|
imagem: The Blind Beggar - J.
Dyckmans, 1853
Os meus olhos sempre verão aquilo que eu imagino. Afinal, nunca conseguirei
saber como é o mundo criado
por Deus, pois a minha visão observa apenas o infinito da
escuridão. Mas eu não me deixo abater e também não me
julgo incapaz de ser feliz. Confesso que me adaptei à
situação e faço do meu cão-guia a minha visão e da
minha bengala o meu reflexo. Meus sentidos estão
apurados, ouço melhor que qualquer pessoa e consigo
sentir os aromas das mais belas flores melhor do que
qualquer um. Algumas pessoas, portanto, perguntam-me
como eu consigo sobreviver sendo cego, digo a elas que a
falta de visão não me impede de amar e, por isso, consigo
viver.
Claro que seria bom poder enxergar o mundo, todavia,
o meu mundo é criado por mim e isso basta! Tudo bem
que não sei como são as suas flores, mas sei que as
minhas são lindas e, ainda, as minhas flores são tão
especiais e exclusivas que você mesmo com sua bela e
saudável visão nunca as verão. Por favor, não me julgue
egoísta, apenas tento ver (não sei se esse seria o termo
certo a usar aqui) o lado bom da minha vida. Ora,
quantos não se sentiriam inúteis por não conseguirem
vislumbrar a beleza da mulher que ama? Ou então
quantos sofreriam amargamente por não verem o
semblante dos seus filhos? Pois é, nunca vi o rosto da
minha esposa e nem os olhos do meu filho. Eu apenas
sinto o belo e suave cheiro da minha companheira,
sempre que posso eu acaricio o rosto delicado dela para
sentir a maciez de sua pele, os seus lábios grossos e,
ainda, passo minhas mãos em seus cabelos e os deduzo
encaracolados. Já o meu pequeno menino, coloco-o em
meus braços e aproximo o meu nariz do rostinho dele e o
acaricio com o meu rosto, enquanto degusto o seu cheiro
infantil. Será que a criança que tenho em meus braços se
parece comigo? Será que tem os cabelos da mãe? Nunca
saberei lhe responder tais perguntas.
Minha maior dificuldade não é andar junto com Bob, o
meu cão labrador, e arrastar minha bengala para evitar
que eu me machuque, mas sim é imaginar aquilo que os
olhos dos outros buscam me passar. Sempre quando saio
com Manu, minha esposa, e nos sentamos nos bancos da
praça fico a ouvir o canto dos pássaros, o zumbir dos
insetos, o passar dos carros. Mas quando o amor da
minha vida tenta, por compaixão, descrever-me a
paisagem local, logo eu começo a ficar tenso; pois é difícil
imaginar o tronco das árvores, o sorriso dos meninos
soltando pipa, o cachorro latindo por causa gato, o meu
filho, ainda “banguela”, rindo ao ver minha esposa
brincando com ele. Essa é a minha maior dificuldade,
apesar de todo tempo apenas fazer isso: imaginar.
Conheci Manu na universidade e ali iniciamos nossa
história de amor. Nós gostávamos de aprender música,
ouvíamos Chopin, Bach, Beethoven e vários outros
adeptos da música erudita. Ela me ensinava a tocar flauta
transversal e sempre que podíamos estávamos em algum
lugar ensaiando. Mesmo cego via a beleza de Manu,
mesmo cego sentia algo muito profundo por ela, contudo,
até então nunca lhe contei os meus sentimentos, pensava
que ninguém namoraria um cego. Mas a vida nos
aproximou.
Certa vez nós estávamos num local denominado por
ela como campo, lembro-me que nos encontrávamos
sentado no chão e ela me perguntou “Você já se
apaixonou por alguém?”, fiquei trêmulo naquele momento
e disse “sim, já me apaixonei”. Ela, então, disse-me:
- Como é gostoso saber que alguém nos ama! Porém
nunca me senti amada e busco na música expressar esses
sentimentos.
Foi nesse momento que falei “Eu sempre amei uma
pessoa, contudo, penso ‘quem iria sentir algo por uma
pessoa cega? ’ Além dos meus pais, nunca me senti
amado por ninguém e isso me entristece. Queria alguém
que risse comigo, que me respeitasse, que me
protegesse, porém, sei que isso é impossível.” Desse
modo, vagarosamente, sentia um cheiro suave
aumentando, ouvia lentamente os passos de Manu e
percebi que ela estava frente a frente comigo, percebi que
ela me olhava, o ar quente que saia do seu nariz chegava
a minha boca, percebi que ela levantou as suas mãos e as
colocaram em meu rosto. Lentamente o rosto dela se
aproximou ainda mais do meu e nós nos beijamos por um
longo tempo, foi nesse instante que conheci a felicidade e
descobri o quanto a vida é bonita.
Por isso, eu quero agradecer a Deus por presentear-me
com uma esposa maravilhosa e com um filho cheio de
saúde. Quero lhe agradecer, Marcos Jaus, por escrever as
palavras que pronunciei e pronuncio aqui neste texto.
Quero agradecer as pessoas que têm paciência comigo
quando ando nas ruas, os motoristas de ônibus que
param os veículos para mim, os vendedores que me
voltam o troco correto. Sou grato pelos amigos que tenho
e pelos os meus alunos. Ah! Perdão por eu não me
apresentar, chamo-me Rubens Dalmuth sou escritor e
professor universitário de história, aprendi o Braille aos
quinze anos e foi nesse instante que descobri o amor pela
literatura.
FIM
ϟ
"A Visão do Cego e Outras Histórias" de Edy Alyson
Ribeiro
reúne contos e crônicas que mostram ao leitor, por meio de
ações do cotidiano, a essência da vida. O autor apresenta vários
personagens com histórias emocionantes, as quais nos remetem à arte da
reflexão. Neste livro, o leitor notará uma proposta inovadora. Visto que
"verá" o mundo como um cego, "ouvirá" os desejos de um jovem com
paralisia cerebral e os conselhos de um velho que sente falta do seu
grande amor. O autor usa a arte de se colocar no lugar dos outros para
transmitir a verdadeira mensagem que até então se fazia oculta nas
distintas situações cotidiana. O principal objetivo da obra “A Visão do
Cego” é revelar a nossa cegueira diante de atitudes simples, as quais
nos ensinariam muito se prestássemos mais atenção.
'A Visão do Cego' é um dos contos da obra
'A VISÃO DO CEGO E OUTRAS HISTÓRIAS'
por E. ALYSON RIBEIRO (1998)
2.Mai.2019
Maria José Alegre
|