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fotografia de Lee Mc Laughlin, 1973
Há este céu duro, Empedrado de ventos...
(Hilda Hilst)
Após os bombardeamentos a cidade ruiu, pedra sob pedra. O que antes
era chão é agora um imenso tapete de cinzas. Por entre ruínas, nem gente,
nem bicho, nem planta. Resta um único sinal de vida: dona Teófila e o seu
marido, Diamantino. Vivem no que restou da antiga casa, sobrevivem do
que sobrou na velha despensa. Todas as manhãs dona Teófila pede ao
marido que vá conferir as reservas de comida, as latas de conserva, os sacos
de arroz, os garrafões de água. E o marido, que é cego, sorri, complacente, e
faz de conta que cumpre com o que lhe foi mandado.
Ao fim da tarde, quando o calor amaina, o casal sai dos seus escombros
privados e atravessa em silêncio a defunta paisagem. Com passo trémulo,
Diamantino empurra a cadeira de rodas, guiado pelas instruções
murmuradas com firmeza pela esposa. Protegida por um sombreiro, a velha
senhora vai empertigada como se as ruínas fossem o seu reino, a cadeira
fosse o seu trono e Diamantino fosse o seu povo.
— Devagar, Diamantino — comanda dona Teófila. E acrescenta: — Estás farto de saber que esta poeira é um veneno.
O marido não percebe nada do que ela diz, as palavras dela enroscam-se
no tecido da máscara que lhe cobre o rosto. A própria voz de Teófila lhe
parece estranha, depois de atravessar o pano que ela teima em usar sobre a
boca e o nariz.
Desde os bombardeamentos que não chove nem sopra a mais ténue brisa.
Foi como se as bombas tivessem rasgado e vazado as nuvens. Os sulcos das
rodas e as pegadas de Diamantino são o único desenho vivo sobre a
perpétua poeira dos escombros. Acontece como na superfície lunar: toda a
pegada se torna eterna.
O percurso é o mesmo de sempre: dirigem-se às ruínas da casa dos
vizinhos, os Pimentas. Ali se senta dona Teófila numa mutilada sombra
enquanto vai desatando falas, como se alguém escutasse do outro lado do
muro. E vai revelando, num longo rosário, peripécias e segredos do marido.
Aos poucos, ali se desfiam lembranças de uma vida conjugal que o próprio
Diamantino desconhecia. Até que, cansado de tanto esperar, o homem a faz
regressar à realidade.
— Ponha na sua cabeça, mulher: não há ninguém do outro lado do muro,
está tudo morto, mais do que morto — vai avisando Diamantino. E depois,
entediado, ele reclama: — Por que tanto insistes em falar de mim, mulher?
— Para que essa maldita Marlu morra de ciúmes — responde dona
Teófila.
Um sol implacável escoa por entre uma espessa e persistente bruma.
Apesar desse céu fechado — de onde para sempre se ausentou o sol e a lua
— dona Teófila não abdica do seu guarda-sol. Protege-se, diz ela, da poeira
que cai das nuvens.
— Os pássaros já começaram a voltar — afirma dona Teófila. —
Gostava que os pudesses ver, Diamantino.
— A verdade é que não os escuto — avisa o marido.
— Mas já andam por aí — insiste dona Teófila. — Não tarda que
comecem a cantar.
— Onde pousam esses pássaros se as árvores morreram?
— Se fosses mulher educada, saberias da existência dos albatrozes.
Pousam no próprio voo, morrem sem tocar no chão.
Na velha cidade tudo se tornou chão: um chão tão deitado e macio que
eles não escutam os próprios passos. E um outro chão vertical, feito desse
céu de onde se penduram restos de paredes. Diamantino traz a máscara
descaída sobre o queixo. A mulher corrige-lhe esse descuido enquanto
adverte:
— Esse pano está imundo, da mesma cor deste mundo. Assim que
voltarmos a casa vais lavar esse trapo.
— Não vou desperdiçar água, os panos que esperem.
— Olha, está a passar agora uma garça! — proclama dona Téofila, com
entusiasmo. E repete o anúncio da celestial descoberta, sabendo das
dificuldades auditivas do marido. — É pena não veres, é tão branca, parece
um anjo...
— Por que é que mentes, mulher? Os pássaros, a vizinha, a garça. Tudo
mentira, tudo pura mentira.
— Às vezes, meu velho, mentir é a única maneira que nos resta de rezar.
O marido insiste: já não há gente vivendo entre as ruínas. Dona Teófila
opõe-se. Há gente, sim. Se o marido fosse mulher e não fosse cego, saberia
que os sobreviventes deambulam como sombras por detrás dos escombros.
Já não restam portas nem paredes, é verdade. Mas as pessoas têm artes
mágicas de se enclausurar. Somos os mais competentes carcereiros de nós
mesmos. É o que diz dona Teófila.
— Quando falas, mulher — reclama o homem —, espalhas cuspe e
levantas poeira e ambos são mortais venenos.
— Tem que haver pessoas, Diamantino — insiste a esposa. — Se assim
não fosse, já teríamos morrido. É que o ar precisa de gente — prossegue
dona Teófila. — Se tivesses estudado, Diamantino, saberias que o ar, para
se manter vivo, precisa de ser respirado. As pessoas são o nosso oxigénio.
Diamantino levanta os braços da cadeira e limpa o rosto com a própria
máscara. As mãos e os gestos parecem desencontrados como acontece com
quem nunca viu o seu próprio corpo.
— Falas de mim, Diamantino, falas dos meus cuspes e das minhas
poeiras e devias ter vergonha na cara — acusa dona Teófila. — Continuas
a sonhar com essa maldita Marlu. Eu bem te escuto a murmurar o nome
dela. Tens que passar a dormir de máscara, para não me contaminares.
— Não entendo nada do que dizes, mulher — comenta Diamantino.
— Às vezes me pergunto como é que um cego sonha? — interroga-se
dona Teófila. — Desconfio que à noite deixas de ser cego.
Diamantino sorri com um riso oblíquo. A mulher fala sozinha. É então
que o marido se apercebe de que Teófila se levanta e caminha por si mesma.
O cego sabe que o vestido dela é de um vermelho intenso, como sabe que a
sua camisa é azul-marinho e imagina que aquelas duas manchas coloridas
visitarão os seus sonhos. No início, Diamantino percebe que a esposa vai
atravessando a rua. Aos poucos, ele vai deixando de escutar o suave ruído
dos passos dela e, de novo, todos os silêncios voltam a tornar-se indistintos.
Usando a cadeira de rodas como se fosse uma bengala, Diamantino
transpõe a praça até chegar aos destroços da casa da Marlu Pimenta. Deve
ser ali que a sua esposa se encontra. O cego vai evoluindo, cauteloso, entre
as brumas até que esbarra com um vulto. E logo se apercebe de que ali se
aglomeram sombras, imóveis e silenciosas como pedras. Assusta-se,
primeiro, o cego Diamantino. Depois escuta uma das sombras que lhe dirige
a palavra.
— Veio ao funeral, Diamantino?
— Funeral? Funeral de quem?
— Da Marlu. Morreu esta noite.
Diamantino tomba desamparado sobre a cadeira. Leva a mão ao rosto
para se certificar de que ainda existe.
— Não sei o que dizer — murmura ele. — Sempre pensei que Marlu não
tivesse sobrevivido aos bombardeamentos.
— O que se passa, Diamantino? — espanta-se um dos vizinhos. — Desde
que ficou viúvo, não houve tarde em que o senhor não tivesse levado a
passear a nossa querida Marlu.
— Ainda ontem saíram os dois, já não se lembra? — pergunta um outro
vizinho.
Diamantino retira-se, os sapatos raspando as cinzas. Regressa a casa, o
universo pesando-lhe nos ombros. Sempre soube vencer o escuro. Mas
reconhece que lhe faltou discernimento para admitir que, apesar das cinzas,
a cidade se mantinha viva, na companhia dos vivos. Se alguém enviuvara
tinha sido apenas ele.
Dirige-se ao velho poço e ali se deixa ficar sentado na cadeira de rodas, o
braço estendido sobre uma sombra aberta entre um pequeno monte de
pedras. Num dado momento, escuta passos de alguém que se aproxima. São
passos de mulher, disso ele está certo. E reconhece o silêncio de quem
chegou. Depois o cego faz pender mais o braço sobre o chão, aponta para a
sombra entre as pedras e pergunta:
— Já germinou?
— Já despontam duas pequenas folhinhas — responde uma voz toldada
pela comoção.
Do braço de Diamantino tomba uma gota de suor. E ele jura que é a
chuva que regressa. Como jura que um vulto de mulher se vai afastando por
entre o nevoeiro. Às vezes, mentir é a melhor forma de rezar.
FIM
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MIA COUTO Nasceu na Beira, Moçambique, em
1955. Foi jornalista e professor, e é, atualmente, biólogo e escritor.
Está traduzido em diversas línguas.
Entre outros prémios e distinções (de que se destaca a nomeação, por um júri criado para o efeito pela Feira Internacional do Livro do Zimbabwe, de Terra Sonâmbula como um dos doze melhores livros africanos do século XX), foi galardoado, pelo conjunto da sua já vasta obra, com o Prémio Vergílio Ferreira 1999 e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas 2007.
Ainda em 2007 Mia foi distinguido com o Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura pelo seu romance O Outro Pé da Sereia.
Jesusalém foi considerado um dos 20 livros de ficção mais importantes da «rentrée» literária francesa por um júri da estação radiofónica France Culture e da revista Télérama.
Em 2011 venceu o Prémio Eduardo Lourenço, que se destina a premiar o forte contributo de Mia Couto para o desenvolvimento da língua portuguesa.
Em 2013 foi galardoado com o Prémio Camões e com o prémio norte-americano Neustadt.
Em 2020 foi galardoado com o Prémio Jan Michalski de Literatura, atribuído anualmente pela Fundação suíça Jan Michalski, tem o valor monetário de 50.000 francos suíços e inclui também uma escultura em madeira do artista nigeriano Alimi Adewale, e distingue a trilogia As Areias do Imperador, publicada em Portugal pela Editorial Caminho em 2015-2018. in
almedina.net
A GOTA
- conto
in 'O Caçador de Elefantes Invisíveis'
Contos
Autor: Mia Couto
Editorial Caminho, 2021
18.Dez.2021
Maria José Alegre
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