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SOBRE A DEFICIÊNCIA VISUAL


As Mênades

Julio Cortázar

Les Ménades d'après une nouvelle de Julio Cortazar - Franck-Bernard Gaulier, 2012
Les Ménades d'après une nouvelle de Julio Cortazar - Franck-Bernard Gaulier, 2012


Passando-me um programa impresso em papel creme, Seu Peres me levou até a plateia. Fila nove, ligeiramente para a direita: o perfeito equilíbrio acústico. Conheço bem o Teatro Corona e sei que tem caprichos de mulher histérica. Aconselho a meus amigos que não aceitem nunca a fila 13, porque há uma espécie de bolsa de ar onde não entra a música; nem também o lado esquerdo das galerias, porque, como no Teatro Comunal de Florença, alguns instrumentos dão a impressão de se afastar da orquestra, flutuar no ar, e é assim como uma flauta que pode ficar a soar a três metros da gente enquanto o resto continua corretamente no palco, o que será pitoresco, mas muito pouco agradável.

Dei uma olhada ao programa. Teríamos O Sonho de uma Noite de Verão, Don Juan, O Mar e a Quinta Sinfonia. Não pude fazer menos que rir ao pensar no Maestro. Uma vez mais a velha raposa arranjara seu programa de concerto com aquela insolente arbitrariedade estética que encobria um profundo olfato psicológico, rasgo comum nos régisseurs de music-hall, nos virtuoses do piano e nos promotores de luta-livre. Só eu, de puro aborrecimento, podia me meter em um concerto e ter, depois de Strauss, Debussy, e ainda por cima Beethoven, contra todos os mandamentos humanos e divinos. Mas o Maestro conhecia seu público, organizava concerto para os frequentadores do Teatro Corona, quer dizer, para gente tranquila e bem disposta, que prefere o ruim conhecido ao bom por conhecer, e que exige, sobretudo, um profundo respeito por sua digestão e sua tranquilidade. Com Mendelssohn ficariam acomodados, depois o Don Juan generoso e redondo, com toadinhas assobiáveis. Debussy faria com que se sentissem artistas, porque não é qualquer um que entende sua música. E logo o prato forte, a grande massagem vibratória beethoveniana, assim chama o destino à abertura, a Quinta da vitória, o surdo genial, e depois voltando para casa que amanhã há um trabalho louco no escritório.

Em realidade, eu tinha grande estima pelo Maestro, que nos trouxe boa música a esta cidade sem arte, afastada dos grandes centros, onde há 10 anos não se dava La Traviata e a abertura de O Guarani. O Maestro veio à cidade contratado por um empresário decidido, e organizou esta orquestra que podia se considerar de primeira linha. Pouco a pouco foi soltando Brahms, Mahler, os impressionistas, Strauss e Mussorgski. No começo, os ricaços resmungaram e o Maestro teve que baixar as velas e incluir muitas “seleções de ópera” nos programas; depois começaram a aplaudir-lhe o duro e igual Beethoven que nos empurrava, e por fim o ovacionaram por qualquer coisa, só por vê-lo, como agora que sua entrada estava provocando um entusiasmo fora do comum. Mas no início da temporada o pessoal tem as mãos descansadas, aplaude com vontade, e depois todo mundo gostava do Maestro, que se inclinava discretamente, sem muita condescendência, e se virava para os músicos com seu ar mal-encarado. Eu tinha a minha esquerda a Sra. de Jonatán, a quem não conheço bem, mas que passa por melomaníaca, e que ruborizada me disse:

— Aí está, aí está um homem que conseguiu o que poucos conseguiram. Não apenas formou uma orquestra, mas um público. Não é admirável?

— Sim — disse eu com minha habitual condescendência.

— Às vezes penso que deveria reger olhando para a sala, porque também nós somos um pouco os seus músicos.

— Não me inclua, por favor — respondi. — Em matéria de música faço uma triste confusão mental. Este programa, por exemplo, parece-me horrendo. Mas sem dúvida devo estar enganado.

A Sra. de Jonatán me olhou com dureza e virou o rosto, embora sua amabilidade pudesse mais e a induziu a me dar uma explicação.

— O programa é pura obra-prima, e cada uma delas foi solicitada especialmente nas cartas dos admiradores. Não sabe que o Maestro faz esta noite suas bodas de prata com a música? E que a orquestra festeja cinco anos de criação? Leia nas costas do programa, há um artigo tão delicado do Dr. Palacín.

Li o artigo do Dr. Palacín no intervalo, depois de Mendelssohn e Strauss, que valeram profundas ovações ao Maestro. Passeando pelo foyer, perguntei-me uma ou duas vezes se as performances justificavam semelhantes arrebatamentos de um público que, segundo me consta, não é muito generoso. Mas os aniversários são as grandes portas da burrice, e presumi que os seguidores do Maestro não eram capazes de conter sua emoção. No bar encontrei o Dr. Epifania com sua família, e fiquei conversando uns minutos. As filhas estavam vermelhas e excitadas, me rodearam como galinhazinhas cacarejantes (fazem pensar em vários voláteis), para me dizer que Mendelssohn estivera genial, que sua música era como que de veludo e de gaze, e que tinha um romantismo maravilhoso. Uma pessoa podia ficar toda a vida ouvindo o noturno, e o scherzo fora tocado por mãos de fada. Beba gostava mais de Strauss porque era forte, verdadeiramente um Don Juan alemão, com essas trompas e esses trombones que lhe arrepiavam a pele como na galinha — coisa que entendi surpreendentemente literal. O Dr. Epifania nos ouvia com sorridente indulgência.

— Ah, os jovens! Bem se vê que vocês não ouviram Risler tocar, nem von Bülow reger. Aqueles, sim, foram grandes tempos.

As meninas o olhavam furiosas. Rosarinho disse que as orquestras eram mais bem dirigidas que há 50 anos, e Beba negou a seu pai todo o direito de diminuir a qualidade extraordinária do Maestro.

— Claro, claro — disse o Dr. Epifania. — Considero o Maestro genial esta noite. Que fogo, que arrebatamento! Eu mesmo fazia anos que não aplaudia tanto.

E me mostrou duas mãos com as quais poderia ter dito que terminava de esmagar uma beterraba. O curioso é que até esse momento eu tivera uma impressão contrária, e me parecia que o Maestro estava em uma dessas noites em que o incomoda o fígado e ele opta por um estilo enxuto e direto, sem se dar muito. Mas eu devia ser o único que pensava assim, porque Caio Rodrigues quase pulou no meu pescoço ao me encontrar, e me disse que o Don Juan estivera espetacular e que o Maestro era um regente fantástico.

— Você não viu aquele momento do scherzo de Mendelssohn, quando parece que em vez de uma orquestra a gente ouve sussurros de duendes?

— Na verdade — respondi — primeiro teria que saber como são as vozes dos duendes.

— Não seja burro — disse Caio, ruborizando-se, e vi que me dizia sinceramente enraivecido. — Como não é capaz de captar isso? O Maestro está genial, cara, dirige como nunca. Parece mentira que você seja tão casca-grossa.

Guilhermina Fontán vinha pressurosa até nós. Repetiu todos os epítetos das meninas de Epifania, e ela e Caio olharam-se com lágrimas nos olhos, comovidos por essa fraternidade na admiração que por um instante faz os humanos tão bons. Eu os contemplava com assombro, porque não me explicava de todo um entusiasmo semelhante; verdade que não vou, como eles, todas as noites aos concertos, e que às vezes me acontece confundir Brahms com Brückner, e vice-versa, o que em seu meio seria considerado como de uma ignorância inapelável. De todas as maneiras, esses rostos rubicundos, esses pescoços suados, esse desejo latente de continuar aplaudindo, embora estivessem no foyer ou no meio da rua, me faziam pensar nas influências atmosféricas, a umidade ou as manchas solares, coisas que costumam afetar os comportamentos humanos. Me lembro de que nesse momento pensei se algum engraçadinho não estaria repetindo a memorável experiência do Dr. Ox para entusiasmar o público. Guilhermina me arrancou das minhas cavilações, sacudindo meu braço com violência (mal nos conhecemos).

— E agora vem Debussy — murmurou excitadíssima. — Essa gotinha de água, La Mer.

— Será magnífico escutá-la — disse, acompanhando-lhe a corrente marinha.

— Você imagina como o Maestro vai dirigi-la?

— Impecavelmente — estimei, olhando-a para ver como julgava minha advertência.

Mas era evidente que Guilhermina esperava mais fogo, porque se virou para Caio, que bebia soda como um camelo sedento, e os dois se entregaram a um cálculo beatífico sobre o que seria o segundo tempo de Debussy, e a força grandiosa que teria o terceiro. Saí caminhando pelos corredores, voltei ao foyer, e em toda parte era entre comovedor e irritante ver o entusiasmo do público pelo que acabava de escutar. Um enorme zumbido de colmeia alvoroçada agia pouco a pouco sobre os nervos, e eu mesmo acabei me sentindo um pouco febril e dupliquei minha habitual ração de soda Belgrano. Me chateava um pouco não estar inteiro no brinquedo, olhar para aquela gente de fora, como faz um entomologista. Que podia fazer, é uma coisa que sempre me acontece na vida, e quase cheguei a aproveitar esta aptidão para não me comprometer com coisa alguma.

Quando voltei à plateia, todo mundo já estava em seu lugar, e incomodei toda a fila para chegar à minha poltrona. Os músicos entravam apaticamente no palco, e achei curioso como o pessoal se instalara antes deles, ávido de escutar. Olhei para a torrinha e para as galerias altas; uma massa escura, como moscas em um tacho de doce. Nas galerias, mais afastadas, as roupas dos homens davam a impressão de bandos de corvos; algumas lanternas de bolso se acendiam e apagavam, os melomaníacos equipados de partituras experimentavam seus métodos de iluminação. A luz do grande candelabro central diminuiu pouco a pouco, e na escuridão da sala ouvi levantarem-se os aplausos que saudavam a entrada do Maestro. Achei curiosa essa substituição progressiva da luz pelo ruído, assim como um dos meus sentidos entrava em ação justamente quando o outro se entregava ao descanso.

À minha esquerda, a Sra. de Jonatán batia palmas com força, toda a fila aplaudia unissonamente; mas à direita, duas ou três filas mais adiante, vi um homem imóvel, a cabeça branca. Um cego, sem dúvida; imaginei o brilho da bengala branca, os óculos inúteis. Só ele e eu nos negávamos a aplaudir e sua atitude me atraiu. Teria querido me sentar a seu lado, falar-lhe: alguém que não aplaudia nessa noite era um ser digno de interesse. Duas filas mais adiante, as meninas de Epifania rebentavam as mãos, e seu pai não ficava atrás. O Maestro saudou ligeiramente, olhando uma ou duas vezes para cima, de onde o ruído baixava como rolos compressores para se encontrar com o da plateia e dos camarotes. Me pareceu ver nele um ar misto de interessado e perplexo; seu ouvido devia estar mostrando a diferença entre um concerto comum e o de umas bodas de prata. E para que dizer que La Mer lhe valeu uma ovação apenas um pouco menor que a obtida com Strauss, coisa por demais compreensível. Eu mesmo me deixei levar pelo último movimento, com seus fragores e seus imensos vaivéns sonoros, e aplaudi até que me doeram as mãos. A Sra. de Jonatán chorava.

— É tão inefável — murmurou, virando para mim um rosto que parecia sair da chuva. — Tão incrivelmente inefável...

O Maestro entrava e saía, com sua elegante destreza e sua maneira de subir ao estrado como quem vai abrir um leilão. Fez direita, o cego aplaudia suavemente, cuidando das mãos; era delicioso ver com que parcimônia contribuía para a homenagem popular, a cabeça baixa, o ar recolhido e quase ausente. Os “bravo!”, que ressoam sempre isoladamente e como expressões individuais, estalavam de todas as direções. Os aplausos tinham começado com menos violência que na primeira parte do concerto, mas agora, que a música ficava esquecida e que não se aplaudia Don Juan nem La Mer (ou melhor, seus efeitos), mas apenas o Maestro, e o sentimento coletivo que envolvia a sala, a força da ovação começava a se alimentar de si mesma, crescia por instantes e se tornava quase insuportável. Irritado, olhei para a esquerda; vi uma mulher vestida de vermelho que corria aplaudindo pelo centro da plateia, e que parava ao pé do estrado, praticamente aos pés do Maestro. Ao se inclinar para saudar outra vez, o Maestro encontrou-se com a senhora de vermelho a tão pouca distância, que se levantou surpreso. Mas das galerias altas vinham um fragor que o obrigou a levantar a cabeça e saudar, como raras vezes fazia, levantando o braço esquerdo. Aquilo exacerbou o entusiasmo, e aos aplausos juntava-se o bater de sapatos no chão das galerias e dos camarotes. Realmente, era um exagero.

Não havia intervalo, mas o Maestro retirou-se para descansar dois minutos, e eu me levantei para ver melhor a sala. O calor, a umidade e a excitação converteram a maioria dos assistentes em deploráveis lagostins suarentos. Centenas de lenços funcionavam como ondas de um mar que grotescamente prolongava o que acabávamos de ouvir. Muitas pessoas corriam para o foyer, para beber a toda velocidade uma cerveja ou uma laranjada. Temerosas de perder algo, retornavam quase tropeçando nas outras que saíam, e na porta principal da plateia havia uma confusão considerável. Mas não havia alterações, todos se sentiam de uma bondade infinita, era como um grande abrandamento sentimental em que todos se encontravam fraternalmente e se reconheciam. A Sra. de Jonatán, muito gorda para se mexer em sua poltrona, levantava para mim, sempre de pé, um rosto estranhamente semelhante a um rabanete. “Inefável”, repetia. “Tão inefável”.

Quase me alegrei com a volta do Maestro, porque aquela multidão da qual eu tomava parte inelutavelmente me dava ao mesmo tempo pena e nojo. De toda essa gente, os músicos e o Maestro pareciam os únicos dignos. E além deles o cego a poucas filas da minha, tenso e sem aplaudir, com uma atenção esquisita e sem a menor indignidade.

— A Quinta — a Sra. de Jonatán me empapou a orelha. — O êxtase da tragédia.

Pensei que aquilo era um bom título para filme, e fechei os olhos. Talvez procurasse nesse instante me comparar ao cego, ao único ser entre tanta coisa gelatinosa que me rodeava. E quando já via pequenas luzes verdes atravessando minhas pálpebras como golondrinas, a primeira frase da Quinta me caiu em cima como uma pá de escavadora, obrigando-me a olhar. O Maestro estava quase belo, com seu rosto fino e espreitador, fazendo levantar voo a orquestra que zunia com todos os seus motores. Grande silêncio se fizera na sala, sucedendo fulminantemente aos aplausos; creio até que o Maestro ligou a máquina antes que terminassem de saudá-lo. O primeiro movimento passou sobre nossas cabeças com seus fogos de lembranças, seus símbolos, sua singela repetição. O segundo, magnificamente dirigido, repercutia em uma sala onde o ar dava a impressão de estar incendiado, mas num incêndio que fosse invisível e frio, que queimasse de dentro para fora. Quase ninguém ouviu o primeiro grito, porque foi afogado e curto, mas como a moça estava justamente diante de mim, sua convulsão me surpreendeu e, ao mesmo tempo, eu a ouvi gritar, entre um grande acorde de metais e madeiras. Um grito seco e breve como se fosse de um espasmo amoroso ou de histeria. Sua cabeça se dobrou para trás, sobre essa espécie de estranho unicórnio de bronze que têm as poltronas do Corona, e ao mesmo tempo seus pés bateram furiosamente no chão, enquanto as pessoas a seu lado seguravam-na pelos braços. Em cima, na primeira fila da galeria, ouvi outro grito, outra batida no chão. O Maestro encerrou o segundo tempo e começou imediatamente o terceiro; me perguntei se um regente pode escutar um grito da plateia, envolvido como está pelo primeiro plano sonoro da orquestra. A moça da poltrona da frente agora se dobrava pouco a pouco e alguém (talvez sua mãe) a sustentava sempre pelo braço. Eu quisera ajudar, mas é problema certo meter-se nas coisas da fila da frente, em pleno concerto e com gente desconhecida. Quis dizer algo à Sra. de Jonatán, que as mulheres são as indicadas para atender esse tipo de ataques, mas estava com os olhos fixos nas costas do Maestro, perdidas na música; me pareceu que alguma coisa brilhava debaixo da boca, no queixo. Logo deixei de ver o Maestro, porque as rotundas costas de um senhor de smoking se levantavam na fila dianteira. Era muito estranho que alguém se levantasse na metade do movimento, mas também eram estranhos esses gritos e a indiferença de todos diante da moça histérica. Alguma coisa, como se fosse uma mancha vermelha, me obrigou a olhar para o centro da plateia, e novamente vi a senhora que, no intervalo, correra para aplaudir ao pé do estrado. Caminhava lentamente, eu teria dito que curvada, embora seu corpo se mantivesse ereto, mas era esse o ritmo de sua caminhada, um avançar a passos lentos, hipnóticos, como quem se prepara para dar um salto. Olhava fixamente o Maestro, vi por um instante o brilho emocionado de seus olhos. Um homem saiu das filas e se pôs a andar atrás dela; agora estavam à altura da quinta fila e outras três pessoas se juntavam a eles. A música terminava, pulavam os primeiros grandes acordes finais, desencadeados pelo Maestro com esplêndida frieza, como massas escultóricas surgindo de uma só vez, altas colunas brancas e verdes, um Karnak de som por cuja nave caminhavam, passo a passo, a mulher de vermelho e seus seguidores.

Entre dois estalidos da orquestra, ouvi gritar outra vez, mas agora o clamor vinha de um dos camarotes da direita. E com ele os primeiros aplausos, sobre a música, incapazes de se manterem por mais tempo, como se nesse arquejo de amor que vinha sustentando o corpo masculino da orquestra com a enorme fêmea da sala entregue, esta não tivesse querido esperar o gozo viril e se abandonasse a seu prazer entre contorções lamuriantes e gritos de insuportável voluptuosidade. Incapaz de me mexer em minha poltrona, sentia às minhas costas como que um nascimento de forças, um avanço paralelo ao avanço da mulher de vermelho e seus seguidores pelo centro da plateia, que chegavam já sob o estrado no exato momento em que o Maestro, tal qual um toureiro que enfia seu estoque no touro, metia a batuta no último muro de som e se dobrava para a frente, esgotado, como se o ar vibrante o tivesse corneado com o impulso final. Quando se endireitou, a sala inteira estava de pé, e eu com ela, e o espaço era um vidro instantaneamente trincado por uma floresta de agudíssimas lanças, os aplausos e os gritos confundindo-se com uma matéria insuportavelmente grosseira e gotejante, mas cheia, ao mesmo tempo, de uma certa grandeza, como uma manada de búfalos em disparada ou algo parecido. De todos os lados afluía público à plateia, e quase sem surpresa vi dois homens saltarem dos camarotes ao chão. Gritando como uma ratazana pisoteada, a Sra. de Jonatán conseguira se desencaixar de seu assento, e com a boca aberta e os braços estendidos para o palco vociferava seu entusiasmo. Até esse instante o Maestro permanecera de costas, quase desdenhoso, olhando para seus músicos com provável concordância. Agora se voltava, lentamente, e baixou a cabeça em sua primeira saudação. Seu rosto estava muito branco, como se a fadiga o vencesse, e cheguei a pensar (entre tantas outras sensações, pedaços de pensamentos, lufadas instantâneas de tudo o que me rodeava nesse inferno do entusiasmo) que podia desmaiar. Saudou pela segunda vez, e ao fazê-lo olhou para a direita, onde um homem de smoking e cabelo louro acabava de pular para o palco, seguido por outros dois. Me pareceu que o Maestro iniciava um movimento como que para descer do estrado, mas então vi que esse movimento tinha qualquer coisa de espasmódico, como se quisesse se livrar de algo. As mãos da mulher de vermelho fechavam-se em seu tornozelo direito; tinha o rosto levantado para o Maestro e gritava, pelo menos eu via sua boca aberta e suponho que gritava como os demais, provavelmente como eu mesmo. O Maestro deixou cair a batuta e se esforçou por se livrar, enquanto dizia algo impossível de se escutar. Um dos seguidores da mulher já o abraçava pela outra perna, desde o joelho, e o Maestro se voltou para sua orquestra como que reclamando auxílio. Os músicos estavam de pé, em uma enorme confusão de instrumentos, sob a luz enceguecedora das lâmpadas do palco. As estantes caíam como espigas, à medida que, pelos dois lados do palco, subiam homens e mulheres da plateia, a ponto de já não se poder saber quem era músico ou não. Por isso, o Maestro, ao ver que um homem subia por trás do estrado, agarrou-se a ele, para que o ajudasse a se livrar da mulher e seus seguidores, que lhe cobriam já as pernas com as mãos, e nesse momento compreendeu que o homem não era um de seus músicos e quis empurrá-lo, mas o outro abraçou-o pela cintura, vi que a mulher de vermelho abria os braços como que reclamando, e o corpo do Maestro perdeu-se em um vórtice de gente que o envolvia e o levava de cambulhada. Até esse instante eu olhara tudo com uma espécie de espanto lúcido, por cima ou por baixo do que acontecia, mas no mesmo momento um grito agudíssimo à minha direita me distraiu e vi que o cego se levantara e mexia com os braços como chifres, clamando, reclamando, pedindo algo. Foi demais, então já não pude continuar assistindo, me senti participante desse desbordar do entusiasmo e corri, por minha vez, até o palco e pulei por um lado, justamente quando uma multidão delirante rodeava os violinistas, tirava-lhes os instrumentos (se ouviam ranger e rebentar como enormes baratas marrons) e começava a jogá-los do palco à plateia, onde outros esperavam os músicos para os abraçar e fazê-los desaparecer em confusos redemoinhos. É muito curioso, mas eu não tinha nenhum desejo de contribuir para essas demonstrações, só estar perto e ver o que acontecia, ultrapassado por essa homenagem inaudita. Me sobrava suficiente lucidez para me perguntar por que os músicos não fugiam correndo por entre os bastidores, e, em seguida, vi que não era possível, porque legiões de assistentes tinham bloqueado as duas alas do palco, formando um cordão móvel que avançava, pisoteando os instrumentos, fazendo voar as estantes, aplaudindo e vociferando ao mesmo tempo, em um estrépito tão monstruoso que já começava a se assemelhar com o silêncio. Vi correr em minha direção um cara gordo, que trazia sua clarineta na mão, e fiquei com vontade de agarrá-lo ao passar, ou lhe dar uma rasteira para que o público pudesse agarrá-lo. Não me decidi, e uma senhora, de rosto amarelento e grande decote, onde galopava um montão de pérolas, me olhou com ódio e surpresa ao passar do meu lado e se apoderar do clarinetista, que chiou fracamente e tratou de proteger seu instrumento. Dois homens o tiraram dele, e o músico teve de se deixar levar para o lado da plateia, onde a confusão alcançava o seu clímax.

Os gritos ultrapassavam agora os aplausos, o pessoal estava muito ocupado abraçando e felicitando os músicos para poder aplaudir, de modo que a qualidade do estrépito se ia transformando em um tom cada vez mais agudo, interrompido aqui e ali por verdadeiros berros, entre os quais me pareceu ouvir alguns com essa cor especialíssima que tem o sofrimento, tanto que me perguntei se nas correrias e nos pulos não haveria gente quebrando os braços e as pernas, e por minha vez me atirei de volta à plateia, agora que o palco estava vazio e os músicos, na posse de seus admiradores, que os levavam em todas as direções, parte em direção aos palcos, onde confusamente se adivinhavam movimentos e agitações, parte em direção dos estreitos corredores que lateralmente conduzem ao foyer. Era dos camarotes que vinham os clamores mais violentos, como se os músicos, incapazes de resistir à pressão e à acossa de tantos abraços, pedissem desesperadamente que os deixassem respirar. O pessoal da plateia se amontoava frente às aberturas dos camarotes, e quando corri por entre as poltronas para me aproximar de um deles, a confusão parecia maior, as luzes diminuíram bruscamente e se reduziram a um brilho avermelhado que mal permitia ver as caras, enquanto que os corpos se convertiam em sombras epilépticas, em um amontoamento de volumes disformes, procurando se rechaçar ou se confundir uns com os outros. Me pareceu distinguir a cabeleira prateada do Maestro no segundo camarote do meu lado, mas nesse mesmo instante desapareceu, como se o houvessem feito cair de joelhos. A meu lado ouvi um grito seco e violento, e vi a Sra. de Jonatán e uma das meninas de Epifania precipitando-se para o camarote do Maestro, porque agora eu tinha certeza de que o Maestro estava nesse camarote, rodeado pela mulher vestida de vermelho e seus seguidores. Com uma agilidade incrível, a Sra. de Jonatán pôs um pé entre as duas mãos de uma das meninas de Epifania, que cruzava os dedos para lhe fazer um estribo, e se atirou de cabeça no interior do camarote. A menina de Epifania me olhou, reconhecendo-me, e gritou alguma coisa, provavelmente para que a ajudasse a subir, mas não lhe fiz caso e fiquei distante do camarote, pouco disposto a lhes disputar seu direito de serem indivíduos absolutamente enlouquecidos de entusiasmo, que lutavam entre si aos empurrões. Acabavam de quebrar o nariz de Caio Rodríguez com um pontapé, a ele que se havia distinguido no palco por seu encarnecimento em fazer os músicos descerem à plateia, e agora andava desatinado, de um lado para outro, com a cara coberta de sangue. Não tive a menor pena, nem também de ver o cego se arrastando pelo chão, chocando-se contra as poltronas, perdido nessa floresta simétrica e sem pontos de referência. Agora não me importava mais nada, apenas saber se os gritos iam acabar logo, porque dos camarotes continuavam a sair gritos penetrantes, que o público da plateia repetia e acompanhava em coro incansável, enquanto cada um tratava de desalojar os demais e se meter por algum lado dos camarotes. Era evidente que os corredores exteriores estavam atulhados, pois o assalto maior vinha da mesma plateia, procurando pular como o fizera a Sra. de Jonatán. Eu via tudo isso, e entendia tudo isso, e ao mesmo tempo não tinha o menor desejo de me juntar à confusão, de modo que minha indiferença me produzia um estranho sentimento de culpa, como se minha conduta fosse o escândalo final e absoluto daquela noite. Sentando-me em uma ala solitária, deixei que os minutos passassem, enquanto à margem de minha inércia ia notando a diminuição do imenso clamor desesperado, o enfraquecimento dos gritos que afinal cessaram, a retirada confusa e murmurante de parte do público. Quando achei que já se podia sair, deixei para trás a parte central da plateia e atravessei o corredor que dá no foyer. Um ou outro indivíduo se movimentava como bêbedo, secando as mãos ou a boca com o lenço, desamassando a roupa, arrumando o colarinho. No foyer, vi algumas mulheres que remexiam em suas bolsas, procurando espelhos. Uma delas devia ter se machucado, porque tinha sangue no lenço. Vi as meninas de Epifania saírem correndo; pareciam furiosas por não terem chegado aos camarotes, e me olharam como se fosse eu o culpado. Quando pensei que já estivessem longe, comecei a caminhar em direção à escadaria de saída, e nesse momento apareceram no foyer a mulher vestida de vermelho e seus seguidores. Os homens caminhavam atrás dela como antes, e pareciam cobrir-se mutuamente para que não se notasse o estrago de suas roupas. Mas a mulher vestida de vermelho ia à frente, olhando altaneiramente, e quando fiquei do seu lado vi que passava a língua pelos lábios, lenta e gulosamente passava a língua pelos lábios que sorriam.

FIM

 

Na mitologia grega, as Ménades, ou Mênades, também conhecidas como bacantes, tíades ou bassáridas, eram mulheres seguidoras e adoradoras do culto de Dioniso (ou Baco). Eram conhecidas como selvagens e endoidecidas, de quem não se conseguia um raciocínio claro. Durante o culto, dançavam de uma maneira muito livre e lasciva, em total concordância com as forças mais primitivas da natureza. Os mistérios que envolviam o deus, provocavam nelas um estado de êxtase absoluto, entregando-se a desmedida violência, derramamento de sangue, sexo, embriaguez e autoflagelação. Normalmente são representadas nuas ou vestidas só com peles de veado, com grinaldas de Hera e empunhando um tirso (bastão envolto em ramos de videira).  https://mitologia.hi7.co/

 

Julio Cortázar | Escritor argentino, uma das grandes figuras  do «boom» da literatura latino-americana do século XX.
Julio Cortázar (1914 - 1984), escritor argentino, é considerado um dos autores mais inovadores e originais do seu tempo. Mestre no conto e na narrativa curta.

 

 

 

 
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As  Ménades
Conto
Julio Cortázar
in Final do Jogo, 1956
Trad. de Remy Gorga Filho

   


 

Δ

8.Mar.2022
Maria José Alegre