguiu
através dos séculos. Embora os alunos da "Institution des
Jeunes Aveugles"
de Paris recebessem muito carinho e a melhor instrução
possível, os cegos ainda, em conjunto, eram evitados e considerados vítimas da
ira divina.
Na instituição, diversos caracteres em relevo foram
experimentados na esperança de que os cegos pudessem usá-los para ler e escrever.
Valentin Hauy
Valentin Hauy fundador da "Institution des Jeunes Aveugles", tinha
projetado um tipo de relevo parecido com as maiúsculas comuns. Infelizmente,
seu sistema
não satisfez adequadamente às exigências fisiológicas do dedo
dos leitores.
Os caracteres em relevo de Valentin Hauy eram muito
espaçados e usavam uma fonte bastante ornamental
Como resultado, os caracteres foram muito modifocados e outros
tipos novos
foram apresentados, com base no princípio de que os cegos e os
videntes deveriam empregar a mesma espécie de tipo impresso na medida do
possível. Assim, o número de leitores continuava desalentadoramente
pequeno, mas obviamente, sem livros os cegos não poderiam ser educados.
Charles Barbier
Charles Barbier, um oficial de exército que havia se
interessado por diversos meios de comunicação e correspondência, inventou um método
no qual as
palavras eram representadas por sinais compostos por pontos
dispostos em
posição diferentes, perfurados no papel por meio de um
dispositivo simples.
A base do sistema Barbier era de doze pontos e ele acreditava
que dela, todo
tipo de combinação poderia ser feito para todos os fins.
Sistema Barbier. Originalmente, a letra b tinha 4 pontos
e o z tinha 9.
Ao todo a célula completa tinha 12 pontos,
o dobro da actual célula braille
Porém, esse sistema apresentava muitos inconvenientes. Ocupava muito espaço e
era incômodo
demais para ser captado pelos centros nervosos do dedo. Ainda
mais, Barbier
não seguiu as regras da ortografia; seu código era fonético e
nisso residia
um obstáculo para os alunos e uma ameaça às suas
possibilidades de atingir
um nível alto de escolaridade.
Foi Louis Braille que, possuidor de característica francesa
de adaptação,
reduziu a base de doze pontos para seis e demonstrou que seis
pontos eram
suficientes para o alfabeto, sinais de pontuação, matemática,
e música. Assim, o rápido e florescente crescimento do gênio, originário
daquela assombrosa semente de talento, forjou a maior realização para os
cegos.
Depois de sua nomeação como professor da instituição,
modificou e aperfeiçoou seu sistema para escrever música e, mediante este passo,
colocou o músico cego em pé de igualdade com o vidente. Sob a direção
indulgente de M. Pignier, ele ensinou matemática, gramática, geografia, história,
música, em
Braille, aos alunos. Seus magníficos poderes de ensino deliciaram M. Pignier e inspiraram confiança. Finalmente, Louis Braille publicou uma explicação escrita do seu
procedimento talentoso de escrever com pontos:
A primeira edição foi feita em relevo em 1829, e exibida na Exposição de
Produtos Industriais de 1834. Foi feita uma segunda edição Braille desse
panfleto em 1837.
Braille estava agora seguro de seu triunfo, mas continuou
humilde e absorvido em seu trabalho.
Para fugir de interrupções dedicou-se às suas experiências
durante as primeiras horas da manhã e às vezes até altas horas das noite. O
retrato mental
dele carregando papel, reglete, punção, outras ferramentas de
trabalho para
seu quarto e adormecendo entre elas, comove-me
inexprimivelmente.
Braille estava literalmente se esgotando. Foi vítima de
tuberculose pulmonar,
e às vezes tinha o pressentimento de uma morte prematura. No
entanto, nunca
se queixou.
Quando uma hemorragia o afligia, voltava para casa com as
recomendações cordiais da instituição para umas férias de semanas, ou meses, ou
até anos.
Em seu retorno para a instituição, retomava seu trabalho
novamente com coragem, amparava seus alunos "nas horas negras e nos caminhos
tortuosos",
e manteve uma disciplina gentil, embora firme, entre as
crianças.
Parecia impossível que na paz e no abrigo benevolente da "Institution des
Jeunos Aveugles" qualquer coisa poderia acontecer para
destruir a felicidade
de Louis Braille.
No entanto, uma mágoa mais cruel do que a cegueira sobreveio.
Seu devoto amigo M. Pignier foi demitido da instituição em
1840 e o novo diretor, M. Dufau, era hostil ao sistema de Louis Braille.
M. Dufau acreditava, honestamente, que o uso de qualquer
alfabeto criado
pelos cegos, serviria apenas para segregá-los ainda mais e
sabia que os professores videntes tinham medo de perder seus cargos, se fosse
possível para
aqueles sem visão, ensinar por meio do processo Braille.
Depois do retorno
de Louis de uma de suas férias forçadas em 1843, ele descobriu
que Dufau havia trocado as dimensões das letras em relevo de Valentin Hauy
e queimado
todos os livros antigos da instituição.
Caracteres de Alston
Dufau adopta o sistema inglês, inventado por Alston para o Asilo de Cegos em
Glascow. Difere de Hauy, na medida em que usa maiúsculas simples e direitas.
Sem saber, ele havia
preparado seu
próprio Waterloo; porém, por ora, parecia que Louis havia sido
derrotado.
Considerando o trabalho mental que Braille realizou, é um milagre que ele
não tenha sucumbido. Entretanto, Braille não era um lutador
por temperamento e, como Cristo, sofreu em silêncio. Serenamente, continuou
suas aulas e
aguardou o dia da sua justificação.
Havia um homem inteligente, John Gaudet, atuando como diretor
assistente
na instituição, que inicialmente tomou o partido de Dufau na
controvérsia
sobre o alfabeto de pontos. Mas Gaudet era um observador e
logo percebeu
as enormes vantagens do processo de Louis para a leitura e
escrita. Publicou um panfleto de 15 páginas intitulado "Relatório sobre o
uso pelos cegos do Sistema de Pontos em Relêvo", e em 1844, leu-o em voz
alta na inauguração do novo prédio da instituição que havia sido mudada
da Rua Victor para instalações cômodas no Boulevard des Invalides, onde
ainda permanece.
No panfleto, Gaudet descreve o sistema tátil de Barbier e
Braille e prestou
homenagem ao talento de Louis.
Foi feita uma demostração da facilidade e do prazer com que o
tipo de pontos em relevo podia ser lido por crianças cegas. Seu sucesso
foi tão pronunciado, tão indesmentível, que Dufau o aceitou como o modo
oficial de instrução no Instituto.
Finalmente, estando seguro de que sua tarefa com os cegos
estava completa,
Louis voltou ao seu trabalho de melhorar suas anotações
musicais em Braille,
mas sua saúde debilitada não permitiu que ele a realizasse.
Relutantemente,
permitiu que outros pilotassem ao porto, o barco que ele havia
tão fielmente
comandado. No entanto, sua alma estava em paz. Quando estava
na enfermaria,
um mês antes de sua morte, disse a um amigo: "Oh!
impenetrável mistério do
coração humano! Estou convencido de que a minha missão na
terra está terminada!". Assim passou pela terra uma das corajosas e puras
revelações de um
verdadeiro anjo.
A atividade incansável de sua mente aberta e científica, sua
calma e paciência, sua criatividade como professor, a riqueza de seu coração
dispendida em
inúmeros presentes secretos tirados de suas poucas economias,
para os necessitados, tanto para cegos como para os videntes, são um legado
de muito valor.
Os fachos de luz dos faróis que acendeu e que têm-se espalhado
desde sua morte, são outro legado de Louis Braille. Um desses raios caiu
sobre mim quando
eu era menina, mal liberta da masmorra da surdez-cegueira. Por
uma das pequenas ironias da vida, não foi o sistema originalmente concebido por Louis
Braille, porém uma versão mista, chamada Braille Americano
que chegou às
minhas mãos.
Mais tarde, ao receber alguns livros da Inglaterra, fiquei
encantada com os
pontos muito bem expostos do alfabeto, e outras qualidades
excelentes que
tornaram para mim um prazer ler o Braille europeu. Anos mais
tarde, estudei
no Colégio Radcliffe com o auxílio de livros em Braille
europeu, não somente em inglês, mais também em francês, alemão e grego. O mundo
ao meu redor
brilhou de novo com tesouros de poesias, e pensamentos de
filosofia, história e literatura de outras terras. Maravilhada, senti renovada
a minha condição de ser humano e saudei o "Congresso dos grandes,
dos sábios,
os ouvidos que ouvem,
os olhos que vêem"
que me touxeram inspiração de todas as terras e tempos.
grafia Braille actual
Essa foi a atitude que a minha professora Anne Sullivan adotou
comigo. Ela
nunca permitiu que eu fosse levada pela idéia de que era
diferente dos outros. Ela me tratou como qualquer criança que pudesse ver ou
ouvir, e, por
esse motivo, minha vida tem sido completa e satisfatória. [ver A
História da Minha Vida
por Helen Keller]
Nem por um momento esqueço que a primeira necessidade do cego,
que possa
ser treinado, é uma oportunidade de trabalhar para o seu
sustento próprio
e ser apoiado pela dignidade social, resultante da
competência. Porém, não
fosse pelo peocesso Braille de ler e escrever, o mundo dos
cegos seria inteiramente insípido pior do que o dos videntes sem livros em
tinta.
Os cegos estão sujeitos a inúmeros impedimentos e restrições.
Somente o trabalho não basta para fazê-los esquecer as privações que
suportam. Poucas pessoas que enxergam são capazes ou estão dispostas a ler para
eles durante algum tempo.
Quanto às crianças cegas, elas simplesmente não podem ser
ensinadas sem o
Braille. O processo de tranmitir-lhes conhecimentos, seria do
contrário, vagaroso, desajeitado, e confuso. O método de Louis Braille deu,
à educação
dos jovens cegos, uma estabilidade e facilidade até então
nunca sonhada. Sem o Braille seriam negados aos jovens cegos muitos caminhos
preciosos para estudos superiores, experiências científicas, uma carreira
musical e a
sabedoria certamente lhes seria vedada.
Com base na minha própria experiência, agradeço profundamente
a Louis Braille que derramou no Saara da cegueira, seus dons de fertilidade
e alegria inexauríveis.
Foi me dado o gratificante privilégio de trabalhar com
Winifred Hold, que
fundou a "New York Lighthouse for the Sightless", e ainda
com a "American Fundation for the Blind" para estabelecer o Braille
europeu como um
elo entre os vários países. Esse sistema provou ser de
aplicação universal
a qualquer língua, na escrita nornal ou em taquigrafia, à
matemática e à
música.
Muitos trabalhos mundiais sobre trabalhos para cegos na índia,
Irã, Iraque,
Arábia Saudita, Ceilão e partes da Ásia, ajudaram a divulgar o
Braille, praticamente como o seu inventor o deixou. Alguns governos
fizeram programas
de distribuição gratuita de aparelhos para escrita a seus
cegos. Na medida em
que os leitores de Braille foram suficientemente numerosos,
grandes bibliotecas de livros em relevo estarão abertas para eles na Ásia e
na África.
É a hora exata para que a genialidade de Louis Braille ser
reconhecida em toda a terra e de se contar a história da coragem divina e de
coração de ouro
com os quais ele construiu uma grande e firme escada para que
os milhões de
pessoas cegas e cegas surdas subam da escuridão sem esperança
para o Intelecto Imortal. [ler Louis Braille:
A invenção do braille e a sua importância na vida dos cegos
por José António Baptista]
FIM
ϟ
LOUIS BRAILLE: UM FAROL PARA UM MUNDO DE ESCURIDÃO
por
Helen Keller
Conselheira do "Bureau of National and International Relations" da 'American
Fundation for the Blind' e da 'American Fundation for the Overseas Blind' - hoje
"Helen Keller International"
Publicado no "The New York Times Magazine", 6 de Janeiro de 1952
Fonte:
FUNDAÇÃO PARA O LIVRO DO CEGO NO BRASIL
3.Jan.2013
Publicado por
MJA
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