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Auto-retrato com paleta -
Almada Negreiros, 1926
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Índice:
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A CEGUEIRA DE HOMERO
José de Almada Negreiros
[1893-1970]
A tradição grega representa a Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, “velho e
cego, errante de cidade em cidade, cantando os seus versos”.
Hoje, parece sem discussão, depois do notável trabalho de Frederico Augusto
Wolff neste sentido, que Homero não existiu em pessoa, ou melhor que a Ilíada e
a Odisseia são a recolha dos cantos mais populares dos antigos poetas cantores
da primitiva Grécia. Em verdade, encontrada esta solução, parece-nos
extra-ordinário que o não tivesse sido antes. Mas o mais profundo ficou por
descobrir. E esta descoberta foi feita neste livro que tem por título "Ver".
Uma vez que não seja Homero uma pessoa única (e já Frederico Nietzsche havia
tido o grande acerto ao dizer que “questão homérica era um juízo estético e não
uma questão histórica”), contudo continua de pé a representação em imagem de
Homero na tradição grega: “velho e cego, errante de cidade em cidade, cantando
os seus versos”. Além disto ainda acrescenta que “sete cidades da Grécia
disputaram o seu nascimento”.
Homero com seu guia Glauco
William-Adolphe Bouguereau, 1854
Aceitamos, e assim foi dito pela ciência, que Homero não seja uma pessoa única,
mas neste caso, porquê “velho e cego”?
O “errante de cidade em cidade, cantando os seus versos” parece referir-se
também a um personagem único. Mas quando “sete cidades da Grécia disputam o seu
nascimento”, a certeza de tratar-se de um personagem único é evidente.
Recordemos no capítulo anterior que tem por título “Memória e Imaginação”, as
seguintes passagens: “As duas faculdades instintivas do homem são a memória e
imaginação. Primeiro o homem viu e depois imaginou. Depois de assistir impotente
à confusão do Caos, imaginou a sua defesa entre os Elementos”. (“O homem não
dispõe só da memória, a qual, por si apenas, é negação; por isso o homem tem
segunda faculdade instintiva, gémea da memória, a imaginação. A memória e a
imaginação têm a sina de não poderem desacompanhar-se: a imaginação é o cego da
memória, e a memória o moço-de-cegos da imaginação. A memória não tem
iniciativa; a imaginação tem-na mas é cega de nascença. A memória tem olhos e a
cega imaginação tem querer: a Vontade!”)
Estas passagens do capítulo anterior fazem-nos meditar naquelas que a tradição
grega nos deixou de Homero. (A cegueira é comum à imaginação e a Homero).
Mas
porquê velho? É fácil responder:
É velho porque é o autor da Ilíada e da Odisseia, “os cantos mais populares dos
antigos poetas-cantores da primitiva Grécia”. É velho porque todos estes
“antigos poetas-cantores da primitiva Grécia” têm todos uma só personagem e um
único nome: Homero (Wolff). Estes “cantos mais populares dos antigos
poetas-cantores da primitiva Grécia” foram iniciados por Homero desde o primeiro
dia da primitiva Grécia. Desde o primeiro dia da Grécia que o poeta-cantor
Homero vem “cantando os seus versos”, sempre os mesmos versos que variam segundo
os tempos e variam para todos os tempos.
“Errante de cidade em cidade”, todas as
cidades da Grécia escutam o mesmo canto feito para todas as cidades da Grécia ao
mesmo tempo.
É velho porque é antigo, da primitiva Grécia e ainda vive, e mais do que
qualquer outro antigo é o primitivo, e mais do que qualquer primitivo é ele o
primeiro grego nascido, e tanto como o primeiro grego nascido é ele o primeiro
europeu nascido, e tanto como o primeiro europeu nascido é ele o primeiro homem
do mundo, o que-nunca-morre, o imortal, o que vive todos os dias, para sempre,
até mesmo depois de ter desaparecido a Grécia Antiga: o homem!
Mas porquê cego?
É cego porque a sua cegueira é a noite obscura dos terrores pânicos do homem.
É cego porque canta uma luz que os da memória nunca viram.
É cego porque a imaginação lhe deu o dom de imitar o que só imaginado se poderá
ver.
É cego porque a imaginação deu-lhe a Vontade que cega e as garras do domínio da
vida.
É cego porque a Vontade custa o maior preço, e o maior preço na Grécia eram os
olhos. Exemplo: Édipo.
É cego, enfim, porque é cego tudo quanto, a bem ou a mal, se mete de permeio
entre a vida e o homem.
Extracto da edição fac-simile do caderno
"Mito-Alegoria-Símbolo",
editado em
1948 pelo Autor.
Fonte: grupo Digital Source
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CANÇÃO DA SAUDADE
José de Almada Negreiros
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a
minha irmã gémea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva
na minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras,
dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que
partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por
entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a
meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios - as lágens são espessas vidraças
transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens
núas, mulheres bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das
mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem
em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Almada Negreiros, Revista Orpheu n.º1 - 1915
Luis de Camões por Almada Negreiros
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A CEGUEIRA EM ALMADA
NEGREIROS
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I. Origem etimológica
A origem etimológica da palavra cegueira vem do latim caecatio, onis cujo
significado gravita em torno de obsessão, perturbação e ignorância. Note-se,
igualmente, que o adjectivo (caecus, a, um) adensa essas noções pois remete para
o significado de escuro e tenebroso apontando em paralelo tudo aquilo que jaz
nas antecâmaras do misterioso, encoberto e inescrutável.
II. Traços mitológico-trágicos
Ora, para as personagens da mitologia antiga, que por ela são tangidas, esta
é tida como uma deficiência, em geral, como doença da alma ou da razão, marca ou
sinal de tendências criminosas ou de impiedade. Porém, todos aqueles que
atingirem o espírito de contrição ou encontrarem sábios como Asclépio ou Quíron
poderão recuperar a visão, expondo os seus olhos obscurecidos aos raios do astro
solar, símbolo luminescente que consagra à alma a sua pureza expiando-a de toda
a mancha sombria.
Relembremos, outrossim, o episódio da tragédia de Sófocles (Édipo Rei) que
poderá aduzir duas leituras bifrontes, a saber: por um lado, podemos considerar
que o herói por não suportar uma luz capaz de manifestar o seu erro em todo o
seu esplendor sentencia-se arrancando os próprios olhos- crime ignominioso e
simbólico para a tradição ática- e, por outro lado, podemos firmar que esse acto
celerado granjeia, em si mesmo um poder simbólico- trágico insinuando uma
metamorfose da vera visão no sentido íntimo de cegar para se poder ver com todo
o acume.
III. Supravisão ou transvisão da realidade
Neste sentido, emerge a figura paradigmática do profeta vidente Tirésias
que, cegado por Hera, teria o dom de prever o futuro. Na verdade, a noção de
cegueira adquire contornos de uma intuição primeira e primeva - do latim
intuitus ( olhar, vista), intueor, intuitus, intueri (ver de perto, examinar)
sendo que a sua hegemonia decorre da insistência metódica de que
sistematicamente tudo se deve iniciar no instante não cursivo do conhecimento.
Define-se a intuição, segundo consenso mais ou menos geral, como sendo o
conhecimento na fase anterior à cursividade logóica. Exclui, não só o
raciocínio, mas também grande parte do conceito e do juízo, porquanto a intuição
precede às abstracções e aos princípios implícitos, ouçamos o nosso Autor: “A
arte faz o retorno, como mostrou Freud, à mentalidade pré-lógica dos primitivos
que se expressam por símbolos; nesta mentalidade pré-lógica a arte recolhe uma
força de comunicação, d’ascendente que revolve o mais profundo do homem e que
ignora a linguagem racional; a inteligência ordenadora não intervém senão para
pôr embora os elementos deste modo recolhidos no inconsciente e cuja origem fica
muitas vezes inexplicável para o próprio artista». [1]
No fundo, o conceito de cegueira não será tanto uma subvisão mas, mormente,
uma trans-visão ou supra-visão pois remete para um modo transpessoal de visão, à
maneira das “experiências oceânicas” de que nos fala Plotino: neste momento,
tempo e espaço e outras limitações físicas não passam de figurações
insubsistentes da percepção humana. A única coisa que perdura e alenta é a
experiência intransponível de completude e consciência de se estar,
simultaneamente, imerso e lúcido no permeio holístico dos contrários
remanescentes da imaginação- memória, sombra- luz.(Cf. Almada Negreiros, in
«Ver», e «Direcção Única»)
IV. Antevisão originária e originante em
Almada Negreiros
Diríamos, seguidamente, que Almada Negreiros, longe dos
propósitos presentes no Manifesto anti-Dantas onde a sua concepção de cegueira
não é outra senão a miopia criacional da figura titular, se aproxima desse
latejo compassado de um abrir e fechar d’olhos que aventa a anástrofe imagética
do ígneo bailado de uma antevisão que só é na luz de o ver.
O convite metamórfico do ser no e pelo limiar do olhar,
equidistante do olhar de Atena - cuja via ápia é o pensar - encontra-se próximo
do primeiro balbuceio do encontro do macrocosmos com o microcosmos- a fotografia
indelével das vésperas deste encontro memorável no olhar que ao sair de si
torna-se outro que não é senão o si mesmo do outro na eterna cópula dos quatro
elementos. O espectador torna-se visível e visionário no movimento alternado do
interior para o exterior da visão, o olhar fito no horizonte torna-se extensão
do universo- fonte primacial onde a visão se esconde ao revelar o sacrário por
onde a luz sempre escoa. (Cf. Almada Negreiros, in «Poesia e Criação»)
Por conseguinte, podemos considerar que a figura arquétipa do
poeta grifa o presente conceito de cegueira que canta a luz que só a imaginação
poderá ver resguardando, incólume e impoluta, a forma e a ilumina. Cegueira que
abrange os cíclicos elementos na divergência unitiva dos contrários, digna do
zimbro apolíneo. Cegueira ou visão que cega para não perder de vista o
inacessível ou o inefável. (Cf. Almada Negreiros, in «Elogio da Ingenuidade ou
as Desventuras da Esperteza Saloia» (1936),
V. Considerações finais
À luz do que ficou dito, podemos concluir que a cegueira
emerge como visão interior e involuntária, revela-se como possibilidade de
acção, promessa catártica de passagem onde a luz se demora a ponto de que não se
apague antes de findar- à maneira do fogo heraclitiano, lembremos o episódio em
que Almada fez um fogo de muitos papéis, fogo lustral e difuso nas colinas de
Campolide «(..)aí onde a Lisboa da época principiava a ser excêntrica. Era uma
razão radical, a das colinas iluminadas. Nesse lugar, um lugar de poder, Almada
encontrara o ponto exacto na trama dos pontos, o centro, para nele pôr o pé,
Anteu recebendo as forças de Deméter, a materna - e então fazer tudo: acender os
fogos, descobrir os alfabetos, pintar o sete (...) Mas o que se chama
simplicidade, levou Almada a vida inteira a aprendê-la, irrevogável atenção,
escreve e queima, começa, oh vigília!, sempre, sempre, até à morte. Olha-se
agora: morrer era ainda pintar o sete. De que atenção se precisa para morrer?
Não se começa por aí? Por lançar a atenção da vida sobre a atenção da morte?
(...)» [2]
[1] Almada Negreiros,
in, Mito-Alegoria-Símbolo, p.1044.
[2] Helder, Herberto, «Desalmadamente», in
revista “A Phala”, Lisboa, 2002.
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Almada
Negreiros - bibliografia primária:
-
«Direcção Única» (1932), in Manifestos,
Ensaios, Crónicas e Prosa Doutrinária, (Obra Completa- vol. único), Rio de
Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1997, pp. 753-772.
-
«Elogio da Ingenuidade ou as Desventuras
da Esperteza Saloia» (1936), in Manifestos, Ensaios, Crónicas e Prosa
Doutrinária, (Obra Completa- vol. único), Rio de Janeiro, Editora Nova
Aguilar, 1997, pp. 892-900.
-
«Mito-Alegoria-Símbolo» (1948), in
Manifestos, Ensaios, Crónicas e Prosa Doutrinária, (Obra Completa- vol.
único), Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1997, pp. 1036-1048.
-
«Poesia e Criação» (1972), in
Manifestos, Ensaios, Crónicas e Prosa Doutrinária, (Obra Completa- vol.
único), Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1997, pp. 1076-1079.
-
«Ver»(1943), in Manifestos, Ensaios,
Crónicas e Prosa Doutrinária, (Obra Completa- vol. único), Rio de Janeiro,
Editora Nova Aguilar, 1997, pp. 914-920.
Outras Referências Bibliográficas:
-
Helder, Herberto, «Desalmadamente», in
revista “A Phala”, Lisboa, 2002.
-
Schmidt, Joël, Dicionário de Mitologia Grega e Romana, Edições 70,
Lisboa, s.d.
ALMADA NEGREIROS - retratos:
[30.Jul.2010]
Publicado por
MJA
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