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Mendiga cega em El Salvador - fotografia
de Gary Moore
Movendo-se às cegas na penumbra do amanhecer, Mina pôs o vestido sem mangas que
na noite anterior tinha pendurado junto à cama e revirou o baú em busca das
mangas postiças. Procurou-as depois nos pregos das paredes e por trás das
portas, se esforçando para não fazer barulho e não despertar a avó cega que
dormia no mesmo quarto. Mas quando se acostumou à escuridão, percebeu que a avó
tinha se levantado e foi à cozinha perguntar-lhe pelas mangas.
— Estão no banheiro — disse a cega. — Lavei-as ontem à tarde.
Lá estavam elas, penduradas em um arame com dois prendedores de madeira. Ainda
estavam úmidas. Mina voltou à cozinha e estendeu as mangas sobre as pedras do
fogão. À sua frente, a cega mexia o café, com as pupilas mortas fixas no rebordo
de tijolos do corredor, onde havia uma fileira de vasos com ervas medicinais.
— Não apanhe mais minhas coisas — disse Mina. — Nestes dias não se pode contar
com o sol.
A cega virou o rosto em direção à voz.
— Eu tinha esquecido que era a primeira sexta-feira — disse.
Após comprovar com uma aspiração profunda que o café já estava pronto, retirou a
panela do fogão.
— Ponha um papel por baixo, porque essas pedras estão sujas — disse.
Mina passou o dedo sobre as pedras do fogão. Estavam sujas, mas com uma crosta
de fuligem endurecida que não sujaria as mangas se não as esfregassem contra as
pedras.
— Se sujar, a culpada será você — disse.
A cega tinha se servido de uma xícara de café.
— Você está com raiva — disse, puxando uma cadeira até o corredor. — É
sacrilégio comungar quando se está com raiva.
Sentou-se para tomar o café de frente para as rosas do pátio. Quando soou o
terceiro toque para a missa, Mina tirou as mangas do fogão, e ainda estavam
úmidas. Mas vestiu-as. O padre Ângelo não lhe daria a comunhão com um vestido de
ombros descobertos. Não lavou a cara. Tirou com uma toalha os restos do ruge,
apanhou no quarto o livro de orações e a mantilha, e saiu para a rua. Um quarto
de hora depois estava de volta.
— Você vai chegar depois do evangelho — disse a cega, sentada diante das rosas
do pátio.
Mina passou diretamente para o reservado.
— Não posso ir à missa — disse. — As mangas estão molhadas e toda a minha roupa
está sem passar. — Sentiu-se perseguida por um olhar clarividente.
— Primeira sexta-feira e você não vai à missa — disse a cega.
De volta do reservado, Mina serviu-se de uma xícara de café e sentou-se junto à
soleira da porta, ao lado da cega. Mas não pôde tomar o café.
— A culpa é sua — murmurou, com um rancor surdo, sentindo que se afogava em
lágrimas.
— Você está chorando — exclamou a cega.
Pôs o regador junto dos vasos de orégão e saiu ao pátio, repetindo:
— Você está chorando.
Mina pôs a xícara no chão antes de se levantar.
— Estou chorando de raiva — disse. E acrescentou ao passar perto da avó: — Você
tem que se confessar, porque você me fez perder a comunhão da primeira
sexta-feira.
A cega permaneceu imóvel esperando que Mina fechasse a porta do quarto. Depois
andou até o fim do corredor. Inclinou-se, tateando, até encontrar no chão a
xícara intacta. Enquanto derramava o café na panela de barro, continuou dizendo:
— Deus sabe que eu tenho a consciência tranquila.
A mãe de Mina saiu do quarto.
— Com quem você está falando? — perguntou.
— Com ninguém — disse a cega. — Já lhe disse que estou ficando louca.
Trancada no seu quarto, Mina desabotoou o corpete e tirou três chavezinhas que
levava penduradas com um alfinete de segurança. Com uma das chaves abriu a
gaveta inferior do armário e tirou um baú de madeira em miniatura. Abriu-o com a
outra chave. Dentro tinha um pacote de cartas em folhas coloridas, atadas com um
elástico. Guardou-as no corpete, pôs o bauzinho em seu lugar e voltou a fechar a
gaveta com chave. Depois foi ao banheiro e jogou as cartas na privada.
— Pensei que você estivesse na missa — disse-lhe a mãe.
— Ela não pôde ir — interveio a cega. — Eu me esqueci de que era a primeira
sexta-feira e lavei as mangas ontem à tarde.
— Ainda estão úmidas — murmurou Mina.
— Ela teve que trabalhar muito esses dias — disse a cega.
— Tenho que entregar cento e cinquenta dúzias de rosas na Páscoa — disse Mina.
O sol esquentou cedo. Antes das sete, Mina instalou na sala seus apetrechos para
fazer rosas artificiais: uma cesta cheia de pétalas e arames, uma caixa de papel
crepom, duas tesouras, um rolo de barbante e um vidro de cola. Pouco depois
chegou Trinidad, com sua caixa de papelão debaixo do braço, perguntando-lhe por
que não tinha ido à missa.
— Não tinha mangas — disse Mina.
— Podia arranjar emprestadas — disse-lhe Trinidad.
Puxou uma cadeira para sentar-se junto à cesta de pétalas.
— Já era tarde — disse Mina.
Terminou uma rosa. Depois aproximou a cesta para frisar as pétalas com a
tesoura. Trinidad pôs a caixa de papelão no chão e entrou no trabalho.
Mina examinou a caixa.
— Você comprou sapatos? — perguntou.
— São ratos mortos — disse Trinidad.
Como Trinidad era habilíssima em frisar pétalas, Mina resolveu fazer talos de
arame forrados com papel verde. Trabalharam em silêncio sem notar o sol que
avançava na sala decorada com quadros idílicos e fotografias familiares. Quando
acabou os talos, Mina voltou para Trinidad um rosto que parecia feito de algo
imaterial. Trinidad frisava com admirável desembaraço, movendo apenas a ponta
dos dedos, as pernas muito juntas. Mina observou seus sapatos masculinos.
Trinidad evitou o olhar, sem levantar a cabeça, apenas arrastando os pés para
trás e interrompeu o trabalho.
— Que aconteceu? — disse.
Mina inclinou-se para ela.
— Foi-se embora — disse.
Trinidad soltou as tesouras no colo.
— Não.
— Foi — repetiu Mina.
Trinidad olhou-a sem piscar. Uma ruga vertical dividiu suas sobrancelhas.
— E agora? — perguntou.
Mina respondeu sem tremor na voz.
— Agora, nada.
Trinidad despediu-se antes das dez.
Liberada do peso de sua intimidade, Mina reteve-a por um momento, para jogar os
ratos mortos no reservado. A cega estava podando as roseiras.
— Adivinha o que tenho nesta caixa — disse-lhe Mina ao passar por ela.
Balançou com os ratos.
A cega prestou atenção.
— Balance-a outra vez — disse.
Mina repetiu o movimento, mas a cega não pôde identificar os objetos, depois de
escutar pela terceira vez com o indicador apoiado no lóbulo da orelha.
— São ratos que caíram esta noite nas ratoeiras da igreja — disse Mina.
Na volta passou junto à cega sem falar. Mas a cega seguiu-a. Quando chegou à
sala, Mina estava sozinha junto à janela fechada, acabando as rosas artificiais.
— Mina — disse a cega. — Se você quer ser feliz, não se confesse com estranhos.
Mina olhou-a sem falar. A cega ocupou a cadeira diante dela e tentou intervir no
trabalho. Mina impediu-a.
— Você está nervosa — disse a cega.
— Por culpa sua — disse Mina.
— Por que você não foi à missa? — perguntou a cega.
— Você sabe melhor do que ninguém.
— Se tivesse sido pelas mangas você não teria tido o trabalho de sair de casa —
disse a cega. — No caminho tinha alguém esperando e que lhe causou alguma
contrariedade.
Mina passou as mãos diante dos olhos da avó, como que limpando um cristal
invisível.
— Você é adivinha — disse.
— Você foi ao banheiro duas vezes esta manhã — disse a cega. — Nunca vai mais de
uma vez.
Mina continuou fazendo rosas.
— Você seria capaz de me mostrar o que está guardado na gaveta do armário? —
perguntou a cega.
Sem se apressar Mina espetou a rosa no marco da janela, tirou as três
chavezinhas do corpete e colocou-as nas mãos da cega. Ela mesma fechou-lhe os
dedos.
— Vai lá e olha com seus próprios olhos — disse.
A cega examinou as chavezinhas com as pontas dos dedos.
— Meus olhos não podem ver no fundo do reservado.
Mina levantou a cabeça e então experimentou uma sensação diferente: sentiu que a
cega sabia que a estava olhando.
— Se você está tão interessada nas minhas coisas, pule no fundo da fossa —
disse.
A cega evitou a interrupção.
— Você sempre escreve na cama até de madrugada — disse.
— Você mesma apaga a luz — disse Mina.
— E depois você acende a lanterna portátil — disse a cega. — Pela sua respiração
eu poderia então dizer o que está escrevendo.
Mina fez um esforço para não se alterar.
— Bom — disse sem levantar a cabeça. — Supondo que seja assim, o que tem isso de
particular?
— Nada — respondeu a cega. — Só que eu fiz você perder a comunhão da primeira
sexta-feira.
Mina recolheu com as duas mãos o rolo de barbante, as tesouras e um punhado de
talos e rosas sem terminar. Pôs tudo dentro da cesta e encarou a cega.
— Você quer então que eu diga o que é que fui fazer no reservado? — perguntou.
As duas permaneceram em suspenso, até que Mina respondeu à sua própria pergunta:
— Fui cagar.
A cega jogou as três chavezinhas na cesta.
— Seria uma boa desculpa — murmurou, dirigindo-se à cozinha. — Você teria me
convencido se não fosse a primeira vez em sua vida que eu ouço você dizer uma
vulgaridade.
A mãe de Mina vinha pelo corredor em sentido contrário, carregada de galhos
espinhosos.
— Que houve? — perguntou.
— Houve que eu estou louca — disse a cega. — Mas pelo visto só me mandarão para
o manicômio quando eu começar a jogar pedras.
FIM
LOS FUNERALES DE LA MAMÁ GRANDE Uma coletânea de oito contos de um dos maiores autores da América Latina do século XX, o mestre do realismo mágico Gabriel García Márquez. Nos contos de
'Os funerais da Mamãe Grande', uma das primeiras obras de García Márquez, respira-se o ar de Macondo: nas flores embrulhadas em jornal trazidas pela mãe do ladrão para a cova do filho; na singular cena do dentista que extrai o dente de um dos homens mais poderosos da região; no sumiço das bolas de bilhar, crime que movimenta toda a cidade em busca do cruel vilão; no esplendor da gaiola de Baltazar, encomendada e depois recusada por um coronel, santificando seu criador; na tristeza da viúva Montiel, que vive abandonada; na melodia dos pássaros que morrem e de ratos dizimados, e, finalmente, nos esplendorosos funerais da poderosa Mamãe Grande, honrados pela presença do presidente da república e de Sua Santidade, o papa.
Os funerais da Mamãe Grande é a mistura do trivial e do fantástico, é a trágica monotonia da vida em uma aldeia cortada por relâmpagos de fatalidade que jogam luz inesperada e estranha sobre a alma das pessoas – é a densa humanidade e a mestria artística do grande escritor colombiano. Nos oito contos deste livro, Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1982, faz uma viagem sentimental por sua cidade natal, sem deixar de lado um olhar crítico sobre a sofrida realidade social, a pobreza da terra e o domínio dos coronéis.
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Os Funerais da Mamãe Grande
Gabriel García Márquez
-contos-
Título original espanhol: LOS FUNERALES DE LA MAMÁ GRANDE
1962
tradução Édson Braga.
1.ª ed. - Rio de Janeiro
Record, 2019.
30.Abr.2023
Publicado por
MJA
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