|
A Conversão de S. Paulo - Michelangelo, 1542-1545
A conversão de São Paulo tem sido considerada por todos os cristãos como um
facto decisivo na história do Cristianismo. Ela teve seu início com um evento
universalmente conhecido que o deixou cego por três dias, deles emergindo como
um novo homem.
Saulo havia sido por diversos anos um fervoroso fariseu, além de um convicto
perseguidor dos adeptos da nova seita do Nazareno que se afirmara Filho de Deus,
considerada então uma verdadeira heresia na Sinagoga Judaica. Na verdade, tão
envolvido estava Saulo que, quando o primeiro mártir da incipiente religião
- Santo Estêvão - foi apedrejado, esteve não só presente como também
indiretamente ajudou na execução da pena, segurando os mantos dos apedrejadores
para melhor executarem sua tarefa.
Diversos médicos e estudiosos escreveram a respeito do facto que modificou
drasticamente a vida de Saulo de Tarso. Alguns acham que ele foi vitima de um
ataque epilético, podendo a intensa luz por ele relatada ter sido a aura que
antecede esses eventos médicos. Há outros que especulam em torno de problemas
relacionados a uma artrite ou mesmo malária.
O que parece certo é que, intervenção miraculosa à parte, Saulo foi severamente
atingido, física e psicologicamente. Para uma análise objetiva do que sucedeu, é
preciso conhecer um pouco as circunstâncias por ele vividas.
Em primeiro lugar é básico considerar que a distância percorrida por Saulo, entre Jerusalém e
Damasco, é de pouco mais ou menos 200 quilómetros, quase toda ela coberta por um
deserto de areia branca e de natureza inóspita. Essa viagem, numa caravana de
camelos, demandava de seis a sete dias de marcha, muito embora estejamos
acostumados a visualizar um Saulo de Tarso caindo de fogoso cavalo, o que não
corresponde à realidade daqueles tempos.
A caravana cruzou o deserto pelas
colinas da Samaria, sob sol ardente e muito brilhante, num calor fortíssimo. Ao
final dessa cansativa viagem, é natural que Saulo estivesse preocupado com sua
missão, a ele confiada pelo sumo sacerdote através de cartas às sinagogas de
Damasco. Cansado e tenso, ele aguardava os primeiros sinais da paisagem do seu
destino quando, segundo seus relatos, viu uma luz muito forte e caiu ao chão,
ouvindo uma voz que se identificava como de Jesus Nazareno.
Cego ao levantar-se, Saulo teve que ser "levado pela mão" à cidade
em busca de
ajuda, pois estava doente e não podia nem beber nem comer por três dias.
Virtualmente fechado em ambiente escuro por todo esse tempo, devido às dores nos
olhos, com certeza muito abalado com sua cegueira que provavelmente associava a
um castigo divino, como era costumeiro no seio do povo hebreu, Saulo foi
inicialmente atendido por solícitos adeptos da "seita do Nazareno". Pode ter
parecido a ele um verdadeiro milagre quando Ananias entrou, conversou com ele,
tocou-o e ele recuperou a sua visão.
O que deve ter acontecido com os olhos de Saulo de Tarso?
Autores categorizados
acham que a sua cegueira temporária foi causada pelos efeitos nocivos de muita
irradiação solar sobre os olhos, causando alguma queimadura da córnea por raios
ultravioletas. Esse tipo de cegueira acontece devido aos reflexos do sol na
areia branca do deserto ou aos reflexos na neve.
"O efeito no olho é cumulativo e Paulo deve ter recebido mais do que suficiente
radiação, especialmente quando olhou para o céu. Este é um efeito biótico e a
recuperação do estágio agudo requer vários dias de convalescença. A vitima fica
temporariamente cega, não pode abrir seus olhos e sofre com muitas dores e
ansiedade. Fica inutilizada e é compelida a manter-se no leito. Todavia, como o
epitélio se regenera com rapidez, a sensível córnea nua volta a ser coberta e
então o paciente vive uma brusca e dramática recuperação como viveu Paulo" ("The
Blindness of Saint Paul", de Manchester e Manchester).
São Paulo viveu todo o resto de sua vida com algumas seqüelas do mal e isso é
perceptível ao analista cuidadoso, por alguns sinais, um dos quais seria sua
própria informação quanto à sua letra provavelmente maior ou diferente do que a
costumeira: "Vejam com que letras eu lhes escrevi com minhas mãos" (in
Epistola
aos Gálatas) e "Minha saudação da mão de Paulo: que é minha marca em toda carta.
Assim escrevo" (in Epístola aos Tessalonicenses (2a), ao final). A tradução
corresponde às palavras na Vulgata, em latim.
São Paulo tinha algumas dificuldades para ler, escrever e mesmo reconhecer
pessoas a certa distância, o que talvez indique grave redução de sua acuidade
visual. Vejamos, por exemplo, o facto narrado nos Atos dos Apóstolos (23:1 a 6):
Levado diante do Sinédrio para esclarecer graves acusações feitas contra ele,
Paulo olhou o aglomerado de sacerdotes e não distinguiu a presença muito
importante do sumo sacerdote Ananias. E foi considerado irreverente pela mais
alta autoridade da Sinagoga Judaica, tanto assim que recebeu uma bofetada na
boca tão logo começou a falar, por ordem de Ananias. Paulo reagiu e qualificou-o
de "parede caída". Na confusão estabelecida, ele foi questionado se estava
maldizendo o sumo sacerdote. Neste ponto ele afirmou: "Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote"...
Parece também evidente que São Paulo foi vítima de um mal crônico e desagradável
que, em suas cartas, chama de "espinho da carne". Relembremos uma pequena frase
sua inserida na carta aos cristãos de Gálata, com os quais convivera bastante:
"Sabeis que ao princípio vos preguei o Evangelho com enfermidade na carne: e
sendo eu a vossa provação na minha carne, vós não me desprezastes nem
rejeitastes" (Gal. 4:13/14). A tradução aqui também leva em conta a Vulgata
latina.
Para os cristãos o facto concreto é que, logo após o evento que levou Saulo de
Tarso a três dias de cegueira, ele mudou drasticamente e foi um dos maiores
esteios da Cristandade. Conviveu o resto de seus dias com alguma deficiência
parcial da visão e certamente com algum outro mal (epilepsia, malária, artrite,
não se sabe) indefinido e marcante que não diminuiu em nada o seu entusiasmo na
transmissão da doutrina de Cristo, mas que acabou influenciando seus pensamentos
e suas pregações.
FIM
ϟ
A Cegueira de São Paulo, Apóstolo
in A EPOPÉIA IGNORADA
-A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje-
Autor: Otto Marques da Silva
São Paulo − CEDAS, 1987
5.Abr.2023
Publicado por
MJA
|