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O Cego - Arthur von Ferraris, 1892
Na cidade indiana de Surat, havia uma cafeteria. Para lá iam viajantes de várias
partes do mundo e os estrangeiros muitas vezes conversavam.
Certa vez, foi lá um culto teólogo persa. Passara a vida toda estudando a
essência da divindade e sobre isso lia e escrevia livros. Pensou, leu e escreveu
muito sobre Deus, acabou perdendo a razão, tudo se embaralhou dentro de sua
cabeça e por fim ele chegou ao ponto de parar de crer em Deus.
O rei soube disso e o expulsou do reino persa.
Depois de ter discutido a vida inteira sobre a causa primeira, o infeliz teólogo
se confundiu todo e, em vez de entender que já havia perdido o juízo, passou a
pensar que não existia mais uma razão superior que governava o mundo.
Esse teólogo tinha um escravo africano que o acompanhava por toda parte. Quando
o teólogo entrou na cafeteria, o africano ficou do lado de fora, atrás da porta,
e sentou-se numa pedra debaixo do sol; ficou ali sentado, enxotando as moscas.
Já o teólogo deitou-se num sofá dentro da cafeteria e mandou que servissem uma
xícara de ópio. Quando bebeu a xícara e o ópio começou a afetar o seu cérebro, ele
se voltou para seu escravo.
– Ei, escravo desprezível – chamou o teólogo –, diga-me o que acha: Deus existe
ou não?
– Claro que existe! – respondeu o escravo e na mesma hora tirou de trás do cinto
um pequeno ídolo de madeira. – Olhe – disse o escravo. – Olhe este Deus. Eu o
trago comigo desde que vim ao mundo. Este Deus é feito de um galho da árvore
sagrada adorada por todo mundo em nossa terra.
As pessoas que estavam na cafeteria ouviram a conversa entre o teólogo e o
escravo e ficaram surpresas.
Pareceu-lhes surpreendente a pergunta do senhor e mais surpreendente ainda a
resposta do escravo.
Um brâmane que ouvira as palavras do escravo se voltou para ele e disse:
– Louco infeliz! Será possível que alguém pense que Deus pode estar preso atrás
do cinto de um homem? Deus é um só: brama. E esse brama é maior que o mundo
inteiro, porque ele criou o mundo todo. Brama é o Deus único e supremo; o Deus
para o qual construíram templos nas margens do rio Ganges, o Deus a quem servem
seus únicos sacerdotes, os brâmanes. Só esses sacerdotes conhecem o Deus
verdadeiro. Já passaram vinte mil anos e, por mais voltas que o mundo tenha
dado, esses sacerdotes permanecem tais como sempre foram, porque brama, o Deus
único e verdadeiro, os protege.
Assim falou o brâmane, achando que ia convencer todos, porém um cambista judeu
que estava ali retrucou:
– Não – disse. – O templo do Deus verdadeiro não está na Índia!… E Deus não
protege a casta dos brâmanes! O Deus verdadeiro não é o Deus dos brâmanes, mas o
Deus de Abraão, Isaac e Jacó. E o Deus verdadeiro só protege seu único povo de
Israel. Desde o início do mundo, sem cessar, Deus amou e ama só nosso povo. E se
agora nosso povo está disperso pelo mundo, isso é apenas uma provação e Deus,
como prometeu, vai reunir de novo seu povo em Jerusalém para reconstruir a
grande maravilha da Antiguidade, o Templo de Jerusalém, e estabelecer Israel
como senhor supremo de todo o mundo.
Assim falou o judeu e começou a chorar. Queria continuar seu discurso, mas um
italiano que estava ali interrompeu:
– O senhor não está dizendo a verdade – disse o italiano para o judeu. – O
senhor atribui a Deus uma injustiça. Deus não pode amar a um povo mais do que
aos outros. Ao contrário, se antes ele protegia o povo de Israel, já passaram
mil e oitocentos anos desde que Deus se irritou e, em sinal de sua ira, pôs fim
à existência desse povo e o dispersou pelo mundo, de modo que essa fé não só não
se propaga como dela só restam vestígios, aqui e ali. Deus não mostra
preferência por nenhum povo e convida todos que desejam se salvar para o seio da
única Igreja Católica Romana, fora da qual não há salvação.
Assim falou o italiano. Mas ali estava um pastor protestante, que empalideceu e
respondeu ao missionário católico:
– Como pode o senhor dizer que a salvação só é possível na sua religião? Saiba
que só serão salvos aqueles que, segundo o Evangelho, servirem a Deus no
espírito e na verdade, segundo o mandamento de Jesus.
Então um turco, que trabalhava na alfândega de Surat e que estava ali fumando um
cachimbo, se virou com ar superior para os dois cristãos:
– De nada adianta os senhores estarem tão convictos da verdade de sua fé romana
– disse. – Há mais ou menos seiscentos anos, sua fé foi substituída pela fé de
Maomé. E, como os senhores mesmos podem ver, a fé verdadeira de Maomé se propaga
cada vez mais pela Europa, pela Ásia e até na esclarecida China. Os senhores
mesmos reconhecem que os judeus foram proscritos por Deus e, como prova, citam
que os judeus foram humilhados e que sua fé não se propaga mais. Reconheçam
então a verdade da fé de Maomé, porque ela se encontra em seu esplendor e se
propaga sem cessar. Só vão se salvar os que acreditam no último profeta de Deus,
Maomé. Mas isso é só para os seguidores de Omar, e não os de Ali, pois os
adeptos de Ali são infiéis.
Diante de tais palavras, o teólogo persa, que pertencia à seita de Ali, quis
retrucar. Mas nessa altura se formou uma enorme discussão dentro da cafeteria,
entre todos os estrangeiros ali presentes, das mais diversas crenças e
confissões. Havia ali cristãos abissínios, lamas indianos, ismaelitas e
adoradores do fogo.
Todos discutiam sobre a essência de Deus e sobre como era preciso adorá-lo. Cada
um acreditava que só em sua terra conheciam o Deus verdadeiro e sabiam como era
preciso adorá-Lo.
Todos discutiam, gritavam. Só um chinês ali presente, um discípulo de Confúcio,
continuou sossegado num canto da cafeteria e não entrou na discussão. Bebia seu
chá, escutava o que diziam, mas ficava calado.
O turco, ao notar o chinês no meio da discussão, se voltou para ele e disse:
– Bom chinês, me dê seu apoio. Você se cala, mas podia falar alguma coisa em meu
favor. Sei que na China vocês agora introduziram várias religiões. Seus
mercadores me disseram muitas vezes que, entre todas as outras, os chineses
consideram a fé maometana a melhor e a adotam de bom grado. Apoie minhas
palavras e diga o que pensa sobre o Deus verdadeiro e seu profeta.
– Sim, sim, diga o que pensa – voltaram-se os outros para ele.
O chinês, discípulo de Confúcio, fechou os olhos, pensou um pouco e depois abriu
os olhos, retirou as mãos de dentro das mangas largas de sua roupa, cruzou-as no
peito e começou a falar em voz baixa e calma.
– Senhores – disse ele. – Parece-me que é o orgulho, acima de tudo, que impede
as pessoas de entrarem em acordo na questão da fé. Se os senhores se derem ao
trabalho de me escutar, vou explicar isso por meio de um exemplo.
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Vim da China para Surat num navio inglês que tinha dado a volta ao mundo. No
caminho, fomos à margem oriental da ilha de Sumatra para nos abastecer de água.
Ao meio-dia, descemos a terra e sentamo-nos à beira do mar, na sombra de coqueiros,
perto de uma aldeia dos habitantes da ilha. Éramos de várias terras diferentes.
Quando estávamos ali, se aproximou um cego.
Como soubemos depois, o homem tinha ficado cego porque havia olhado para o Sol
por muito tempo e fixamente. Ele olhou para o Sol por tanto tempo e tão
fixamente porque queria entender o que é o Sol. E queria saber isso para se
apoderar da luz do Sol.
Ele se empenhou muito tempo, olhava sempre para o Sol e não conseguia fazer
nada, a única coisa que conseguiu foi deixar os olhos doentes e ficar cego.
Então disse para si:
'A luz do Sol não é um líquido, porque, se fosse um líquido, seria possível
derramá-la e ela balançaria ao vento, como a água. A luz do Sol também não é
fogo, porque, se fosse fogo, apagaria na água. A luz do Sol também não é um
espírito, porque é visível, e não é um corpo, porque não se pode transportá-la.
E assim, já que a luz do Sol não é um líquido nem um sólido nem um espírito nem
um corpo, então a luz do Sol não é nada'.’
Dessa forma ele raciocinava e a certa altura, por ter olhado sempre para o Sol
e pensado sempre nele, perdeu a visão e também a razão.
Quando ficou totalmente cego, já estava completamente convencido de que o Sol
não existia.
Com o cego, andava sempre seu escravo. Ele acomodou seu senhor na sombra do
coqueiro, levantou um coco do chão e, com ele, começou a fazer um lampião
noturno. Fez um pavio com a fibra do coco, retirou óleo do coco, pôs na casca e
encharcou nele o pavio.
Enquanto o escravo fazia seu lampião, o cego suspirou e lhe disse:
‘E então, escravo, não é verdade o que eu lhe disse, que o Sol não existe?
Está vendo como está escuro? E ainda dizem que o Sol existe… Então o que é o
Sol?’
‘Não sei o que é o Sol’ – respondeu o escravo. – ‘Não tenho nada a ver com
isso. Mas da luz eu sei. Olhe, fiz um lampião, agora não vou ficar no escuro e
posso prestar serviço a você e achar tudo dentro da minha barraca.’
E o escravo pegou na mão sua casca de coco.
‘Olhe’ – disse. – ‘Isto é o meu Sol.’
Ali também estava sentado um aleijado com sua muleta. Ele ouviu aquilo e riu.
‘Pelo visto, você é cego de nascença’ – disse para o cego, já que não sabe o
que é o Sol. ‘Vou lhe dizer o que é: o Sol é uma bola de fogo e todo dia essa
bola sai do mar e toda noite se deita nas montanhas de nossa ilha; todos nós
vemos isso e você também veria, se tivesse visão.’
Um pescador que também estava ali ouviu aquelas palavras e disse ao aleijado:
‘Pelo visto, você nunca esteve em outro lugar que não na sua ilha. Se não
fosse aleijado e viajasse pelo mar, saberia que o Sol não se deita nas montanhas
de nossa ilha e que, assim como se levanta do mar de manhã, de noite ele se
deita de novo no mar. O que digo é o certo, porque todo dia vejo isso com meus
olhos.’
Um indiano ouviu aquilo.
‘Admira ver como um homem inteligente pode falar tanta bobagem’ – disse ele. –
‘Será possível que uma bola de fogo afunde na água e não apague? O Sol não é
absolutamente uma bola de fogo: o Sol é uma divindade. Essa divindade se chama
Deva. Essa divindade viaja pelo céu numa carruagem, em redor da montanha dourada
Sumeru. Às vezes, as serpentes malignas Pagu e Ketu atacam Deva e o engolem e aí
fica escuro. Mas nossos sacerdotes rezam para que a divindade se liberte e então
ela se liberta. Só pessoas ignorantes como o senhor, que nunca viajou para além
de sua ilha, podem imaginar que o Sol só brilha em sua ilha.’
Então o dono de um navio egípcio que estava ali começou a falar:
‘Não’ – disse ele –, ‘isso também não é verdade, o Sol não é uma divindade e
não anda só em volta da Índia e de sua montanha dourada. Naveguei muito pelo mar
Negro, pelas margens da Arábia, estive em Madagascar, nas ilhas das Filipinas, e
o Sol ilumina todas as terras, não só a Índia, e ele não anda em redor de uma
montanha, mas se levanta nas ilhas do Japão e por isso aquelas ilhas são
chamadas de Iapen, ou seja, na língua deles, o nascimento do Sol, e depois se
põe longe, longe, no oeste, além das ilhas da Inglaterra. Sei disso muito bem,
porque eu mesmo vi bastante e ouvi meu avô falar muito sobre isso. E meu avô
navegou até o fim dos mares.’
Queria continuar falando, mas um marinheiro inglês de nosso navio o
interrompeu.
‘Não existe país onde se saiba mais sobre o movimento do Sol do que na
Inglaterra’ – disse ele. – ‘Todos nós na Inglaterra sabemos que o Sol não se
levanta nem se deita em lugar nenhum. Ele anda sem parar em torno da Terra.
Sabemos disso muito bem, porque nós mesmos demos a volta em redor da Terra e não
esbarramos com o Sol. Em toda parte, como aqui, o Sol aparece de manhã e se
esconde à noite.’
E o inglês pegou uma bengala, riscou um círculo na areia e começou a explicar
como o Sol anda pelo céu em redor da Terra. Mas não conseguiu explicar direito
e, depois de apontar para o timoneiro de seu navio, disse:
‘Na verdade, ele é mais instruído do que eu e pode explicar melhor tudo isso
para vocês.’
O timoneiro era um homem sensato e escutava toda a conversa em silêncio,
enquanto ninguém lhe perguntava nada. Mas agora que todos estavam voltados para
ele, começou a falar e disse:
‘Todos vocês enganam uns aos outros e se enganam a si mesmos. O Sol não gira
em redor da Terra, é a Terra que gira em torno do Sol e gira em torno de si
mesma, rodando na direção do Sol ao longo de vinte e quatro horas, e assim
também o Japão, as Filipinas e Sumatra, onde estamos agora, e a África, a
Europa, a Ásia e ainda muitas outras terras. O Sol não brilha para uma montanha
nem para uma ilha nem para um mar nem para uma terra, mas para muitos planetas
iguais à Terra. Cada um de vocês poderia entender tudo isso se olhasse para o
céu e não para debaixo do próprio nariz e assim não pensaria que o Sol brilha só
para si e para sua terra.’
Assim falou o sábio timoneiro, que tinha viajado muito pelo mundo e tinha olhado
muito para o céu.
– Sim, o erro e a discórdia das pessoas em questões de fé decorrem do orgulho –
prosseguiu o chinês, discípulo de Confúcio. – O que acontece com o Sol também se
passa com Deus. Todo homem quer ter um Deus próprio, especial, ou pelo menos um
Deus de sua terra natal. Cada povo quer encerrar em seu próprio templo aquilo
que o mundo inteiro não consegue abarcar. Todos os templos humanos são feitos à
imagem de outro templo: o mundo de Deus. Em todos os templos existe uma pia
batismal, arcos, velas, imagens, inscrições, livros de mandamentos, sacrifícios,
altares e sacerdotes. Mas em que templo existe uma pia batismal como o oceano,
um arco como a abóbada celeste, velas como o Sol, a Lua e as estrelas, imagens
como as pessoas vivas que se amam e se ajudam umas às outras? Onde há inscrições
sobre a bondade de Deus tão compreensíveis quanto as bênçãos que Deus espalhou
por toda parte para a felicidade das pessoas? Onde há um livro de mandamentos
tão claro para todos como aquele que está escrito no coração de cada pessoa?
Onde há sacrifícios comparáveis aos sacrifícios de renúncia que as pessoas
gostam de oferecer a seus próximos? E onde há um altar comparável ao coração de
um homem bom, no qual o próprio Deus aceita o sacrifício?
Quanto mais elevada for a compreensão que o homem tem de Deus, melhor ele irá
conhecê-lo. E quanto melhor ele conhecer Deus, mais irá se aproximar Dele,
imitar Sua bondade, misericórdia e amor pelas pessoas.
Portanto aquele que vê toda a luz do Sol que enche o mundo não deve condenar nem
desprezar o homem supersticioso que vê em seu ídolo só um raio da mesma luz, e
também não deve desprezar o descrente que é cego e não vê luz nenhuma.
Assim falou o chinês, discípulo de Confúcio, e todos que estavam na cafeteria se
calaram e não discutiram mais sobre qual fé era a melhor.
FIM

Leão Tolstoi
Escritos entre a década de 1850 e o início do
século XX, os
contos têm como pano de fundo uma época de
intensa transformação da Rússia, marcada pelo início das relações capitalistas,
pelas guerras imperialistas sobre o Cáucaso e pelo constante ideal de
modernização, que também permeou a literatura. Tolstói, que sempre dedicou sua
atenção aos camponeses, às classes baixas ou àqueles que estavam em conflito com
a ordem dominante, orienta sua escrita para um questionamento do modelo
literário europeu vigente. Povos do Cáucaso, cossacos, ciganos, mujiques,
integrantes de seitas religiosas, todos eles são retratados num projeto com
forte sensibilidade etnográfica. Na intenção de salientar a verdadeira força
cultural russa, além de personagens, essas figuras contaminam a forma narrativa
de Tolstói. Em seus contos transparecem os modelos das formas literárias
arcaicas e orais, tradicionais e inovadoras numa Rússia em profunda
transformação.
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A Cafeteria de Surat
Conto
(1892)
[Segundo Bernardin de Saint-Pierre]
in Contos Completos
Liev Tolstói.
18.Abr.2024
Publicado por
MJA
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