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imagem da capa do conto 'La Gama Ciega' de Horacio
Quiroga
Era uma vez um veado — uma corça — que teve filhos gémeos, coisa rara entre os cervos. Mas um gato selvagem comeu
um deles, e apenas a fêmea restou. Era uma criatura tão linda, que
todas as mães corças da floresta desejavam que ela fosse sua e para mostrarem a
sua afeição passavam o tempo a mordiscar-lhe, gentilmente, o dorso, com os
lábios.
A mãe fazia-a repetir todas as manhãs, ao raiar do dia, a oração dos veados. Diz
assim:
-
Devo cheirar cada folha de erva, antes de a comer, porque algumas são
venenosas.
-
Devo parar e olhar bem para cima e para baixo do curso do rio antes de
baixar a minha cabeça para beber, para ter a certeza de que não há jacarés por
perto.
-
A cada meia hora devo levantar a cabeça e cheirar cuidadosamente o vento,
para sentir o cheiro da pantera.
-
Quando como a erva do prado, devo olhar bem à minha frente, para ver se há
alguma cobra.
Este é o catecismo dos veados pequenos. Quando a pequena corça aprendeu isto
bem, a mãe passou a deixá-la andar sozinha.
Uma tarde, porém, enquanto atravessava a montanha comendo folhas novas, de
repente viu diante de si, no tronco oco de uma árvore, muitas bolinhas
penduradas umas nas outras. Eram de cor escura, cinzentas.
Que seria? Ficou um pouco assustada, mas como era muito travessa, deu uma
cabeçada naquelas coisas e disparou.
Viu então, que as bolinhas tinham rachado e que de lá saíam gotas. E
também saíram muitas moscas loiras, pequenas, com cinturas muito finas, andando
apressadamente na sua direcção.
A corça aproximou-se e as mosquinhas não a morderam. Lentamente, então, muito
lentamente, provou uma gota com a ponta da língua e lambeu-a com prazer: aquelas
gotas eram mel, e mel delicioso porque as bolinhas cor de ardósia eram uma
colmeia de abelhinhas que não picavam porque não tinham ferrão. Existem abelhas
assim na América do Sul.
Num instante a corçazinha comeu o mel todo e, louca de felicidade, foi contar à
mãe. Mas a mãe repreendeu-a seriamente. "Tem muito cuidado, minha filha",
disse-lhe, "com os ninhos de abelhas. O mel é uma coisa muito saborosa, mas é
muito perigoso ir buscá-lo. Nunca mexas nos ninhos que encontres".
A pequena corça gritou alegremente: "Mas elas não mordem, mãe!" Os vespões e as
vespas mordem; as abelhas não.
"Estás enganada, minha filha", continuou a mãe. Tiveste sorte hoje, nada mais.
Existem abelhas tão más como as vespas. Cuidado, minha filha, porque vais-me dar
um grande desgosto.
— Sim mãe! Sim mãe! respondeu a corça. Mas a primeira coisa que fez na manhã
seguinte foi seguir o caminho que os homens abriram nas montanhas, para mais
facilmente procurar ninhos de abelhas.
Até que finalmente encontrou um. Desta vez o ninho tinha abelhas escuras, com
uma faixa amarela na cintura, a andar em cima do ninho. O ninho também era
diferente; mas a pequena corça pensou que como aquelas abelhas eram maiores, o
mel devia ser mais rico. Ela também se lembrou da recomendação da mãe; mas,
achou que a mãe estavava a exagerar, como as mães das corças costumam exagerar.
E aí, deu uma grande marrada no ninho.
Quem me dera que nunca o tivesse feito! Centenas de vespas, milhares de vespas
saíram imediatamente e picaram-na por todo o lado, encheram-lhe o corpo de
picadas, na cabeça, na barriga, na cauda e pior que tudo, nos olhos. Ela foi
picada mais de dez vezes nos olhos.
Louca de dor, a corça correu e correu gritando, até que de repente teve que
parar porque já não conseguia ver: estava cega, completamente cega.
Os olhos tinham-lhe inchado enormemente, e ela já não conseguia ver nada. Então
parou, ficou quieta e tremendo de dor e medo, só foi capaz de chorar
desesperadamente.
—
"Mãe! Mãe!...
A mãe, que tinha saído à procura da filha, porque ela estava a demorar muito,
finalmente encontrou-a; também ela se desesperou ao ver a sua pequena
corça cega. Levou-a passo a passo para o covil, apoiando-lhe a cabeça no seu
pescoço, e todos os animais da floresta que encontraram no caminho, se
aproximaram para olhar para os olhos da infeliz corça.
A mãe não sabia o que fazer. Que poderia fazer? Ela sabia muito bem que na
cidade, do outro lado da montanha, vivia um homem que tinha remédios. O homem
era caçador e também caçava veados, mas era um bom homem. Porém a mãe tinha medo
de levar a filha a um homem que caçava veados. Mas, como estava desesperada,
decidiu fazê-lo. Mas primeiro decidiu pedir uma carta de apresentação a um
Papa-formigas, que sabia ser um grande amigo do homem.
Deixou a filha bem escondida, e correu pela montanha, onde um leão da montanha
quase a alcançou. Quando chegou ao covil do amigo, não conseguia nem dar mais
passo, de tão cansada.
Esse amigo era, como já foi dito, um
Papa-formigas; mas era de uma espécie pequena — um indivíduo pequeno, amarelo
com uma capa preta sobre os ombros, que lhe chegava à cinta, onde era atada por
baixo da barriga com uns cordões pretos. Também têm uma cauda preênsil porque
vivem em árvores e penduram-se pelas caudas.
De onde veio esta amizade íntima entre o Papa-formigas e o caçador? Ninguém o
sabia na floresta, mas algum dia o havemos de descubrir....
A pobre mãe chegou, então, à toca do
Papa-formigas.
—“Tan! Tan! Tan!” —bateu quase
sem fôlego.
— Quem é? perguntou o Papa-formigas.
—
"Sou eu, a corça!"
— Ah bom! E o que quer a corça?
—"Vim pedir-lhe um carta de apresentação para o caçador. A pequena corça, a
minha filha, está cega".
— "Ah, a pequena corça? De quem toda a gente gosta?" Respondeu o Papa-formigas.
"É
uma corça boazinha. Se é para ela, eu dou-lhe o que quiser. Mas não precisa de
nada escrito... Mostre-lhe isto que ele vai atendê-la".
E com a ponta da cauda, o Papa-formigas estendeu-lhe uma cabeça de víbora
completamente seca, que ainda tinha as presas venenosas.
—
"Mostre-lhe isto", disse o Papa-formigas. "Não é necessário mais nada".
—
"Obrigada, Papa-formigas!" respondeu a corça alegremente. Você também é uma
boa pessoa.
E fugiu, porque já era muito tarde e ia amanhecer em breve.
Passando pela toca, pegou na filha, que não parava de se queixar, e juntas, chegaram
finalmente à cidade, onde tiveram que andar muito devagar e coser-se
com as paredes para que os cães não as notassem. Chegaram ao portão do caçador.
— “Tan! Tan! Tan!” — bateram.
— O que há? A voz de um homem
respondeu de dentro.
—Somos as corças!... TEMOS A CABEÇA
DE UMA VÍBORA! Apressou-se a mãe a dizer, para que o homem soubesse que elas
eram amigas do Papa-formigas.
—
"Uh-huh!" disse o homem, abrindo a porta. O que é que se passa?
— Estamos à procura de cura para a minha filha, a pequena corça, que está
cega.
E contou ao caçador toda a história das abelhas.
— "Hum! Vamos ver o que essa jovem tem", disse o caçador. E voltando para dentro
da casa, saiu de novo com uma cadeira alta, onde fez a pequena corça sentar-se,
para poder ver-lhe bem os olhos, sem se abaixar muito. Examinou-lhe os olhos bem
de perto, com um grande vidro redondo, enquanto a mãe alumiava com uma lanterna
pendurada ao pescoço.
—
"Não é grande coisa", disse por fim, o caçador ajudando a pequena corça a
descer. Mas têm de ter muita paciência.Ponha-lhe esta pomada nos olhos todas as
noites e mantenha-a vinte dias no escuro. Passado esse prazo faça-a usar estes
óculos amarelos, e ficará curada.
—
"Muito obrigada, caçador!" respondeu a mãe, muito feliz e agradecida. Quanto lhe
devo?
—
"Não é nada", respondeu o caçador, sorrindo. Mas tome muito cuidado com os cães,
pois aqui ao lado mora um homem com cães caçadores de veados.
As corças estavam aterrorizadas; mal pisavam o chão e paravam a cada momento.
Apesar disto, os cães farejaram-nas e perseguiram-nas meia légua pelo bosque,
correndo por uma ravina muito comprida, com as corças a balir à frente deles.
Tal como o caçador prometera, a cura aconteceu. Mas só a mãe sabia quanto lhe
custou ter a pequena corça trancada, durante vinte intermináveis dias, dentro do
tronco oco de uma grande árvore. Dentro não havia nada para ser visto.
Finalmente, uma manhã, a mãe empurrou com a cabeça para o lado a grande pilha de
galhos com que tinha tapado o tronco da árvore para que a luz não entrasse, e a
pequenina corça, com os seus óculos amarelos, saiu a correr e gritou:
—
"Eu vejo, mãe! Vejo tudo!
E a corça, apoiando a cabeça num galho, chorou de alegria, vendo a filhinha
curada.
Ficou completamente curada. Mas, embora curada, saudável e feliz, a pequena
corça guardava um segredo que a entristecia. E o segredo era este: ela queria a
todo o custo pagar ao homem que tinha sido tão bom para ela e não sabia como.
Até que um dia pensou ter encontrado uma maneira e começou a andar pelas margens
das lagoas e pântanos à procura de penas de garça para levar ao caçador.
O caçador, por sua vez, às vezes
lembrava-se da pequena cega que havia tratado.
Numa noite chuvosa o homem estava a ler no quarto, muito feliz porque acabara de
consertar o telhado de palha, onde agora não chovia mais, quando ouviu alguém a
chamar. Abriu a porta e viu a pequena corça com uma trouxa, um pequeno
espanador, de penas de garça, todo molhado, a pingar.
— “Trago-lhe aqui uma coisa,”
explicou a corça.
O caçador começou a rir, e a corça, envergonhada porque achou que o caçador se
estava a rir do seu pobre presente, foi-se embora muito triste. Procurou então
penas maiores, muito secas e limpas, e uma semana depois voltou com elas; e
desta vez o homem, que da vez anterior rira por afecto, desta vez não riu porque
os veados não entendem o riso. Em vez disso, convidou-a a entrar e pôs-lhe à
frente um
pote cheio de mel, que a pequena corça lambeu cheia de felicidade.
Desde então, a corça e o caçador tornaram-se grandes amigos. Ela trazia-lhe
sempre penas de garça, que são muito valiosas, e passava horas à conversa com o
homem. E ele punha-lhe sempre um pote de mel na mesa e puxava a cadeira alta
para a amiga. Às vezes também lhe dava charutos, que a corça comia, mas claro,
não fumava, porque fumar faz mal até mesmo aos veados. Passavam assim o tempo,
olhando as chamas, porque o homem tinha uma lareira, enquanto lá fora o vento e
a chuva sacudiam os beirais de palha da cabana.
Por medo dos cães, a pequena corça só
o visitava em noites de tempestade, em que os cães estavam recolhidos. Portanto,
quando a noite caía e começava a chover, o caçador colocava um jarro de mel e um
guardanapo sobre a mesa, enquanto bebia café e lia, esperando pelo “Tan! Tan!
Tan!” da pequena corça, que permaneceu, por toda a vida, sua amiga leal.
FIM
Cuentos de la selva - 1918
Horacio Quiroga (1878 — 1937) foi um escritor uruguaio famoso pelos seus contos, que geralmente tratam de eventos fantásticos e macabros. Leitor obsessivo de Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant, Quiroga foi atraído por temas que incluíam os mais estranhos aspectos da natureza, muitas vezes tingidos de horror, doença e sofrimento para os seres humanos. Muitas de suas histórias pertencem a esta corrente, cuja obra mais emblemática é a coletânea
Contos de Amor de Loucura e de Morte.
Por outro lado, percebe-se em Quiroga, a influência do britânico Rudyard
Kipling, que se cristalizaria em seu próprio Contos da Selva, delicioso exercício de fantasia dividido em várias histórias protagonizadas por animais.
Horácio Quiroga, de facto, deixou para a posteridade algumas das mais terríveis,
brilhantes e transcendentais obras da literatura hispano-americana do século XX. in
https://pt.wikipedia.org/wiki/Horacio_Quiroga
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A Corça Cega
Horacio Quiroga
in Cuentos de la selva (1918)
tradução: Maria José Alegre
19.Dez.2022
Publicado por
MJA
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